segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23784: Notas de leitura (1516): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Prossegue a viagem em torno da escrita das novas gerações que praticam com talento e inspiração o luso-guineense à luz dos seus sonhos e das quimeras, tratam sem complexos do direito dos costumes, o sentido de família, o conflito entre uma moral sexual muito disponível e as terríveis doenças sexualmente transmissíveis que avassalam o continente africano; retomam a linha de literatura oral em que os bichos podem ser criaturas humanas, nenhum dos autores envereda corajosamente pela abordagem do lesbianismo; e não se esconde a mágoa pelo modo como são tratados aqueles combatentes que deram o corpo a uma pátria invadida por ratos, como escreve um autor, numa denúncia cáustica, direta às novas elites políticas que se movem pela pura ganância, estando-se nas tintas pelos interesses básicos do seu povo. Uma antologia que mostra a boa saúde em que se encontra a literatura luso-guineense. Sinceros parabéns à Editora Ku Si Mon na pessoa do grande escritor Abdulai Sila.

Um abraço do
Mário



O vigor de uma expressão literária emergente: o luso-guineense (2)

Mário Beja Santos

Serve de pretexto para reflexão de uma nova geração de escritores que encontraram um modelo de comunicação o livro que rememora os 25 anos da Ku Si Mon Editora, uma iniciativa que tem por detrás o nome consagrado da literatura guineense, Adbulai Silá: "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo, Ku Si Mon Editora, 2019.

Esta nova geração de talentos literários usa como ferramenta de comunicação um português plástico, moldado com a riqueza dos vocábulos próprios inerentes à formação do escritor, seja da Guiné, de Moçambique ou do Brasil, torcem e retorcem a língua de Camões, de António Vieira e de Fernando Pessoa, imputam-lhe a fala do coração, o orgulho da cultura-mãe, polvilham tudo de ingredientes da literatura universal: o humor cáustico, a fábula, as ternuras de infância, a crítica política e social; manipulam a topografia, as crenças, o passado colonial, remexem nos sonhos de ver os filhos prosperar, denunciam os mercados da droga, estão atentos aos fenómenos do radicalismo religioso que começam a aproximar-se da África lusófona. E por aí adiante. O produto final, é essa África misteriosa assistir à entrada em cena de um processo literário que faz transbordar a língua portuguesa para um admirável mundo novo da escrita.

Depois de Marinho de Pina e de Claudiany Pereira, temos o conto "Zé Crocodilo" de Amadu Dafé, um comprovado bom escritor na rampa de lançamento. Numa atmosfera da ainda guerra colonial, Zé Ntchabré entra furioso em casa, pede explicações a Nnami, a mulher, que é lavadeira do capitão. Zé soube pelo capitão que Nnami, a sua noiba (a mulher mais nova) está grávida, e dele, o capitão, ao princípio Zé pensou que se tratava de uma brincadeira, o capitão dava a sua palavra de honra. Saiu de casa e abeirou-se no rio Mansoa, atirou-se às águas. E passou a haver falatório na tabanca: “Zé virou crocodilo”. O capitão enviou um contingente militar para resgatar Zé Crocodilo, parecia não haver resultados, o capitão preparava-se para se atirar sozinho ao rio, nisto apareceu Zé que energicamente o dissuadiu. A conversa girou à volta de duas meninas que Zé tinha salvo das águas, houvera metamorfose, Zé pede ao capitão para ser promovido, ele prefere nomeá-lo Zé Crocodilo. Nnami teve uma menina linda e mulata. E assim termina a história: “Em mistério ficou a admiração ao Zé Ntchabré, capaz de virar crocodilo, ao que tudo indicava, e permanecer nas profundezas do rio, talvez com o fito de apanhar almas brancas para as transformar em filhas próprias”.

Marinho de Pina volta à carga com um tema explosivo, desta vez aborda o lesbianismo, uma mulher fala na primeira pessoa depondo que desde menina não tinha nenhuma curiosidade acerca do sexo masculino, interessantes eram as suas amigas. O pai apercebe-se da situação, mesmo quando a menina ficou grávida. Procurava a camuflagem e o alívio da sanção pública dormindo com rapazes. “Comecei a acreditar que o lesbianismo podia ser curado, e quanto mais dormisse com rapazes mais gosto pelo pénis teria e assim me iria libertar da minha atração por mulheres. Mas não é nem sequer do pénis que eu não gosto, mas da pessoa a quem o pénis está anexo. A questão é mesmo eu não sentir atração sexual pelo homem”. A sua vida é um desbragamento. Mas depois de ter dado à luz, o lesbianismo não a enganou, voltou com toda a força, mas houve mudanças no seu caráter, como ela confessa: “Eu achava o lesbianismo como uma doença ou algo assim que se possa passar para os filhos, como um defeito genético, e tinha muito medo de que o meu filho viesse a ser gay (…) O meu filho quebrou os meus medos, eu seria o que era, não o que acham que devesse ser. Eu transformaria aquele meio para que quando o meu filho viesse a ser gay encontrasse uma sociedade melhor e não tivesse os mesmos problemas que eu, e se viesse a ser, que soubesse respeitar e lutar pela normalidade deles, se tivesse de ser”. O pai manda-lhe fazer as malas, irão a caminho de Maputo, ela não sabe para onde. Na estrada, parece vir um carro em perseguição, é uma condução agressiva, quem vem atrás buzina de forma aterradora, acaba por capotar. O pai teme vinganças, deixa-me numa pensão, escreve ela, voltou para casa para ir buscar a mulher e o neto. Batem-lhe à porta freneticamente… E quem aparece não é o pai, fim de conto, todas as suposições são possíveis, fica o eixo central da questão que leva ao desenvolvimento desta trama, a coragem de versar um tema tabu na África negra.

Uma questão de liberdade, de Edson Incopté, fala de Martinho N’fanda que viera estudar para Portugal, filho de chefe de tabanca, profundo conhecedor da cultura e das tradições do seu povo. A vinda para Portugal livrara-o temporariamente do compromisso de casamento com Maria N’tombikté, compromisso estabelecido desde o dia em que esta nascera. Mas Martinho conheceu em Portugal Rita Alexandre, viveram anos da mais quente paixão. Então um dia o pai ordenou-lhe que arrumasse as trouxas e voltasse para o país. Martinho pôs a questão a si próprio: Estava mesmo disposto a voltar para a Guiné-Bissau? Martinho anda à deriva, está confrontado com decisões, mas apercebeu-se pela primeira vez que tinha a liberdade de fazer uma escolha sobre o seu destino. Talvez o destino o tenha obrigado a tomar uma decisão de sorte madrasta, como culmina o conto:

“Ao voltar para casa no final do dia, encontrei-o sentado no sofá da sala com o semblante de quem esteve assim o dia inteiro. Obviamente que não me atrevi a questioná-lo. Mas olhei para os olhos dele e vi neles um brilho invulgar. Era lágrima. Percebi que tinha chorado todo o dia. E foi então que compreendi que a decisão estava tomada. Qualquer que fosse, estava tomada.

Predispus-me a ouvi-lo, mas desta feita quem não estava para conversas era ele. Seguiu para o quarto no preciso instante em que o telemóvel tocou. Mas ele nem para trás olhou. Entrou no quarto e bateu a porta. Não sei por que razão, mas não me atrevi, sequer, a olhar para a chamada”.

Esta surpreendente antologia irá prosseguir com obras de Claudiany Pereira, Edson Incopté, Amadu Dafé, Marinho de Pina, o leitor poderá comprovar que estamos diante de uma literatura refrescada, mesmo quando as temáticas relevam o fatalismo, a crítica política frontal, a indiferença por quem combateu pelas causas da liberdade, o espantalho da SIDA, face ao qual a sociedade ainda reage com imensa indiferença.

Não hesito em voltar a Edson Incopté e ao seu conto "Invasão de Ratos", em que uma criança entra esbaforida em casa dizendo que o professor falara numa invasão de ratos que se tinham espalhado por toda a parte, no bairro do Bandim passou a acontecimento mediático, opinavam jornalistas, profissionais de saúde e políticos, até que chegou o momento de indagar junto da fonte da notícia que provas tinha o professor para colocar uma cidade, um país inteiro em estado de pânico. E o professor respondeu:

“– O senhor acha que preciso de alguma prova? Não vê ratos espalhados por toda a cidade de Bissau? Se não vê, então é cego...! É só subir até à praça, verá aí os ratos todos. O senhor não vê…! Os ratos invadiram a cidade, povoaram as casas mais luxuosas deste país, roeram e roem, todos os dias, o coração das pessoas. Roeram sonhos e valores. Roeram toda a honestidade, a hombridade, até a humildade das pessoas. Já não resta quase nenhuma esperança, roeram quase tudo”.

Parabéns pelos 25 anos da Ku Si Mon, esta antologia é mais uma confirmação de que a literatura luso-guineense não só está em boa forma, cresceu e mostra pujança. É um dos maiores bens da lusofonia, esta festa da palavra.

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Notas do editor:

Vd. poste de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23776: Notas de leitura (1515): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23783: Fichas de unidades (28): BCAV 490 (Bissau e Farim), CCAV 487 (Farim), CCAV 488 (Jumbembem), e CCAV 489 (Cuntima), 1963/65


(Tem 117 referênias no nosso blogue)

Identificação BCav 490

Unidade Mob: RC 3 - Estremoz

Cmdt: TCor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro

2.° Cmdt: Maj Cav Alexandre António Baía Rodrigues dos Santos | Maj Cav Raul Augusto Paixão Ribeiro

OInfOp/Adj: Cap Cav Domingos Vilas Boas de Sousa Magalhães

Cmdts Comp:

CCS: Cap Cav Luís Augusto Rodrigues de éarvalho | Cap Cav Luís Alberto Paço Moura dos Santos | Cap Cav João Luís Moreira Arriscado Nunes | Cap Cav Manuel Correia Arrabaça
Cap SGE António Joaquim Marques

CCav 487: Cap Cav António Varela Romeiras Júnior | Cap Cav Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

CCav 488: Cap Cav Fernando Manuel Lopes Ferreira | Cap Cav Manuel Correia Arrabaça | Ten Cav Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás

CCav 489: Cap Cav António Ferreira Cabral Pais do Amaral | Cap Cav João do Nascimento de Jesus Pato Anselmo |  Cap Mil Cav António Tavares Martins

Divisa: "Sempre em frente"

Partida: Embarque em 17Ju163; desembarque em 22Jul63 | Regresso: Embarque em 12Ago65

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, permaneceu em Bissau em função de intervenção, com duas subunidades em reforço do BCaç 512, a partir de 2ago63, por rotação, a fim de actuarem intensivamente na região de Óio-Morés e Mansoa.

De 14jan64 a 24mar64, assumiu o comando das forças terrestres da  Op Tridente, realizada nas ilhas de Como, Caiar e Catunco, reforçado com outras subunidades, incluindo fuzileiros especiais e paraquedistas.

Em 23mai64, seguiu para Farim a fim de preparar a organização, deslocamento e instalação das forças no Sector C3, mais tarde, Sector 02, então criado e cuja área se encontrava incluída do antecedente na zona de responsabilidade 
do BCaç 512. 

Em 31mai64, assumiu a responsabilidade completa do referido sector, com a sede em Farim que abrangia os subsectores de Cuntima, Jumbembém, Bigene e Farim e a partir de 29jun64 o de Binta, então criado.

Em 25mar65, instalou forças para ocupação da povoação de Canjambari, no seu sector, tendo as suas subunidades ficado integradas no seu dispositivo e
manobra do Batalhão, a partir de 31Mai64.
 
O batalhão continuou a desenvolver assinalável actividade operacional de reconhecimentos, emboscadas, batidas, abertura e protecção dos itinerários e
acções sobre grupos inimigos.

Destacam-se, pelas baixas causadas e pela captura de bastante armamento e outro material, as operações "Jocoso", "Vouga" e "Invento", entre outras.

Dentre o armamento capturado mais significativo, destaca-se uma metralhadora
ligeira, 19 pistolas-metralhadoras, 36 espingardas, 10 minas e 9145 munições de armas ligeiras.

Em 15Jun65, foi rendido no Sector 02 pelo BArt 733 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso, tendo ainda destacado nesse período alguns efectivos das suas subunidades para segurança e protecção dos meios de travessia do rio Cacheu, em S. Vicente.

***


A CCav 487, enquanto na função de intervenção, foi empregada em diversas operações nas regiões de Encheia, Fajonquito, Bissorã e Morés, em reforço de outros batalhões e, integrada no seu batalhão, na Opperação Tridente, atrás referida.

Em 11Mar64, seguiu para Farim a fim de substituir a CArt 640 na função de subunidade de intervenção e reserva do sector, inicialmente na dependência do BCaç 512 e depois do seu batalhão. 

Em 15Ju165, após curto período na dependência do BArt 733, foi substituída em Farim pela CArt 731 e recolheu então a Bissau a fim de se integrar novamente no seu Batalhão até ao embarque de regresso.

***

A CCav 488, enquanto na função de intervenção, foi empregada em diversas operações nas regiões de Mansoa, Cutia, Bissorã e Morés, em reforço do BCaç 512 e, integrada no seu batalhão, na Op Tridente atrás referida.

Após deslocamento por Bafatá, Cambajú, Canhamina e Sitató, ocupou e instalou-se em Jumbembém em 31mai64, assumindo a responsabilidade do espectivo subsector e ficando integrada no dispositivo e manobra do seu
batalhão.

Em 06Jun65, foi rendida pela CArt 730, tendo recolhido seguidamente a Bissau com o seu batalhão e onde se manteve até ao seu embarque de regresso.

***


A
 CCav 489, enquanto na função de intervenção, foi empregada, com base emMansabá, em diversas operações efectuadas nas regiões de Mansabá, Bissorã e Morés, em reforço do BCaç 512 até 27dez63 e, integrada no seu Batalhão, na
Op Tridente,  atrás referida, tendo ainda sido atribuída temporariamente
ao BCaç 236 e depois ao BCaç 600 para colaborar na segurança e protecção das
instalações da área de Bissau, de 03Set63 a 210ut63, a fim de colmatar a saída
da CCaç 154.

Após deslocamento conjunto com a CCav 488 até Sitató, instalou-se em Cuntima em 31mai64, onde substituíu forças da CCaç 461 e da 1ª CCaç, assumindo a responsabilidade do respectivo subsector, então criado e ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 6jun65, foi rendida pela CArt 732, tendo recolhido seguidamente a Bissau com o seu batalhão e onde se manteve até ao seu embarque de regresso.

Entretanto, a partir de 13jun65, dois pelotões estiveram temporariamente deslocados em Bula, em reforço do BCav 790, por períodos de 10 a 15 dias, com
vista à realização de patrulhamentos e contactos com as populações da região de
S. Vicente.

Observações  - Tem História da Unidade (Caixa n." 127 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 253/255


Imagens: Cortesia de Coleção de Brasões, Guiões e Crachás de Carlos Coutinho (2009)
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Nota do editor:

Último poste da série > 17  de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23714: Fichas de unidades (27): 1.ª CCAÇ/CCAÇ 3 (Bissau, Nova Lamego, Farim, Barro, Guidaje, Bigene, 1961/74)

Guiné 61/74 - P23782: Parabéns a você (2115): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546/BCAÇ 3883 (Piche e Camajabá, 1972/74) e Enfermeira Maria Arminda Santos, ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)



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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23779: Parabéns a você (2114): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

domingo, 13 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23781: Prova de vida (5): José Manuel Lopes, o Zé Manel da Régua, ex-fur mil op esp, CART 6250, "Unidos de Mampatá" (Mampatá, 1972/74), que faz hoje 72 anos...

 

1. O Zé Manel , o Zé Manel da Régua, o José Manuel Lopes, o poeta Josema, é um camarada que está aqui connosco desde 2008.  Foi fur mil  op esp, CART  6250, "Unidos de Mampatá" (Mampatá, 1972/74).

É um dos históricos da Tabanca Grande. Figura muito popular e querida, tem muitos e bons amigos por trodo o lado. Temo-nos visto ao longo destes anos todos, seja em casa, na sua quinta, seja nas nossos encontros e convívios, em Fânzeres / Gondomar, em Matosinhos, em Monte Real, seja nas mostras de vinhos... 

Tem cerca de uma centena de referências no nosso blogue. Faz hoje anos, 72 (*). Acabei de falar com ele ao telefone: está bem e recomenda-se, assim como a sua família, a cpomeçar pela "matriarca", a Luisa Valente,  O casal tem dois filhos, que seguiram destinos profissionais diferentes: a filha, a Marta, que  trabalha na indústria do cinema, publicidade e televisão, ligada à produção; o filho, o Vasco Valente Lopes,  que é enólogo (talentoso, e já com um invejável palmarés de prémios) e, além disso, DJ ("disc-jockey").

 Garantiu-me que a sua vindima este ano foi menor em quantiddae mas melhor em qualidade. Que o filho é o seu enólogo (trabalha  para mais quatro quintas do  Douco). Podia trabalhar no estrangeiro como tantos outros jovens enólogos portugueses por esse mundo fora, do Chile à Austrália, mas tem como o pai a paixão pelo Douro, o seu "terroir"... Há coisas que não têm preço...

É um camarada, além disso, amigo do seu amiigo, generoso e soldiário. Ainda ontem esteve na mesa da sessão de lançamehto do livro de poesia do José Teixeira, "Palavras que o Vento (E)leva". Disse-me que estava muita gente e que a sessão se realizou num sítio muito bonito, em Leça do Balio, junto ao mosteiro  que é monumento naciomal. Aproveitou, de resto, para visitá-lo, só conhecia por fora. Adorou e recomenda.

O Zé Manel Lopes não precisa de fazer prova de vida (**). Mas para quem não o conhece, recomendo a leutura do seu poemário, o "poemário do José Manuel", de que sepublicaram 30 postes, o último o P5033 (***).

Recorde que, sob o nome Josema  (seu pseudónimo literário), ele escrevia todos os dias um poema, durante a sua comissão na Guiné...Infelizmente, destruiu a maior parte deles... Salvaram-se umas escassas dezenas, e que já publicados no blogue. 

Foto da página do Facebook "Pedro Milanos /Quinta Senhora da Graça" (com a devida vémia...)

2.  Falei o com ele ao telefone em fevereiro de 2008. Foi o principio de uma boa amizade.  Descobri o  poeta (hoje infelizment "inativo" em matéria de poesia...) mas também o produtor de conhecidos e excelentes vinhos DOC, do Douro, de quep Pedro Milanos é o ex-libros. Tem um alojamento local, na sua quinta, a Quinta Senhora da Graça, com vista magnífica para o rioDouro e a serra do Marão...  

Foi nessa altura, em 27 de fevereiro de 2008, que ele entrou para  a nossa Tabanca Grande. Recordo aqui o que ele me disse, ou o essencial da longa conversa que mantivemos então ao telefone (****):

(i) teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, a Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó); nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passa também na RTP África e na RTP Internacional;

(ii) ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária;

(iii) foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Op Esp e a especialidade de Minas e Armadilhas;

(iv) a sua unidade era a CART 6250; esteve sempre em Mampatá, entre 1972 e 1974;

(v) fez segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Fomorsa (Qubeo) - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC: a  obra parou com o 25 de Abril: o novo troço deveria ter uns 30 quilómetros;

(vi) o José Manuel foi inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Juntou-e à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia;

(vii) depois de Bolama, seguiram em LDG para Buba. onde tuveram logo o baptismo de fogo, como era da "praxe do PAIGC";

(viii) ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT; aliás, a sua CART 625o foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

(ix) tem histórias fantásticas, como a de um camarada nosso, natural da Régua, que foi encontrado inaninado, desidatrado, doente, no Rio Corubal, numa piroga à deriva, depois de ter fugido de uma zona controlada do PAIGC (...);

(x) há outras histórias, que vão enriquecer o nosso blogue e a nossa memória, incluindo o período do pós-25 de Abril, em que o José Manuel teve contactos frequentes e intensos com a malta do PAIGC (cujos graduados "andavam sempre com livros e cadernos debaixo do braço e tinham muito nível"); soube do 25 de Abril, quando vinha de uma operação no mato e viu os restantes camaradas, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, com os soldados a gritar "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!"; sto passou-se a 26 de Abril, a notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador;

(xi) durante a sua comissão , ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas; tem muitas coisas dessa época, que nunca publicou nem mostrou a ninguém, além de inúmera documentação fotográfica; escreveu versos que eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso; vai-me mandar o Cancioneiro de Mampatá (foi assim que eu logo o baptizei...); inclusive, prontifficou-se a mandar-me um poema por dia;

(xi) durante anos não falou da guerra colonial com ninguém, só mais recentemente foi ao convívio anual do pessoal da CART 6250;

(xii) esteve sempre em Mampatá onde a tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futas-fula), razão por que nunca foram atacados; não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Aldeia Fomorsa (Quebo)-Mampatá-Salancaur.; também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas...);


(xiiii) fala da Guiné com a mesma paixão com que fala do seu Douro (donde nunca mais saiu, desde que regressou da Guiné, em Agosto de 1974)...

Passámos rapidamente a tratar-nos por tu, como velhos camaradas. Convidei-o a integrar a nossa Tabanca Grande, o que aceitou com visível regozijo... Quando puder entregará as fotos da praxe. Fica à espera do filho, para lhe digitalizar as fitos (Ele é um jovem enólogo e está neste momento fazer uma estágio na Austrália) (...)

José Manuel, estás apresentado. Estás em casa, entre amigos e camaradas! Sê bem vindo! Como vês, não há viagens sem regresso... A não ser as da morte. E por falarem regresso, tens histórias fabulosas de Mampatá, escritas por um velhinho, que por lá passou, um anos antes de ti, o nosso camarada Zé Teixeira (2)...L.G.
___________



(***) Vd. poste de 29 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5033: Poemário do José Manuel (30): O sol queima em Colibuia...

(---) O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

Colibuía 1973

josema

[Enviado em 4/4/2008. Revisão / fixação de texto: L.G.] (...)

Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)



1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 10 de Novembro de 2022, falando-nos da sua Unidade:


Comando de Agrupamento N.º 16

É verdade que já lá vão mais de 58 anos que tudo isto se passou, no entanto, ocupamos o precioso espaço deste ainda resistente blog, dirigido pelo Luis e pelos seus dedicados colaboradores, que continua a descrever algumas passagens da guerra colonial na então província da Guiné, e claro, seguindo sempre o princípio de que esperamos ter aprendido algo com o dia de ontem, porque amanhã é a coisa mais importante da nossa vida e oxalá chegue a meia-noite de hoje limpa e sem problemas, porque é perfeito quando ela chega e se coloca nas nossas mãos. Sim, mais agora nesta avançada idade.

Continuando, vamos descrever o que foi o nosso Comando de Agrupamento, que era uma “unidade coordenadora de acções de logistica e de combates, sobretudo na organização e nos pormenores das operações militares na zona do Oio e do Cacheu” a que pertencíamos, sendo o primeiro Agrupamento a chegar àquela então província, quase quando do início da guerra de guerrilha que pelo menos naquela época, dois grupos armados desenvolviam no norte e que levaram à independência do seu território.
Assim, este Comando de Agrupamento, embora sendo um comando desarmado, dava ordens que podiam matar pessoas ou destruir aldeias consideradas inimigas. Foi constituído no Regimento de Infantaria n.º 1, na então vila da Amadora, sob o comando do Tenente-Coronel de Infantaria José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares. (antigamente era assim, as pessoas que se diziam nobres tinham 7 e 8 nomes, e nós, os tais que diziam que era “carne para canhão”, tínhamos 2, o máximo 3, onde muitos de nós por lá ficaram, chamando-se António, Manuel, Joaquim ou José, cujo segundo nome era simplesmente, Jesus).

Continuando, como Chefe de Estado-Maior teve o Major de Infantaria António Coelho da Silva, sendo mais tarde substituído pelo Major de Artilharia Raul Pereira Baptista, e este Agrupamento adoptou a Divisa de “Juntos Venceremos”. Os oficiais foram para aquela província todos de avião e nós soldados, cabos, sargentos e milicianos, embarcámos no dia 23 de Maio de 1964, no cais de Alcântara em Lisboa no navio de carga “Ana Mafalda”, porque era o único que naquela época podia encostar ao cais do Rio Geba em Bissau, onde chegámos no dia 30 desse mesmo mês e ano.

Não havendo espaço para nós no Quartel General, ficámos instalados em tendas, numa parte deserta ao norte do cais, onde a sobrevivência se tornava um pouco difícil, sem latrinas e água potável, e com a presença contínua dos malditos mosquitos, junto de pântanos e lama, e onde já lá estava acampado um Batalhão composto por militares de combate, (esses sim, sofreram), que tinha chegado uns dias antes de emergência, desviados para a Guiné, porque o seu destino era Angola.

E que nos davam suporte no alojamento, com direito a uma marmita cheia de café negro feito de água fervida e turva do pântano e um biscoito pela manhã e duas embalagens de ração de combate por dia, iniciando-nos no normal “tráfico de influência entre companheiros combatentes”, onde os biscoitos eram moeda de troca por cigarros. Mais tarde, por mensagens recebidas, tivémos conhecimento de que houve neste acampamento um suicídio de um militar que infelizmente, talvez desanimado e deprimido, não suportou estas condições de alojamento.

Adiante… Duas semanas depois, quando ainda nos encontrávamos em Bissau, já instalados no Quartel General, o Agrupamento assume a responsabilidade da Zona Norte/oeste, que abrangia os sectores dos Batalhões instalados em Bula, Farim e Mansoa, que anteriormente dependiam do Comando Territorial, assim como todos os Comandos de Batalhão.

Assim, organizados dentro da maior desorganização que por lá havia, instalámo-nos em Mansoa no final do mês de Julho de 1964, na tal Zona Norte/Oeste, na região do Oio, no entanto, ainda instalados em Bissau, já o Agrupamento tinha criado o sector de Mansabá, onde no início as tropas portuguesas tinham ordens para assumiram uma postura defensiva, limitando-se a defender territórios onde ainda não havia muita barafunda, no entanto, essas operações defensivas algumas vezes foram devastadoras para as nossas forças, que eram regularmente atacadas fora das áreas povoadas por uns guerrilheiros agressivos, e aí sim, havia mortos e feridos.

Mais tarde com o desenrolar de frequentes combates, entre Outubro e Novembro, já no ano de 1965, o Agrupamento criou o sector de Teixeira Pinto, na região do Cacheu, porque por lá também já havia aqui e ali alguma insurreição e havia notícias de que pela noite havia colunas de mulheres guerrilheiras, que transportavam armas e munições vindas da fronteira, protegidas pelos grupos de guerrilheiros e que os reabasteciam, e claro, era necessário incrementar a zona operacionalmente, onde começaram as primeiras operações navais anfíbias, que foram instituídas para superar alguns dos problemas de mobilidade inerentes às áreas pantanosas.

Entretanto e com o correr do tempo, e as normais tropas portuguesas sendo constantemente fustigadas em ataques contínuos, foi criado um Grupo de Comandos em Bissau, treinado quase especificamente para esta guerra de guerrilha, composto por muitos africanos mas, pelo menos no seu início, eram comandados por militares europeus, e assim, juntamente com os próprios Comandos de Fuzileiros e tropas Paraquedistas como forças de ataque, eram frequentemente chamados para socorrer ou para combater ao lado das normais forças de combate portuguesas, onde alguns por lá ficaram mortos e enterrados no lodo dos pântanos para sempre.

Mas continuando, a actividade operacional foi mais direccionada, especialmente para as regiões do Morés, Mansabá, Bissorã e Olossato, que começaram a ser constantemente fustigadas por ataques dos guerrilheiros que recebiam apoio dos países vizinhos, utilizando corredores específicos de que só eles tinham conhecimento, onde se refugiavam e recebiam treino específico de guerrilha, assim como material de combate já mais moderno. Nesta zona, principalmente no Morés, periódicamente já actuava em cenário de combate um avião que voava de Bissau, lançando bombas, incendiando aldeias suspeitas, assim como as forças especiais de combate entretanto criadas e já acima mencionadas.

Todas estas povoações acima mencionadas eram visitadas por nós ou pelos nossos companheiros “cifras” no fnal de cada mês onde levávamos aos comandos das forças ali estacionadas, o tal material classificado de cifrar, cujo código era modificado todos os meses, viajando ou em colunas militares ou na avionete do correio e aí sim, “éramos um militar na guerra, mas desarmado”.

Depois… passámos dois longos anos naquele cenário de uma guerra terrestre de guerrilha, onde como acima já explicámos, éramos o “Cifra”, um soldado desarmado, onde a disciplina de um campo de batalha não era lá muito eficaz para a nossa sobrevivência, onde um pequeno descuido ou desleixo, onde os ataques ao aquartelamento que ajudámos a construir, as emboscadas, minas ou fornilhos, nas viajens de fim de mês, podiam a qualquer momento fazer com que a nossa alma nos abandonasse, na procura de uma qualquer galáxia distante.

E onde uma tijela de arroz ou um naco de pão era mais importante do que uma ração de combate, onde os campos abandonados da plantação de arroz, se transformaram em pântanos perigosos, onde as notícias recebidas nas mensagens que pela mão nos passavam, descrevendo o volume e o ruído do fogo inimigo, nos trazia a todos nós estarrecidos, onde só talvez, o excesso de álcool nos dava algum miserável conforto.

Fomos sobrevivendo e, finalmente ao fim de dois longos anos, embarcámos de regresso à metrópole, no dia 13 de Maio de 1966, no navio “Uige”, que estava ancorado ao largo no rio Geba em Bissau, sendo transportados em lanchas do cais ao navio, onde tal como muitos companheiros, continuando com o excesso de álcool, agora já dentro do navio, roubou-nos a recordação da partida e do cenário de onde o rio Geba desaguava, no tal “oceano que para nós estava longe do mar” e, ainda hoje não sabemos se o Geba, tal como o Mansoa, eram rios ou canais de água salgada.

Tony Borie
Novembro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

Guiné 61/74 - P23779: Parabéns a você (2114): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23774: Parabéns a você (2113): Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/74)

sábado, 12 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23778: Os nossos seres, saberes e lazeres (538): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (76): Do Luso para o Bussaco (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma itinerância que teve o seu ponto alto na Mata do Bussaco e um regresso à Serra de Montejunto, uma das minhas más memórias dos tempos em que me preparava para ser atirador de Infantaria, no longínquo ano de 1967. Foram dias de regalo, e descubro agora que ainda não vos contei que andei pelos lados de Santiago do Cacém, quando levei a neta a férias na região de Sines. É um salto na cronologia, pois na verdade andei primeiro nas ruínas romanas e depois nestas deliciosas terras do Bussaco em que os frades transformaram um deserto no paraíso.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (76):
Regresso do Bussaco, viagem a Montejunto, os bons silêncios no Casal da Esperança


Mário Beja Santos

Chegou a hora do regresso, em jeito de despedida uma passagem pelo Museu Militar do Bussaco, fundado em 1910, na cerimónia esteve o rei D. Manuel II, teve aqui um dos seus últimos atos políticos. O edifício situa-se junto da capela de Nossa Senhora da Vitória e Almas, que durante o período da batalha foi aproveitado pelos frades carmelitas descalços, do convento próximo, para acolher um hospital de sangue onde foram assistidos os feridos da batalha de ambos os exércitos. Aqui se pode observar a estratégia utilizada por Wellington para derrotar Massena.
Interior do Museu Militar do Bussaco

A Mata do Bussaco ainda é motivo de conversa no grupo, há quem suspire por ter faltado um nevoeiro denso a encobrir a copa das árvores, há quem rejubile com o passeio dado às ermidas e há quem também ponha na conversa o muito que tem de intrigante o Convento de Santa Cruz, mostra-se mesmo um folheto onde se refere que os frades, ao verem pela primeira vez esta paisagem, terem enunciado: “Aqui é vontade de Deus que se funde; murem este sítio, que tem ele o melhor deserto da Ordem. Porque se agora em culto, rude e tosco, é o que admiramos. Cultivado, será um paraíso terreal”, e nós comprovámos que é de facto uma bênção da natureza.
Portas de Coimbra, Mata do Bussaco

Os azulejos do Palace Hotel primam pela altíssima qualidade e o modo como se inserem enquanto arte decorativa. Se o estilo é neomanuelino, o artífice embrechou temas como o Duque de Wellington, a Barca do Inferno de Gil Vicente ou temas d’Os Lusíadas, caso deste Mostrengo, que é um regalo para os olhos.
O Mostrengo, um dos espantosos azulejos que podemos ver no Palace Hotel do Bussaco

Regressa-se à Lourinhã de onde se partiu, alguém alvitra um passeio à Serra de Montejunto, é relativamente próximo, entre Cadaval e Alenquer, pode-se falar no sistema Montejunto-Estrela e como aquela paisagem protegida assenta perfeitamente no Maciço Calcário Estremenho, momentos há em que parece que estamos na Serra de Aire e Candeeiros. Confesso que vou para ali contrafeito, se há recordação que se tornou indelével foi a das duas últimas noites das marchas finais da especialidade de atirador da Infantaria, fomos para aqui largados em tempos gélidos, com a mesma farda com que recebíamos instrução em Mafra, largados num matagal qualquer, forjou-se um golpe de mão numa madrugada, andou por ali um pelotão a monte a cortar o nevoeiro, nada de inimigo, só o silêncio do escalvado do monte, a tiritar de frio lá se encontrou um abarracamento de animais, por ali se fingiu pernoitar, pelo amanhecer surgiu visibilidade, seguiu-se um dia inteiro a passear entre pedregulhos, do inimigo nada se sabia. A vista tem pormenores estarrecedores, e viemos aqui aos comes e bebes, trata-se de um cozido dentro do pão num local chamado O Curral do Burro, saímos deliciados, para esmoer as carnes e os legumes passeou-se a pé, aqui se deixa algum registo, vale a pena voltar e esquecer definitivamente (?) aquelas malfadadas marchas finais que me deram direito a ser aspirante a oficial miliciano.
Chegou a hora de regressar a casa, na Travessa do Casal da Esperança, freguesia de Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, a escassos 2 quilómetros do concelho do Bombarral. É região de fruta, de vinho, alguns cereais e legumes, funciona como uma placa giratória entre locais como Óbidos, Lourinhã, Peniche, Caldas da Rainha, passeios não faltam. Mas não escondo que me sinto muito bem nestes casebres, gosto da natureza, do jardim que se construiu entre pedregulhos, tem pereira, loendreiro, ameixieira, laranjal, agora põem-se glicínias, buganvília, imensos catos. O trabalho é permanente, arrancar a erva daninha, a mexer nos interiores exíguos para os tornar mais confortáveis, ter espaços para cozinhar aceitáveis; e assim acrescentar o prazer de contemplar esta natureza em paisagem protegida. Vejam como estes casebres estão cheios de paz e garantem uma estadia cheia de amenidade.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23764: Os nossos seres, saberes e lazeres (537): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (75): Do Luso para o Bussaco (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima


 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c. 1969/71 >  Edifício onde funcionou o comando e o posto de socorros, no tempo da CCav 489 /BCav 490 (1964/1965). 



 Guiné > Região do Oio > 
Cuntima > c- 1969/71 > A “avenida do Senegal”.



 Guiné > Região do Oio > Jumbembem > c- 1969/71 >  Aspecto da tabanca



 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c- 1969/71 > Farim > Edifício do comando do Batalhão de Cavalaria 490

Fotos gentilmente cedidas pro Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). Publicadas no livro a preto e branco.


Dispositivo do BCav 490: Farim (CCAV 487), Jumbembem (CCAV 488( e Cuntima (CCAV 489)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

 


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, antes de completar os 75 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição. 

Recorde-se, aqui o último poste:  o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) está em Farim, colocado na 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), no segundo semestre de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim (onde esteve cerca de um ano; em meados de 1964, pediu transferência para a CCS / QG, em Bissau).  Mantemos a ortografia original.  Chame-se  atenção para  os seguintes factos : (i) o Amadu, ainda soldado condutor autorrodas,  sofre as primeiras emboscadas e vê com humanidade o primeiro morto do PAIGC: (ii) ainda está  equipado com a velha Mauser...
  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



Com a 1ª CCAÇ, em  Farim,  em 1963/64

(pp. 71-80)

por Amadu Bailo Djaló


(i) Com o BCav 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro,  em Farim


    Ieró Codi, Régulo da tabanca de Lambam, na fronteira com o Senegal, ao verificar que o PAIGC se estava a implantar em toda aquela zona fez uma petição ao administrador solicitando a sua intervenção no sentido de abandonar a tabanca com as suas gentes e haveres. 

O administrador dirigiu-se ao comandante do BCav 490  [1], o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, a quem colocou o pedido do Régulo Ieró Codé. O tenente-coronel determinou o cumprimento da missão ao capitão [2], comandante da CCav 487 [3], e à 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Preparámos as viaturas. Como não tínhamos carros suficientes, solicitou-se aos comerciantes de Farim a cedência de alguns carros, pedido que foi aceite, solicitando eles, apenas, que os seus condutores fossem dispensados, já que alguns eram idosos e outros muito jovens e sem qualquer preparação militar. Foram substituídos por condutores militares.

No meu caso, recebi a indicação de ir à Ultramarina buscar uma viatura.

–  Olha, o carro está bom. Mas tem um problema. Quando o sol está muito forte, o diafragma cola e o motor vai-se abaixo. Assim, eu costumo levar água para molhar a bomba manual e, pouco tempo depois, o motor pega. Vai parando, de vez em quando e molhando a bomba, chegas ao destino –  disse-me o condutor da Ultramarina.

Verifiquei o óleo e levei o carro para o quartel, para o atestar e fui aguardando a chegada dos outros colegas. Preparada a coluna, arrancámos. Tinha-se sentado ao meu lado um jovem, de baixa estatura, que eu nunca tinha visto, nem tão pouco sabia quem era. Imaginava que fosse algum colega da caserna.

Iniciada a marcha, com o sol a pique e o calor a queimar, a certa altura parei, lembrando-me da recomendação do motorista do comerciante. Saí do carro, molhei a bomba e reparei que o meu companheiro sorria. Novamente pus o motor em funcionamento, retomei a marcha até nova paragem para proceder a novo refrescamento da bomba. Com todas estas interrupções, a viagem até estava a ser pouco aborrecida.

À quarta paragem já me encontrava um bocado irritado e gritei para mim:

–   Porra para isto! Nem parece um carro, isto é um caco!

 –  Vamos voltar a molhar a bomba –  disse-me o tal companheiro.

Novamente molhada a bomba, minutos depois o motor voltou a pegar e retomámos a marcha. O que valia é que o caco, depois de arrefecer uns minutos acabava mesmo por voltar a pegar. E o jovem ao meu lado, sempre calado. A partir daqui, sempre que o motor ia abaixo, era o meu colega de viagem que dizia para molharmos a bomba e ocasiões houve que era ele que saía primeiro. Esta odisseia autêntica só parou, quando finalmente chegámos à tabanca de Lambam.

Começámos a carregar a viatura com caixotes, malas, alimentos, animais e, no fim, mandámos as pessoas subir. Tudo pronto, preparámo-nos para o regresso a Farim.

Voltaram as paragens, só que agora eram mais frequentes. A linguagem que eu usava, já sem paciência nenhuma, era linguagem de tropa, enquanto o meu companheiro mantinha a mesma postura, nada dizia, a não ser "vamos molhar a bomba", quando o motor parava. À última paragem, já com Farim quase à vista, eu já não podia mais, estava desesperado. E já não tinha água.

 –  Porra para esta merda! E agora? 

E o companheiro, ao lado:

 –   Vamos molhar a bomba.

 –   Como, pá? Não temos água, porra!

  –   Olha, se alguém ainda tiver um cantil com água que traga.

Apareceu um furriel europeu que passou um cantil para as mãos do meu companheiro. Naquela altura, disse para os meus botões:

  –   Quem será este gajo que vem ao meu lado? Às tantas é para aí um furriel, colega do outro do cantil!

Molhámos a bomba e logo o carro começou outra vez a funcionar.

 –   Se calhar, é melhor deixar aqui o cantil.

Chegámos finalmente à vila e começámos logo a descarregar os materiais que trazíamos. Eu estava exausto, deixei-me ficar sentado um pouco.

Entretanto, Paté, irmão do Régulo Iero, que era cipaio da administração civil, aproximou-se e começou a conversar com o meu companheiro.

 –  Amadu  –   ouvi chamar. Era o Régulo Ieró.

 –   Que é?  – perguntei.

  –  O capitão não está por aí?

Procurei com a vista e não vi nenhum capitão.

  –  Não, não está aqui capitão nenhum   –  respondi.

Paté, ao ouvir a minha resposta, perguntou:

 –   O que é que ele quer?

 – Anda à procura do capitão!

Paté, espantado com a minha resposta:

 –  Então, o capitão não está ao teu lado?

 –  Mas este é que é o capitão? Mas este é que é o capitão?

  –  Sim, esse é o capitão.

Esta conversa estava a ser trocada em fula. Até tremi, de repente assustei-me. Senti vontade de desaparecer com a vergonha. Paté, vendo-me meio desorientado, gritou para o irmão:

 –   Olha, o capitão está aqui.

O capitão não se apercebia da conversa, porque a linguagem era fula.

 –   Como sabe, nosso capitão, ficou gente e haveres ainda na tabanca. Se dormirem lá, é certo que o PAIGC vai lá buscá-las ou até destrói a tabanca.

  –   Não, não fica lá ninguém, nós vamos lá buscar tudo o que falta  – respondeu o capitão.

Formámos novamente a coluna, tendo o capitão tomado novamente o meu carro, sentando-se ao meu lado.

Durante esta segunda viagem, como o sol já não estava tão forte, o carro só parou três vezes pelo caminho. A certa altura, o capitão começou a fazer-me perguntas:

 –   Qual é a tua tribo?

 –   Futa-Fula, meu capitão.

 –  Ah, vejo pelo sinal ao canto dos olhos!...  E de onde és?

 –  De Bafatá, meu capitão.

 –  Qual era a tua ocupação na vida civil?

 –  Comerciante, meu capitão.

 –  E quando assentaste praça?

 –   1962, meu capitão.

 –   Aprendeste a conduzir na tropa, foi?

 –  Sim, senhor, meu capitão.

  –  Estás a ver como a tropa é boa?

 –  Estou, sim, meu capitão.

Chegados à tabanca, carregámos o que faltava e as pessoas que tinham ficado e iniciámos a viagem de regresso que decorreu sem problemas. Chegados a Farim, o Capitão Cidrais, assim se chamava o meu companheiro de viagem, dispensou os condutores que estivessem livres, menos a mim. Logo pensei que ia haver uma conversa sobre a linguagem que tinha usado na primeira viagem. Terminado a descarga, o capitão voltou a sentar-se a meu lado e mandou seguir para a 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Parámos frente à porta do gabinete do capitão, comandante da 1.ª Companhia de Caçadores. Apeou-se e dirigiu-se para o gabinete, enquanto eu preenchi o boletim da viatura.

Pedi licença e entreguei o boletim ao meu comandante, que logo me perguntou:

 –   O que vais fazer agora?

 – Vou aproveitar para me deitar cedo, porque amanhã tenho que ir acarretar água muito cedo, meu capitão.

Ouvi o Capitão Cidrais dizer:

 –   Olha, gostei de andar com este condutor. Quando voltar a precisar de um, vou pedir-te que mo dispenses.

O tempo foi assim decorrendo até que iria surgir a oportunidade para pedir transferência para Bissau.

Mas antes, aconteceu novo ataque do IN, que foi mais forte e durou mais tempo que o primeiro. Nesse dia estava marcada uma sessão de cinema ambulante, era um filme de música e dança, que não era muito do meu género, eu apreciava mais filmes de acção e policiais. Vi os cartazes e não comprei bilhete. Regressei ao quartel. 

Estava já a dormir bem, quando acordei com estrondos de rebentamentos e barulho de tiros. Parecia que a vila de Farim se encontrava toda debaixo de um fogo cerrado e, quem sabe, já sob o controlo dos assaltantes. Em correria muito rápida dirigi-me para os abrigos, onde me mantive enquanto durou o ataque, que demorou cerca de duas horas.

Durante o tempo em que estive em Farim, o PAIGC efectuou três ataques à povoação, sem consequências pessoais, causando apenas alguns danos em casas da tabanca.

Terminadas as saídas para Bricama, em virtude do desaparecimento da ponte pela sabotagem pelo fogo, nunca mais patrulhámos aquela zona, só lá passávamos quando nos deslocávamos em coluna para Cuntima ou Jumbembem.

A cadeia começou a receber prisioneiros para averiguações, alguns que viemos a ter provas de serem colaboradores da guerrilha. À noite, quando saíamos, às vezes víamos pessoas a entregarem maços de cigarros para os familiares detidos. Normalmente eram raparigas, filhas, irmãs ou sobrinhas dos prisioneiros, algumas das quais andavam com alguns colegas nossos. E certamente não se iriam esquecer, quando fossem libertados de que os tratámos humanamente.

Numa ocasião dessas ocorreu uma situação que me fez sofrer. Uma manhã, no quartel, quando eu estava a encher o depósito de água, aproximou-se de mim um prisioneiro cabo-verdiano [4], jovem ainda.

– Podia levar uma carta para o meu tio?

 –  Para quem?

 –  Para meu tio.

 –  Quem é o teu tio?

 –  É Pedro Sitató.

 –  E onde está a carta?

 –  Não a tenho comigo.

 – Conforme, vamos a ver.

À hora do almoço, do mesmo dia, o rapaz cabo-verdiano entrou no refeitório, passou pelas mesas todas até chegar junto à minha.

– Está aqui a carta. 

E retirou-se, sem mais nada. O que ficou foi uma impressão nos meus colegas e no sargento de dia, que estava perto de mim, que havia qualquer coisa combinada entre mim e o prisioneiro. E ouvi colegas segredarem:

 – Para quem é a carta?

Não fiquei muito satisfeito com a ideia que ficou no ar e dirigi-me à caserna e fui ler a carta, que estava dentro de um envelope aberto. Era uma carta simples, a pedir ao tio que o tirasse da prisão, porque ia ser incorporado em janeiro próximo. Mais nada. E então dirigi-me à messe de oficiais, para a entregar ao meu capitão.

 – Meu capitão, tenho aqui uma carta que um prisioneiro me pediu para entregar ao tio.

  –  Isso é com o oficial de informações   –  respondeu-me.

O oficial de informações era o tal alferes, que me tinham dito,  meses antes, ser sobrinho do actual Governador, brigadeiro Arnaldo Schulz, e que anteriormente, não tinha revelado grande simpatia por mim.

Um pouco receoso da reacção dele, fui procurá-lo ao gabinete e, pedindo-lhe licença, disse-lhe:

– Meu alferes, é um prisioneiro que quer mandar esta carta a um tio dele.

– E quem te mandou receber a carta?

– Meu alferes, recebi a carta para alguém não a levar e poder vir aqui entregá-la.

– Põe-na aí!

No dia seguinte chamaram-me e fui ter com um furriel, que estava na parada com uma secção de soldados.

 – O teu carro ainda tem água?  – perguntou.

 – Ainda tem para aí metade.

Deu ordens à secção para retirar a água toda da minha viatura e, depois de retirados todos o bidões, mandou-nos colocar sacos de serapilheira, vazios, e ir enchê-los de areia a Morocunda, onde havia muita.

Regressámos a Farim, com a minha viatura recoberta com sacos de areia e que iriam afinal servir para abrir as colunas, como "rebenta minas".

(ii) Emboscadas entre Farim e Cuntima

Saímos do quartel da 1ª CCaç em coluna formada por quatro viaturas. A minha, cheia de sacos de areia, e as outras três para serem carregadas de géneros e militares para a necessária segurança, com destino a Jumbembem e Cuntima, mesmo na fronteira com o Senegal.

Antes de partirmos apresentámo-nos na CCav 487, que era comandada pelo capitão Cidrais, e que era o responsável pela missão de trazer o pessoal da CCav 488, do BCav 490, que estava em Cuntima e deixá-los em Jumbembem que, até à data, não tinha tropa.

Em finais de maio de 1964, em dia que já não recordo [5], arrancámos pelas 7h00 da manhã, com a minha viatura à frente. Oito ou nove quilómetros percorridos, deparei-me com uma árvore abatida para o lado oposto à estrada. Alguém a terá acarretado para ali e decidi não parar, mantendo a marcha, uma vez que podia passar. Ocorreu que podia estar ali montada uma emboscada, mas continuei em frente. Cem metros adiante, outra árvore atravessava a estrada de um lado a outro. Desta vez, tive mesmo que parar. Atrás da minha viatura seguia a viatura das transmissões, comandada por um furriel europeu, que logo me gritou:

–  Que é que se passa?

 – Árvore na estrada, meu furriel!

O capitão, depois de observar o local, mandou-me arrancar com o guincho uma árvore seca que se encontrava ali, do lado direito, para abrir uma passagem. Continuámos e cerca de uma centena de metros à frente, antes de descermos uma pequena rampa, avistámos várias árvores, quinze, contámo-las, abatidas, cortadas propositadamente para impedir a passagem.

Agora é que eu não via meio de passar. O capitão decidiu enviar as últimas viaturas a Farim, para trazerem serras mecânicas.

Esta paragem durou muito tempo. Enquanto ficámos na mata a aguardar que as viaturas chegassem com o material, fomos sobrevoados por uma Dornier, que perguntou ao capitão se havia tropa ao fim da rampa. Que não, nós estávamos ainda na parte de cima, não tínhamos ainda começado a descê-la. E avisaram:

– Então cuidado, estamos a ver movimento de pessoal perto do local onde vocês estão.

Chegadas as viaturas, procedemos ao corte das árvores. Eram enormes, as serras não davam conta do trabalho. O capitão pediu-me que tentasse abrir uma passagem através da mata, o que consegui fazer. Aberta a picada, retomámos a marcha até que chegámos a Jumbembem sem mais atrasos. Deixámos ali viaturas com géneros e um pelotão de segurança e sem perder tempo abalámos para Cuntima.

Jumbembem e Cuntima eram duas povoações ligadas entre si por uma estrada de cerca de quinze quilómetros e a paisagem era mais aberta, com poucas árvores.

Chegados a Cuntima, outra vez sem grande demora, descarregámos o que havia para descarregar. A noite era boa para as emboscadas, por isso não era conveniente demorar muito para podermos fazer o percurso de regresso, ainda durante o dia.

Embarcado o pessoal da CCav 488, que estava destacado em Cuntima, iniciámos o regresso a Jumbembem, onde deixámos os militares, que ficaram a ocupar a antiga serração, enquanto nós prosseguimos a marcha de regresso a Farim.

Entre Jumbembem e Farim, na zona da rampa, onde começava a mata cerrada, vi grande quantidade de fumo a sair de um ajuntamento de lenha.

Parei e gritei para trás:

– Fumaça!

Um pelotão saiu e foi espalhar a lenha para desfazer a fogueira. Quando entrámos na picada, começámos uma ligeira subida e, de um momento para o outro, as viaturas que me seguiam ficaram debaixo de fogo. A minha viatura, talvez por ter apenas o condutor, passou. Peguei na minha Mauser, saltei da viatura e abriguei-me. A nossa resposta foi pronta e livrámo-nos sem problemas.

Tivemos ainda mais uma flagelação até à última emboscada, esta sim, bem mais séria. Apesar de estarmos prevenidos e da nossa resposta, sofremos um ferido muito grave [6] e vários feridos. O fogo acabou da mesma forma como começou, de um momento para o outro.

Dias depois, nova saída para Cuntima, comigo e a minha viatura à frente, como “rebenta minas”. Viajámos de noite, contra o que era costume, a coberto da escuridão e com ordem para não acender as luzes. Eu ia sozinho no meu carro, tentando respeitar a ordem, o que me tornava a condução muito difícil. Ia um pouco apreensivo e a condução estava a pôr-me cansado. Nunca até então tinha conduzido em tais condições, uma situação de arrasar os nervos. Por vezes, não sabia se devia voltar para a direita se para a esquerda, conduzia à sorte, quase só com a luz dos meus olhos, ou seja, quase às cegas.

Uma vez ou outra não resisti, acendi as luzes, por breves instantes. Andámos muito devagar e chegámos a Cuntima só ao amanhecer.

Na ida, não tivemos contacto com o inimigo, mas não aconteceu o mesmo no regresso. Fomos flagelados várias vezes, ao longo do trajecto, e lá nos fomos desenrascando com mais ou menos perícia. Isto é, eu acho que foi com perícia, porque não sofremos nem mortos nem feridos, o que não aconteceu ao PAIGC que teve, pelo menos, um morto, que foi o primeiro guerrilheiro que eu vi a morrer em combate.

Era um jovem, talvez com menos de 20 anos, sem camisa, de calções e descalço, com um barrete amarrado à cabeça por uma fita de pele de carneiro. Vi-o a ser arrastado pelo soldado Paulista Solda [7], da CCAV 487. Estava morto.

Durante a minha permanência em Farim, a povoação sofreu três ataques. A abrir colunas, como “rebenta minas”, em colunas de reabastecimentos, em patrulhamento ou em simples observação, sofri várias emboscadas, algumas em que fomos apanhados em terreno aberto e sem grande possibilidade de defesa. Posso dizer que a sorte andou comigo.

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Notas do autor Amadu Djaló /ou do editor Virgínio Briote:

[1] O BCav 490, comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, tinha estado no Sul, na Op Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 70 e tal dias seguidos, abarracados na ilha do Como, a comer enlatados. Regressara de lá arrasado, cheio de hepatites, com os pelotões reduzidos a metade. Depois, o Batalhão foi colocado em Farim e dispôs-se em quadrícula com uma companhia, a CCav489, em Cuntima, na fronteira com o Senegal, a CCav488 em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim e a CCav 487 em Farim.

[2] Capitão de Cavalaria Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

[3] Chegada a Farim em 11 Março de 1964

[4] Depois de solto, foi incorporado no Exército e cumpriu comissão em Bafatá, no esquadrão de Cavalaria. É DFA e vive em Lisboa.

[5] Em 31 Maio de 1964, conforme História do BCav 490.

[6] João Félix Pereira dos Santos, Soldado Apontador de Morteiro, da CCav 487, evacuado para o HM 241 onde morreu 7 horas depois, ou seja, em 1 junho 1964. Condecorado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

[7] Participou na Op Tridente, integrado no Grupo de Comandos, tendo sido agraciado em 5 junho de 1964 com a Cruz de Guerra de 4ª Classe.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963