Mostrar mensagens com a etiqueta Arnaldo Schulz. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Arnaldo Schulz. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24905: Notas de leitura (1640): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Graças à disponibilidade do nosso confrade José Matos, que me facilitou uma cópia do segundo volume de o Santuário Perdido, inicia-se hoje, e com adaptação ou tradução livre o segundo volume, recentemente dado à estampa. Estamos em 1966, dá-se conta das tremendas dificuldades na operacionalidade da Força Aérea, o PAIGC alargou a sua área de atuação, crescem os efetivos das nossas Forças Armadas, numa tentativa de contrariar as hostilidades, as flagelações, a decomposição económica, a concentração das populações em destacamentos ou aldeamentos em autodefesa. Os autores, na introdução, contextualizam a situação militar e dão um quadro nada risonho do dispositivo da FAP. Como fizemos com o primeiro volume, vamos publicando em pequenas doses, até porque o livro de Hurley e Matos vem profusa e adequadamente ilustrado.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (1)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Contracapa do segundo volume
Texto da contracapa:

De 1963 a 1974, Portugal e os seus inimigos nacionalistas travaram uma guerra cada vez mais intensa pela independência da Guiné “portuguesa”, então uma colónia, hoje a República da Guiné-Bissau. Durante a maior parte do conflito, Portugal desfrutou de uma supremacia aérea praticamente incontestada e baseou cada vez mais a sua estratégia militar e o seu programa de pacificação política na singularidade desta vantagem. A Força Aérea Portuguesa (abreviadamente FAP) desempenhou de forma consequente um papel nevrálgico na guerra da Guiné. Com efeito, durante todo o conflito, a FAP – apesar dos muitos desafios que teve de enfrentar – provou ser o operacional militar mais eficaz e rápido contra o PAIGC, a força de guerrilha que lutava pela independência.

A guerra aérea pela Guiné representa um episódio notável na história do poder aéreo e por várias razões. Por exemplo, foi o primeiro conflito em que uma força de guerrilha utilizou misseis terra-ar. Além disso, o nível em que Portugal dependia do seu poder aéreo era tal que a sua neutralização contundente condenou a estratégia militar na região.

Em última análise, as perdas inesperadas da FAP em combate deram origem a uma cascata de efeitos que acabaram por mitigar a sua própria iniciativa operacional; a eficácia no campo de batalha das forças terrestres estava, até então, bastante dependente do apoio aéreo, era em si um apoio moral e psicológico e assegurava resiliência aos militares portugueses.

A guerra aérea na Guiné portuguesa representa assim uma ilustração convincente do valor – e das vulnerabilidades do poder aéreo, num contexto de guerra de guerrilhas, bem como dos impactos negativos que havia numa confiança excessiva na supremacia aérea.

Este é o segundo de três volumes da minissérie Santuário Perdido, examina a evolução do poder aéreo português e dos sistemas que a guerrilha instalou durante os anos mais ativos do conflito, isto à medida que ambos os lados procuravam meios e métodos para contrariar os esforços do outro. A obra está profusamente ilustrada com fotografias originais e inclui obras de arte a cores, especialmente encomendadas.
Índice
Abreviaturas
Hierarquia militar de oficiais e sargentos


Capítulo 1: Um Comando “Desconfortável”

“O comando que me foi confiado não era ‘confortável’. Era necessário começar por reformar atitudes de espírito, lutar contra rotinas viciosas e criar uma máquina de guerra tão eficiente quanto possível, com os meios disponíveis.” (Coronel José Krus Abecasis, comandante da Zona Aérea da Guiné, 1965-67).

Em meados de 1966, a guerra na Guiné já estava no seu quarto ano e não alcançara os resultados previstos por Lisboa. Apesar do constante aumento de efetivos militares, após a eclosão da luta armada em janeiro de 1963, a guerrilha do PAIGC representava um desafio cada vez mais ousado ao domínio colonial português.

O PAIGC estava altamente motivado, habilmente liderado e cada vez mais bem armado. No verão de 1966 o PAIGC tinha recuperado das perdas sofridas durante as primeiras contraofensivas portuguesas e desencadeou uma contraofensiva de assédio militar a quartéis, destacamentos e aldeamentos em autovigilância, impôs perturbação económica em todo o território, contou com uma mobilização popular que se acolhia em áreas fronteiriças ou em determinados pontos dentro da colónia. Num relatório datado de julho desse ano, Arnaldo Schulz, governador e comandante-chefe das forças armadas na Guiné, escrevia num relatório que o inimigo persistia em ampliar as suas áreas de ação: “Não parece que lhe faltem recursos em termos de armas e munições e não há sinais de que a sua mão de obra se tenha reduzido.”

Nos dois anos anteriores, a atividade do PAIGC conhecera uma constante intensificação, especialmente no Sul, aí estava mais fortemente instalado e propagandeava o controlo de 50% de toda a Guiné. A pequena, inóspita e pobre de recursos Província Ultramarina era tida como o remanescente menos valioso do legado colonial de 500 anos de Portugal. Com efeito, desde a abolição do comércio atlântico de escravos, a Guiné tornara-se um défice permanente para o tesouro português, tinha apenas valor para um punhado de empresas que obtinham lucros com o cultivo do amendoim e do coconote. Apesar deste potencial económico anémico, e de haver um número insignificante de europeus ali a viver, o agravamento da situação representava a mais ameaça militar à continuação do domínio português no seu império, Arnaldo Schulz informou um oficial superior, em agosto de 1966, “se é verdade que a guerra do Ultramar não pode ser ganha na Guiné pode, por outro lado, ser completamente perdida lá.”

Para reprimir a luta armada em expansão, o efetivo das tropas mais que duplicou entre 1963 e 1966, passando de 9650 militares para 20.801, incluindo contingentes de forças especiais, como Comandos, Paraquedistas e Fuzileiros. As forças terrestres na Guiné, no entanto, sofriam de deficiências cronicas em preparação, equipamento e moral, comparativamente aos elementos da guerrilha, perfeitamente adaptados ao terreno e à vida no mato, bem adestrados para este tipo de guerra e dispondo de uma competente direção operacional, isto de acordo com uma avaliação feita em agosto de 1966 pelo general Venâncio Deslandes. Numa tentativa de corrigir este desequilíbrio, Deslandes considerava necessário criarem-se unidades especializadas de artilharia e impulsionar o rearmamento da Marinha, as embarcações navais deviam de expor de fogo intimidador e de apoio às forças terrestres; mas concluía a sua análise dizendo que “a forma mais simples e possivelmente mais rápida de atingir esse objetivo será o reforço do poder aéreo.”

O reforço aéreo iniciara-se em 1963, e daí a 1966 o número de aeronaves atribuídas à Guiné aumentou de 32 para 50. Número enganador, desmentido pelas deficiências sistemáticas que paralisavam a Força Aérea Portuguesa: escassez crónica de pilotos e pessoal de manutenção, insuficientes instalações de base e uma permanente falta de peças sobressalente e munições, isto de acordo com o coronel José Duarte Krus Abecasis, comandante da zona aérea de Cabo Verde e Guiné até janeiro de 1967. Havia escassez de motores para três aeronaves de transporte, os C-47 Dakota, apenas um estava operacional de forma confiável para operações em todo o país. Nesse ano de 1966 teve dificuldades de manutenção, com falhas mecânicas e escassez de peças que se refletiu na capacidade de a Força Aérea abastecer as forças terrestres. Depois de muitos protestos por parte dos oficiais da Força Aérea, a situação tendeu a melhorar no outono de 1967, mas sempre com incumprimentos. De acordo com o secretário-de-Estado para a Aeronáutica, Fernando Alberto de Oliveira, em 1968, “A Força Aérea não estava em condições de realizar regularmente todas as atividades de apoio que por leis lhes competia em exclusividade".

Os aeródromos e instalações conexas revelaram-se inadequados durante a primeira fase da guerra. A instalação principal da FAP e a sede da Zona Aérea em Bissalanca nem sequer fora designada como base aérea permanente, só o foi depois de maio de 1965, dois anos e meio após o início da luta; até então serviu como uma base de aeródromo de segundo nível. Mesmo quando mudou de nome para Base Aérea 12, necessitava de pessoal adequado, alojamento e abrigos para acomodar as novas aeronaves que chegavam ao longo de 1966. As defesas aéreas da base foram consideradas “irrelevantes” apesar do punhado de canhões obsoletos de 40 mm e 12,7 mm atribuídos ao único pelotão aéreo da BA12.
Instalações da Força Aérea Portuguesa na Guiné e Cabo Verde, 1961-1975 (Matthew M. Hurley)
Uma unidade do PAIGC no Sul da Guiné (Arquivo da Família Cristiana)
Arnaldo Schulz, governador e comandante-chefe das Forças Armadas, 1964 a 1968 (Coleção de José Matos)
Aquartelamento do Exército português (Coleção de José Matos)
Imagem com alguns meios navais utilizados na Guiné (Coleção Virgílio Teixeira)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1639): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24811: Facebook...ando (44): Bafatá no dia 22 de agosto de 1974: a fonte pública de 1918 e a mesquita, de 1968, duas obras da arquitetura colonial (Amilcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74)

Foto Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região de  Bafatá > Bafatá > 22 de agosto de 1974 > Fonte pública de 1918, e mesquita.

Fotos (e legendas): © Amílcar Ventura (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Duas belas recordações de Bafatá, relativas à  presença histórica portugesa: 

(i) de um lado a fonte pública construída em 1918, ao tempo da I República,  no sítio da "Mãe de Água" ou "Sintra de Bafatá" (mais conhecido por "Boma", pelos guineenses da geração do Cherno Baldé, que estudou no liceu de Bafatá, a seguir à independência); 

(ii) do outro, a mesquita, inaugurada em abril de 1968, aquando da isita, à "princesa do Geba", do governador geral da Guiné, gen Arnaldo Schulz.

As duas fotos forma tiradas pelo Amílcar Ventura (ou pertencem ao seu álbum).

Comentários e legendas:

Foto nº 1:  "22 Agosto de 74, no  regresso a Bissau da minha Companhia que estava em Bajocunda, com passagem por Bafatá. Foto tirada no Fontanário de Bafatá. São os Furriéis da Companhia."

Foto nº 2: "No mesmo dia, mesquita de Bafatá" (percebe-se pelas poças de água, que estamos na época das chuvas)

O Amílcar Ventura foi fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74); é natural de (e residente em) Silves; membro da nossa Tabanca Grande desde 9 de maio de 2009; publicou as fotos acima na nossa  na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, no passado dia 30 de 0utubro de 2023.


2. Sobre a mesquita de Bafatá, sugerimos o visionamento da reportagem da RTP sobre a visita do Governador Geral, gen Arnaldo Schulz, a Bafatá, num dos seus últimos atos públicos (abril de 1968). Apesar do vídeo não ter som, as suas imagens falam por si. Leia-se primeiro o resumo analítico disponível aqui, em RTP Arquivos. O vídeo tem a duração de 05' 34''. E passou no noticiário nacional da RTP de abril de 1968.

  • Aeródromo: esposa do Governador Geral cumprimenta individualidade militar, multidão nativa caminha na pista, guarda de honra da Mocidade Portuguesa, Arnaldo Schultz caminha no recinto;
  • caravana automóvel na estrada e a entrar em Bafatá
  • esposa do Governador Geral descerra lápide do Bairro Social Arnaldo Schultz, a construir; placa; Arnaldo Schultz, individualidades e populares assistem;
  • missa na igreja paroquial: Arnaldo Schultz dirige-se para o edifício e assiste à celebração, fiéis, crianças nativas e esposa do Governador assistem, celebração;
  • inauguração de instalação industrial: bênção, Arnaldo Schultz acciona manivela; comitiva na estrada.
(Resumo analítico: Revisão / fixação de texto / negritos: LG)
 
___________

Nota do editor:

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24765: Agenda cultural (840): Síntese da minha comunicação destinada à conferência "Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril", realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo (Mário Beja Santos)


A juventude moncorvense compareceu em força num dos painéis
Presentes: coronel Vasco Lourenço, general Alípio Tomé Pinto e o presidente da edilidade, Nuno Rodrigues Gonçalves. Sentado, e diligentemente a escrever, o nosso confrade Paulo Salgado, moderou a sessão António Lopes, oficial do Exército aposentado

Imagens cedidas pela Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, a quem agradecemos


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Do programa da conferência não falo, veio publicado no blogue. O que me foi pedido prendia-se com a análise da literatura da guerra colonial, mau conhecedor das literaturas referentes aos teatros angolano e moçambicano, fui-me reportando ao que conheço da realidade da literatura guineense.

Como estas comunicações não dão para divagar, há que encontrar um ritmo que possa cativar um público transversal, por isso achei por bem falar da abrangência da literatura e suas manifestações; enfatizar a variedade topográfica que gerou singularidades quanto à Guiné, Angola e Moçambique, se bem que, haja um enquadramento que vai do embarque ao desembarque e que toca a todos, e mesmo nesse itinerário um relato de alguém que viveu em destacamento naturalmente que se distingue de quem foi fuzileiro ou paraquedista; procuro dar ênfase à questão do meio, como ele é preponderante na inquietação de um patrulhamento ou no fascínio de um esplendoroso palmar que surge inopinadamente; e há a questão do tempo da comissão, um relato de Álvaro Guerra, que combateu no início da luta armada distingue-se da história de um batalhão como o BCAV 2867, que combateu na região de Tite nos anos de 1969 e 1970, e que coteja os factos por ele percecionados com a documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares. 

E confesso que me desvelou o acolhimento de Paulo Salgado que me levou a visitar zonas extraordinárias do Baixo Sabor, deu-me matéria para falar de itinerâncias na região moncorvense.

Um abraço do
Mário


Síntese da minha comunicação destinada à conferência Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril, realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo

Uma guerra colonial que gerou investigação e largas memórias de diferente ficção

Mário Beja Santos

1. Era inevitável: uma guerra vivida em três frentes, de 1961 a 1975, iria implicar estudos historiográficos, socioeconómicos, abordagens militares, diferentes domínios de investigação, nomeadamente no campo universitário, dando origem a uma vasta multiplicidade de teses e obras destinadas a um vasto mercado, desde o estritamente militar ao do grande público. 

Por natureza, e mercê do olhar ideológico, será também motivo de contínuos trabalhos, recorde-se que há omissões graves no campo da investigação que importa colmatar: por exemplo, não há ainda nenhum estudo aprofundado sobre os quatro anos (1964-1968) da governação de Arnaldo Schulz;

2. Mas nem só da investigação vive o homem: há um rol infindável de manifestações literárias: conto, novela, romance, poesia, literatura memorial, reportagem, propaganda para captar populações ou a favor da política do Estado Novo, justificando a gradual intervenção militar, mesmo quando esse regime apresentava tal intervenção como “ações de polícia”;

3. Como é natural, dada a variedade topográfica das três frentes, gerou-se uma literatura com particularidades/especificidades. Há, contudo, questões e conceitos que se podem apresentar como padronizados: 
  • as despedidas aquando do embarque; 
  • a viagem tormentosa, com as praças metidas em porão; 
  • o estado de nervosismo e a expetativa do que se vai encontrar pela frente; 
  • a chegada, o embate com o clima; 
  • a deslocação para um lugar ainda desconhecido; 
  • a adaptação ao meio, por vezes uma intensa participação em obras para melhorar o nível do conforto; 
  • a tensão nos patrulhamentos, procurar ver o que se esconde no capim; 
  • o sobressalto da mina antipessoal e mina anticarro; 
  • os primeiros contactos com a guerrilha; 
  • o comer mal, a vigilância noturna, as flagelações, etc., etc.. 

Não são situações padronizadas, são quadros de referência do itinerário da comissão, obviamente com cambiantes, é bem provável que um paraquedista, um fuzileiro, um comando, estejam dominados por outras referências, as operações têm um peso dominante na literatura que eles elaboram;

4. As particularidades decorrem do meio, como é óbvio: 
  • o território da Guiné depende das marés altas e baixas (o território tem uma superfície de 36.125 km2 numas alturas, noutras 28.000 km2); 
  • é território sulcado por rias e braços de mar, tem de facto só dois rios, o Geba e o Corubal;
  •  há o tarrafo, que pode ser um inimigo natural implacável, no mínimo intimida, ande-se por terra ou por água; 
  • há as florestas-galeria, por vezes caminha-se de gatas, surgem inesperados contratempos, podem ser as abelhas, um porco do mato que se atravessa à frente da patrulha, e que provoca pânico; 
  • há a estação das chuvas, que nos faz adoecer, que aumenta os casos de malária…
  • como é evidente, há a ligação entre o militar e as populações, a solicitação do médico ou do enfermeiro ou do maqueiro, angariar professor para a criançada ou para os soldados iletrados; fica-se aterrado quando se vê um leproso ou um ser humano com elefantíase...

 Tudo isto é matéria que aparece na correspondência do militar para a família e amigos e entra nas obras literárias, claro está;

5. Tal como os estudos historiográficos, a propaganda apologética, qualquer obra de ficção tem de ser dimensionada pelo tempo em que foi escrita e publicada. Da análise que faço à literatura da guerra colonial da Guiné, consigo distinguir as seguintes fases:
  • as obras publicadas até 1974, nelas prepondera o heroísmo e a exaltação das qualidades do soldado português, há situações específicas como um diário que foi publicado no Jornal da Bairrada, em pleno Estado Novo, e quando o autor, também durante esse regime deu corpo a um livro, este foi apreendido pela censura (Tarrafo, de Armor Pires Mota); 
  • há literatura encriptada, é o caso das obras de Álvaro Guerra; com o 25 de Abril, o azimute muda de direção, crescem as críticas à guerra, há mesmo assassinatos de caráter, e nesta literatura tantas vezes contundente surgem obras que hoje merecem atenção nas universidades, é o caso do romance Lugar de Massacre, de José Martins Garcia; 
  • tenho para mim que é nas décadas de 1980 e 1990, quando o antigo combatente passa a ter mais disponibilidade e serenidade face aos acontecimentos vividos, que vão surgir obras de inegável valor no campo romanesco; 
  • é na viragem do século que faz aparição a literatura memorial, hoje a vanguarda desta ficção, é um amplo leque que vai da poesia popular, passando pelos diários, recordações fragmentadas, singelas histórias de unidades militares, e muito mais.

6. Tudo conjugado, temos o campo da investigação, o ensaio antológico, a análise política; e, na sequência diacrónica a literatura da guerra colonial tem de ser apreciada no tempo em que foi escrita e no território em que se combateu. É de uso indispensável, doravante, para ser compatibilizada com o que dizem os factos históricos, pois há imensos relatos que podem servir de contraponto ou validação de documentos: dou o exemplo dos depoimentos de antigos combatentes do BCAV 2867, que combateu na região de Tite (sul da Guiné) nos anos de 1969 a 1970, e que aparecem ao lado de documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares.

Poderá dizer-se que na sua generalidade esta literatura não prima pela grande qualidade, mas há um acervo de obras (e noutras capítulos ou parágrafos) que farão obrigatoriamente parte do que melhor se tem escrito na nossa contemporaneidade.

É a análise destes pontos que pretendo fazer e debater neste auditório. 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
É meritório, há que o reconhecer, a divulgação em fascículos, com acesso ao grande público, e numa linguagem acessível, de acontecimentos relevantes como foram grandes operações da guerra colonial. Quando me atirei à tarefa de estudar com um pouco de minúcia os acontecimentos que antecederam a chamada luta armada e depois a luta armada propriamente dita, entre 1963 e 1965, isto num projeto editorial que teve como base a história do BCAV  490 feita por um poeta popular, e assim chegámos os dois à feitura do livro "Nunca Digas Adeus às Armas", Húmus Edições, 2020, detetei que a generalidade da historiografia sobre a guerra da Guiné passa como gato pelas brasas pelos aspetos fulcrais tanto da atividade operacional desenvolvida no período como no contexto dessa luta armada, os dois comandantes-chefes, e nomeadamente Arnaldo Schulz, lançaram as bases da ação psicológica, da formação de milícias e companhias de Caçadores, projetos de desenvolvimento e algo mais que merecia o respeito e consideração por quem estuda a guerra.

Mas o mantra é muito superior à realidade e quem escreve que a guerra se agravou entre 1963 e 1968 e mais adiante dirá que a partir de 1970 a guerra nunca mais deixou de se agravar não dá pelas injustiças que profere, uma delas até é cometida com tiros no pé, como esta "Operação Irã", de maio de 1965, e esta "Operação Hermínia", de março de 1966, que desdizem cabalmente de que não se respondia taco a taco, enfrentando o inimigo. Bem curiosamente, há agora quem escreva que mesmo no período da governação Spínola a tropa dos aquartelamentos limitava-se a andar ali à volta, quem verdadeiramente tinha atividade operacional eram as tropas especiais, outro mantra, falando por mim, não me ofende quem quer, na chamada zona libertada do Cuor eu percorria quatro quintos a qualquer hora do dia e se a mais não me afoitava era por não dispor de recursos, com aquelas operações de tabancas em autodefesa fui sendo sangrado de várias secções de pelotões de milícia, em vão protestei. Mas isso é uma história que a historiografia nem se preocupa em estudar, a precariedade dos meios.

Um abraço do
Mário



Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966)

Mário Beja Santos

A série "As Grandes Operações da Guerra Colonial", surgida na década de 2010, vendia-se nas papelarias e quiosques sob a forma de fascículos, os textos pertencem a Manuel Catarino, edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. Este fascículo 2 é uma reedição, é uma miscelânea onde para além destas duas operações a que nos iremos referir juntar-se-ão outras informações, acrescendo a descrição da Operação Tridente, acontecimentos que envolveram paraquedistas em Guilege ou que viveram dificuldades no decurso de uma operação em Cassebeche. O valor do texto é muito discutível. Dizer que a Operação Irã é uma investida das tropas portuguesas no Morés onde nunca elas se tinham aventurado é desconhecer inteiramente de operações no Morés em 1963 e 1964. Sim, o Morés era uma região de mata densa, aí se sediavam pequenas bases móveis, improvisadas infraestruturas, importantes depósitos de material. E o texto lança logo o mantra de que tudo foi agravamento do conflito desde janeiro de 1963 até 1968, é o velho e estafado refrão de que os Altos Comandos anteriores a Spínola andaram aos bonés e revelaram-se incapazes de travar a progressão da guerrilha.

Quem lê a resenha das campanhas de África, no que tange à Guiné, e é este período, ficará seguramente atónito com o texto das diretivas de comando e as ordens de batalha dos dois comandantes-chefes anteriores a Spínola, e sobretudo ao conjunto de operações efetuadas, ao seu desenlace, e à sinceridade posta nos quadros de situação, é uma linguagem que não deixa margem a equívocos de que era inteiramente possível fazer melhor com os meios disponíveis. O autor dá uma no cravo e outra na ferradura, sempre que pode deslustra quer Louro de Sousa quer Schulz e chega a dizer enormidades como:
“Schulz era um militar clássico e, como seria de esperar, respondeu classicamente à manobra do PAIGC”. O que desdiz completamente o que Schulz escreveu para os chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas, o mesmo é dizer que chegou ao conhecimento do governo. Louro de Sousa apanhou a fase da implantação do PAIGC, tinha efetivos humildes, o sistema de informações era mais do que precário, a operação de investida no Sul tinha sido estrategicamente calculada, revelou-se fulminante, passou-se para o outro lado do Corubal, foi-se consolidando na região do Morés. Havia que prontamente responder apoiando as populações que se revelavam afetas à soberania portuguesa e à atividade operacional que foi contínua, apareceram as milícias, as tabancas em autodefesa, as tropas especiais.

A Operação Irã ocorreu em maio de 1965, foi um golpe de mão à base do PAIGC de Iracunda. Lê-se no relatório: “A CART nº 730 saiu de Bissorã em 2 de maio e no dia seguinte montou uma rede de emboscadas em proteção à CART nº 566 que executou o ataque à base central do Morés. Pelas 5h50 de 3 de maio vinte elementos vindos do Morés caíram na zona de morte, interrogado um prisioneiro deu informações sobre a base de Iracunda para onde a CART n.º 730 logo seguiu. Esta unidade seguiu prontamente para Iracunda e capturaram material, havia aqui uma escola, a CART n.º 730 sofreu duas fortes ações de fogo sem consequências”. Depois o autor escreve outro êxito, o do BCAÇ 2879, em agosto de 1969, segue-se um texto sobre os Diabólicos, o grupo de Comandos que executou a primeira ação helitransportada na Guiné, a Operação Hermínia, que ocorreu em março de 1966. O objetivo era tomar de assalto uma base de guerrilha em Jabadá. Nesta altura havia melhores meios, já tinham chegado os helicópteros Alouette III, já existiam quatro grupos de Comandos, os Diabólicos (comandados pelo alferes Virgínio Briote), os Vampiros (comandados pelo alferes António Pereira Vilaça), os Centuriões (comandados pelo alferes Luís Almeida Rainha) e os Apaches (comandados pelo alferes António Neves da Silva).
Narra o autor que a operação se iniciou à uma da tarde de 6 de março de 1966, seis helicópteros descolaram de Bissalanca em direção ao objetivo, não mais de 20 minutos de voo, a formação de seis helicópteros dividiu-se, três largaram os atacantes nas moranças a norte, enquanto os outros três foram lançados nas moranças mais a Sul. A operação durou cerca de três horas e meia, perdeu a vida o soldado António Alves Maria da Silva. O PAIGC teve baixas, fizeram-se oito prisioneiros, foram destruídos meios de abastecimento. Seguidamente Manuel Catarino descreve o aparecimento dos Comandos na Guiné, dá-nos uma tábua cronológica do país e a guerra do ano 1962, e entra-se na reedição da Operação Tridente, minuciosamente descrita, é mencionada a Operação Grifo, que decorreu em 28 de abril de 1966 e em que foi morto o capitão Tinoco de Faria que ia à frente de um pelotão de paraquedistas que saiu do aquartelamento de Mejo com a missão de montar emboscadas no corredor de Guilege. Haverá depois a descrição da Operação Ciclone II, que aconteceu no dia 25 de fevereiro de 1968, o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 executou uma ação no Cantanhez.

Em vagas sucessivas de helicópteros, os paraquedistas foram lançados nas bolanhas de Cafal e Cafine, e tomaram de assalto as bases do PAIGC depois de combates encarniçados. Os paraquedistas sofreram cinco feridos, três com gravidade, aniquilaram um bi-grupo e aprisionaram 19 homens. O texto sobre a Operação Ciclone II é igualmente detalhado, segue-se depois um texto sobre Spínola na Guiné, os seus primeiros textos enviados para Lisboa dizendo que as tropas portuguesas estavam à beira da derrota, o autor menciona as alterações estratégicas e termina o texto com uma frase mirabolante, contrariando tudo o que disse anteriormente: “A partir de 1970, a situação militar nunca mais deixou de piorar”.

Voltamos agora a uma área específica, o Quitafine, onde o PAIGC implantara metralhadoras antiaéreas de quatro canos – as ZPU-4. Foi num voo de reconhecimento sobre este ponto do Cantanhez que se descobriu este potencial antiaéreo e logo foi dada a missão ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas 12 para destruir o ninho de metralhadoras antiaéreas – a Operação Vulcano. Tudo começou na tarde de 7 de março de 1969, duas companhias de paraquedistas prepararam-se para atacar as posições do PAIGC em Cassebeche. Os grupos do PAIGC deram resistência e forçaram à retirada dos paras, estes tiveram que abandonar o local, depois de combater denodadamente. Mais tarde, a Força Aérea Portuguesa pulverizou estes ninhos de metralhadoras antiaéreas.

No termo deste n.º 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", faz-se uma síntese dos acontecimentos da guerra na Guiné, o desempenho de Spínola, é referida a máquina de propaganda que o cercava, fala-se na tentativa de reviravolta logo em 1968, o esforço de Spínola para negociar com Senghor e a recusa de Caetano e o papel desempenhado pelo livro que abalou o regime, "Portugal e o Futuro".

Militares num dos rios da Guiné no decurso de uma operação. Imagem extraída do blogue Capeia Arraiana, com a devida vénia
Lanchas de fiscalização "Daneb" e "Canópus" em proteção ao desembarque na ilha de Como. Imagem do livro AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos Gomes. Guerra Colonial. Edição: Editorial Notícias, abril de 2000
____________

Nota do editor

Último post da série de 1 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24608: Notas de leitura (1611): "Cabo Verde, Abolição da Escravatura, Subsídios Para o Estudo", por João Lopes Filho; Spleen Edições, 2006 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Será porventura a mais recente das biografias de Amílcar Cabral, trabalho mais de ruminação, sem acompanhamento de factos novos. Está bem estruturado, tem uma descrição cronológica relativamente bem montada, cai constantemente na hagiografia, o que significa que o autor cuidou pouco do distanciamento, foge em permanência das questões fracturantes, caso predominante da unidade Guiné - Cabo Verde. Não cuidou de bibliografia recente, esquece trabalhos de Toby Green, Joshua Forrest, Carlos Cardoso ou António Duarte Silva.Talvez útil para alunos das universidades norte-americanas, não traz inspiração para investigações guineenses ou mesmo portuguesas.

Um abraço do
Mário



Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy

Mário Beja Santos

Será porventura a mais recente biografia de Amílcar Cabral, Peter Karibe Mendy é um gambiano filho de guineenses de Bissau, ganhou notoriedade com a sua tese de doutoramento A tradição da resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; é professor de História e de Estudos Africanos no Rhode Island College, Providence, esta biografia foi ditada pela Ohio University Press em 2019.

Há que deplorar não trazer nada de significativo relativamente aos trabalhos mais recentes de Patrick Chabal, Toby Green, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. Tem-se a sensação de que o investigador leu muito o que já sobre Cabral se escreveu, ficou espartilhado por considerações hagiográficas que não têm o cuidado em depurar, usa pouco o contraditório e sente-se incapaz de nos dar uma observação refrescada sobre a atualidade do legado ideológico de Cabral. Reconheça-se, no entanto, que a biografia goza de uma estrutura bem organizada e acolhe os passos mais significativos da vida e do pensamento de Cabral.

Em Terra Natal, procura contextualizar a colónia da Guiné em que o líder do PAIGC nasceu, fala-nos da sua família, da ancestralidade cabo-verdiana e em Terra Ancestral insere a educação de Cabral em Cabo Verde, entre 1932 e 1945. Observa bem a atmosfera cabo-verdiana e não se esforça por fazer a distinção entre os aspetos radicalmente diferentes que separam duas formas de civilização e cultura, Guiné e Cabo Verde, e deixa no limbo o ressentimento multisecular dos guineenses face aos cabo-verdianos, que virá a ser exacerbado durante o período da governação de Spínola. Segue-se a preparação universitária do fundador do PAIGC em Portugal, a Mãe Pátria, continuamos sem novidades, e bem interessante seria que o autor tivesse invocado a obra de Dalila Mateus que ilumina como nenhuma outra a vida destes estudantes coloniais no pós-guerra do Estado Novo, as suas expetativas, laços de amizade, pois só assim se tornará compreensível a devoção de Cabral numa prática corrente de pan-africanismo com os líderes das outras colónias portuguesas.

E temos o regresso à Terra Natal, chega à Guiné em 1952, irá trabalhar na Granja de Pessubé, entrega-se devotadamente ao recenseamento agrícola, estabelece uma rede de amizades que preparará a ligação dos quadros cabo-verdiano e guineense que despontará formalmente em 1959. Como é sabido, dentro das diferentes desmontagens mitológicas, palavra de Julião Soares Sousa, este põe em causa o significado da reunião de 19 de setembro de 1956 que se tornará a mantra anos depois. O próprio Leopoldo Amado, em entrevistas feitas a dirigentes do PAIGC, a propósito da biografia de Aristides Pereira, encontrará incongruências e profundas hesitações entre aqueles que disseram ter estado no ato fundador do PAIGC em 1956. Como também faz parte da mitologia a expulsão de Amílcar Cabral da Guiné, ele regressou a Lisboa acompanhado da mulher, vinham profundamente doentes.

Peter Mendy dá-nos uma boa síntese da Lisboa da década de 1950 e a emergência provocada pelo desejo de libertação dos países inseridos em impérios coloniais. Cabral irá trabalhar para Angola e estará presente em agosto de 1959 na reunião determinante para a criação do PAI, embrião do PAIGC, de quem só se falará a partir dos anos 1960. Encetada a estratégia por ele delineada, fica um núcleo subversivo no interior da Guiné dirigido por Rafael Barbosa, Cabral parte para o exílio em Conacri, em condições precárias lança uma escola piloto e começa a obter apoios internacionais, o de maior realce é a preparação de jovens quadros na Academia Militar de Nanquim, serão estes que irão irromper em cena a partir do segundo semestre de 1962, o PAIGC procura responder de forma congruente às ações desenvolvidas pelo Movimento de Libertação da Guiné no ano anterior. Escolhe-se a região Sul para desencadear a subversão, a catequização e o ajuntamento de populações apoiantes da independência.

O autor, sem justificar as bases da sua afirmação, considera que as autoridades de Bissau estavam à espera de ações do tipo da UPA em Angola e que por isso começaram a disseminar forças militares pela extensa região fronteiriça, em rigor isso não é verdade, o contingente português ainda é muito pequeno, houve a noção elementar, logo no início da subversão, de que era necessário apoiar os núcleos populacionais que se temiam ser afetados, o êxito do PAIGC na região Sul decorreu da forma como foi bem recebida a subversão e como se isolaram povoações como Cacine, Catió ou Cufar, no Sul, ou Jabadá, no rio Geba. Quínara e Tombali, pela própria natureza do terreno, garantiram uma relativa segurança à presença das forças subversivas.

Quando se diz que Peter Mendy cai na armadilha da hagiografia basta ler a flagrante explicação que ele dá para a Operação Tridente, como se fosse um êxito absoluto do PAIGC. A ilha do Como, como é bem sabido, perdeu rapidamente a importância estratégica que a propaganda do PAIGC lhe atribuiu, encontraram-se outras posições no Sul muito mais influentes.

Chegamos ao Congresso de Cassacá e não se sabe por que carga de água é que aparece o nome de Inocêncio Kani, um dos futuros assassinos de Amílcar Cabral, acusado de ter vendido um motor, coisa que não aconteceu em 1964, mas sim em 1971.

Também a biografia nada traz de novo sobre o apoio cubano, as referências a Schulz é de um comandante-chefe que larga bombas de napalm e fósforo branco por toda a parte e que é obrigado a abandonar a colónia depois de um ataque perto de Bissalanca, onde o autor inventa a destruição de aviões e hangares, mais outra prova que não teve tempo ou interesse em ler o contraditório. Segue-se a descrição do período de Spínola, parece-me formalmente correto, tal como o capítulo subsequente sobre a solidariedade pan-africana e a ascensão mediática do líder do PAIGC. E assim chegamos ao assassinato, novo quadro hagiográfico, mais uma vez a incriminação da PIDE que se teria aproveitado do ressentimento dos guineenses contra os cabo-verdianos.

Peter Mendy esquece-se de referir que não se conhece o teor das sessões dos interrogatórios às centenas de acusados e às dezenas de incriminados, todo o documento escrito e magnético desapareceu. Em nenhum arquivo português se encontrou qualquer dado útil para a implicação das autoridades guineenses ou da PIDE de Bissau ou de Lisboa. Em nenhuma circunstância Peter Mendy manifesta vontade em dissecar a fragilidade da conceção teórica da unidade Guiné – Cabo Verde, ele fala de insurreições dos povos guineenses contra a ocupação portuguesa, nem uma palavra sobre as guerras sanguinolentas desencadeadas no século XIX com a queda do Kaabú e a ascensão dos Fulas que conduziram ao período dramático das guerras do Forreá, está possuído de um raciocínio limitativo de que as etnias guineenses viviam pacificamente entre si e coligavam-se para fazer frente ao opressor colonial português.

O capítulo A Luta Continua descreve a viragem da luta em 1973 e assim chegamos ao legado de Amílcar. Peter Mendy enfatiza documentos da maior importância produzidos por Cabral que denotam o seu génio, o vigor da sua habilidade diplomática, a sua comunicação e inspiração mantêm pertinentes: as suas advertências para o perigo de uma pequena burguesia gananciosa querer aspirar a ganhos pessoais aliando-se ao neocolonialismo; a essência de uma democracia revolucionária, baseada na participação das populações, no idealismo pan-africanista que exigia a descolonização mental. A atualidade do seu pensamento é ainda maior quando toda esta região de África caiu nas mãos de líderes populistas e tirânicos e todo este espaço se tornou uma rota de droga e da ameaça do radicalismo islâmico.

Um livro feito de muita mastigação, de grande candura face ao líder admirado, talvez útil para quem nada conheça sobre a vida e a obra deste gigante do movimento revolucionário.

Amílcar Cabral no gabinete de trabalho em Conacri, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
O “carocha” de Amílcar Cabral, que ele utilizou no dia em que foi assassinado
A devida vénia a Didinho.org
Palestra de Amílcar Cabral em Conacri, dirigindo-se aos seus quadros, com Aristides Pereira ao fundo, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24150: Notas de leitura (1564): "Guiné 9 Dias em Março" e "Guiné 74 Vigilância e Resposta"; O repórter Horácio Caio na Guiné, em 1970 e em 1974 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Três repórteres se distinguiram na cobertura da guerra da Guiné, para efeitos de propaganda do Estado Novo: Amândio César, Horácio Caio e Dutra Faria. Amândio César e Dutra Faria tiveram na Guiné no tempo do Governador Arnaldo Schulz, Caio visita a Guiné em 1970 e 1974. A todos irmana o tantam da portugalidade, do amor da Guiné a Portugal, há sempre progresso, novas estradas, desenvolvimento agrícola, o inimigo dispara no território estrangeiro ou tem no interior bases temporárias. Caio não encontrou ninguém que lhe tenha falado em mísseis, por toda a parte encontrou tropa animada, régulos indefetíveis, Bissau era uma cidade completamente segura, viajou de helicóptero ou de jipe em certas estradas alcatroadas. É estarrecedor vermos hoje, à distância de meio século, como se pretendia instrumentalizar ou ludibriar a opinião pública portuguesa. Mas aconteceu, basta ler estes repórteres e sentir como o credo nacionalista podia deturpar a realidade dos factos.

Um abraço do
Mário


O repórter Horácio Caio na Guiné, em 1970 e em 1974

Mário Beja Santos

Horácio Caio (1928-2008) é considerado o primeiro repórter da guerra colonial, trabalhou para a RTP e várias publicações escritas. Pelo menos duas obras sobre a Guiné chegaram ao meu conhecimento. Em 1970, acompanha o ministro Silva Cunha de que resulta um folheto intitulado “Guiné Nove Dias em Março”. Descreve a visita do ministro do Ultramar, alvo de uma receção patriótica, a publicação está profusamente ilustrada com imagens com crianças, jovens e adultos, visitando projetos, andando de jipe entre Nova Lamego e Bafatá, saindo do helicóptero na área de Madina do Boé. Desmente tudo quanto Cabral por essa altura dissera numa entrevista à Newsweek sobre controlo do território, afirma que anda com o ministro por toda a parte, embora não diga como. É encomiástico com as transformações que se estão a operar na Guiné: “Rasgam-se e alcatroam-se estradas pelo interior da floresta; lançam-se pontes e viadutos sobre os canais dos belos rios guineenses; em toda a província se constroem habitações em aldeamentos; abrem-se escolas e hospitais; potentes máquinas desbravam as florestas e preparam terrenos para novas culturas; criam-se granjas agrícolas; reordenam-se palmares; recuperam-se bolanhas onde viceja o arroz”. O Governador Spínola mostra ao ministro o que se está a passar no Chão Manjaco, também no Chão Mancanha e Balanta, e no Quínara. Os jornalistas recebem ampla informação quanto ao que se está a passar na assistência médico-sanitária. Também Bafatá recebe em apoteose o ministro, o comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, João Bacar Djaló, é condecorado, Horácio Caio sente-se contagiado pelo portuguesismo das populações.

Viaja-se até à fronteira, vai-se de helicóptero até Sare Bacar, depois a Cambajú e depois a Canhamina, esta um complexo de aldeamentos em autodefesa. De Bafatá até Bambadinca o ministro vai de automóvel. Noutra digressão segue-se até Nova Lamego, tem novo aeroporto, uma construção que é contemporânea nos aeródromos de Aldeia Formosa e de Cufar. A guerra que se move contra a Guiné tem por detrás as potências estrangeiras e há muitos mercenários com o PAIGC, afirma e reafirma o jornalista. Não há quartel em Madina do Boé porque as populações decidiram transferir-se para o Gabú. “Mas isso não significou que esta parcela da Guiné deixasse de ser portuguesa. E a prová-lo este a presença dos visitantes nas povoações de Beli e de Madina do Boé, a escassos quilómetros da fronteira, tendo sido sobrevoadas a baixa altitude”. Houve também passeio à ilha do Como. Assim se desfaz mais uma mentira da propaganda adversária. “O Professor Doutor Silva Cunha esteve em Porto de Corcô, no centro geográfico da ilha de Como, pedaço de terra, embora de reduzido interesse, mas pedaço de terra portuguesa, onde portugueses mesmo desarmados como foi o caso, podem permanecer quando e enquanto quiserem”. A viagem prossegue até Guilege e Gadamael. “A intensa alegria com que receberam os visitantes somada à determinação que puseram nas suas afirmações, demonstraram mais uma vez a razão da sua permanência em tão inóspitas paragens”.

Chegou a vez de visitar o Chão Manjaco, fala-se em construções como uma maternidade, ampliação da missão de combate a doenças tropicais, o elevado número de postos sanitários, reordenamentos rurais, estava em curso a construção de três mil casas de habitação. Com efeito, Spínola apostava no Chão Manjaco, um mês depois ali ocorrerá uma tragédia, suponha-se que grupos do PAIGC aceitassem ser integrados nas fileiras do Exército Português, os oficiais de negociadores foram retalhados à catana.

Em janeiro de 1974, é a vez de Baltazar Rebelo de Sousa, o novo ministro do Ultramar, visitar a Guiné, irá a Catió, a Caboxanque, Bafatá, Nova Lamego, Farim, Cacheu, Teixeira Pinto e Bubaque. O livro "Guiné 74, Vigilância e Resposta", é editado no mês seguinte. Não há áreas libertadas. Apenas 5% da população está sob o jugo do PAIGC. As flagelações deste são realizadas à distância, ou de acampamentos temporários ou nos territórios do Senegal ou da República da Guiné. Há cada vez mais progresso, começara a laboração da CICER, Fábrica de Cervejas e Refrigerantes, o maior investimento privado na Guiné, caminhava para a inauguração o Hotel Ancar, havia cada vez mais estradas asfaltadas. O jornalista está a engraxar os sapatos, o engraxador é um jovem de 15 anos que aspira ser Comando. Bissau é uma cidade seguríssima. “Nenhuma das pessoas com quem conversei me falou em bombardeamentos, tiros ou foguetões. A campanha de falsas notícias, insidiosamente montada pelo inimigo e quantas vezes acreditada até por pessoas de boa fé, não corresponde à realidade observada”.

O repórter assiste ao encontro entre o ministro e o rei de Bassarel, no Pelundo, fala-nos da fortaleza de Cacheu, de Honório Pereira Barreto e de sua mãe D. Rosa Carvalho Alvarenga. Depois os helicópteros rumam para Cufar, Catió, Caboxanque, no Cantanhez. “Aí convivemos durante uma manhã inteira com esses bravos soldados que defendem a terra e as populações”. Os encontros são muitos, com o dirigente do Turismo, um alferes promovido a capitão, na saúde e do ensino, aqui pontificam os militares e as suas mulheres, entrevista-se o proprietário do Hotel Ancar, há visita à Imprensa Nacional da Guiné, o ministro inaugura o estádio escolar que inclui campos de futebol, campos de voleibol e basquetebol, balneários, salas de jogos, pista de atletismo. Volta-se ao investimento da CICER, enumeram-se as cervejas e os refrigerantes, tudo parecia um investimento promissor. Edição profusamente ilustrada como a anterior, uma narrativa de rasgada fé na portugalidade guineense, refere-se textualmente que são 500 mil guineenses antes separados por odiosas rivalidades fomentadas pelo PAIGC, ele via por toda a parte a nossa Guiné fraterna e exclama: “Com uma farda de Comando, com indumentária da Mocidade Portuguesa – movimento que na Guiné tem presença vigorosa – ou com um distintivo da ação nacional popular, o jovem – milhares de jovens – da Guiné está personalizado e é o fermento da vida nova que freme e acoroçoa a aurora que desponta”. É verdade que a guerra traz incómodos, sacrifícios, destruição e mortes. “Clareado o que tenho na minha frente, o que antevejo é o futuro da Guiné, onde todos participam com ânimo, aceitando desafios constantes à inteligência e à imaginação”.

E tudo termina com uma citação do ministro do Ultramar, produzida em Cacheu no dia 17 de janeiro: “A Guiné dos nossos dias está apostada em se defender dos ataques que lhe são dirigidos, já que ela, por si própria, é pacífica, não ofende ninguém e não ambiciona nada senão que a deixem trabalhar em paz e progredir em paz, a favor da sua gente”.
E meses depois aconteceu o 25 de abril.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24141: Notas de leitura (1563): Cadernos Militares - Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Cedo se informou que os dois volumes existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia encerram um conjunto lacunar de atas do Conselho Consultivo e depois Legislativo da Guiné, tudo começa em 1917, há diferentes hiatos, faltas que não permitem tentar sequer uma leitura diacrónica do ideário da governação desde a I República até 1971, assomam iniciativas generosas, defesa de interesses económicos, avultam as preocupações com a exequibilidade orçamental, em dados momentos homenageiam-se líderes do Estado Novo, e é percetível o que diferencia Schulz e Spínola, o primeiro no uso da prudência, não querendo asfixiar as finanças da Guiné, exigindo um Plano de Fomento auto-sustentado, o segundo referindo que recebeu meios avultados para pôr em prática a sua Guiné Melhor, e daí a disparidade dos orçamentos destes dois governadores. Para quem pretende estudar a História da Guiné, é compreensível que se sugira a análise desta fonte documental, a despeito de tanta lacuna.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (10)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Os tempos mudaram, já se fez referência que as sessões do Conselho Legislativo têm participação pública, é ótimo para a conversação mediática que Spínola quer manter com os guinéus, começou logo em 1968, e será uma constante do seu mandato. Já se fez referência à sessão de 10 de dezembro, nas vésperas do fim de ano o Conselho reúne-se e aprova o orçamento da Província para 1969, mas é a 14 de abril que o Conselho tem direito a aparecer nos televisores: comparecem Marcello Caetano e Spínola, vão falar para a Guiné, mandam recado para o Império.

Com pompa e circunstância tem a palavra o vogal Joaquim Baticâ Ferreira: “Nasci e vivo na Guiné, onde sou chefe da comunidade Manjaca, mas todas as raças desta Província estão unidas pela sagrada bandeira de Portugal. É por isso que falo em nome da população nativa da Guiné, para dizer a Vossa Excelência que a nossa firme determinação é a de continuar a ser portuguesas.” E apoia o projeta da Guiné Melhor: com boas estradas alcatroadas e portos fluviais; com mais escolas primárias e estabelecimentos de ensino; com mais hospitais, maternidades e postos sanitários.

Tomou seguidamente a palavra António de Spínola: “A Província encontra-se em guerra, aqui luta-se e morre-se pela causa sublime da paz. Vastos e complexos sãos os seus problemas de guerra e de paz, uns já em fase de resolução, outros equacionados, outros ainda apenas esboçados. A Província caminha na senda do seu desenvolvimento económico-social no quadro das estruturas de uma Guiné Melhor.”

Por último, discursou Marcello Caetano: “Os governantes e as autoridades têm procurado incessantemente combater a doença, a miséria, a opressão, como neste momento lutam lado a lado com as populações nativas e as Forças Armadas contra os perturbadores da Paz. O desenvolvimento do território não se obtém na confusão e no tumulto. É obra de amor. É fruto do trabalho. É resultado do emprego intensivo, adequado e oportuno das técnicas que o nosso tempo coloca à disposição do Homem. Portugal está aberto a todos os seus filhos. Mesmo aqueles que algum dia hajam hesitado no caminho e duvidado de que a bandeira verde-rubra fosse o estandarte da liberdade e do progresso, mesmo esses serão bem recebidos se reconhecendo o seu erro. Foi para proteger a admirável fidelidade da gente da terra que da Metrópole e de outras províncias alguns milhares de portugueses dos exércitos da terra, do mar e do ar, vieram reforçar as forças de segurança da Guiné. Unidos nas mesmas dificuldades, nos mesmos riscos e nos mesmos perigos. E no decorrer das ações em que tiveram de enfrentar armas estrangeiras, brandidas pelos agentes da subversão, caíram lado a lado soldados da Guiné e de outras terras portuguesas, misturando o seu sangue generoso na defesa da causa comum. A terra adubada pelo sangue há de florescer. Da nossa vontade, da vontade de nós todos, portugueses de todas as etnias para quem a Guiné constitui parcela da Pátria, depende que o milagre se produza.”

A biblioteca da Sociedade de Geografia inclui atas até 1971, vale a pena mencionar alguns títulos. Em 30 de outubro, Spínola retoma as linhas do seu plano para a ativação do progresso económico-social da Guiné (aumento de salários, subsídio do custo de vida, vencimento para as autoridades tradicionais, apoio pecuniário para um novo gerador destinado a Bissau, reapetrechamento da Imprensa Nacional, melhoramentos em várias localidades, aquisição para os TAGP de 3 aviões, asfaltagem de estradas, saneamento, etc., etc.). Na circunstância o diretor da Fazendo comentou: “Continua a Província a dispor de uma balança de pagamentos com saldos positivos confortáveis e que neste momento se cifra em cem mil contos”.

Em 29 de dezembro ainda desse ano de 1969, a sessão abre com uma exposição de Spínola pondo ênfase na execução de uma política de valorização e dignificação humanas, foi dentro dessa perspetiva que se elaborou o Plano de Ação para 1970 e revelou com alguma minucia as linhas gerais quanto a: comunicações, agricultora e pecuária, assistência médico-sanitária, educação e cultura, melhoramentos rurais, trabalho, economia, justiça, setor administrativo. Em 30 de outubro do ano seguinte, Spínola procede a um balanço da execução do Plano de Ação, e em dada altura observou: “O progresso da Guiné, como parcela de uma nação caracterizadamente africana e multirracial, terá de aferir-se pelo número dos lugares públicos ocupados no futuro proporcionalmente a cada uma das etnias, pois temos de ter bem presente que não se pode construir uma sociedade em bases sólidas e duradouras sem a elevação cultural das massas portuguesas africanas.”.

Era um novo acento tónico da política da Guiné Melhor, declaradamente o conceito da Guiné para os guinéus, os lugares cimeiros ocupados pelos cabo-verdianos passariam a ser ocupados por guineenses. Em 18 de dezembro desse ano é apresentado o diploma legislativo destinado a aprovar o Regulamento do Ensino Primário Elementar da Província da Guiné. Em 30 de dezembro, dando continuação às grandes metas do Plano de Ação para 1970, é apresentado e aprovado o Plano de Ação para 1971. Em 29 de outubro de 1971, Spínola refere-se à participação das populações na defesa da Província: “Criou-se o Comando-Geral da Milícia, estruturou-se em novos moldes o Corpo da Milícia e regulamentaram-se as suas atividades; igualmente foi regulamentada a atividade do Corpo dos Voluntários; formaram-se no corrente ano 720 milícias e estavam em formação mais 800; aumentou-se o efetivo da Força Armada Africana com um destacamento de Fuzileiros e uma Companhia de Comandos; organizaram-se em autodefesa mais 2360 elementos da população a quem foi destinado armamento. E em 22 de dezembro desse ano foram aprovados diferentes regulamentos, entre eles o da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil da Guiné e o regulamento do Corpo de Milícias.”

Findam aqui as atas do Conselho Legislativo da Guiné, resta saber se nalgum arquivo ou biblioteca será possível encontrar um acervo mais completo do que este.

Receção a Marcello Caetano em Bissau, 14 de abril de 1969
António de Spínola, 1968, atrás James Pinto Bull
Postal de Bissau, vista da Avenida Marginal, 1960
____________

Nota do editor:

Postes anteriores de:

14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)

21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

28 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

11 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

8 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

15 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24068: Historiografia da presença portuguesa em África (355): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (9) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24068: Historiografia da presença portuguesa em África (355): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Na fase final da vida deste Conselho Legislativo é apreciável a mudança de estilo, a conceção de interesse público que norteava Schulz ou Spínola é patente nos seus discursos, Schulz era de uma enorme reserva, utilizava sempre a prudência financeira, Spínola irá utilizar o Conselho como mais um altifalante para chegar aos guineenses e a Lisboa. Veja-se o primeiro discurso de Spínola ao Conselho, independentemente de em reuniões posteriores ter apreciado matérias rotineiras, caso da conceção de um novo empréstimo aos CTT para melhoramento das telecomunicações, isto no mesmo dia em que fez discurso político com pompa e circunstância. Em 23 de outubro de 1968, pouco depois da tomada de posse de Marcello Caetano, Spínola vem a Lisboa, quem preside ao Conselho é o Encarregado de Governo e que dá a notícia de que a publicação do novo Estatuto Político-Administrativo criara um Conselho Legislativo com mais ampla representação de todos os setores da vida da Província. Alguém deplorará que o atual Conselho vive normalmente alheio à maior parte da legislação que estava a ser promulgada. Em 12 de dezembro há a locução de Spínola com participação pública, a 30 de dezembro de 1968 é aprovado o orçamento da Província para o ano seguinte. E em 14 de abril reúne o Conselho presidido por Marcello Caetano, haverá discursos, como veremos mais adiante.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (9)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Caminhando para as últimas atas deste Conselho Legislativo, permito-me pedir a atenção do leitor para dois factos: um, a inexistência de um número impressionante de atas neste acervo da Biblioteca da Sociedade de Geografia, o que dificulta enormemente encontrar-se um fio condutor (se é caso que ele existe) que desse oportunidade a uma apreciação ideológica ao longo do tempo; e verificar, com a chegada de António de Spínola, e passagem do Conselho Legislativo a órgão que admitia a participação pública, há a sua utilização a canal mediático, o governador passa a falar mais para os média, utilizando as reuniões como caixa de ressonância.

Vimos como na reunião de 29 de dezembro de 1964 o governador Schulz refletia sobre o orçamento da Província para 1965 e lembrava aos conselheiros que o Plano de Fomento impunha a necessidade do seu uso prudente, o plano fazia-se de empréstimos, havia os juros, a asfixia financeira era o que menos se podia desejar para a Guiné, e na circunstância o governador analisava três soluções, mas sempre dando ênfase ao aumento das receitas ou à diminuição das despesas; em 27 de abril do ano seguinte o Conselho regozija-se pela promoção do generalato do brigadeiro Schulz; em 10 de junho, procede-se à eleição dos representantes do Conselho Legislativo da Província que iriam participar no Colégio Eleitoral para a eleição do Presidente da República; em 13 de setembro, dá-se o aval aos empreendimentos a realizar em 1966 com verbas do Plano Intercalar de Fomento, e alguém comentou que não havia até ao presente qualquer benefício resultante da aplicação das primeiras fases do plano, havia necessidade de se obter maiores prazos de amortização e um juro mais baixo. “Sem isto, estaremos a gastar dinheiro na quase certeza de não poder pagar”. E o próprio governador observou que a rede de celeiros não tinha sido aproveitada “em virtude da atual situação da Província”. E concluía dizendo que esperava que a Guiné viesse a ter o mesmo tratamento de Cabo-Verde e Timor que recebem verbas dos Planos de Fomento sem pagamento de juros. Por essa época já se incrementava a sementeira do caju.

É uma reunião em que se discute o plano de mecanização da agricultora, propunha-se ao governador uma reformulação dos serviços e a adoção de um diploma legislativo para a conceção de benefícios pautais para carburantes e lubrificantes utilizados no desbravamento ou arroteamento de florestas, em obras de captação e distribuição de água, de defesa contra inundações e trabalhos de enxugo, lavoura e gradagens, amanhos culturais, transporte de fertilizantes e de colheita, etc. O governador informou que se estava a ponderar a criação de uma Caixa de Crédito Agrícola, bem como a construção de dois postos de sanidade pecuária. Votou-se a construção de um cais acostável em Bambadinca e obras nos portos de Binta e Buba. Em 26 de outubro, o Conselho reúne para a cerimónia da entrega de uma medalha de prata de serviços distintos ao Chefe dos Serviços da Fazenda, Tomás Joaquim da Cunha Alves, no texto a louvor é referido explicitamente que logo que a Província entrara na situação de turbulência que ainda se vivia o respetivo funcionário, correndo riscos de vida, percorreu o território para zelar pelo erário público. E no dia seguinte o Conselho voltou a reunir para apreciação o Regulamento dos Serviços de Saúde e Assistência. E não há mais atas da governação de Arnaldo Schulz.

Estamos agora em 22 de julho de 1968, preside António de Spínola, mudou o discurso, a sua alocução não ficará em circuito fechado, será transmitida pelos meios de comunicação social e chegará a Lisboa, é um discurso de Estado:
“Após 5 meses de observação, completada com muitas horas de meditação, creio ter adquirido consciência da real situação da Província. Estudados os problemas básicos respeitantes ao dispositivo de defesa da Província e ao desenvolvimento económico-social, imediatamente se evidenciou a necessidade de reforçar os meios de defesa e de procurar obter um substancial apoio financeiro. Desloquei-me a Lisboa para apresentar ao Governo Central, com todo o realismo, a situação efetiva da Província. Regressei a Bissau confortado com as adequadas e oportunas decisões tomadas pelo Governo Central. Além de um reforço efetivo de meios militares, que me permitem melhorar a estrutura de defesa das populações, foi concedido ao Governo da Província significativo apoio financeiro”.

E pronuncia-se sobre tais medidas e enfatiza o que prevê serem as melhores condições de vida de quem labuta na Guiné: conceção de um subsídio de custo de vida a todos os funcionários da Província; aumento para 100% na contagem de tempo de serviço a todos os funcionários em serviço na Província; aumento do salário mínimo dos trabalhadores pagos pelo orçamento da Província; revisão da tabela de salários mínimos; atribuição de um vencimento fixo aos régulos da Província; assegurar o fornecimento de energia elétrica a Bissau; construção e reapetrechamento da Imprensa Nacional; execução de um plano de melhoramentos públicos a desenvolver no interior da Província, abastecimento de água, saneamento, construção de residências para as autoridades tradicionais, criação de um fundo destinado a subsidiar a população suburbana de forma a permitir a melhoria das suas habitações. Iriam ser potenciados os recursos provenientes do III Plano de Fomento através de empreendimentos em curso ou a iniciar no ano seguinte: construção de estradas, prevendo-se que o asfalto chegasse a Nova Lamego e ao Pelundo, abertura da frente Mansabá-Farim, construção do Centro Materno Infantil e Maternidade de Bissau, etc., etc.

E concluía o governador dizendo que “Este substancial incremento dado ao desenvolvimento da província só foi possível devido à excecional compreensão do Governo Central em relação aos problemas da Guiné. Conto, para levar a cabo tão árdua e complexa missão, com a colaboração efetiva de todos os que trabalham em prol da causa pública, na esperança de que saibam corresponder – com austeridade de conduta e integral dedicação ao trabalho – ao esforço que o governo da Província continuará despendendo no sentido de construir uma Guiné melhor”.

O Conselho Legislativo voltará a reunir com pompa a circunstância sob a presidência de Marcello Caetano, em 14 de abril de 1969. Iremos ouvir o discurso de ambos, já estamos infinitamente longe daqueles tempos e que as reuniões decorriam numa estreita intimidade e onde estava ausente a representação da política.

(continua)
General Arnaldo Schulz
1 Escudo da Guiné, 1946
Chegada do Brigadeiro António de Spínola à Guiné, maio de 1968
Visita de António de Spínola ao Comando da Defesa Marítima da Guiné, junho de 1968
O porto de Bissau em 2021, imagem retirada de Mercados Africanos, com a devida vénia
____________

Nota do editor:

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)