quarta-feira, 28 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22411: Tabanca da Diáspora Lusófona (16): Entrevista, à agência Lusa, do João Crisóstomo que iniciou a sua luta por causas sociais na casa da 5ª Avenida, em Nova Iorque, de Jacqueline Kennedy Onassis, de quem foi mordomo. (A antiga primeira-dama dos EUA detestava rosas vermelhas e faria hoje 92 anos, se fosse viva.)


Nova Iorque > V Avenida > Edifício 1040 > Foi aqui, num apartamento deste edifício, um T-14,   que viveu e morreu Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), de quem o nosso camarada João Crisóstomo foi mordomo interno, de 1975 a 1979. 

Créditos fotográficos: Henrique Mano (2020) (reproduzidos aqui com a devida vénia...)


1. Mensagem do nosso camarada da diáspora, João Crisóstomo (Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):
 
Date: sábado, 24/07/2021 à(s) 22:50
Subject: entrevista à Lusa

 
Meus caros Luís Graca e  Rui Chamusco:

Como a data de nascimento da  antiga primeira  dama   Jacqueline Kennedy Onassis  se aproxima (nasceu a 28 de julho 1929,  em Southampton,  uma pequena cidade bem perto de onde moro), os "media" não deixam de a lembrar.  

E o facto de eu ter trabalhado para ela é motivo para me  procurarem.  Não tenho qualquer mérito por isso, sucedeu-me a mim,. podia ter sucedido a qualquer outro.

O que segue é assunto mais que batido, mas … que hei-de fazer, a culpa também não é minha.  Como vocês são os meus "manos"  em  todas as ocasiões, aqui está o que saiu hoje  na Lusa. (*)

Um abraço
João

2. Peça da agência imformativa LUSA:


LUSA > 24/07/2021 08:26 > Entrevista: João Crisóstomo iniciou ativismo em casa da família Kennedy em Nova Iorque (C/ áudio e vídeo)
 
Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt *** (O conteúdo completo só está só disponível  para subscritores)


Elena Lentza, da agência Lusa 
 
Nova Iorque, 24 jul 2021 (Lusa) – O trabalho em casa da antiga primeira-dama norte-americana e filhos de John Kennedy, Presidente dos Estados Unidos entre 1961 e 1963, ajudou o antigo mordomo português João Crisóstomo a juntar atenção internacional para várias causas.

A preservação das gravuras rupestres de Foz Côa, salvas de uma barragem em projeto de construção, o reconhecimento dos feitos do diplomata português Aristides de Sousa Mendes e a autodeterminação de Timor-Leste foram das causas mais defendidas por João Crisóstomo, que fez sempre todos os esforços que podia a partir de Nova Iorque, começando pelo escritório do filho do antigo Presidente norte-americano.

"Eu digo que John [Kennedy júnior] foi o meu primeiro 'sponsor', o meu primeiro ajudante", disse, com um sorriso, João Crisóstomo, em entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque.

A mãe de John Kennedy Jr. e ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy Onassis, contratou João Crisóstomo em 1975 para 'tratar' da casa na 5.ª Avenida de Nova Iorque, quando o português "nem sequer sabia o que era um mordomo e não tinha experiência nenhuma" e estava nos Estados Unidos há apenas três meses.

Foi por recomendação de um amigo comum, que Jackie, como era conhecida, teve confiança: "Eu conheço o João e pela experiência que ele tem de hotelaria, ele vai ser o melhor mordomo que a senhora pode ter", disse o amigo que trouxe a sugestão, segundo contou João Crisóstomo à Lusa.

João Crisóstomo naturalizou-se norte-americano com ajuda de Jacqueline Kennedy e como despenseiro ou "encarregado da casa" durante três anos, teve duas colegas, sendo todos tratados "com carinho" enquanto serviam a família, num apartamento de 15 quartos.

Numa característica que sempre partilhou com a antiga primeira família norte-americana, também o português gosta de organizar encontros ou eventos. Para além das causas a que se dedica feramente, Crisóstomo gosta de conservar as amizades que, reclama: "são o melhor que a vida nos pode dar".

Mantendo sempre a "distância" devida, como "servente apenas", nos anos em que foi mordomo da família e nas ocasiões posteriores em que nunca recusou dar apoio a Jacqueline Onassis para a organização de encontros para a alta sociedade ou jantares, João Crisóstomo fez muitos contactos com pessoas influentes e conheceu pessoas que o poderiam ajudar nas causas de ativismo a que posteriormente se dedicou.

A paragem da construção da barragem em Foz Côa, para proteção das gravuras rupestres foi um dos exemplos e a primeira grande causa a que João Crisóstomo se dedicou, em 1995, depois de ler um artigo no The New York Times, que também foi lido por John Kennedy Junior, o filho da antiga fotógrafa e editora.

Quando o português se decidiu a fazer alguma coisa para a preservação do sítio arqueológico, John Kennedy Jr. ofereceu o seu escritório para que Crisóstomo pudesse telefonar, mandar fax e de uma maneira geral manter os contactos que entendesse necessários.

"Eu ia para lá de noite, para o escritório do John, na casa da Jacqueline, e era de lá que eu contactava, mandava 'faxes' para toda parte do mundo", explicou o antigo gerente de um hotel em Rio de Janeiro.

"A primeira pessoa que me ajudou [no ativismo] foi ele, porque me facilitou a contactar. Daí eu mandava cartas para toda a parte do mundo, jornais no Canadá, nos Estados Unidos e tudo mais" e daí se gerou a pressão internacional sobre Portugal para que se parasse a construção da barragem.

"Entre os muitos que eu contactei, foram as pessoas que eu conhecia e que tinham sido hóspedes da 'missus' Kennedy Onassis (…) Todos eles me diziam que sim", descreveu João Crisóstomo.

Uma "excelente senhora", "diplomata fantástica" e "muito inteligente", que o recebeu com um "sorriso" e o deixou ficar "à vontade", foi assim que João Crisóstomo recordou uma "primeira-dama extraordinária".

Mulher do Presidente dos EUA, John F. Kennedy, que lhe morreu no colo, assassinado quando faziam campanha para um segundo mandato e, mais tarde, casado com o magnata milionário grego Aristotle Onassis, Jacqueline Kennedy Onassis "era realmente a primeira-dama não dos Estados Unidos, [mas] a primeira-dama mundial, sem dúvida nenhuma", considerou o antigo mordomo à agência Lusa.

A família Kennedy Onassis eram das únicas pessoas que sabiam o segundo nome de João Crisóstomo e o chamavam de Francisco, para que não houvesse confusão do "John" que era chamado lá em casa – se era o filho de Jacqueline e do Presidente ou se era o português.

Elogiando a força e o "bom coração" da antiga patroa, João Crisóstomo lembra-se de um recado especial de Jackie: "Francisco, se alguma vez alguém enviar rosas vermelhas para mim, não mas dês, não quero vê-las. Rosas vermelhas lembram-me da morte do Presidente Kennedy". Eram as mesmas flores que levava no dia trágico de 22 de novembro de 1963, quando o marido foi assassinado.

Depois de três anos, o mordomo e a antiga primeira-dama nunca tinham perdido o contacto e qualquer "raminho de flores" que João Crisóstomo enviava nos aniversários era sempre agradecido com cartas e postais escritos à mão por Jacqueline Kennedy Onassis, que, para o antigo mordomo, mostravam "uma sensibilidade tremenda".

EYL // ELLusa

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22410: Tabanca do Atira-te Ao Mar (8): "Círio" à Senhora dos Remédios, Cabo Carvoeiro, Peniche, 13/7/2021 - Parte III: Quando o Menino Jesus, ao oitavo dia, foi levado ao templo para a festa da Circuncisão (ou "fanado", como se dizia em crioulo, no nosso tempo, no CTIG)


 

Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > Painel de azulejos no lado do Evangelho > Pormenor: "Circuncisão do Menino Jesus"... Na cartela pode ler-se: "Vocatum est nomem eius Iesus" ("Então era esse o nome de Jesus").

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem, com data de 18 do corrente, enviada pelo régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar, Joaquim Pinto Carvalho, a quem pedimos ajuda para identificar uma cena da vida da Virgem Maria, retratada nos painéis de azulejos da capela da Senhora dos Remédios, em Peniche (*)
 
 
Obrigado pela partilha!

Já regressámos do calor alentejano sem ver bácoro (exilaram para terras mais frescas, mas prometeram voltar!).

Agora na Artvilla [, no Cadaval,] já te posso responder e aproveito para dar uma dica sobre o retábulo de azulejo duvidoso.

Quer pela composição da cena quer pelo texto da legenda, tudo indica que se trate da "circuncisão" (também designada por festividade do "santo nome de Jesus" – sempre fica mais sagrado do que falar dessas coisas de pilinha!).

A frase é retirada do Evangelho de Lucas, 2:21 que assim reza, em tradução livre:

"E, cumpridos os oito dias para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe fora posto antes de ser concebido."

Pronto, já fiz a minha "oração" dominical!

Hoje vamos dormir ao mar 
[, Porto das Barcas, Lourinhã, sede da Tabanca do Atira-te ao Mar]. Se der para um pôr do sol no "Atira-te…", logo nos comunicaremos!

Até breve
Pinto Carvalho



Baião > Ancede > Mosteiro de Santo André de Ancede > Mosteiro, masculino, cuja origem remonta aos primórdios da nacionalidade,,, Vale a pena uma visita,,, Está em restauro, com projeto de Siza Vieira... São quase mil anos de história que nos contemplam e nos confrontam ...  Tem também uma capela, octognal, do séc. XVIII, chamada do "bom despacho" que merece uma visita especialmemte guiada...  Foi lá encontrámos outras  peças da arte barroca popular, sob a forma de cenas de teatro, relativas aos mistériso da vida de Cristo, esta delícia: a cena da circuncisão do menino Jesus...  Repare-se na figura do "cirurgião" (, em hebraico, o "mohel"), de "bisturi" na mão, e óculos (!).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Joaquim, é mais que óbvio, mas de início não me ocorreu, não me dei o trabalho sequer de ampliar a imagem, como costumo fazer. Há muito que não leio o Evangelho, e muito menos o de Lucas que, curiosamente, era um "asclepíades", médico grego, que será depois companheiro de Paulo, ou seja, um dos primeiros discípulos dos Apóstolos de Jesus Cristo..

Como bom judeu, ou filho de Judeus, também Jesus, sendo do género masculino,  foi submetido, oito dias depois de nascer,  ao "Brit milah", o ritual judaico que quer dizer, em hebraico, a  "aliança da circuncisão" (, inposta por Deus aos filhos de Abraão...).  E foi nesse dia que lhe foi dado o nome de Jesus. 

A "circuncisão" (do latim circumcisio, -onis, do verbo circumcidere), uma micro-operação cirúrgica que consiste na excisão do prepúcio)... 

A "circuncisão de  Jesus" começou a ser mais representada na arte cristã a partir do séc. XV, se bem que  o tema, logo nos primórdios do cristianismo, se tenha tornado polémico.  Os seguidores de Cristo abandonaram a prática do "Brit milah" judeu...

A circuncisão masculina, tanto entre muçulmanos como animistas, era prática corrente no nosso tempo, na Guiné.  Era a festa do "fanado". Temos vinte e tal referências a este descritor. E mais de trinta à "Mutilação Genital Feminina", prática hoje criminalizada pelo Direito Penal da Guiné-Bissau...

Calcula-se que um em cada três homens em todo o mundo é  "fanado", por razões religiosas, culturais ou profiláticas:  em Israel, na diáspora judia, na maior parte dos países muçulmanos, mas também nos Estados Unidos, etc. 

Os soldados da tua CCAÇ 6 (Bedanda) e os meus da CCAÇ 12 (Bambadinca)  eram "fanados". 

terça-feira, 27 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22409: In Memoriam (401): Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho (1936-2021), com quem trabalhei lado a jado e fiz amizade, em 1971, na Rep ACAP, no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura (Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, e hoje médico)



Guiné-Bissau - Fortaleza da Amura > QG/CCFAG > Rep ACAP > Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica > Departamento de Fotocine > Ao centro, o Cap Art Otelo Saraiva de Carvalho e à sua esquerda o Alf Mil Cav Ernestino Caniço, seu colarador.

Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de ontem, 26 de Julho de 2021, do nosso camarada Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, Comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, Fev 1970/DEZ 1971, hoje médico, que teima em continuar ao serviço dos outros de acordo com o seu juramento hipocrático):

Caros amigos:

Como sabeis, faleceu Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho, o principal pilar do 25 de Abril de 1974. (*)

Durante o ano de 1971 fomos camaradas, em funções na ACAP (Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica), no quartel da Amura, na Guiné Bissau.
Partilhámos a mesma sala com as secretárias lado a lado. Como é natural dialogámos muito.

Face à sua morte, não posso deixar de manifestar o apreço e a amizade que nos uniu, pelo que lamento a sua perda. Foi fácil. A sua empatia, generosidade e humanismo assim o permitiram. O diálogo fluía naturalmente, não descortinando qualquer atitude lapuz.

Que descanse em paz.

Ernestino Caniço
Médico – Chefe Serviço MGF
Gestor Serviços Saúde – Ordem Médicos
Pós Graduação em Direito da Medicina – Faculdade Direito Universidade de Coimbra

PS - Gostava de o ver aqui sentado, à sombra do poilão da Tabanca Grande, embora infelizmente a título póstumo.

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Nota do editor CV:

Último poste da série de 25 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22404: In Memoriam (400): O Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) que eu conheci... Ou "As armas e as mãos - Carta ao Otelo amigo" (José Belo, cap inf ref, Lapónia, Suécia)

Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 23 de Julho de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":

Caros camaradas Luís e Carlos.
Está a chegar o tempo de férias, nada como um alegre conto para desanuviar.

Com votos de muita saúde, abraça-vos o
Zé Teixeira


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UM DIA DE FESTA EM TEMPO DE GUERRA

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava acontecendo na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro”, apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava.  

Como era seu hábito ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. "Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!"

Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; "Alferes! alferes vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino."

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça.

 Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: "A festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?"

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa?  - questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele.  
Queremos que venhas à festa do Adulai -  disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma, alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso - disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! - vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. 

Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem, para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.

Em tempo de guerra, não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o Governador da Província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo. 

Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.

Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
 
O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
 
O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja. 

-O açougueiro segura,pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
 
A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.

Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu ultimo mééé´!.

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo, num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do korá, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. 

Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.

A Binta sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. Agredia o pilão com raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chavéu, são espalhadas no recinto.

 Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.

E foram partindo discretamente antes que o sol se escondesse para além da mata

A chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.

Sábado seria um novo dia.

Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19325: Estórias do Zé Teixeira (48): "Um Novo Natal" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22407: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XI: A partir de junho de 1966, e até 20 de agosto, primeiro ataque a Porto Gole, com metralhadora pesada 12.7


Mini-guião da CCAÇ 1439. Colecção particular: Cortesia de
© Carlos Coutinho (2011). Todos os direitos reservados.





João Crisóstomo (a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)


Parte XI: A PARTIR DE UM  DE JUNHO  de 1966 ATÉ 20 DE AGOSTO, ATAQUE A PORTO GOLE


Para que fique registado vou mencionar todos os dias e operações que constam deste relatório. Verifico que algumas (que lembro bem mas sem poder dar detalhes acurados),  pela sua importância, mereciam e deviam ter sido objecto de maior atenção e mais pormenorizado relato. Outras nem deles me lembro, talvez por estar na altura destacado em Missirá ou em Porto Gole. Mas para os fins que hipoteticamente possam servir, aqui ficam mencionados alguns desses dias de Junho a Agosto de 1966.


Dia 2 de junho de 1966/64 — Mina A/C

As NT acionaram uma mina anticarro tendo ficado destruída uma viatura GMC. O engenho explosivo rebentado estava colocado em terreno duro por baixo de uma raíz, absolutamente camuflado sem vestígios de terra mexida.

Do rebentamento resultaram os seguintes feridos:

1º cabo 166/65 Carlos Tibúrcio Nunes

Polícia  Administrativo 173/64 Laio Embaló

Polícia Administrativo 243/64


Dia 10 de junho de 1966— Op Golo1

A CCaç 1439 realizou a Op Golo1, a qual consitiu em montar emboscadas a Norte do Chão Balanta, vizinhança da estrada Porto Gole - Mansoa, armadilhamento da picada norte da mesma e batida às tabancas do Chão Balanta, Bissá, Funcor, Sée, Nafo e Chubi.

Segue-se um lacónico relato sem detalhes importantes nem mais alguma informação relevante, salvo que “houve um morto confirmado” (. E o mesmo se pode dizer do “elogio" do Agrupamento nº 24.)


Dia 5 de julho de 1966 
 Op Golo2

Batida a N de Cherel. Devido ao "volume de água" e falta de um bom guia não se chegou ao objectivo nem houve qualquer contacto com o IN.

Dia 9 de agosto de 1966 
— Op Girafa 

Consistiu numa batida a Colicunda, Chubi e Sée. Nada de importante; que foram feitos vários prisioneiros , entre estes uma mulher de nome Mariana da Silva e depois entre os detalhes menciona o facto de ter sido feito um prisioneiro, “tendo-se verificado que estava devidamente documentado”…

Dia 17 de agosto de 1966 
Op Golo3

A CCaç 1439 efectuou a Op Golo  3 que consistiu num cerco e limpeza na tabanca de Bissá.

O facto de, em resultado desta operação terem sido louvados e condecorados com cruzes de guerra quatro elementos das NT, sugere que a operação foi muito mais importante do que está descrito neste relatório. Sem grandes pormenores, descreve que a chegada das NT foi detectada, o IN esquivou-se ao combate e menciona ter sido capturado material diverso de enfermagem, cartas e algum material bélico como cartucheiras, cartuchos, uma carabina semi-automática.

A memória não me ajuda, mas, sem desprimor para os outros, apraz-me ver entre os nomes dos distinguido o de Agostinho Trindade Baptista que eu lembro ser um soldado valente e destemido, cuja coragem eu desde o início testemunhei,  nomeadamente durante a Operação Avante, de 29 e 30 de Agosto de 1965, quando ainda estávamos no Xime. Nessa ocasião sugeri que ele fosse distinguido, mas isso não sucedeu.

Os distinguidos com louvores e condecorações foram os seguintes:

Soldado 118/65 Fernando Macedo Rodrigues

1º cabo 184/65, João Fernandes Barradas

Soldado 230/65 Agostinho Trindade Baptista e

Soldado cozinheiro n 37155/65, Manuel Eusébio Nascimento Fernandes.


Dia 20 de agosto de 1966 - Ataque a Porto Gole com Met Pes 12.7

"O IN atacou violentamente o Destacamento de Porto Gole,  empregando pela primeira vez Met Pes 12,7."

Copio textualmente o descrito neste relatório:

"(O IN) fez fogo com várias armas automáticas bazuca e morteiro. Todo o pessoal reagiu convenientemente e com valentia."

Infelizmente é só o que consta, sem mais pormenores.

Continuo o relatório:

"Resultados obtidos - O IN abandonou um morto nas posições atacantes. Há várias baixas confirmadas de testemunhas por pessoal das tamancas onde o IN se retirou.

Das NT foi atingido com estilhaços de bazuca o 1o cabo 184/65, Barradas e com tiros os soldados da Pol Adm nºs 218 e 146, respectivamente Adjanca Baldé e Juntam Sanhá.

Foi capturado o seguinte material:

3 carregadores de Met Lig  m/52

1 carregador c/munições de PM PPSH

1 pedaço de fita da Met Pes 12,7

Milhares de invólucros de Met Lig

Centenas de invólucros de Met Pes

Uma granada de bazuca não rebentada.

Durante a defesa do quartel foi distinguido o Alferes Mil António Dias de Carvalho, da 1ª CCaç.

Fica para a próxima a Op Gorro, em 21, 22 e 23 de agosto de 1966.

(Continua)
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Nota do editor:

28 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22322: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte X: Op Garrote, 23 de maio de 1966, golpe de mão na região de Madina / Belel

Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Este jornalista da RTP tem um nome altamente credenciado, na contracapa do seu livro recebe elogios de José Alberto Carvalho, Paulo Camacho, Fátima Campos Ferreira, Adelino Gomes, Judite de Sousa e Joaquim Furtado. Quem aprecia reportagens em áreas de conflito tem aqui um rico manancial, andará por Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Afeganistão e Iraque.
Luís Castro sente-se compensado: "Tive dois acidentes graves, problemas de saúde, estive preso por quatro vezes, expulsaram-me outras tantas, fugi com uma sentença de morte sob os ombros, proibiram-me a entrada em vários países, fui humilhado e agredido por quem menos esperava. Não me deram fortuna, apenas a possibilidade de estar onde aconteceu História."

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (1)

Beja Santos

Luís Castro explica muito bem a essência do livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, na nota introdutória: “Mandaram-me para um conflito esquecido no imenso Zaire; perdi-me na linha da frente em Angola; aprendi a linguagem do mato e descobri reféns em Cabinda; fugi das cidades em chamas e vasculheim montanhas em Timor; estive dentro da guerra e das traições na Guiné; fui à capital dos talibãs para sentir o cano de uma Kalashnikov; disfarcie-me nas tempestades do deserto iraquiao para compreender o povo do exército mais fraco (…) Enviei para Portugal mais de seiscentas reportagens e sempre com imagens dos nossos cameramen, exceto em duas ocasiões muito especiais. Mesmo que não fossem tão fortes, sempre eram as nossas imagens e a nossa reportagem. Fugi dos diretos nos telhados e fui ao encontro dos acontecimentos nas ruas e no mato. Passei os últimos cinco anos a rever os meus blocos de apontamentos, a ver e a catalogar todas as reportagens e diretos que fiz. Visionei mais de mil horas de imagens em bruto, transcrevi diálogos e consultas a memórias dos repórteres de imagem que me acompanharam em cada situação. O que irá ler é a verdade e tão-só. Pediram-me que enriquecesse a prosa. Recusei. Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. O que aqui está aconteceu”.
Foto: Luís Castro, com a devida vénia

E na Guiné aconteceu três vezes. Estamos em junho de 1998, o repórter está no seu remanso e houve falar numa tentativa de golpe de Estado na Guiné-Bissau, não sabe quem é Ansumane Mané. Na RTP, recebe instruções, vai por Dacar, aqui chegado segue para Cabo Verde, a fragata Vasco da Gama está a caminho de Bissau e fará escala na cidade da Praia, vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A fragata Vasco da Gama avança para Bissau, depois de peripécias, recolhem refugiados. Entrar em Bissau é indesejável, estão lá a ocorrer bombardeamentos e tiroteio. Luís Castro desce até ao país, vem trabalhar. Passaram por algumas barreiras militares, encaminham-se para um braço de mar, vão à procura dos rebeldes. Dá-se o encontro com o major Manuel Melcíades, conversam, é a primeira entrevista dos revoltosos:
“ - Quais são as áreas que controlam?
- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.
- Vão avançar sobre Bissau?
- Não é difícil entrar em Bissau! Temos dez tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.
- Aceitam negociações?
- As negociações dependem deles!”


A reportagem sai em Portugal. Nino Vieira não gostou. Ficam acantonados em Quinhamel, na península de Bissau. Luís Castro quer chegar à fala com o Comando Supremo da Junta Militar. Melcíades não permite, mas mostra o passaporte de Ansumane Mané. A imagem será transmitida para todo o mundo através da Eurovisão. As conversas com os guerrilheiros são eloquentes. Diz um:
“- Sabes, fui guerrilheiro. Lutei e matei muitos portugueses, nem eu sei quantos. Agora sou velho e tenho a certeza que tu e eu somos irmãos. Acredita, queremos que vocês voltem rapidamente para a Guiné.
- É impossível!
A minha resposta saíra com um sorriso à mistura.
- Estás a rir da nossa miséria?
- Não, claro que não! Só te estou a dizer que o país é vosso.
- É! Pois é! Só que não o sabemos governar!”


O repórter não pára, volta ao lado dos rebeldes, Melcíades mostra-lhes soldados senegaleses mortos na linha da frente, um oficial superior fora abatido a tiro durante uma tentativa para furar um dos flancos da Junta Militar. Por vezes, são intercetados por senegaleses, escapam por um triz. Até que finalmente chegam a Ansumane Mané, será filmado o encontro de Ansumane Mané com Jaime Gama e Venâncio de Moura, da CPLP. Nino Vieira continua a não gostar do trabalho do repórter português. O embaixador português pede ao repórter para não vir até Bissau, correm todos os riscos. Luís Castro volta a filmar Ansumane Mané acompanhado, entre outros, de Veríssimo Seabra e Emílio Costa. Ansumane está indignado:
“Estive 37 anos ao lado de Nino Vieira. Conheço-o bem e sei do que ele é capaz. O Presidente não pode tratar o país como se fosse uma propriedade privada. Não tem consideração por ninguém.”

A equipa volta ao Vasco da Gama, onde ficam a saber que fora captada uma comunicação feita entre os senegaleses em que era dada ordem para “abater a equipa da RTP logo que fosse encontrada”. As reportagens de Luís de Castro enfureceram a concorrência. Emídio Rangel disse inverdades, o pedido de desculpas acabou por ser publicado cinco anos depois, a 10 de setembro de 2003 e no mesmo dia em que Luís de Castro voltava à Guiné para cobrir o fim da era de Nino.

A reportagem da Guiné-Bissau é acompanhada de imagens captadas por Hélder Oliveira mostrando a guerra, os encontros com Ansumane Mané, as tais imagens que correram o mundo e enervaram a concorrência.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22388: Notas de leitura (1366): “História da Unidade - Batalhão de Caçadores 2845", em verso, por Albino Silva (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág, 23)






1. Transcrição das págs. 23 a 27 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > Lendas e contos 
da Guiné-Bissau

[Foto acima: o autor, Carlos Fortunato, foi fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]


Lendas mancanhas (pp. 23-27)


Apesar de correntemente ser utilizada a designação mancanha para esta etnia, considera-se que o termo adequado é a designação brame.

Crê-se que pertencem ao mesmo ramo étnico o brame, o manjaco e o papel, face aos seus costumes e características linguísticas (14).

Uma das lendas sobre a sua origem, conta que quando os portugueses chegaram aquelas paragens e querendo saber o nome da etnia que ali vivia, fizeram essa pergunta a um dos habitantes.

- Mancanha - respondeu ele, pensando que lhe estavam a perguntar o nome.

E foi assim que nasceu a etnia mancanha.

Na verdade, naquela zona existem muitas pessoas com esse nome, pois é usado quer como nome próprio, quer como apelido.

***

Outra lenda conta que, numa das guerras entre os portugueses e os manjacos, havia um homem de nome “Mancanha” que era amigo dos portugueses e que estes muito estimavam.

Quando os portugueses chegaram a uma tabanca (aldeia), os habitantes da mesma disseram que eram da família dos “Mancanha”, e por isso foram muito bem tratados. Ao saberem disto as outras tabancas
passaram todas a dizer o mesmo.

- Eu sou da família mancanha - diziam eles e bastava ouvir-se a palavra mancanha, para logo serem deixados em paz.

Assim começaram a “nascer” tabancas mancanhas, e foi assim que nasceu a etnia mancanha, segundo esta lenda.



Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 24)

***

A lenda mais bonita sobre a origem desta etnia, é uma história de amor.

Segundo esta lenda, ela teve origem num escravo mandinga de nome Braima, e numa jovem de nome Bula, a qual era filha de um poderoso senhor de guerra de etnia fula.

Braima e Bula sabiam que o seu amor era impossível, e por isso fugir era a única solução, para conseguirem ficar juntos.

Os jovens sabiam que os riscos de uma fuga eram muitos e que na terra dos seus antepassados, não havia um lugar onde se pudessem esconder, pois o pai de Bula não iria perdoar aquela afronta, e enviaria os seus guerreiros em sua perseguição.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 25)


O Império mandinga de Cabú tinha sido destruído pelos fulas, e o seu poder chegava quase a todo o lado, mas não chegava às terras dos manjacos.

Os reinos manjacos eram orgulhosos da sua independência, e nã aceitariam qualquer exigência exterior, além disso estavam longe e fora do alcance dos reinos fulas. Os manjacos não estavam em guerra nem
com fulas, nem com mandingas, e Braima e Bula esperavam ali serem  bem recebidos.

O caminho de fuga implicava contudo, atravessarem as terras dos aguerridos balantas, onde corriam o risco de serem mortos, mas eles sabiam, que isso também iria fazer parar os guerreiros, que o pai de
Bula enviaria na sua perseguição.

Contra tudo e contra todos, Braima e Bula fugiram, sendo imediata mente perseguidos pelos guerreiros do pai de Bula, mas conseguirachegar às terras dos balantas, e tal como tinham previsto os  perseguidores pararam e abandonaram a perseguição.

Braima e Bula continuaram a sua fuga, abrindo caminho através dezonas de mato denso, para não serem  istos, e assim depois de muitas privações, conseguiram finalmente chegar à terra dos manjacos.
O casal iniciou a construção da sua tabanca, em terras abandonadas, perto ao rio Mansoa, mas que ficavam a pouca distância das terras dos alantas, o que os obrigou a estarem sempre alerta.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 26)


Os filhos que nasceram, e as boas relações com os manjacos, permitiram-lhes fazer crescer a sua povoação, pois a eles se juntaram homens e mulheres manjacas.

À pequena aldeia, Braima deu o nome de Bula, como demonstração do grande amor que sentia pela sua mulher, Bula. A aldeia tornou-se um Reino, e o filho mais velho de Braima fundou depois a povoação de , a qual passa a ser também um Reino, mas vassalo de Bula.

Bula cresceu imenso, sendo hoje uma localidade importante. Segundo esta lenda, a designação de brame para esta etnia, tem origem no nome de Braima.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág, 27)


[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
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Nota do autor:

(14) Mancanhas - pag. 54 de “A Babel Negra”, refere-se que “... é de crer que, produtos dum mesmo ramo étnico, tenha surgido o brâme, o manjaco e o papel.”, na pag. 34 da “História da Guine I”, René Pélissier refere-se que “Quanto aos Manjacos, 71.000 em 1950, levantam um problema de identificação porque, até aos anos 1910, senão mais tardiamente ainda, os Portugueses designam na maior parte (os que vivem no interior das terras, entre o rio Cacheu e o rio Mansoa) pelo nome de PAPÉIS, reservando o nome MANJACO às zonas costeiras
desta mesma região.”


2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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domingo, 25 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22404: In Memoriam (400): O Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) que eu conheci... Ou "As armas e as mãos - Carta ao Otelo amigo" (José Belo, cap inf ref, Lapónia, Suécia)


José Belo,  ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); cap inf, participou na equipa de segurança pessoal do Otelo Saraiva de Carvalho, na campanha para as eleições presidenciais de 7 de junho de 1976; membro da Tabanca Grande  desde 8/3/2009, com mais de 200 referências no blogue; jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas.


1. Mensagem de Joseph Belo, a quem dei hoje de manhã, em primeira mão, a notícia da morte do Otelo Saraiva de Carvalho (*), seu amigo e camarada de armas;

Data - 25 jul 2021 13:44
Assunto - As armas e as mãos… Carta ao Otelo amigo.

Envio-te um texto em parte extraído de artigo meu publicado pelo Diário de Lisboa, de 11 de julho de 1984. Era um de dois dos artigos que este jornal publicou em que eu criticava abertamente as FP-25 de Abril, o pseudo-envolvimento do Otelo nas mesmas, e o não menos abusivo uso do “25 de Abril” na denominação das mesmas. Abraço, J. Belo.


As armas e as mãos… Carta ao Otelo amigo
 
por José Belo

Não encontrei ninguém que conseguisse comunicar tão espontâneos e intensos sentimentos de camaradagem, calor humano, sincera simpatia, não esquecendo também a tão pessoal “ingenuidade” em graus “quase sempre”…desculpáveis.

Por curto, mas importante período, conseguiste não só simbolizar, mas também interpretar, todos os anseios, esperanças, e porque não, o pequeno grão de romantismo anárquico que existe dentro de quase todos os portugueses.

O povo sentiu em ti, então “estrela” atirada para as ribaltas por camaradas que confiavam, alguém que o “ouvia”, e principalmente o apoiava sem condições.

Não é por acaso que a frase “Otelo-Na Presidência um amigo” foi a que melhor simbolizou a tua primeira candidatura num período em que, para muitos, os sonhos ainda se tocavam com as pontas dos dedos.

Não quiseste ser o “Caudilho”.

Quantas oportunidades, quantas situações de força, quantas vagas de fundo populares (assustadoramente expontâneas!) pararão te empurravam?

Numa das tuas “ingenuidades”, talvez a maior, pretendias com o teu cargo, e com os que te apoiavam nas forças armadas, ser o braço que neutralizaria todas as tentativas da forças que procuravam limitar a natural organização de base das massas populares no seu caminhar para uma sociedade socialista.

Essa atitude custaria caro, não só a ti, como principalmente aos trabalhadores. Melhor que ninguém, nesses meses em que quase te forçaram a assumir o poder, simbolizaste a feliz frase da tal “vila morena” ...O Povo é quem mais ordena!

Eu, camarada de profissão, familiar e sincero amigo, sem nunca perder o juízo crítico quando olhava o “político”, acompanhei-te em momentos de força, de poder, de comando, mas também em outras de profundas e inexplicáveis contradições frente a multidões enquadradas nos mais díspares partidos políticos.

Os resultados?

Responsável pela equipa da tua segurança pessoal, tive a oportunidade de ouvir as tuas conversas com pescadores algarvios, com as operárias conserveiras, com camponeses alentejanos (dilacerados entre o “coração e o dever!), com as gentes de Peniche, com os operários do Barreiro em expontâneos gritos de “unidade”, com os pequenos agricultores do Norte, com jovens padres de paróquias perdidas nas serranias, com os “humildes” da Madeira.

Os resultados?

Acompanhei-te na incrível recepção do Porto, em Braga, em Matosinhos, na Régua ,nos banhos de multidões na Cova da Piedade, Setúbal e Lisboa, onde o Parque Eduardo VII foi bem pequeno para albergar os manifestantes.

Os resultados?

Também, é certo, assisti à parasitagem que, à sombra da tua popularidade, alguns pequenos grupos políticos de representatividade duvidosa exerciam.

Que ridículos foram alguns deles, neurotizados por o povo não corresponder ao seu “povo das tertúlias“ mas que de imediato se julgavam com oportunidades de o… reeducar!

Terá, mais uma vez ,a tua proverbial “ingenuidade” te empurrado para uma candidatura manipulada por agências imperialistas internacionais?

Terão jogado inteligentemente com a previsível desmobilização e desilusão, que viriam a surgir perante a incapacidade organizativa, e política, de transformar os surpreendentes resultados em algo de operante, activo, concreto?

Terá sido literalmente o “matar dois patos com o mesmo tiro”? Tu próprio, somado ao Octávio Pato, então candidato do PCP

Mas houve momentos em que tu mesmo acreditastete que algo poderia surgir da incrível vaga de fundo que ias conseguindo levantar por esse país fora.

Recordo fim de tarde quente alentejana quando a caravana eleitoral abandonava Castro Verde em apoteose. Tu quase monologavas sentado no banco traseiro do automóvel, entre um José Afonso que dormitava exausto, e eu, sem respostas lógicas para tamanho carinho e expontâneo entusiasmo popular.

Neste eufórico momento de festa falavas de Allende, de um Chile então tão próximo, do golpe militar contra um Presidente eleito.

Porquê, então, esse fatalismo de identificações?

Por consciência das limitações?

Por não acreditares na figura que simbolizavas, que tão bem… representavas?

Por teres consciência que os que te rodeavam,tanto em pseudo “vanguardas” como em militares “progressistas”, te acabariam por “encurralar “ obrigando-te a assumir posições, ou pior, assumindo-as eles próprios, com as quais não te identificavas?

Pairava ainda no horizonte a incrível multidão de trabalhadores que na Évora de antes de Novembro gritara repetidamente ”Força! Força camarada Otelo!"

Ecos de palavras de ordem dedicadas a outro militar político. Não seria então a consciência do “incómodo” que ainda simbolizas? De libertação, de grito popular, de espontaneidade de Abril?

Muitos te temeram no mito do COPCON. Muitos te invejaram na estrela de Abril. Muitos procuraram utilizar-te na sincera estima que o povo te nutre.

Como alguns não te perdoam, ou esquecem, o teu individualismo anárquico assumindo posições suspeitas… por ilógicas!

Com os teus erros profundos, com as tuas traições aos que esperavam de ti ver reflectidas as suas ambições pessoais ou políticas, serás mesmo assim um membro por direito próprio da nossa História a quem o futuro julgará com raciocínios espiados pelos tempos.

Conheci o “Otelo Amigo” que tudo sacrificou por acreditar no Povo. O mesmo Povo que na sua sabedoria expontânea guarda por ele um especial carinho, desculpando-o de... quase tudo!

E, tristemente, alguns dos Camaradas militares que te irão tecer elogios fúnebres, politicamente corretos..., serão os mesmos que te invejavam e atraiçoavam em 74/75.


Laplande/Suécia 25 de Julho 2021
J.Belo


Citação: (1984), "Diário de Lisboa", nº 21504, Ano 64, Quarta, 11 de Julho de 1984, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_1603 (2021-7-25)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973

Guiné 61/74 - P22403: Blogues da nossa blogosfera (160): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (69): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


MEU AMIGO DOSTOIEVSKY

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ


Meu amigo Dostoievsky
nada temos a ver
aparentemente
um com o outro
a não ser o nosso encontro
pelos meus dezoito anos.
Apetece-me chorar ao recordar as noites
em que à luz de um foco olho de boi
debaixo dos lençóis
- para que minha mãe não visse -
eu invadia os teus livros
numa das maiores
e mais deliciosas aventuras da minha vida.
Ainda hoje me são familiares
o rosto de Sónia e a figura de Raskolnikov
luz mítica e mística dos que têm coisas em comum
orientando-se na direcção do símbolo
e do mundo sem forma.
Da mesma forma que te marcaram Balzac
Schiller
Victor Hugo e Goethe
tu imprimiste em mim a sensação
que te fez desmaiar
perante a beleza de Seniavina
na casa dos Wielgorsky
e eu não sou homossexual
meu caro Dostoievsky.
Perante a beleza
eu não sei ao certo onde pára o sexo
se no esperma de Úrano derramado no mar
se na poesia da Morte em Veneza.
Não é a realidade física que interessa ao simbólico
mas o significado do sexo na imaginação.
A dualidade do ser funde-se
na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais
do que o apaziguamento da tensão interior.
Nunca te concebi humano
sobretudo depois dessa manhã
de rosto de pedra e gelo
em que viveste o mais trágico minuto da tua vida.
Um vento glacial varreu-me a fronte
ao ouvir o teu nome na chamada para a morte:
-Akcharumov!
-Shaposhnikov!
-Dostoievsky!
Hoje
depois de ter amado tanto
aceito a tua epilepsia
como o estigma mais marcante
da pureza da condição humana
e passei a considerar-te meu irmão
para o resto da vida.
Por isso me senti prisioneiro
quando entrei na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo
por isso chorei na Praça Semenovsky
onde viveste uma vida inteira
em dois minutos de morte.
Era como se fosse eu o condenado!
Também chorei quando reencontraste Suslova
apenas
pelo que sofreste ao ver que o amor não se repete.
A noite e o vazio
estão na origem cosmológica do mundo
e o amor é uma criança que cresce...
e deixa de ser criança.
Amor e morte
quando descobertos
acordam e fogem.
Para escrever bem é preciso sofrer
disseste um dia ao jovem Merejkovsky
quando a vida confundia as chamas do teu inferno
com relâmpagos de visionário.
Sofrer pode ser apenas sorrir...
frente a toda a utopia palpável
não paranóica nem delirante.
Foi a mim que o disseste
meu caro amigo
foi a mim que o disseste
na tarde cinzenta da tua morte
na hora da hemorragia que te vitimou.
Até hoje ainda não te agradeci.
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro
mas nessa altura eu não existia...
ou será que te acompanho ainda hoje
neste pesado caminho do fim?

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22382: Blogues da nossa blogosfera (159): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (68): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973

IN MEMORIAM

Coronel Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho
Lourenço Marques, 31/08/1936 - Lisboa, 25/07/2021


BIOGRAFIA

Militar, político e estratega do 25 de Abril

Otelo Saraiva de Carvalho nasce em Lourenço Marques, a 31 de Agosto de 1936.
Cumpre comissões de serviço em Angola, entre 1961 e 1963, e na Guiné, entre 1970 e 1973.

Esteve presente na génese do Movimento dos Capitães, tendo desempenhado o papel de responsável pelas operações no golpe militar de 25 de Abril desde o posto de comando que se situava na Pontinha, em Lisboa. 

No período revolucionário foi comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), passando a ser comandante efectivo em Março de 1975, mas assumindo a responsabilidade desde o início da presidência da República de Costa Gomes. 

Foi também nomeado comandante da Região Militar de Lisboa (RML) a 13 de Julho de 1974. Durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) integrou ainda o Conselho da Revolução, formando, juntamente com Francisco Costa Gomes e Vasco Gonçalves o triunvirato mais célebre de 1975 – o Directório – que mereceu uma capa da revista Time. Foi afastado de todos os cargos após os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, tendo inclusive sido preso.

Candidato às eleições presidenciais de 1976 e de 1980, acabou derrotado em ambas. Nesse mesmo ano criou o partido Força de Unidade Popular (FUP). Em 1985 é acusado de liderar as FP-25, o que lhe valeu cinco anos de prisão, tendo sido amnistiado em 1996. No decorrer do processo das FP-25, foi despromovido de brigadeiro a tenente-coronel.


Com a devida vénia a Memórias da Revolução

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Em 6 de Maio de 2011, na nossa série Notas de Leitura, Mário Beja Santos fazia esta recensão ao livro "Alvorada em Abril", de Otelo Saraiva de Carvalho:

Guiné 63/74 - P8230: Notas de leitura (236): Alvorada em Abril, de Otelo Saraiva de Carvalho (Mário Beja Santos)

Otelo Saraiva de Carvalho e a Guiné


Beja Santos

"Alvorada em Abril" é o título das memórias de uma figura lendária do 25 de Abril em torno da história portuguesa dos anos 50 aos anos 70, culminando com a concepção e execução do derrube do regime chefiado por Tomás e Caetano. Temos nestas memórias o que para ele foi determinante, no seu percurso pessoal e no seu modo de interpretar os acontecimentos contemporâneos, a génese e o triunfo do Movimento dos Capitães e como este desaguou no 25 de Abril ("Alvorada em Abril", Editorial Notícias, 4.ª Edição, 1998). A sua terceira e última comissão foi na Guiné, pelo que tem todo o sentido fazer o registo das suas lembranças e observações.

Ele parte para a Guiné em Setembro de 1970 e logo recorda que se encontrava em Nova Lamego, em 22 de Novembro, quando soube da invasão da Guiné-Conacri. A notícia deixou-o estupefacto, ele que trabalhava em Bissau de nada sabia e acrescenta que posteriormente veio a saber que o assunto já era discutido pelas mulheres dos oficiais nos cabeleireiros da Baixa de Bissau antes de se ter realizado. Nessa noite, enquanto decorria a operação, houvera vigília em Bissau, Spínola aguardava ansioso das notícias da missão rodeado dos seus leais colaboradores, tenente-coronel Robin de Andrade, major Firmino Miguel e major Jorge Pereira da Costa. E adianta: 

"Ainda hoje desconheço quais seriam, exactamente, os objectivos da missão, mas parece não restarem dúvidas de que, entre eles, estariam os assassínios de Amílcar Cabral e de Sékou Touré, o silenciamento da Rádio Conacri, a destruição de sede do PAIGC, a destruição de aviões na base aérea local e a libertação de prisioneiros de guerra portugueses retidos nas prisões da cidade".

Dá-nos em água-forte um retrato de Spínola que culmina com uma apreciação corrosiva:

  "Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal... demagogo em extremo nunca entendi com clareza se as qualidades que nele admirava era autênticas e humanas ou se cultivadas com esforço a fim de construir artificialmente uma personagem".

Descreve o seu trabalho no QG e alude mesmo o nome de oficiais milicianos, da extrema-direita, que mais tarde acompanharão Spínola na aventura do MDLP.  Colocado na Subsecção de Operações Psicológicas, assistiu ao exibicionismo propagandístico é à construção de imagem que Spínola quis criar em Portugal e internacionalmente, o que ele procurava era sugerir um extraordinário surto de progresso na Guiné com a sua governação e minimizar os êxitos no combate do PAIGC. 

Narra peripécias com jornalistas internacionais, certames de propaganda, a realização de Congressos do Povo. Refere os efectivos militares, do lado português e os do PAIGC, as argumentações de aliciamento, de um lado e do outro. 

A narrativa não é cronológica, dá saltos, vai até ao futuro repentinamente, conta histórias passadas, de supetão. Está-se a falar da propaganda do PAIGC, seguem-se referência ao seu programa político, destaca-se a figura de Rafael Barbosa como agitador, que foi preso em Março de 1962, tendo permanecido encerrado num cubículo durante quase 8 anos, onde foi espancado e torturado. Em Agosto de 1969, Spínola ordenou que fosse libertado. Tempos mais tarde, Rafael Barbosa manifestará publicamente o seu arrependimento por ter aderido à luta armada. Em 1977, será julgado em Bissau pelo PAIGC pelo crime de traição ao partido e ao povo e ser-lhe-á comutada para 15 anos de prisão a pena de prisão perpétua a que fora inicialmente condenado.

Já em 1973, o autor descreve a chegada dos mísseis terra-ar Strela e depois depõe sobre o controverso "I Congresso dos Combatentes do Ultramar". Para Otelo, os organizadores eram antigos oficiais milicianos com ideologia de extrema-direita que garantiam publicamente ao regime a entrega devotada dos oficiais das Forças Armadas à nobre missão de, através da continuidade da guerra colonial, assegurar a perenidade da Pátria. 

Os oficiais do quadro ter-se-ão apercebido da essência da manobra e reagiram. Almeida Bruno terá sido quem mais actividade desenvolveu, promovendo uma resposta concertada. Para os oficiais na Guiné já não subsistiam dúvidas que o Governo procurava tirar dividendos da "entusiástica adesão dos patrióticos combatentes do Ultramar"

E escreve: 

"Enquanto em Lisboa Ramalho Eanes, Hugo dos Santos, Vasco Lourenço e outros encabeçavam um vasto movimento de protesto, eram recolhidas na Guiné 400 assinaturas de oficiais do QP com a mesma intenção, subscrito em primeiro lugar por oficiais possuidores das mais elevadas condecorações”

O autor inscreve estes acontecimentos num processo mais vasto de descontentamento das Forças Armadas que veio a ser ateado pelo Decreto-Lei n.º 353/73, nova peça da bola de neve que irá conduzir à queda do regime.

Passando para outro campo de considerações, Otelo de Saraiva de Carvalho fala dos acontecimentos de Guileje, em Maio de 1973, quando o major Coutinho e Lima mandou evacuar o aquartelamento, para tal escrevendo: 

"Para o major Coutinho e Lima o motivo era suficientemente forte: incontável número de flagelações da artilharia inimiga tinha destruído quase por completo as instalações aquartelamento e o moral do pessoal. Apesar dos pedidos insistentes e aflitivos, o apoio aéreo não fora concedido, no receio de que a acção fosse um chamariz para o abate de mais alguns aviões. Ao ter notícia da evacuação, Spínola não viu outra alternativa senão ordenar a prisão de Coutinho e Lima e mandar instaurar-lhe um auto de corpo de delito por crime essencialmente militar de cobardia: abandono de praça militar ao inimigo"

É neste contexto que surge Manuel Monge, graduado em major, foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.

Estamos praticamente no final na sua narrativa referente à Guiné. Marcelo Caetano decidira, em 1972, apoiar a nomeação de Américo Tomás para novo mandato. Spínola considerava que gozava de alguns apoios muito influentes do panorama político e financeiro português (Azeredo Perdigão, Jorge de Melo, Manuel Vinhas, António Champalimaud). Em Agosto de 1973, Spínola regressa a Portugal, é promovido a general de 4 estrelas e nomeado vice-chefe do EMGFA. Spínola mudara, observa o autor. Fizera um longo, longo percurso, fora administrador e colaborador do boletim da Legião Portuguesa, no início da carreira; baseado na sua experiência guineense, sentia-se agora apto a defender o federalismo para contornar uma guerra não susceptível de ter solução militar.

Em Setembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho participa pela última vez numa reunião do Movimento de Capitães, em Bissau. E escreve: 

"Exactamente três meses depois da minha chegada a Bissau seguirei para a metrópole em fim comissão. Recebo a incumbência de, em Lisboa, de me integrar no Movimento e ser o porta-voz das preocupações que assaltam os camaradas no TO da Guiné"

Preocupações que ele desenha num quadro de tintas carregadas: é previsível que o PAIGC irá proclamar a independência do território. Nas reuniões do Movimento dos Capitães em embrião já se debate o que irá mudar com essa independência reconhecida pela ONU. E escreve: 

”O Governo Central não proporcionará às Forças Armadas no TO da Guiné qualquer apoio, provocando a sua derrota calculada para as transformar em bode expiatório da perda da colónia como acontecera antes com o Estado da Índia, e canalizar todo o esforço militar para a defesa de Angola.”

E tece o seu comentário sobre o que se estaria a passar na mente de Marcelo Caetano: 

”Em entrevista concedida por Marcelo Caetano no Brasil, em 1977, a um jornalista português, o antigo Presidente do Conselho confirma que tencionava na verdade provocar a queda da Guiné através de uma derrota militar para, salvando a face do regime, reforçar a todo o custo a defesa de Angola por tempo ilimitado. Não posso acreditar que Spínola não estivesse perfeitamente consciente de todo este drama. Considero, pelo contrário, que essa seria a razão fundamental que o teria levado a não regressar para concluir o sexto ano do seu mandato. Ele não poderia nunca, após mais de cinco anos de intensa actividade desenvolvida na Guiné e que era para si motivo de orgulho e honraria, transformar-se no comandante-chefe de umas Forças Armadas enxovalhadas e derrotadas em consequência da ineficácia do regime.”

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Nota dos editores:

À família, camaradas de armas e amigos do Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (que tem cerca de duia e meia de referências no nosso blogue), os editores e a tertúlia deste Blogue, apresentam as suas mais sentidas condolências.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22375: In Memoriam (398): José Martins Rosado Piça (1933-2021), 1º srgt inf ref (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71), nosso grã-tabanqueiro nº 660... Mais do que "o nosso primeiro", um grande amigo e melhor camarada