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quarta-feira, 14 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22102: Historiografia da presença portuguesa em África (258): Diogo Gomes, um navegador e diplomata do século XV, na publicação "Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais", edição do Ministério das Colónias, Junta de Investigações Coloniais, 1950 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Quando qualquer um de nós chegava à cidade de Bissau era confrontado com umas estátuas de figuras seguramente muito importantes, mas que inteiramente desconhecíamos, ou quase. Nem Diogo Gomes ou Honório Pereira Barreto nos provocavam assombro. Chegada a independência, num ato de repúdio da presença colonial, removeram esta estatuária, por vezes aos pedaços, para o interior da fortaleza de Cacheu. Bem devem estar arrependidos, goste-se ou não fazem parte da identidade guineense, de algum modo simbolizam a navegação portuguesa até àquelas paragens, seguramente que hoje os guineenses já sabem que Honório Pereira Barreto foi o seu pai-fundador, não tivesse ele andado a comprar por conta própria e em nome da Coroa o que comprou e só por um bambúrrio da sorte é que na Convenção Luso-Francesa de maio de 1986 é que a superfície da Guiné ficou como está. Demorei muito tempo a aperceber-me da importância de Diogo Gomes e acho que ninguém perde em saber que ele tentou o expediente diplomático criar boas relações comerciais com o Mandé, o Império Mandinga, numa época tumultuosa de desmembramento de impérios.

Um abraço do
Mário


Diogo Gomes, um navegador e diplomata do século XV

Mário Beja Santos

O então Comandante Teixeira da Mota, no contexto da Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, edição do Ministério das Colónias, Junta de Investigações Coloniais, 1950, publicou a sua comunicação sobre Diogo Gomes, primeiro grande explorador da Gâmbia, 1456.

Observa o historiador que esta viagem de Diogo Gomes é apenas conhecida através do relato que o navegador, muitos anos mais tarde, fez a Martinho da Boémia, e que Valentim Fernandes registou na sua compilação de notícias acerca da África Ocidental.

Começaram a explorar o Canal do Geba, até perto da confluência Geba-Corubal e observaram os efeitos do macaréu. Regressaram até ao Atlântico e encetaram a exploração do Gâmbia, viajaram até Cantor. Estabeleceram relações pacíficas com o chefe local, o Niomimansa, além de outras relações comerciais. O objetivo de Diogo Gomes era procurar o Preste João e também procurar o Mandimansa com o objetivo político e económico de estabelecer comércio aurífero do Sudão, foram expetativas mal-sucedidas. Estabeleceram-se relações amistosas com os Mandingas do Baixo e Médio Gâmbia e do Baixo Geba – foi este o primeiro contato pacífico com súbditos do imperador do Mali, cuja fama lendária corria então na Europa. Em Cantor havia um grande mercado aurífero, esta rota continuou a ser seguida pelos tempos fora. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII os portugueses não deixaram de lá ir à procura sobretudo de ouro.

Outro investigador, Carlos Manuel Valentim, publicou um seu trabalho intitulado Os Primeiros Contactos Diplomáticos entre a Europa e a África Subsariana, a viagem de Diogo Gomes em 1456 nos Anais do Clube Militar Naval, abril-junho 2007. Tem uma muito bem urdida introdução onde se contextualiza algumas das razões para a expansão portuguesa. Refere em concreto o esgotamento do modelo económico comercial europeu, as pestes e as guerras, sobretudo a Guerra dos Cem Anos, tudo vai convergir para que se estabeleça na Europa no final do século XIV o reconhecimento da importância do comércio marítimo e o afã em procurar novos mercados, havia uma grande procura de metais preciosos, assim nasce o projeto henriquino. Havia o mito do Preste João, detentor de um poderoso reino, com sede para oriente do rio Nilo, iria desde a Índia até ao Atlântico africano, era um soberano lendário que governaria um povo de cristãos, havia pois que o encontrar e estabelecer contactos.

As navegações portuguesas alcançaram a chamada África Negra em 1444, ultrapassara-se a Mauritânia. Nestas primeiras viagens para Sul da Costa Ocidental Atlântica, quando se avistou o rio Senegal, pôs-se logo a hipótese de estar em presença do rio Nilo, havia a ilusão de que se tinha achado um braço daquele grande rio. Graças às viagens, ia-se apurando as caraterísticas políticas e sociais da região. Transmitia-se pela documentação que nesta área vigorava uma federação de Estados liderada por um senhor poderoso, o Grão Jalofo. A chegada dos europeus vai ser contemporânea do desmoronamento da construção política desta área compreendida entre o vale do Senegal e o vale do Gâmbia, bem como o Futa-Toro. Os navegadores falam genericamente da Senegâmbia e transmitem a importância dos eixos comerciais aqui existentes. A etnia predominante é a Mandinga, é o reino Mandé, compreendendo os vales do Senegal e do Gâmbia, autónomo do Mandimansa.

Uma das primeiras descrições que temos desta grande via hidrográfica é-nos dada por Diogo Gomes, um homem da Casa Senhorial do Infante D. Henrique. É ele que estabelece uma aliança em nome do Infante D. Henrique com o rei do Niomi, estabelecerá acordos pacíficos com um conjunto de régulos e submeterá no Cabo Verde continental o Bezeguiche, inimigo tradicional dos portugueses. Diogo Gomes desempenhou um papel muito ativo na recolha de informações e no reconhecimento hidrográfico e etnográfico de toda a área a sul de Cabo Verde.

Na segunda viagem à região surge a primeira menção direta ao uso do quadrante: “Eu tinha um quadrante quando fui a essas paragens e escrevi na tábua do quadrante a altura do polo ártico, achando melhor do que uma carta. É verdade que numa carta se vê a rota de navegar, mas se alguma vez se introduz um erro, nunca se volta ao ponto primitivo”. Importa esclarecer que com este instrumento de medição Gomes obtinha as “alturas” da Polar, comparando os seus valores com base no local de referência (Lisboa, Lagos ou Madeira, por exemplo).

Continua em discussão se este relato foi transmitido por Diogo Gomes oralmente a Martinho da Boémia ou se foi escrito pelo seu próprio punho. Das viagens que efetuou, sabe-se que com Gil Eanes e Lançarote de Freitas participou na expedição militar de 1445 à ilha de Tider, não longe de Arguim. Dá pormenores valiosos da subida do rio Gâmbia até Cantor em busca de informações sobre o comércio do ouro e das vias que ligavam as regiões auríferas do Senegal, do Alto Níger e do entreposto comercial de Tombuctu às rotas sarianas que desembocavam no litoral marroquino.

Os portugueses descobriram que não tinham condições para capturar escravos, era-lhes mais proveitoso obter acordos com os senhores locais para conseguir a mão-de-obra desejada. Foi graças a esses acordos que o resgate se manterá florescente. No litoral, os portugueses trocavam cavalos por escravos e subiam o rio Gâmbia até às feiras de Cantor para desenvolver um ativo comércio de ouro. No seu relato, Diogo Gomes que capitaneava uma esquadra de três navios lembra a sua ligação ao senhor Infante e as instruções que dele recebeu para ir mais além do que pudesse. Possivelmente, no regresso desta exploração, tocou o arquipélago de Cabo verde, cujo descobrimento reclama para si, na companhia do italiano Antonio de Noli. Falecido o infante, Diogo Gomes reforça a sua ligação à corte e será nomeado almoxarife de Sintra.

Teixeira da Mota e Carlos Valentim convergem quanto à importância de Diogo Gomes, um dos mais inteligentes e ativos obreiros do Infante D. Henrique e um dos maiores navegadores e exploradores da sua época.
O que resta da estátua de Diogo Gomes, na Fortaleza de Cacheu
Carta náutica de Fernão Vaz Dourado incluída num atlas desenhado em 1571, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Américo Vespúcio numa gravura contemporânea
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22031: Historiografia da presença portuguesa em África (257): A "Expansão portuguesa na Guiné", por Maria Archer; em "O Mundo Português", revista de atualidades do Império, edição da Agência Geral das Colónias, abril de 1946 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21883: Historiografia da presença portuguesa em África (251): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Terá sido a grande polémica travada entre dois historiadores de gabarito a propósito do importantíssimo estudo feito por Teixeira da Mota sobre o descobrimento da Guiné, ele é um jovem que se entusiasma e mesmo deslumbra pela Guiné, procedeu a um estudo afincado com base em trabalhos historiográficos fidedignos, pondo termo a muita fantasia e esoterismo à volta dos empreendimentos henriquinos naquele ponto da costa ocidental africana, fazendo jus ao trabalho de Duarte Leite que pegou na cartografia, do seu cotejo se chegou ao conhecimento de que Nuno Tristão jamais pusera os pés na Guiné Portuguesa.
Não era só a reposição da verdade que estava em causa, a historiografia da Guiné dava um salto, o futuro colaborador de Sarmento Rodrigues lançará as bases do Museu da Guiné, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e do Boletim Cultural. Graças a ele e à vontade política de Sarmento Rodrigues, a colónia, em termos culturais, era motivo de estudo, chegaram à Guiné jornalistas de mérito como Norberto Lopes, o grande geógrafo Orlando Ribeiro e outros. Abria-se a Guiné ao conhecimento científico, incluindo as potencialidades agrícolas. E tudo começara por umas comemorações onde a Ciê0cia foi deitando para o caixote do lixo as epopeias delirantes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2)

Mário Beja Santos

Após louvar a investigação de Teixeira da Mota e evidenciar o rigor usado para desmistificar a chegada de Nuno Tristão à Guiné, segue-se, com a maior contundência e com o maior número de bengaladas, as severas críticas de Vitorino Magalhães Godinho a certas apreciações e análises de Teixeira da Mota. Este escreveu que “As controvérsias henriquinas, que ameaçam perpetuar-se, acabarão, se continuarem no mesmo espírito que até aqui, por destroçar o mais glorioso período na nossa história, deixando no seu lugar o caos”. É a perfeita negação do cuidado até agora posto na análise de críticos que, comprovadamente, tinham posto termo a versões fantasiosas da descoberta da Guiné, caso de Duarte Leite, Armando Cortesão, Damião Peres, Jaime Cortesão, Veiga Simões e Magalhães Godinho. A que propósito é que as apreciações destes estavam a criar o caos? E dirige-se-lhe com verrina: “Teixeira da Mota acha bem discutir criticamente a data de uma viagem, o nome do descobridor de um cabo ou rio, os locais visitados pelo navegador. Mas o enquadramento destes factos, sem o qual de nada interessam, de nada valem, a sua integração em todas as condições da época e da evolução histórica, a sua compreensão como amplo movimento, devem ficar ao nível dos contos de fadas. Pois não se vê que não estamos de forma alguma em perigo de cair em confusão? Que, ao invés, se têm realizado progressos sólidos? Passou-se do simplista ao complexo, do material bruto à discriminação fina, trilharam-se com firmeza caminhos reveladores. É claro, já não há só o príncipe encantado, varinha de condão das navegações e conquistas: há também João Afonso e D. João I, D. Duarte e D. Pedro, e muitos outros; há as correntes de opinião (o Sr. Teixeira da Mota deve ser dos que anseiam por que nunca haja correntes de opinião), interesses de grupos, classes e indivíduos, há condições técnicas e condições financeiras; há, numa palavra, a realidade, multiforme e não esquemática, viva e não lendária. Mostrar que o Infante D. Henrique não é um príncipe lendário de influência omnipotente, mas sim um homem de carne e osso, cuja ação no seu tempo se define, não é rebaixá-lo, é, antes, pelo contrário, reconhecê-lo a sua verdadeira glória”.

E enumera os atos do Infante desde a tomada de Ceuta em 1415 até ao seu papel na colonização dos Açores. E depois dirige as suas tagantadas para a discussão do antagonismo de D. Pedro com D. Henrique, que Teixeira da Mota considerava uma diminuição de D. Henrique, e procede à análise das fontes que ajudam a compreender o comportamento de D. Pedro, que era manifestamente hostil ao cruzadismo no Norte de África, e foi um forte empreendedor dos Descobrimentos, e escreve: “Não temos quaisquer provas da vasta cultura científica de D. Henrique, nem de que tenha impulsionado os estudos científicos em Portugal, nem de que fosse animado de espírito científico; D. Pedro é o infante que percorreu a Flandres e a Itália e que escreveu "A Virtuosa Benfeitoria", e sob a sua regência e governo (oito anos) exploraram-se 198 léguas da costa africana, ao passo que nos doze anos seguintes se descobriram tão-só 94 léguas”. Magalhães Godinho, di-lo frontalmente que era absurda a tese de fazer de D. Henrique a causa única dos Descobrimentos, remete Teixeira da Mota para os trabalhos que ele desenvolvera nas suas investigações e chama-lhe leviano, deturpador do que ele escrevera: “Não há em meus escritos uma única frase onde eu pretenda apresentar o Infante D. Henrique dominado exclusivamente pelo espírito de Cruzada, pela mentalidade guerreira; muito ao invés, procurei sempre apresentá-lo como mais equilibrado do que aqueles que o apresentam só como cruzado ou só como sábio ou só como traficante". E era evidente a existência de uma mentalidade mercantil. “Em 1444 começaram as tentativas para firmar resgate pacífico no Rio do Ouro, e isto devido à iniciativa de Gomes Pires e de D. Pedro. Em 1447 tenta-se abrir trato à boa paz no Suz, por iniciativa de D. Henrique, mais ainda durante o governo de D. Pedro; neste mesmo ano, Valarte e Fernando Afonso são incumbidos por D. Pedro de estabelecer paz e comércio com o Bor-Mali e os Jalofos, Sereres e Barbacins; Diogo Gomes data o triunfo da política pacífica-mercantil de 1445 ou 1446”. Estes eventos escolhidos por Godinho revelam que o Infante D. Pedro em caso algum se opôs a trato comercial na costa ocidental africana.

A polémica muda de rumo, nestas discussões do confronto entre D. Pedro e D. Henrique, Teixeira da Mota teria sido levado a supor que existira um comprovado humanismo de D. Henrique, atendendo ao que escreveu Zurara, o Infante não queria ser defraudado no seu cunhão de escravos, e era uma treta completa dizer-se que havia uma grande preocupação com o tratamento dos escravos. Magalhães Godinho faz questão de destacar alguns autores que referem claramente os maus-tratos a que eram sujeitos os escravos no cativeiro, e mordazmente volta a criticar Teixeira da Mota: “Insurge-se contra o facto de os ingleses transportarem 50 mil escravos por ano de 1750 a 1780 e acha bem que os portugueses conseguissem mil anualmente de 1510 a 1520. É lamentável que ignore que os ingleses o faziam para salvar as almas dos pobres negros, portanto com a mesma boa intenção que animou os portugueses. Deveria lastimar, sim, que não fossem os portugueses a salvar tão numerosas almas… E quanto aos grilhões da Gorea, também os portugueses serviram deste processo tão cristão: Zurara diz que, posto que os corpos fiquem em prisão, as almas conquistarão eternal soltura e nas cartas de quitação do reinado de D. Manuel, há referência explícita às cadeias de prender escravos; o sofrimento na Terra é o melhor meio de alcançar o Céu. Teixeira da Mota não viu o bondoso papel que desempenharam holandeses e franceses, impondo grilhões para os indígenas conquistarem a bem-aventurança”.

Segue-se outro tipo de bengalada, a essência da historiografia moderna, Godinho é professoral: “A historiografia de base sociológica, porque científica, exclui o arbitrário da generalização, não a generalização nem as hipóteses de trabalho. Um conselho, bem modesto, ao Sr. Teixeira da Mota: estude primeiro Sociologia; estude a História como a constroem os mestres. Depois, fale de historiografia sociológica. Em suma: Teixeira da Mota encontra-se numa encruzilhada. Um dos caminhos, é o da História séria; o outro é o do delírio, da retórica, da mistificação. No primeiro, seguirá Herculano, Oliveira Martins, Alberto de Sampaio, o Conde de Ficalho, Gama Barros, Pedro de Azevedo, Costa Lobo, Duarte Leite, Jaime Cortesão, Armando Cortesão; no segundo, acompanhará… nem vale a pena dizer os nomes”.
Convém recordar ao leitor que a historiografia neste ano de 1945 dava passos importantíssimos para repor o estudo da Guiné, e do seu descobrimento em bases rigorosas. Como aqui já se deixou referido, o Padre Dias Dinis produzira prosa que Vitorino Magalhães Godinho aproveita a oportunidade desta coça dada por Teixeira da Mota para pôr a nu erros graves da apreciação que Dias Dinis faz da documentação, e momentos há que não se coíbe da mordacidade para reduzir os argumentos de Dias Dinis à completa insignificância, deste modo:
“Dias Dinis convida os pretos a associarem-se às comemorações, admoestando-os: ‘Os indígenas redimem assim pecados velhos. O Portugal de sempre, ancião venerando, amigo e indulgente, lança-lhe gostosamente a absolvição neste Ano Jubilar’. Os pecados velhos dos negros da Guiné são a morte de Nuno Tristão e de outros portugueses! Mas então não foram os portugueses que os foram inquietar a suas casas e assaltar? E que culpa têm os pretos de hoje pelo que fizeram seus antepassados, para necessitarem de absolvição? Então a responsabilidade criminal é hereditária? A morte de Nuno Tristão constitui novo pecado original para os guineenses?”

De pena acerada, Magalhães Godinho veio polemizar com Teixeira da Mota, facto é que estes dois historiadores de grande envergadura souberam conviver e partilhar da admiração mútua, como se justificava.

Como é evidente, em próxima oportunidade aqui se irá recapitular a tese inovadora de Teixeira da Mota sobre a descoberta da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Em torno das Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, em 1946, a historiografia deu um importante salto com o estudo publicado por Teixeira da Mota desmontando ingenuidades e fantasias.
Aquele que terá sido o mais influente historiador português do século XX, Vitorino Magalhães Godinho, veio a público para o aplaudir e zurzir com inusitada violência. Foi polémica que não ficou nos anéis, até por serem dois historiadores que faziam da probidade ofício não fizeram como os medíocres, nestas coisas e noutras entram na hostilidade persecutória. Aqui se usam, para dar contexto, referências de um estudioso Teixeira da Mota, o oficial da Armada Carlos Valentim e a introdução de Vitorino Magalhães Godinho, que contextualiza admiravelmente os saltos gigantescos que deu a historiografia dos Descobrimentos depois de séculos de mitologia e ignorância das fontes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1)


Mário Beja Santos

Escrito em 1946, ano das Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, o ensaio altamente contundente do historiador Magalhães Godinho a propósito do trabalho ainda não completamente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e assinado por Teixeira da Mota, foi mais uma das peças de grande importância na renovada historiografia portuguesa do período dos Descobrimentos henriquinos. Segundo Carlos Valentim, oficial da Armada que publicou a bibliografia de Teixeira da Mota, "O Trabalho de Uma Vida", Edições Culturais da Marinha, 2007, há quatro obras relevantes de Teixeira da Mota que contribuíram para essa renovação historiográfica: "A Descoberta da Guiné", com a data de 1946; "A Arte de Navegar no Mediterrâneo nos Séculos XIII-XVII e a criação da Navegação Astronómica no Atlântico e Índico, em 1957"; "A Viagem de Bartolomeu Dias e as Ideias Geopolíticas de D. João II", em 1958; "A Escola de Sagres", em 1960. Teixeira da Mota fez parte do escasso número de historiadores que contribuiu para imprimir ciência no estudo dos Descobrimentos Portugueses, pondo termo a fantasias, mitologias bacocas, puras conjeturas. Não foi o primeiro, mas pertenceu ao naipe engrossado por Jaime e Armando Cortesão, Damião Peres, Duarte Leite e Vitorino Magalhães Godinho.
Vitorino Magalhães Godinho

A descoberta da Guiné correspondeu à primeira comemoração depois da II Guerra Mundial. Numa nota de caráter pessoal expedida por Teixeira da Mota para o Governador da Guiné, e que esteve inédita até 1972, ano em que se publicou o seu importante "Mar, Além Mar", edição da Junta de Investigações do Ultramar, ele faz questão de desmontar um sem-número de fantasias acerca das expedições henriquinas e desvela da impossibilidade de Nuno Tristão ter chegado a território da então Guiné Portuguesa, a sua morte teria ocorrido no rio Gâmbia. Um estudioso, mas pouco dotado para a investigação rigorosa, o Pe. Dias Dinis, defendia intransigentemente as comemorações do centenário guineense naquele ano de 1946, socorria-se como fonte principal da "Crónica dos Feitos da Guiné", de Zurara, da Ásia de João de Barros e de alguns estudos de Armando Cortesão. Este padre missionário criticava os trabalhos de Duarte Leite e Damião Peres que contestavam fortemente a tese que atribuía a Nuno Tristão o descobrimento da Guiné em 1446. E Carlos Valentim observa: “Duarte Leite valia-se da cartografia e dissecava as fontes, uma a uma, utilizando a análise crítica como fulcro da sua metodologia. As conclusões eram dramáticas. De repente, todo o edifício de propaganda do Estado Novo ficava em perigo de ruir, por se ter verificado um anacronismo na descoberta da Guiné Portuguesa. Seria possível festejar acontecimentos com duvidosa cronologia?”. O ensaio de espírito completamente inovador de Teixeira da Mota introduzia esclarecimentos ainda hoje incontestados. A este trabalho iremos posteriormente fazer a competente referência.

Avelino Teixeira da Mota
Em jeito de síntese, Teixeira da Mota analisa os elementos de caráter náutico-geográfico, na linha das propostas de Jaime Cortesão e corteja-os com a cartografia e toma sempre como referência os elementos etnográficos. Devolve-se de novo a palavra a Carlos Valentim: “No espaço de um século, a Guiné Portuguesa encontra-se no centro de fatores que desencadeiam o progresso historiográfico, em duas situações muito idênticas, em dois momentos muito próprios, onde se mistura política e memória, ideologia e identidade. Primeiro, em 1841, com o Visconde de Santarém, o fundador dos estudos de cartografia antiga, que edita a Crónica da Guiné, de Zurara, descoberto em 1837, na Biblioteca Nacional de França. O segundo momento de inovação, situando-se novamente a Guiné no centro do debate historiográfico, surge um século depois, com Teixeira da Mota, numa época de forte combate ideológico e político”. E vamos à polémica de Magalhães Godinho. Ele enceta o seu trabalho observando a pobreza de fontes históricas sobre os Descobrimentos henriquinos, na generalidade construções tardias. E numa lenta caminhada, começaram as revelações, primeiro o Visconde de Carreira e o Visconde de Santarém que publicaram em 1841 a Crónica da Guiné, de Zurara; em 1845-47, Schmeller dava a conhecer a narrativa das viagens redigida por Martin von Behaim sobre conversas com o navegador Diogo Gomes. Diferentes autores ingleses interessaram-se pelos Descobrimentos, mas limitando-se quase a contar por palavras suas o que parecia ser verdade axiomática. Surgiu depois o Esmeraldo de Duarte Pacheco; em 1924, Jaime Cortesão apresentava um estudo sobre a política de sigilo nos Descobrimentos, fantasiou hipóteses, aventando que as fontes escritas ocultavam grande parte da obra de D. Henrique. O cartógrafo Armando Cortesão publicou em 1931 a cronologia das viagens até 1462 fazendo identificações do rio Grande com o Geba, por exemplo. Aquilo que eram certezas, com base nestes trabalhos recentes, merecia um novo olhar. A figura-chave será Duarte Leite, que criticará as hipóteses de Jaime Cortesão sobre a política de sigilo e sacudiu de cima a baixo a obra de Zurara. Como escreve Vitorino Magalhães Godinho: “Zurara, até aí unanimemente considerado fiel e bem informado cronista das navegações, é reduzido à sua verdadeira craveira de literato de saber restrito e de segunda mão, de pouco cuidadoso relator, de homem com fraca curiosidade geográfica e náutica; a sua crónica deixa de ser indiscutível evangelho, para nela se notarem erros, contradições e outros defeitos”. Segue-se Damião Peres, o próprio Magalhães Godinho e Teixeira da Mota.

Godinho ridiculariza os esforços para consagrar Nuno Tristão como o primeiro a chegar à Guiné Portuguesa. Elogia Teixeira da Mota e o seu trabalho: “Foi-lhe de grande proveito o conhecimento direto do litoral e das gentes da Guiné, bem como a possibilidade de obter informações complementares de outros conhecedores das línguas indígenas e da região. Conseguiu Teixeira da Mota confirmar algumas das conclusões da investigação anterior e corrigir outras (…) Note-se que o autor não discute qualquer questão de cronologia, aceita, como Peres e nós fizemos, a estabelecida por Armando Cortesão e Duarte Leite. Seguiu Teixeira da Mota o modelo por nós lançado em Documentos sobre a Expansão. A longa e minuciosa discussão do problema por Teixeira da Mota confirma La Roncière e Duarte Leite: Nuno Tristão não ultrapassou a Gâmbia para o Sul, a sua morte não ocorreu no rio Geba, muito menos no rio de Nuno”. E adita os argumentos expendidos por Teixeira da Mota, de irrefutável clarividência. Fala-se da viagem de Álvaro Fernandes, também em 1446, havia acordo que o navegador visitou o rio Casamansa, tendo chegado à enseada que começa no Cabo Roxo. Mais adiante, falando da viagem de Valarte e de Fernando Afonso em 1447, Godinho apoia a hipótese da captura de Valarte no rio Gâmbia, estabelece-se aqui uma discussão de pormenor sobre os reis na região de Cabo Verde (não esquecer que estamos a falar de território continental), e apoia igualmente dados expendidos por Teixeira da Mota acerca da localização da povoação dos Bambaras. Termina os seus comentários elogiosos e inflete para uma tremenda zurzidela de Teixeira da Mota, vale a pena ver com cuidado a argumentação expendida, é por vezes de uma violência extraordinária a adjetivação usada. E talvez o ponto mais importante seja registar que após toda esta sessão de bengaladas, a admiração mútua jamais esmoreceu. É assim entre gente que cuida com estrénuo rigor a verdade dos factos.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21815: Historiografia da presença portuguesa em África (249): Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21515: Historiografia da presença portuguesa em África (237): “Permanência": a última revista de propaganda imperial (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Havia um conjunto de entidades que difundiam conhecimento científico da mais diferente índole sobre o nosso império, distingo logo as revistas da Escola Superior Colonial e mais tarde das revistas da Junta de Investigações de Ultramar. Ainda hoje são muito procuradas as edições do Centro de Estudos de Cartografia Antiga, que foi dirigido por Teixeira da Mota; o Museu de Etnologia do Ultramar era também outro grande difusor científico. No campo da propaganda, sobressaia a revista Ultramar, mesmo com artigos assinados por especialistas; no tempo de Marcello Caetano concebeu-se a revista Permanência que vigorou entre 1970 e até ao fim do regime. Dela hoje se dá aqui notícia.

Um abraço do
Mário


Permanência: a última revista de propaganda imperial

Beja Santos

Para difundir os valores e o conhecimento sobre as parcelas imperiais, a I República criara em Setembro de 1924 a Agência Geral das Colónias, teve como seu primeiro responsável um eminente cartógrafo e historiador, Armando Cortesão, ele orientava-se pela necessidade de dar ampla divulgação ao que se fazia, onde estavam, as oportunidades económicas, de todo o espaço imperial. A Agência Geral das Colónias passou a ter no Estado Novo um serviço de propaganda, difundia eventos sobre as coisas e as causas coloniais, trabalhava conjuntamente com estabelecimentos de ensino e nas universidades com o apoio da Sociedade de Geografia de Lisboa e a Escola Superior Colonial. Um outro serviço da mesma agência editava publicações, legislação, relatórios, estudos e documentos coloniais, tudo passou a ter ampla procura, os eventos sucediam-se uns aos outros como a “Semana das Colónias”, exposições, caso da do Porto de 1934, a de 1937 dedicada à ocupação colonial, isto para já não esquecer as celebrações do dia de “Mouzinho” no final de 1935; em 1938, a Agência homenageou o marquês de Sá da Bandeira, a propósito do octogésimo aniversário da abolição da escravatura; o presidente Carmona visitou S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, a Agência deu ampla ressonância a esta digressão. E não se pode esquecer que a agência divulgara 450 obras desde a fundação em 1924, um milhão de exemplares, ganhou ampla notoriedade a coleção “Pelo Império”.

A Exposição do Mundo Português também badalou a obra da Agência, que era vastíssima, assumiu a forma de palestras radiofónicas, exposições itinerantes, cinema ambulante, publicações de prestígio como a revista “O Mundo Português”. Em 1951, a Agência muda de nome, fruto do Acto Colonial, passou a ser a Agência Geral do Ultramar. Em 1967 o Agente-Geral passou a ser Francisco da Cunha Leão, tudo fez para que a instituição se destinasse a difundir informações relativas ao património tropical, a impulsionar o turismo, a difundir através da imprensa, rádio e televisão. Editava dentro das suas publicações o Boletim Geral do Ultramar, um jornal de parede para distribuir nos centos de informação e turismo. Criou prémios literários para conto, poesia, romance e teatro.

Em 1970, surge a última publicação de relevo, a revista Permanência, difusora dos ideais do regime, um tratamento moderado da guerra, muito noticiário e sobretudo divulgação do que estava a correr bem na conquista das almas e no desenvolvimento económico. Todas as parcelas do Império tinham o seu espaço, incluindo o Estado da Índia e havia um conjunto de pequenos artigos em cada número para dar informação sobre etnias ou grandes mudanças sociais em curso. É precisamente sobre a Guiné que se encontrou um artigo assinado por João Mattos e Silva sobre os Fulas e outro assinado por José Valle de Figueiredo referente ao I Plenário dos Povos da Guiné.

Vejamos alguns parágrafos sobre a divulgação dos Fulas. São encarados como o povo mais evoluído, mercê de fatores como o religioso. “Localizar, hoje, a população Fula na Guiné Portuguesa é extremamente difícil. No entanto, pode dizer-se que é o Gabu a região Fula por excelência, pelo menos aquela que apresenta uma maior densidade populacional dessa etnia e, ainda, aquela que está ligada por laços históricos e políticos de maior profundidade à sua fixação no território (…) Parece remontar ao século XIX a invasão Fula da Guiné Portuguesa, mais propriamente do Gabu, onde se foram fixando grupos, recolhidos à hospedagem dos Mandingas. Em situação de inferioridade numérica, hostilizados, foram procurando ganhar força até ao momento em que se apoderaram do território reduzindo à escravatura ou exílio os seus anteriores hospedeiros”. E a concluir: “O seu espírito de guerreiro, revestindo anseios expansionistas, mantém-se ainda hoje vivo, embora reduzido a aspetos competitivos, mercê da ação de integração portuguesa. Se os Fulas são hoje uma etnia perfeitamente integrada numa comunidade internacional, são-no diferenciando-se sempre naquilo que os torna superiores e grandes entre todos, constituído um povo com um interesse e um valor que merecem ser do conhecimento de todos os portugueses”.

Falando do I Plenário dos Povos da Guiné, Valle de Figueiredo não esconde a exaltação doutrinária: “Quando um povo aspira a integrar-se numa unidade de destino cimentada com autenticidade e fidelidade à vocação histórica da Pátria a que pertence, não tem outro caminho se não o de construir na paz e na harmonia a revolução social necessária”. E logo se cita um extrato do discurso do general Spínola: “Estamos presentemente a realizar na Guiné Portuguesa uma autêntica revolução social que visa, acima de tudo, a valorização a e dignificação das gentes desta terra; revolução que tem que ser conduzida num clima de paz e de harmonia”. Um exaltante discurso e em que se garantia valorizar, em ritmo crescente, as estruturas tradicionais próprias de cada etnia, discurso que rematava da seguinte maneira: “Aos que teimarem em tentar impedir-nos de realizar os anseios de progresso do bom povo da Guiné, destrui-los-emos lutando lado-a-lado – africanos e europeus – sob a mesma bandeira, a bandeira verde-rubra da fraternidade, da liberdade e de paz".

No último editorial de 1973, o jornalista e escritor nacionalista radical Amândio César não escondia as crescentes dificuldades que se punham ao regime e na ordem internacional para aceitar o colonialismo português, não deixando, porém, de garantir que em condições algumas se iria perder a fé na defesa do Portugal ultramarino.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21489: Historiografia da presença portuguesa em África (236): “África Ocidental, notícias e considerações”, - O Senegal - por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20153: Historiografia da presença portuguesa em África (177): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Antes de mais, permito-me relembrar a quem acompanha estes pedaços da História da Guiné que aqui no blogue se publicou em extensa recensão a obra incontornável do Padre Henrique Pinto Rema "A História das Missões Católicas na Guiné", da Editorial Franciscana de Braga, que ainda está à venda a preço módico.
Este segundo relato do opúsculo que Teixeira da Mota publicou no Bolamense em 1958 relata dois martírios, missionários mortos, bem como os seus acompanhantes. Repare-se que no segundo episódio Frei Manuel de Malpica fazia parte da Missão da Serra Leoa, o que nos reconduz ao território da Senegâmbia Portuguesa, que foi minguando até ao século XIX e depois destroçado na Convenção Luso-Francesa de 1886. Este opúsculo possui um bom recorte literário, incontestavelmente apologético: quem se oferecia para missionar devia estar mentalizado para o martírio.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (3)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, aqui se reproduz a capa do último número, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações para tal extinção. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa, inglória, de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”. No número anterior pôs-se ênfase no primeiro episódio do opúsculo referenciado pelo historiador Teixeira da Mota. Ele lembra estes folhetos que tiveram larga profusão, principalmente no século XVIII. E à data em que ele publicou esta notícia no Bolamense alguns já estavam reproduzidos. Estranhava o historiador que este opúsculo não era mencionado nas mais conceituadas investigações, como na obra de Sena Barcelos, João Barreto, D. José Ribeiro de Magalhães ou Freire Manuel de Monforte, estes dois últimos missionários.

Relatado o episódio do martírio dos Bijagós, vamos agora ao segundo caso:
Almirante Teixeira da Mota
“A notícia deste primeiro sucesso certamente move o sentimento ainda à mais insensível pedra, e quando na nossa lembrança vive impressa a magoada história pretendo com o segundo golpe aumentar mais o pesar.
Havendo pouco tempo que se tinha recolhido o Padre Fr. Manuel de Malpica da Missão da Serra Leoa, donde veio por terra à Deponga e Rio de Nuno, tendo feito nestas paragens grandes frutos em alguns cristãos que hoje vivem quase com os mesmos ritos dos gentios, e aos quais lhes posso dizer com o maior orador dos portugueses que são cristãos no credo e hereges nos Mandamentos, finalizada esta sua incumbência, que fez e concluiu com os olhos de Deus e proveito das almas, estando no Rio de Nuno com um moço do Hospício, que o acompanhava, depois de recitar naquelas estéreis e infrutíferas terras admiráveis sermões com proveito de muitas almas, lhe maquinaram e teceram tais enredos, mostrando sempre que o amavam e temiam, usando destes pretextos e pedindo-lhe se não ausentasse, ao que o religioso condescendendo a seus roubos se deteve algum tempo, que gastou em os catequizar. Mas vendo que não tinham emenda em o perseguir, tratou de se pôr nas mãos de Deus, cuidando em fazer sua viagem para a Bolola, vizinha do Rio Grande, por ter concluído por então da sua parte o desígnio da missão. Metendo-se a uns intrincados bosques por se acautelar do caminho, onde só habitavam feras e residiam monstros, principiou logo a experimentar o terrível efeito da fome, e para de alguma sorte não sentir o da sede lambia e chupava o orvalho que de manhã rociava a aurora nas folhas das plantas. E depois padecer grandes e imensos trabalhos, chegou a Bolola, e debaixo de fiança ao rei desta terra se passou à Praça de Geba, povoação cristã, de onde mandando-se pelo síndico dos religiosos que ali estava a dita fiança ou resgate, se embarcou para Bissau.

Deste Hospício de Bissau, depois de estar convalescido de algumas moléstias, foi para o Hospício de Cacheu. E depois de embarcado começou a navegar prosperamente, mas tendo a lancha dado fundo sobre o sítio chamado Bijamita lhe saíram ao encontro os gentios denominados Brames, de um rio que vai do caminho de Cacheu para Farim e si ao pé de Canhop. Ao qual sítio lhes saíram e se puseram em tom e forma de os cativarem, como costumam, tomando logo a popa e a proa da lancha; e entrando dentro não acharam resistência, mataram a maior parte dos escravos.
Desta tirania escapou por então o padre e o piloto, o padre absolvendo a todos e clamando aos gentios e dispondo aos cristãos da parte de Deus se conformassem. Outros que também dormiam, depois que o motim espertou a todos, se lançaram a nadar em forma de escaparem; e aos que ficaram, entrando a ira dos gentios, matou a todos. E este religioso experimentou o ser degolado com um traçado, permitindo Deus que o dito padre, escapando das fomes e sedes nos matos e da ferocidade de muitos bichos, viesse a acabar a vida nas mãos daqueles bárbaros, em 26 de Abril de 1743.

Para se louvar é o zelo da santa e reformada Província da Soledade, pela perseverança em que continua a mandar os seus religiosos para o exercício missionário para bem das almas de todos os inumeráveis habitantes daquela conquista, indo uns e vindo outros há cento e tantos anos, em tempo do Senhor Rei D. João IV, sendo pedidos e mandados pela sua real piedade e grandeza para conduzir ao redil da Igreja de Roma as ovelhas desgarradas pelas cegas veredas e caminhos da gentilidade. Colhendo com efeito nos primeiros anos e muitos depois conhecidos frutos de tão grande seara, expondo-os agora e a nós a esta parte aos referidos e semelhantes insultos que outras muitas vezes têm sucedido.

E por isso é necessário expressar, como é público e notório a todos os filhos da Europa que para as ditas terras selvagens navegam, o quanto vivem cativos quotidianamente da indolência e tirania gentílica”.

Findo o relato, Teixeira da Mota observa que se deduz claramente que o primeiro episódio passado nos Bijagós teve lugar entre a Ilha de Pecixe e a região de Canhobe portanto no Canal de Cajegute ou proximidades. Neste segundo episódio, a referência é confusa, mas a indicação da região de Bijamita sugere o Rio Mansoa. Na época designavam-se em conjunto por Brames os atuais Brames, Manjacos e mesmo Papéis, o que é difícil saber ao certo quais foram os autores do assalto à lancha em que seguia Frei Manuel de Malpica. Os “Rios da Guiné” não foram somente vias de comunicação pacífica facilitando o estabelecimento dos portugueses. Os episódios relatados são somente dois entre muitos outros atos de guerra e pirataria que neles tiveram lugar, e em que se destacaram os Bijagós.

Releva Teixeira da Mota que o comércio de escravos veio contribuir para o agravamento de tal estado de coisas. Estes textos de Teixeira Mota foram publicados no Bolamense em 1958.

E deste modo finda esta síntese informativa ao jornal Bolamense cuja leitura nenhum investigador das terras da Guiné deve descurar.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (176): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Teixeira da Mota era um investigador estrénuo, imparável, teve uma escola magnífica, a do Centro de Estudos da Guiné, ali deixou obra imbatível. Frequentava alfarrabistas e leilões de livros, investigava a fundo no Arquivo Histórico Ultramarino, foi bem-sucedido nessas andanças, encontrou peças preciosas.
Neste artigo do Bolamense dedicou-se a referir um opúsculo pouco conhecido onde se relatava o martírio de dois franciscanos na Guiné, em 1742 e 1743. Pelo que o leitor vai ter oportunidade de conhecer, é um documento comovente, ao nível da fé que estes missionários possuíam, na maior intensidade, e daí a aceitação que conferiam às estruturas de que padeceram até à morte. Aqui se relata o martírio de 22 de fevereiro de 1742, nos Bijagós.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa inglória de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”.
Vejamos o essencial do trabalho de um dos mais prestigiados historiadores portugueses nas coisas da Guiné:
“Por feliz acaso veio-me parar às mãos um curioso folheto setecentista onde são narrados os acontecimentos que originaram a morte de dois padres da Província da Soledade às mãos de gentios.
Numa altura em que ainda não havia – ou rareavam – jornais, era através de folhetos deste género que se divulgavam muitos sucessos. Existe uma grande quantidade deles, principalmente do século XVIII. Estão neste caso dois de 1753 relatando a viagem da fragata ‘Nossa Senhora da Estrela’ a Bissau e acontecimentos ligados à reedificação da Fortaleza de São José e ainda outro descrevendo o trágico naufrágio na foz do Casamansa da corveta ‘São Sebastião e Almas’, do qual resultou a morte ou aprisionamento pelos Felupes de vários missionários, incluindo o Bispo Frei João de Faro.
O opúsculo de que nos ocupamos e os factos dele referidos não são indicados pelos que modernamente têm versado a história da Guiné. Talvez venha alguma coisa na 2.º Parte da Crónica da Província da Soledade, cuja descoberta anunciou em 1945 o Padre Dias Diniz e continua inédita. Segue-se esta reportagem de há mais de 200 anos, dos dois lastimosos casos sucedidos na Guiné em 22 de fevereiro de 1742 e em 26 de abril de 1743 com dois religiosos missionários da Santa Província da Soledade.

Primeiro caso. Embarcado o Padre Frei João de Fonte-Arcada, Presidente do Hospício da Ilha de Bissau, em canoa dele, para o fim do bem das almas, saiu desta ilha com vento tão próspero e favorável que parecia evidente sinal da sua feliz viagem. Em 22, vendo-se os moços da canoa defronte Canhop, viram que pelo rio saíam duas canoas de gentios Bijagós, em direitura a buscá-los pelo ódio que têm aos cristãos. Requerendo com piedade os cristãos aos gentios que se retirassem, eles lhes disseram e responderam que queriam água, sendo que procuravam em lugar dela sangue; os moços da canoa expressaram que se não chegassem para ela. E vendo-se que os bárbaros faziam pouco caso da nossa advertência, começaram logo a implorar o Divino auxílio. O que se verificou, porque disparando os gentios uma arma fez o seu tiro despojo da tirania e simulacro ruína da morte a um moço que na canoa tinha a incumbência de governar o leme. Vendo-se o religioso nesta aflição, porque uma das canoas contrárias estava à popa a clamar e a requerer da parte de Deus desistissem do intento por ser contra a Divina Majestade, que eles ignoravam; eles não fizeram caso, porque logo se viu um escravo chamado Mabiá ferido com uma bala, a qual não fez efeito por não achar capacidade suficiente o emprego. E também o dito Padre passado pelo peito até às costas por uma azagaia, a qual um deles lhe tinha empregado. À veemência da dor e à profusão e abundância de sangue caiu o Padre, fixados os olhos no Céu e a contemplação em Deus pedindo-lhe que perdoasse àqueles inimigos por não saberem o que faziam. Este sucesso fúnebre avivou nos corações dos escravos tão repetidas tristezas e mágoas que para as fazerem públicas eram os olhos testemunhos do pesar e as lágrimas do sentimento. Tiraram-lhe do corpo a azagaia, e para que a sua vista não multiplicasse maiores penas, o lançaram ao mar, onde em cristalino túmulo urna transparente espera a ressurreição universal. E entrando todos os gentios na canoa às azagaiadas mataram outro escravo chamado António Vieira. E atando os mais de pés e mãos só deixaram a dois para remarem, e ao Mabiá para governar o leme. E foram caminhando todos com aqueles inocentes para a Ponta Ilha em que assistem os Bijagós, e fazendo os gentios as suas costumadas cerimónias com tão desentoadas vozes, desmarcados alaridos e medonhas acções ao som de vários tambores e muitos tiros que fariam afugentar ao mais curioso de ver, com a que eles em tal caso chamam festa. Logo com discurso bárbaro prenderam novamente ao moço Agostinho pelo pescoço a uma corrente de ferro, e atado com cordão nos pés e mãos o arrastaram pelo espaço de muito tempo pelas ruas, dando-lhe múltiplas pancadas e infinitos tormentos, que para acabar a vida bastava qualquer.

Deixaram a maior execução da sua ira para outro dia. Amanheceu este, se alegre para os gentios, infausto para o corpo do Agostinho que vendo as muitas dores que padecia lho penalizavam, na certeza porém de que lhe aproveitarem a sua alma, querendo ao que parece pedir à morte tréguas, para pedir perdão de suas culpas, se soltou da ligadura com que estava preso, e do modo que pôde começou a caminhar para as margens do mar, pedindo a Deus misericórdia por intercepção de Maria Santíssima e Santos a quem se encomendava. Porém, como a debilidade que padecia o não ajudava para o intento, teve tempo a ligeireza dos bárbaros para o apanharem e começando estes a darem princípio a tão diabólica tragédia dando-lhe os mesmos ou maiores tormentos, sofrendo todos com a maior paciência e edificação dos mais cristãos, o puseram em tão miserável estado que se lhe viam patentes as entranhas, depois de um gentio lhe der separado o corpo com um alfange um dos braços. Querer explicar as dores que padeceria este aflito é impossível, basta para fazer penetrante esta lembrança a consideração dos castigos. E aos mais cristãos, que ainda deixaram com vida, cuidaram logo de os resgatar, pelo síndico, os religiosos do dito hospício de Bissau.”

(continua)

Almirante Teixeira da Mota 

Interior da Câmara Municipal de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (174): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Um dia, em conversa com o nosso estimável camarada António Estácio, estava ele a escrever sobre Bolama, referiu-me a importância de se conhecer os conteúdos do Bolamense.
Chegou a hora, li na íntegra todos os números na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. A História de Bolama entre 1956 e 1963 ganha mais luminosidade, caminhava para um escombro quando, fruto da guerra subversiva, escolheu-se Bolama para centro de instrução militar. E havia o turismo, a praia do Ofir, que o jornal tece os maiores encómios. Era publicação nacionalista sem rodeios, os discursos de Salazar eram publicados na íntegra. E havia a cultura, de que neste e no próximo texto se dará notícia.
Vale mesmo muito a pena ler o Bolamense.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Era oficioso, nacionalista, teimava pela causa de Bolama, por tudo e por nada. Quando o Instituto Honório Barreto passou a liceu, reclamou-se um liceu para Bolama. Pedia-se colaboração a pessoas entendidas e conhecedoras, Teixeira da Mota foi um deles. Folheando a coleção existente, dá para perceber que havia pouca publicidade, Bolama já estava na mó de baixo, com a ascensão do nacionalismo e a chegada da tropa a Bolama, a cidade ia reagindo, falava-se em turismo, nas belezas do arquipélago, a praia de Ofir parecia rivalizar com Varela, o leitor apercebe-se que havia dificuldades em arranjar bons conteúdos, a redação socorria-se de fotografias entre outras do fotógrafo Geraldo, qualquer conferência era motivo de duas a três detalhadas páginas, o Intendente Santos Lima foi promovido a inspetor, logo uma basta notícia, o jornalista Armando de Aguiar, natural de Bolama visita a sua terra natal e fez uma opípara conferência, casa cheia. Veio a guerra subversiva, e o jornal hasteou a bandeira da sua causa: “Os nossos territórios ultramarinos são a impiedosa cobiça dos desvairados blocos mundiais que se gladiam em feroz luta e por isso reconheçamos no passado as virtudes do presente e unamo-nos sem reservas, nem críticas maldosas, para o bem comum que é o da Guiné, cônscios do dever a cumprir numa tranquilidade de espírito cheia de altos impulsos e de novos sentimentos e não de outros que só deprimem, destroem e desorientam!”.

Para se avaliar o que o leitor pode encontrar com grande interesse cultural na curta vida deste periódico vamos fazer referência a subsídios para a história da ilha de Bolama, da autoria de António Pereira Cardoso, um administrador colonial que era possuidor de raridades, um artigo de Ruy Barreto sobre o fanado Bijagó e um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”, ao tempo, o Comandante Teixeira da Mota era deputado da Nação pela Guiné.

Comecemos pelo trabalho de António Pereira Cardoso, que publica algumas epístolas. A primeira data de Bolama, de 26 de agosto de 1858, assina José Carlos Rebello Cabral, comandante de Marinha Mercante e dirigida a Honório Pereira Barreto. Informa-o que chegara um vapor de guerra inglês, desembarca um 1.º Tenente, arvorara bandeiras britânicas que foram içadas com três tiros de peça a bordo, o tenente percorreu as pequenas povoações e voltou a embarcar, regressou mais tarde e levou para bordo o agricultor João Marques de Barros, preso. E a carta termina assim: “Não sei isto em que acabará, e por isso me apresso a participar a V. Ex.ª pedindo-lhe por parte do Sr. Barros o seu socorro e auxílio para ele, antes que as coisas subam a mais, quer dizer ao ponto de o levarem preso a bordo, para a Gâmbia ou Serra Leoa, por alguma injusta quimera. Nada mais se oferece dizer a V.ª Ex.ª nesta triste situação, em que tanto carecemos dos seus conselhos e incansável auxílio”. Pelo meio, ficamos a saber que o tenente falava na libertação de cativos, era uma das moedas de arremesso dos ingleses, sabiam perfeitamente que ainda praticávamos a escravatura.

A segunda carta é também assinada por José Carlos Rebello Cabral e endereçada a João Marques de Barros. Pergunta-lhe se quer que mande a sua família para Bissau, refere que não está interessado em ficar em Bolama “por causa das intrigas do Manuel Barbosa a meu respeito e que eu já há muito sabia tudo”. E assim termina: “Estimo a sua saúde e felicidade, tal como para mim, e que agora tenha a força necessária para suportar estes pequenos incidentes da vida, e adeus até à vista”.

A terceira carta datada de 30 de agosto de 1858 é dirigida novamente a Honório Pereira Barreto: “Esta só serve para agradecer quanto em mim cabe o obsequioso serviço que V. Ex.ª fizera ao Sr. Barros, em consequência da que eu lhe tinha escrito em data de 26 do corrente; o que V. Ex.ª pode ficar certo é que eu nunca me cansarei em apregoar, se bem que a minha voz é ainda débil, nesta terra esquecida dos verdadeiros patriotas, a nossa infelicidade”.

Comenta António Pereira Cardoso que a violência levada a efeito em 26 de agosto de 1958 era injustificada, porquanto em 29 de abril daquele ano, D. Pedro V declarara livres os escravos portugueses, com obrigação de prestarem serviço aos seus senhores até abril de 1878.

O artigo de Ruy Barreto é sobre o fanado Bijagós dos Kanhocãs. E escreve:
“O Kanhocã é o indivíduo de idade compreendida entre os 15 e os 22 anos, aproximadamente. As cerimónias começam com batuques que duram vários dias e realizam-se em cada uma das tabancas onde há Kanhocãs. Estes apresentam-se durante o tempo das cerimónias com os melhores trajes: ‘lopés’ de couro cuidadosamente curtido e enfeitado, contas, grande variedade de efeitos metálicos, espelhos, campainhas, e na cabeça a conhecida cabeça de vaca. Após os dias de festa, que duram cerca de uma semana, chega o dia, previamente fixado, em que se vão sujeitar ao cerimonial, têm que dar entrada no mato em lugar retirado, onde são feitas barracas para abrigo dos rapazes.
É vulgaríssimo – e parece que até de tradição – verem-se os parentes do sexo feminino, aos quais é vedada a aproximação do mato, acompanharem, em alta grita e lavados em lágrimas, o ruidoso grupo dos homens que formam o cortejo dos Kanhocãs.

A classe dos Kamabis é a dos palhaços. Só se podem vestir de sarapilheira e, quanto mais suja for, melhor. E é de ver as tropelias que fazem e as brincadeiras que inventam. A cerimónia é iniciada por volta do princípio da tarde, com os mancebos de joelhos ou assentados, trajando unicamente um pequeno lopé. Cada Kamabi aparece armado de um bom molho de chicotes feitos de ramos flexíveis e bate em cada um com as chibatas, até que estas se quebrem.
Às vítimas só é permitido defender a cara, para o que só podem elevar o antebraço. Devem mostrar-se insensíveis à dor e vê-se alguém a ser sovado valentemente enquanto, sorridente, conversa com os circunstantes, indiferente ao sangue que corre pelo seu corpo. Grande glória é para aquele, e respectiva família, que suporta com mais valentia e, inversamente, é indizível a vergonha que provoca o que demonstre sofrimento.

Durante alguns dias permanecem os mancebos no mato, assistidos e tratados pelos mais velhos. Cerca de oito dias após a entrada no mato, regressam em visita às casas que tinham percorrido. Assim termina a primeira das duas cerimónias intervaladas de alguns anos a que têm de sujeitar-se os Kanhocãs antes de passarem a Kabarós, adultos".

(continua)


Duas fotografias de Francisco Nogueira, retiradas do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Comandante Vasco Martins Rodrigues, Governador da Guiné entre 1962 e 1964. Foi efetivamente o último Governador da Guiné, sucede-lhe Arnaldo Schulz, Governador e Comandante-Chefe, acumulação que continuará com António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. Imagem retirada do “Bolamense”.

Imagem retirada do “Bolamense”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20104: Historiografia da presença portuguesa em África (173): “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20116: Notas de leitura (1214): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1627), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Não se deve esperar desta literatura de viagens uma qualquer visualização da Guiné do século XX, tal como a conhecemos. Estes navegadores e comerciantes partiam habitualmente da ilha de Santiago e percorriam a Costa naquilo que mais tarde veio ficar a ser conhecido por Grande Senegâmbia, ou seja, Senegal, Gâmbia, a atual Guiné-Bissau, a orla da Guiné-Conacri e a Serra Leoa. Repare-se como na descrição de André Donelha se fala livremente do reino da Etiópia, aliás vários autores falarão da região guineense dando-lhe o nome de Etiópia Menor. A Serra Leoa era fundamental por causa do ouro, naquele tempo ninguém falava em diamantes. A descrição de Donelha deixa bem claro que a nossa presença o que é hoje a Guiné era francamente residual.

Um abraço do
Mário


Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (2)

Beja Santos

Dando continuidade ao que há de melhor da literatura de viagens na Costa da Guiné, desde o século XV ao século XVII, dirigimos a atenção para um relato que, não podendo competir no brilho da observação da obra de André Álvares de Almada, complementa e enriquece muita informação anterior sobre as paragens entre o rio Senegal e a Serra Leoa. O Almirante Teixeira da Mota trabalhou arduamente neste documento e na investigação sobre o autor. Vamos agora dar a palavra a Donelha, perceber como o seu sentido crítico e a sua capacidade de observação se tornaram um valioso contributo para a literatura de viagens do século XVII. Logo no capítulo 2, falando de árvores, diz que as malagueteiras são umas árvores que dão boa madeira, altas; a casca pisada serve de estopa para os navios e dela se faz morrões e mexas para escopetas de boa brasa. Os frutos são umas malaguetas compridas como dedos de galinhas; Tem por dentro sementes e pimenta. O veludo é árvore de boa altura, dá boa madeira; o fruto do tamanho de um botão de veludo preto e dessa cor e afeição, tomada nas mãos engana a muitas pessoas por ser macio e parece ser veludo, mas não se come. Diz que há na Serra Leoa um unicórnio e Teixeira da Mota comenta assim:  
“Os primeiros portugueses que viajaram ao longo da costa da Serra Leoa trouxeram de perto do Cabo do Monte um cativo africano que em Lisboa asseverava que havia unicórnios na sua terra (leia-se Cadamosto); e em 1470 alicorne era um dos produtos da Guiné declarados como monopólio real. O produto era presumivelmente o chifre do rinoceronte, ainda que seja duvidoso que algum tenha sido obtido na Guiné”.

No capítulo 7 fala dos Sossos e Comchos e dos imperadores chamados Farins que há pelo sertão do nosso Guiné e do grande Mandimansa. Diz que os Sossos são muito belicosos guerreiros. A sua terra é rica de ouro, marfim, panos, ferro, gado vacum, carneiros. São grandes frecheiros; as suas frechas são de ferro, envenenadas. Fala igualmente de Farim Cabo, é o Farim que está mais ao Norte de todos, pelo sertão do rio da Gâmbia, a mais de 120 léguas, onde está o porto de Cantor, onde há grande resgate de ouro, cera e marfim. Este Farim em Mandinga. O outro Farim chama-se Farim Brasó, está sobre o rio grande de Bonabo, é também nação Mandinga. Este Farim é senhor de diversas nações – Casangas, Banhuns, Bramos, Balantas, Beafares e outras nações. Há um outro Farim que é o Farim Cocali que está sobre os Nalus e é também terra de grande resgate de ouro. Diz que das terras destes Farins vem todo o ouro que corre pelo nosso Guiné. Todos pagam um tributo ao grande Mandimansa, que é o monarca de toda a Etiópia. A este grande rei devem obediência os Fulas, Jalofos, Berbecins, Mandingas e todos os demais reis que há para além da Serra Leoa.

Diga-se a propósito que o topónimo Serra Leoa foi empregado pelos portugueses nos séculos XVI e XVII para designar uma longa extensão de cota da Guiné, normalmente do cabo da Verga ao cabo do Monte. A descrição de Donelha prossegue no rio Sanaga, província de Jalofos e diz que o rio de Sanaga é um dos três rios maiores que há no nosso Guiné. É muito largo, alto, todo de água doce; pode-se navegar por ele com naus grossas mais de cem léguas. Deste rio Sanaga para a banda do Sul corre o reino dos Jalofos. O seu rei intitula-se Grão Jalofo. A Costa dos Jalofos corre até ao Cabo Verde. E diz que os Jalofos é gente mui guerreira, mui valentes cavaleiros e mui destros a cavalo. Estes Jalofos eram gentios: há menos de 80 anos que tomaram a lei de Mafamede. Vivem no seu reino judeus portugueses e portugueses cristãos, que andam lá lançados.

Falando no do resgate e trato comercial, Donelha refere coiros, ceras, marfim e algum ouro, se lá vai navio das ilhas de Cabo Verde, como antigamente iam quatro ou cinco navios carregados de cavalos, lá se carregavam de escravos e outras coisas. Homens e mulheres andam bem vestidos, com sapatos mouriscos calçados.

Donelha prossegue viagem e fala-nos de Cantor, terra onde há grande resgate de tudo e refere o rei Fula Dulo Demba, que chegou ao reino dos Beafares em Guinala (Quínara e Forreá), nosso porto antigo do rio Grande de Buba, o melhor e da melhor escravatura e toda a Guiné. Saiu-lhe ao encontro Famena, rei dos Beafares, os Fulas foram vencidos, o rei Dula Demba morto, ficando tantos mortos e cativos, que, por memória, dos ossos dos mortos, depois dos corpos serem gastados das aves, fizeram os Beafares uma grande cerca.

Estamos finalmente no capítulo 14, descreve-se a viagem da costa que corre do rio de Gâmbia até ao de S. Domingos, depois rio Grande de Guinala e Biguba, diz-se que se passou do rio de Casamansa cujos habitantes são os Cassangas, ali há um rei mui ufano guerreiro, amigo dos brancos, mui liberal de nome Masatamba, que conquistou o reino dos Banhuns. Descreve costumes e diz-nos depois que Cacheu é terra dos Bramos e observa que o rei dava por um cavalo, se fosse bom, 10 a 15 negros. A viagem de Donelha prossegue até Bolama e depois dá-nos uma pormenorizada descrição da Guinala de cujo reino fala com detalhe, reconhecendo-lhe a importância para o comércio.

Da leitura que se faz desta descrição de Donelha depreende-se que os navegadores e mareantes tinham uma visão bastante fluída do território desta porção da costa Ocidental africana, não há um só documento que nos deixe uma ideia clara o que se entendia por “o nosso Guiné”. Acresce que a descrição deixa na sombra a presença de outros navegadores e comerciantes, neste tempo de domínio filipino o mais poderoso adversário eram os holandeses, seguindo-se os ingleses e os franceses. Não há uma menção à presença missionária mas há referências esporádicas a lançados e aos escassos representantes da Coroa. Em jeito de conclusão, a nossa presença episódica estende-se do rio Senegal à Serra Leoa, neste tempo aquilo que virá a ser a Guiné Portuguesa é um território longínquo, não mensurável.

Mapa de África datado de 1572 
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Notas do editor

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