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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15400: Agenda Cultural (438): Apresentação do livro "25 de Novembro de 1975; Os «Comandos» e o Combate pela Liberdade", da autoria de: Coronel Manuel Amaro Bernardo, Ten-Coronel Francisco Proença Garcia e Sargento-Mor Rui Domingues da Fonseca, dia 26 de Novembro de 2015, pelas 15 horas, no Palácio da Independência (Manuel Barão da Cunha)

Em mensagem do dia 21 de Novembro de 2015, o nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704 / BCAV 705, Guiné, 1964/66, dá-nos conta da próxima tertúlia do Fim do Império, a levar a efeito já no próximo dia 26 no Palácio da Independência.

No próximo dia 26 de Novembro de 2015 (5.ª feira, 15h00), no Palácio da Independência/SHIP (perto do Metro/Rossio), vai realizar-se a 125.ª tertúlia com a apresentação de livro "25 de Novembro de 1975; Os «Comandos» e o Combate pela Liberdade", da autoria de: Coronel e Dr. Manuel Amaro Bernardo, Ten-Coronel e Dr. Francisco Proença Garcia e Sargento-Mor Rui Domingues da Fonseca, com prefácio do Ten-General Tomé Pinto e posfácio do General Ramalho Eanes.
Ed. Associação de Comandos, 2005.11.25


A venda do livro reverte a favor da Associação de Comandos
Com a presença dos autores.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15377: Agenda Cultural (437): "A Rua Suspensa dos Olhos", ternurenta coletânea de estórias e memórias, de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): sessão de lançamento, domingo, dia 22, às 16h, na Biblioteca Municipal de Ílhavo

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

1. Parte XXII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 18 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXII

1 - Outros horários 

Em frente às vivendas, meia dúzia de escadas acima, ficava a messe dos oficiais do QG, um edifício também só de um piso, sobre o comprido. À entrada, à esquerda, um pequeno bar, bem fornecido, uísques de todas as marcas, Drambuie e outros licores, Gordon’s, chocolates, tudo o que se podia encontrar de melhor. Os lavabos em frente, urinóis em fila e nos cantos, os espelhos do costume, tudo bem limpo logo pela manhã. A sala das refeições era um salão comprido que dava para muita gente e também para alguns que, nas várias repartições do QG, davam o melhor do seu esforço para que nada faltasse às NT espalhadas pelo território. 
Foi lá que tomou o primeiro pequeno-almoço, ainda não eram 9 horas, depois de duas ou três de sono. 
Depois foi por ali fora, como se alguém o empurrasse, com o Capitão Valente e outros, por entre as palmeiras, no empedrado, relva bem tratada nos lados. 
Entrou no edifício do comando, o capitão à frente com vontade em mostra-lhe as instalações, aqui a secretaria, o 1.º sargento tal, os nossos cabos tal e tal, o 314, soldado amanuense, este gabinete passa a ser seu, os lavabos são aqui, o alferes a olhar para aquele barracão grande, zinco no telhado. Agora vamos à cantina, venha ver o seu pelouro. 
O meu capitão quer mesmo amarrar-me aos copos e às garrafas? 
Tem mesmo que ser, não tenho outra opção, isto não custa nada, a voz amigável do velho capitão, pingalim na mão. 

Por que é que tanta malta, aqui no QG, anda de pingalim, não vejo cavalos em lado nenhum!

Esta cantina está bem montada, tem tudo, quando aqui cheguei esta barraca estava a cair de podre, continuava o Capitão Valente. 
Que ar miserável, precário, como os abarracamentos cobertos a zinco que vira nas Lajes, do tempo da 2.ª Guerra, por fora cinzentos-escuros, por dentro muito mais acolhedores que esta frieza. Parecida com a messe de oficiais, onde tomara há pouco o pequeno-almoço, só nos extremos. 
Vamos, o capitão a mostrar tudo, a caminho outra vez do edifício do comando, tabuleta cá fora que o empreendedor capitão mandara o 314 pregar. 


Nasci no Ribatejo, sem pai ao lado, nunca soube quem foi o responsável, a minha mãe foi sempre de pouco falar, na hora em que morreu estava eu em Angola, andei descalço pelo Cartaxo, aos caídos, uma família de lá a quem devo o que sou, meteu-me na Casa Pia. Sou casapiano com muito orgulho, fui para a tropa e fiz a carreira. Tenho uma tertúlia de amigos no Cartaxo que de vez em quando me mandam uns garrafões dos melhores tintos daquelas redondezas. 
Meu capitão, o senhor está mesmo interessado em que eu tome conta das cantinas? 
Nosso alferes, quantas vezes já lhe disse que sim? 

Para não falar de outros, estava com um problema que ainda não tinha conseguido dar a volta. Não tinha sono às horas de agora, há meses que vivia com outros horários, não eram ao contrário destes, mas quase. Passava pelas brasas aí pela meia-noite, os companheiros de quarto a entrarem àquela hora, acordava, uma espertina contínua, as horas a andar para trás, nunca mais chegavam as 6 ou 7, então sim, um tiro, directo até à uma ou duas da tarde, o pessoal a regressar do serviço da manhã, então ainda de cama, não vens almoçar? Um banho, a caminho da messe, o Capitão Valente cá fora com os compagnons, como lhes chamava, ó nosso alferes, algum problema?

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2 - Contas com os fornecedores 

Começava o dia e o serviço sempre à mesma hora, mais minuto menos minuto. Era quase sempre o primeiro a entrar no edifício do comando da CCS a seguir ao almoço, muito antes do Capitão Valente, aliás quando entrava nunca via lá ninguém. 
Um dia, aí pelas duas da tarde, viu o capitão a entrar e a fazer um esforço danado para não arrotar, o bagaço ainda fresco em cima do almoço parecia tê-lo entupido. Amigavelmente perguntou-lhe se andava com algum problema, não satisfeito com a falta de resposta, voltou a perguntar com cara de pau, depois só com os olhos, o alferes calado a ler-lhe o pensamento, este gajo está mesmo a gozar comigo. Quando arriscou dizer-lhe que tinha dificuldade em dormir à noite arrependeu-se logo. O capitão engasgou-se com os arrotos e, aos soluços, saiu do gabinete a murmurar qualquer coisa como quero lá saber que não acorde a horas! 
Às 5 da tarde como o regulamento dizia, os sargentos, os cabos, o 314, o pessoal todo a sair, até amanhã, e ele ainda às voltas com as existências das cantinas, bares, fornecedores, até se fazer noite. 
Naquele final de dia, ao sair voltou a encontrar-se com o Capitão Valente, depois da cena a seguir ao almoço. 
Nosso alferes, você anda a irritar-me! Tenha paciência, faça um esforço, venha de manhã, isto não é um trabalho em part-time! Diga-me lá, o que lhe devo fazer, o que devo fazer para você entrar a horas? 
Eu, se fosse ao meu capitão mandava-me para a metrópole. Se não pudesse, despachava-me para o mato, um Catió qualquer serve. 
Ouça lá, alferes, você quantos anos tem, 24 ou 25, não? A gozar comigo! Ora olhe para mim, tenho idade para ser seu pai! Olhe para mim, porra, está na frente de um casapiano, sabe o que representa isso? Não sabe! 
Olhe, faça as liquidações aos fornecedores amanhã, à hora que lhe der na gana! À hora que lhe der na gana! 

Na manhã seguinte, eram para aí 7 horas quando passou os olhos pela última página do livro, impresso na Tipografia tal na Amadora aos tantos dias do mês tal e tal, a pé antes que se arrependesse, o chuveiro em cima e o companheiro de quarto a protestar com o barulho, que é que te está a dar, pá, que horas são? 
Porta fora, ar fresco, o pequeno-almoço como já não se lembrava, quando acabou estava a oficialada menos jovem a entrar, o Capitão Valente também, os olhos e os óculos arregalados para ele, pareceu-lhe. 
Bom dia, fresco como uma horta acabada de regar, a caminho do edifício do comando da CCS, a prometer um novo horário. 

O motorista não era como alguns guias no mato, conhecia as voltas todas dos fornecedores, começou por o levar à Ultramarina, parou o jeep e não é que quando põe o pé no chão vê a Teresa a bater com o portão, livros e cadernos na mão. 
A farda amarela de terylene dava muito nas vistas, já não deviam chegar a uma dúzia as que ainda andavam pela Guiné toda, há muito que se usavam as fardas verdes, dos periquitos como lhe chamavam agora. 
Para a frente, a outro fornecedor. Deu a volta até ao último, à Casa Gouveia, entrou, o empregado recebeu, recibos no envelope, porta fora, o empregado cabo-verdiano a chamá-lo, um esquecimento qualquer, a devolução do envelope, um minuto, outro envelope, a pasta de mão a ficar gorda de recibos, este envelope está mais grosso, recibos atrasados, deve ser, deixa arranjar melhor, abriu-o, um maço de notas de 50 pesos. 
Ó senhor, há aqui um equívoco qualquer, não me mandaram receber, só pagar, deve ser engano, outra vez para dentro, uns minutos largos, as caras deles a olhar uns para os outros, um mais graduado a vir ter com ele, nada de especial, senhor alferes, apenas o costume para pequenos arranjos na cantina das praças, o senhor capitão tem conhecimento. Ficaram a olhar um para o outro e para o envelope. Decidiu-se pelos bons-dias, embora para a CCS. 

Esbarrou à entrada com um Capitão Valente diferente, sorridente, então que tal? 
Tem aqui os recibos, meu capitão. 
Deixe isso para depois, junte ao relatório do final do mês. 
Meu capitão, tome conta desta papelada toda, tem para aqui recibos que não são da minha gerência. 
No final da tarde, viu o capitão entrar-lhe pelo gabinete, com explicações sobre procedimentos a seguir, outros costumes também que ainda não conhecia, os recibos que vinham dentro dos envelopes, afinal, traziam todos acompanhamento, uma deferência para com a CCS, arranjos na cantina e tal. Boa tarde, meu capitão. 
Uns dias depois alguém conhecido dele, ouvira o Capitão Valente, na roda dos compagnons, explicar como se metia na ordem um gajo rebelde às horas do regulamento. 

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3 - Um mês e meio para o fim 

"A partir de hoje faltam-me 41 dias para o fim da comissão. Nunca mais volto cá, nem depois do Cabral se sentar no Palácio. Vou sem saudades desta terra. 
As veleidades de lutar pela Pátria aqui na Guiné ficam cá, deixei de acreditar. E aqui no QG, muito poucos têm coragem de defender a manutenção da guerra, a defesa disto está a limitar-se, é o que se ouve por todo o lado, à contagem dos dias que faltam para se irem embora. Apenas alguns oficiais, superiores sobretudo, fazem o seu papel, insistem na justiça da luta, mas quase ninguém lhes dá ouvidos. Junto deles, alguns dizem que sim como podiam dizer que sim a qualquer outra coisa, quando os vêem de costas mandam-nos à outra parte. E os que chegam, as primeiras coisas que querem saber é como se pode arranjar colocação no QG. Ainda agora chegou e já está a fazer perguntas dessas? Quem é quem, a ver se os papás, familiares ou amigos dão com a chave que lhes abra a porta para passarem o tempo nos corredores do ar condicionado".

Tinham chegado da metrópole há dias, as caras não enganavam. Camaradas da escola militar, todos tenentes, faziam parte da primeira fornada de subalternos que marchavam para o ultramar, um ano como adjuntos dos comandantes de companhia no mato, para depois regressarem à metrópole, formarem companhias e partirem para Angola, Moçambique e Guiné. Era uma boa ideia, parabéns a quem a teve. 
Encontrou-os, cinco à volta de uma mesa na messe do QG, abriram espaço para mais um, os milicianos a passarem pela mesa a olharem para as caras que os recém-chegados costumam trazer. 
Falaram da vida deles, por onde tinham andado, o que tinham feito, queriam saber coisas, como estava a evoluir a situação militar, um a perguntar-lhe pela ilha do Como, é um tal Nino não é? 
Vocês querem mesmo saber a minha opinião? Esta é uma guerra quase só de milicianos. Não só alferes e furriéis, também cabos e soldados apanhados à mão, com a ajuda dos padres, dos tipos das juntas de freguesia, dos regedores, vai-se arrastando, mas é uma questão de tempo, meia dúzia de anos talvez, não muitos mais. Muitos mortos e estropiados depois, o PAIGC vai-se deitar nas camas onde agora dormimos. Sei que é uma chatice, que talvez preferissem ouvir outras coisas, mas é o que vos posso dizer. E desejar-vos sorte! 
As caras deles, vermelhas do calor, sem troco, a olharem uns para os outros. 
Dias depois deixaram de ser vistos na messe. 


Quase todos os finais de tarde passava pela piscina, depois descia até à cidade, passava pelo quiosque do Bento, mexia nos livros, à procura de novidades, levava um ou outro, mais ao seu gosto, As Vinhas da Ira num dia, O Inverno do Nosso Descontentamento dias depois. 
Na esplanada já encontrava poucas caras conhecidas, via muitos militares, mas quase todos com aspecto de recém-chegados, caras vermelhas, a escorrerem suor, à volta de mesas cheias de copos e garrafas de cerveja. 
Ao Hotel Portugal deixara de ir, outros deveriam ter tomado conta daquelas mesas, quando ocasionalmente por lá passava também só via caras novas. 

Num daqueles dias, ao fim da tarde, dirigiu-se para o quarto, cheio de boas intenções, vestir o fato de banho e ir até à piscina. 
Quando abriu a porta viu o Manaças a sair do quarto de banho e um enorme cheiro a desinfectante. 
Ó Manaças, andas a tomar banho em Old Spice? 
Não é Old Spice, é Tabac, é para disfarçar o DDT que tem um cheiro do caraças!  
DDT? Aqui dentro? Eu julgava que o pessoal da desinfestação andava a matar os mosquitos lá fora. DDT para quê? Uma camada de chatos, desde quando? Então e onde? Há quanto tempo andas com isso? Uma semana? É pá vamos mas é ao hospital, eles têm um líquido que tira isso tudo. 
Tu vais mas é agora ao médico, ao hospital militar. 
Porta fora, directo à messe, o Capitão Valente na mesa do costume, os compagnons à volta, ó nosso alferes, ainda bem que apareceu, preciso de falar consigo, no fim de jantar, estou ali pelo bar, apareça.

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4 - Um Folgado no QG 

Chegou-me um alferes da metrópole, da Administração Militar, vem destinado à companhia, é de uma família minha conhecida de há muitos anos. Vem-me mesmo a calhar, e para si também, que está morto por deixar a gerência das cantinas. Vou entregar-lhe a responsabilidade desse serviço. 
Você já teve a sua conta, tem sido um tipo leal, e eu aprecio muito isso, pode crer, tirando aqueles problemas que tivemos no início. Resolvemos bem o assunto, olhe que eu já o dava perdido. Vou deixar o filho da mãe para aí a comer relva, até ganhar flor! Mas sabe como é, não me canso de dizer, casapiano uma vez, casapiano para toda a vida. Eu tenho muita roda, sabe? Olhe, falta-lhe quê, para aí um mês, um mês e meio? Claro que vai ter que fazer, apareça por lá, todos os dias, dê uma ajuda na papelada, umas assinaturas e tal. 
Amanhã convinha que estivesse no edifício do comando aí pelas nove horas para as apresentações, a seguir leva-o ao pessoal das cantinas, vai-lhe passando a escrita, deixe tudo em ordem, ok?

O alferes miliciano da Administração Militar já tinha chegado. Só podia ser aquele militar que estava à porta do barraco do Capitão Valente, o tal edifício do comando. Caqui muito verde, óculos escuros graduados na pele muito branca. 
Mais um de óculos escuros logo pela manhã! 
Então o nosso capitão ainda não chegou, a mão estendida para o ilustre administrativo.
Chama-se Folgado?1 O nome é bom. Está a gostar de Bissau? Nem por isso? Olhe que esta terra tem muitos encantos, os olhos também ajudam. Mas se anda à procura de paisagens encontra-as, bem lindas, fora de Bissau, no mato.
As merdas que tinha ouvido dos outros já estavam entranhadas. Desculpe, Folgado, com estas coisas não se brinca, esqueça.
Passara o dia todo com o alferes, economista recém-licenciado, casado logo a seguir com uma colega, papeis passados à máquina pelo 314, para um e para o outro, assinaturas dos dois, a do capitão por baixo, gerência passada, trespassada, tudo.
Pronto, é tudo, Folgado, felicidades, que a vida lhe corra bem por aqui.

O companheiro de quarto fora ao hospital, foi atendido por um médico de quem nem o nome fixou, mostrou-lhe as partes baixas, milhões de bichinhos, o doutor de óculos e lupa, de longe, mas são chatos, senhor alferes, são chatos mesmo, estes já nasceram com DDT, quanto mais DDT lhes der mais os gajos engordam, ó nosso sargento prepare aí um frasco daquele líquido para os ácaros aqui do nosso alferes, pode subir as calças, o alferes todo envergonhado, nunca se vira em tal achado. Ficou à espera que lho preparassem o líquido, feito de propósito segundo as regras da farmacopeia militar guineense, habituada também a este tipo de ataques. 
É puro, meu alferes, o frasco vai um pouco mais de meio, enche com água, agita bem, para cima e para baixo, deixa assentar a espuma, toma banho primeiro, seca-se com uma toalha, toalha para dentro de um alguidar, não se esqueça. 
Se não quiser queimar a sua roupa, mergulhe-a em água, lençóis, toalha, toda a roupa em que em tocado, com uma boa quantidade deste líquido e deixe-a num tanque ou em alguidares uns dias. O meu alferes toma banho, deixa-se secar, depois passa o líquido diluído em água por toda a zona genital, atrás também, orifícios não, claro, pelas pernas abaixo, deixe-se estar uns dez minutos, vai sentir um ardorzinho, depois banho outra vez, deixe-se estar outros dez minutos com água por todo o lado, fique a secar, eram uma vez esses chatos, vai ver, o alferes a perder o seguimento, cheio de comichões e já sem paciência para tanta minúcia, sim, sim, claro, nosso sargento, é o que vou fazer. 

É pá, estou à rasca, olha para isto, arde-me isto tudo, olha como está a pele, até os pelos caíram todos. Passei a merda do líquido, se calhar mais concentrado que devia, não enchi o frasco de água até acima para ver se fazia mais efeito. 
Mete-te no chuveiro, água a correr, entra pá, lingrinhas, quem te disse que um matemático tem que ser um bom enfermeiro? 
É pá, a água ainda me faz arder mais! 
Quem te mandou sair da água, não é nada de grave, tem calma, levanta-te, vamos ao hospital. O Manaças tremia todo, quase tanto como o Fiat Necker a descer Santa Luzia abaixo, Associação, Palácio, estrada para Brá, a chiar como nunca, agora até esta chocolateira a ganir nas curvas, rectas e tudo, uma grande travagem, o carro virado ao contrário, que classe, a porta do camarada a dar para as escadas do hospital, só faltaram palmas, poeirada e olhos não. 


Meia hora depois o Manaças desceu as escadas com um ar já mais aliviado e entrou no carro. 
Então, estás melhor ou não? Cheiras a pomada! Queres que te leve ao quarto? Eu vou ficar por aqui, como qualquer coisa no Império, uma sandes de queijo, pãozinho acabado de sair do forno, com uma cerveja em cima. Queres vir? 
Manaças, quanto tempo te falta para acabares a comissão, dezasseis meses ainda? Estás a fazer o teu pé-de-meia para quando chegares à metrópole comprares uma bruta máquina, não? Para o teu curso primeiro, a máquina fica para depois. E então, ora conta lá, os alunos das tuas explicações portam-se bem, aprendem com facilidade? 
Interessados, atentos, bom comportamento, vontade de aprender, não estão ali para brincar, é como quisessem aproveitar um tempo que nunca tiveram. 
Não, não é o caso de serem explicações, de terem que pagar, tenho até dois alunos a quem nem estou a levar nada. Vi que não era fácil eles pagarem, disse-lhes para pagarem quando pudessem. 
Não, não me apercebo de animosidade contra nós, não lhes vejo ódio, sinto-os até amigáveis, há qualquer coisa entre mim e eles, talvez um espaço que ainda não consegui estreitar. Nunca abordei o assunto da guerra com eles, mas penso que não lhes será difícil perceber o que penso. 
Falaram do ambiente da metrópole e muito de Coimbra. Manaças, o companheiro de quarto, tinha vindo de férias há dois meses, estava a juntar dinheiro para ir outra vez, queria ir para a Figueira entre Julho e Agosto, passar as férias ao sol e ao vento, com a namorada, colega dele em Coimbra. 
Gostas dela? 
Nem me fales! 
E não tiveste vergonha de andar para aí a apanhar chatos? 
É pá, não me fales mais nisso, até me sinto fraco! 
Pois deves estar, falta-te peso, milhões de chatos a menos, para aí um quilo, não? 
Sei lá, a gaja meteu-me a camada que viste e deu-me de brinde um escarepe, já viste? 
A brincarem um com o outro, acabaram a rir-se, duas sandes no meio de outras tantas cervejas. 
Sabes como é, desde que vim de férias, sem ver o padeiro, as bajudas que vão aos quartos de Santa Luzia buscar a roupa para lavar, todo o bicho careta se mete com elas, ganharam tanta ou mais resistência que os meus chatos, dali nunca levei nada. 
Uma noite da semana passada, fui até ao Hotel Portugal, estive lá a beber umas cervejas, meti-me num táxi, é pá nunca na tua vida contes isto a alguém, ouviste? 
Disse ao taxista que me apetecia dar uma volta para espairecer, o gajo meteu pelo Cupilão, quase ninguém àquela hora naquelas vielas, até tive receio, veio-me à cabeça aquela história que se conta dos dois gajos que apareceram com as gargantas cortadas, o taxista saiu, voltou passado um bocado, disse-me que eram 20 pesos2, que ela estava à minha espera.
Entrei um pouco desconfiado, olha pá, esqueci-me de tudo quando a vi na cama, de pernas dobradas, de barriga para cima, só com uma camisa de noite curtinha, nunca tinha visto tanto. Tinha ao lado dela na cama um bebé e no chão de terra andavam galinhas e um porco a passear, vê lá tu!
Chatos, escarepe de brinde, galinhas e porcos na assistência, 20 pesos para o taxista. Misérias, Manaças, confissão amanhã na Sé!
Volta à praça, o Palácio do Governador Schulz com as luzes apagadas, direcção ao QG. 
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Notas: 
1 - Nome fictício 
2 - Equivalente a 20$00 (vinte escudos) da Metrópole 

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5 - Vat 69 

Os Homens de guerra de F. Ponthier, de Estalinegrado às terras da Argélia e de Marrocos, o reencontro de dois homens de armas na mão, 35 pesos. Uma agulha no Palheiro do J. Salinger, um jovem burguês expulso de casa a vagabundear por N.Y., drama da juventude, 35 pesos. A Morte do Cavalinho do Bazin, o duelo entre a mãe e o filho pequeno, uma perseguição implacável, a triste conclusão dessa luta, uma recordação da Teresa. O Escândalo Profumo, de três jornalistas, 40 pesos. A Sentença, de M. Gregor, a história da violação de uma jovem de 16 anos por um grupo de soldados americanos, numa cidade alemã ocupada. Chegar é já em si bastante, de José da Câmara Leme, uma série de contos que interligados são histórias de meia dúzia de homens de guerra, mercenários da Legião Estrangeira, passadas na guerra da Argélia, 35 pesos. Uns atrás dos outros, marchava tudo, a boa média a manter-se. 
Começava normalmente pela uma ou duas, os dois comparsas a assobiarem de olhos fechados, o Manaças de papo para o ar, a boca escancarada, é por causa deste corneto, dizia ele. Por aí fora, até às 6 ou 7, o corpo sem posição, braços dormentes, livro no chão, acordava logo, com os barulhos, não podia ficar, metia-se no chuveiro, meio esquisito a sair para o dia alto a caminho da CCS do Capitão Valente. 
À saída da messe encontrou o Manaças com os dois companheiros, então, queres vir dar uma volta, anda daí, meteram-se no carro, janelas abertas, a descer devagar a avenida até à cidade, e de repente todos à gargalhada com a história das aventuras no Cupilon de uma figura militar importante do QG. Uma história descoberta na cama de uma menina, a satisfazer também as necessidades de um camarada mais falador. 
Vamos comer um gelado, o mais periquito e mais calado também para os outros. 
Mesmo bons, é uma casa nova de uma senhora cabo-verdiana, abriu há pouco tempo. 
Este gajo ainda agora chegou e já conhece mais que ele, vai longe! Para onde? 
Benfica, por aí, uma rua para cima, umas escadinhas até à vivenda, uma varanda aberta para a rua, três ou quatro mesas, cadeiras à volta, muita frequência. 
Uma taça de gelado para cada, copo de água a acompanhar, olhos para a rua, uma sirene de ambulância ao longe, um dente a doer-lhe logo à primeira colher, uma dor fininha, que chatice, julgava que isto já estava sossegado, eles a quererem conversa, a mão na cara sem saber para quê, é um dente, não? 
A dor parecia que ia embora, ouvia o que estavam a dizer, colher na boca a medo, aí vinha ela outra vez, mão na bochecha para quê? 
Não posso mais, tenho que me ir embora! Espera um pouco, vamos todos. 

O livro a meio, a dor fininha, intermitente passou a corrente contínua, a latejar, parecia que o sacana do dente queria sair da boca, como se também já tivesse cumprido a comissão. Desvairado no quarto de banho a bochechar com uísque. 
Vodka é melhor, não tens aí vodka, pergunta o Manaças. Vat 69 de serviço, boca abaixo pela garrafa, calor no estômago, na cabeça, parece que isto agora vai. Qual vai, qual carapuça, cama fora, desaustinado, camisa e calças num rápido, sapatos sem cordas nem nada, porta fora, onde vais, pá? 
Meteu-se no VW, se a porta de armas não se abre tão depressa, ia o pau e o militar de sentinela, a acelerar pela avenida de Santa Luzia abaixo, não dava mais o desgraçado, nem chiava nem nada, a lembrança do fim da comissão, que se lixe! Nunca ninguém tinha tido uma dor como esta, a boca, cabeça, tudo a latejar. Farmácia perto da Amura, junto à Ultramarina. Olhe saiu agora isto, Optalidon, é uma coisa nova, leve este tubo. 
Quantos tem, doze, acha que dá? 
Vai dar e sobrar, amigo, tome um agora, se não abrandar, tome outro daqui a 4 horas. 
Tem aí água? Foram logo dois pela boca abaixo, carro outra vez, uma festa numa vivenda e eu aqui com esta dor de dentes. 
A festa dos dentes é que não havia maneira de acabar, isto agora vai começar a abrandar, mais devagar pela avenida acima, o sentinela ao encontro, pau da porta de armas a levantar-se, a chave de mansinho na porta, também não valia a pena, ressonavam como uns porcos. A dor é que nada, só se fosse maior. 
Depois desapareceu, adormeceu. Quando acordou, não havia grandes alterações, os dentes doíam menos, mas doíam, sentia-se era um bocado estranho. Sabes que horas são, pá? Cinco, da tarde!

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Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 12 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

1. Parte XXI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXI

1 - Grande Hotel 

Parece que lançaram mau-olhado em Mansoa, os tipos andam danados, o Ten-Coronel Lemos. 
Um olhar de simpatia para o comandante do Batalhão sentado no seu cadeirão com o outro coronel ao lado, o do ah, hum…. O velho Lemos, velho só porque tinha para aí o dobro da idade dele, que ainda era muito novo para outras, sabia há muito que a coisa só tendia para piorar, vinha nos livros das escolas militares, devia até ter ouvido camaradas que estiveram na Argélia, estava agora ali, no palco de Mansoa, na Guiné que lhe saíra na roleta no último terço da carreira. Só para piorar, isto não está a ter a saída que julgávamos vir a ter, e muito menos, a que queríamos. 
O PAIGC está mais atrevido, anda por aí, está cá dentro, parte mantenhas a toda a hora connosco, atreve-se a fazer coisas que antes só pensavam, estamos um pouco parados, se calhar. 
Uma simpatia, este Tenente-Coronel, o olhar para a chuva a cair, o outro coronel ao lado, o alferes a apetecer dizer-lhe mas a guardar para si, meu Tenente-Coronel, com todo o respeito, como diz o outro, é como na Figueira, nunca mais chegamos à água e quando lá chegamos já estamos cansados, temos é vontade de nos sentarmos.

Desandara para Bissau matar saudades. Uma volta pelos sítios conhecidos e ao princípio da noite entrou no restaurante do Grande Hotel, uma grande merda, porque de grande só se fosse nisso. Era como aquelas senhoras já de uma certa idade que ainda arriscavam uma racha quase até meio das coxas, meia de seda preta com costura por ali abaixo, o cabelo louro bem arranjado, a escorrer costas abaixo.

Foto do Grande Hotel de Bissau. Imagem da net. 

Pois o Grande Hotel era frequentado por algumas dessas senhoras, quase todas mulheres de oficiais superiores espalhados por tudo quanto eram gabinetes e de militares de outras patentes que não se sabia bem por onde andavam. 
Dos senhores frequentadores, o custo da presença impunha que fossem os maiores da terra, os maridos das senhoras e alguns civis brancos, muito poucos, cabo-verdianos ainda menos, os negros serviam às mesas. 
Era assim, com tão dignas presenças, o ponto de encontro mais selecto de Bissau, o local para levar lá alguém mais importante ou comemorar alguma data especial. Há uns bons tempos o Capitão Leandro tinha-o encarregado de levar ao Grande Hotel um jornalista, Amândio César1 de nome, que lhes tinha feito uma visita a Brá, tendo jantado com todo o pessoal da Companhia de Comandos. Amândio César era um conhecido e, para alguns, controverso jornalista com tendência e gosto pela escrita entusiasta. Tão apreciado era que alguma personalidade com influência, não certamente pequena, quisera aproveitar-lhe o jeito e convidara-o a passar para um livro a informação que a sua curiosidade e argúcia recolhesse nos bares dos Grandes Hotéis de Luanda, Bissau e Lourenço Marques. 
Tinha lido, na altura em que estava a frequentar o curso de comandos, um livro que o Capitão Saraiva lhe emprestara, “Guiné 1965: Contra Ataque”, da autoria do mencionado escritor. Livro excitante, com descrição pormenorizada e arredondada de feitos, em que o conceituado escriba relatava acções militares com tamanho empenho e minúcia que, a alguns e ao alferes também, levantaram dúvidas, que tratou de as tirar junto de alguns que estiveram nesses combates e que ainda se encontravam em Brá. 
Verificou com desgosto, diga-se, que essas testemunhas não tinham tido olhos para tão agudos detalhes. 
E quando no Grande Hotel, no intervalo de uma golada de cerveja, lhe pôs a questão exactamente como atrás se escreve, o escritor-jornalista, óculos de massa preta na testa a escorrer de suor, que o que entrava por algum lado tinha que sair, de pronto lhe retorquiu em linguagem futebolística, o alferes ou está a ver o Eusébio a marcar um livre, ou está a tirar a foto ao livre! Acha que consegue ver tudo ao mesmo tempo? E, no entanto, foi golo! E de seguida despediu-se, alegando ter que preparar uns trabalhos para enviar para Lisboa, pedindo-lhe ainda que renovasse os agradecimentos ao capitão pelo agradável acolhimento que tivera. 
Acontecera há já alguns meses esta peripécia, ainda a Companhia estava em Brá a todo o vapor. 

E agora aí estava outra vez, meses depois do tal jantar com o jornalista. Olhadela pelo salão já praticamente cheio, viu uma mesa para quatro a um canto. Sentou-se. 
A carne do bife? É melhor não? Então o quê, arroz de caril de frango, pode ser. O pão acabado de sair do forno, aos bocadinhos, a manteiga das Marinhas, talvez de meses, o olhar pelos comensais, animados nas conversas com as senhoras das mesas respectivas e a vir-lhe à lembrança o jantar que lá comera com um cabo guineense do seu grupo, há um ano atrás. Um dia destes vamos jantar ao hotel, ao Grande Hotel, ok? 
Ao Grande Hotel? No Grande Hotel nunca se sentou nenhum preto, meu alferes! Então vamos depressa, antes que vá outro antes de ti. Tens andado por todos os buracos, disparaste em tudo o que mexeu, do norte ao sul, em todo o lado, sem pedir licença, porque é que havias de a pedir agora para entrar no Grande Hotel? Vamos amanhã! Leva este Old Spice que está por estrear, põe no fim da barba para te acalmar as borbulhas, e a Couraça com esta escova para os dentes. 

O valente cabo apresentou-se à hora marcada junto ao quarto, em Brá, caqui amarelo que no Grande Hotel a guerra era mais fina, a boina preta a cair para o lado direito, a carapinha a sair-lhe de todo o lado, o lenço de seda negro ao pescoço, um espelho acabado de limpar nas botas, ao ataque para Bissau, Grande Hotel, olhos na estrada, Alegre. 
Quando entraram no salão, a esfregarem os olhos das luzes dos pingentes dos candeeiros, outros olhos, sentados, levantaram-se para eles, para baixaram outra vez para os pratos, a conversarem baixo uns com os outros. O salão estava com muita gente, mais de meio, dois ou três civis e oficiais superiores, à paisana, coronéis, majores, as mulheres, umas com pele nova, outras com muito creme em cima. 
O que o meu alferes comer eu também como, o camarada com os dentes de cima em cima do lábio de baixo, olhos pequenos muito vivos, viam tudo até de noite. Um arroz tem que ser aqui para este senhor, agora o que tem para acompanhar, frango? 
O empregado ajudou-os com as cadeiras, algum aperitivo antes, não, só pão e manteiga. Jantaram tranquilamente, os barulhos das conversas voltaram ao normal. À medida que os comensais iam saindo, reparou que invariavelmente desviavam para a mesa deles olhares pouco aprovadores, pareceu-lhe, mas nada mais que isso e também nada que o incomodasse. 

Agora estava só numa mesa, três lugares vagos que até davam jeito, as pessoas de pé a olhar para ver se demorava muito, estava ainda no início, e a comida não andava, enrolava, água, enrolava com água, o costume nestes últimos tempos. 
Uma senhora loura, vestido vermelho colado ao corpo, um pouco acima dos joelhos, como diziam que se usava agora na metrópole, aberto no peito e nas costas, sapato de tacão bem alto, lábios e unhas a condizer, deu entrada no salão. Senhoras a olharem, homens também, não era exagero nenhum dizer que até as vozes se calaram todas, ao mesmo tempo. 
Olha o alferes aqui, está à nossa espera, podemo-nos sentar, o cCapitão Marques, à civil, dentes a sorrirem. Já não se viam desde os tempos em que ambos frequentavam a esplanada do Hotel Portugal. 
O piano recomeçou a tocar o Danúbio Azul, o alferes para a frente com a cadeira, a senhora loura, com um perfume daqueles que se colam às outras peles, a abanar os cabelos, um dedo a passar pelos lábios, um espelho na mão e o capitão de olho a piscar-lhe e o alferes, de repente, a lembrar-se da história que lhe contaram, passada no aeroporto. Ela, toda loura, acabada de chegar a Bissau, a bambolear-se ao encontro do capitão, os olhos do maralhal todos em cima, os do capitão dentro dos ray-bans voltou-se para um mais entusiasta, gaja boa não? É minha mulher, quer que a apresente?
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Nota
1 - Amândio César Margarido Pires Monteiro, uma personalidade muito ligada ao antigo regime. Entre várias funções que desempenhou, foi ensaísta e crítico literário, dedicando parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, nomeadamente a angolana. Das suas estadias na Guiné publicou "Guiné" e "Em Chão Papel Na Terra da Guiné"

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2 - Água do IN

Falava-se no caso do Mamadú em todas as esquinas de Mansoa, que tinha sido o PAIGC que o mandara nessa missão, que o caso tinha sido um nó que o partido atara ao homem grande da tabanca para a população ver quem tinha os trunfos, que havia um libanês, com um comércio próspero, a vender para os dois lados, que sabia da história toda, que tinha sido um milícia que, por dinheiro que o libanês lhe passara para as mãos, o metera na tabanca. O libanês sempre na berlinda, fulano vira, sicrano também, quem eu, mas quem disse, afinal ninguém sabia, o comerciante ofegante a ficar cada vez mais pálido, ia desmaiando na sala de operações, em frente aos dois coronéis. 
À primeira vista tinha-se a ideia de que a população estava quase toda com a tropa, só com a ideia, claro. Mas a rede de informações das NT, embora incipiente, há já algum tempo dava indicações que as milícias de Mansoa, a grande maioria de etnia balanta, não eram de confiar. 
As informações, mais falsas que verdadeiras, continuavam a chegar a toda a hora ao batalhão. Passou ontem um bi-grupo por Jugudul, em Jugudul já há muito tempo que ninguém vê bandido, outra informação a chegar, reuniões todos os dias, uma agitação contínua. Os movimentos das NT continuavam, as colunas de reabastecimento e os patrulhamentos faziam-se normalmente em todo o sector, embora com os incidentes do costume, minas, emboscadas e flagelamentos, estes especialmente nocturnos, para além da habitual resistência que a guerrilha opunha às investidas das NT. 
É preciso sair, montar emboscadas, fazer nomadizações, qualquer coisa, o Tenente-Coronel ansioso, à espera que houvesse alguém voluntário para fazer tudo de seguida. 
O IN, sem grande esforço, está a fazer uma guerra inteligente, passa informações contraditórias umas atrás das outras, durante uns dias cala-se, nós aqui ansiosos, até agora praticamente tem sido tudo fogo de vista, meu tenente-coronel, um dos elementos do staff do batalhão a querer acalmar o ambiente. 
Fogo de vista para si, que está aqui resguardado, feridos e mortos para os que andam na mata, o tenente-coronel, furioso como nunca o vira, pingalim a estalar em cima da mesa, mapa, papeis, alfinetes, clipes, tudo ao ar, porra, já estou com pouca paciência! 
Mão pela testa, eu sou calmo por natureza, mas esta agitação está a dar cabo de mim, sempre à espera que comecem a cair morteiradas em cima de nós. Alferes, vai sair com o seu grupo. Se há informação? Claro que há, informações não faltam! 

Despejos de água aos baldes em cima deles, relâmpagos, estrondos de bombardeamentos para norte, a lua a jogar ao esconde-esconde, o pessoal ensopado até aos ossos, foram andando até clarear. Pararam para aí meia hora, começaram a pôr-se a pé e ele, o comandante do grupo, não conseguia, não sentia as pernas, frias, as únicas em todo o grupo que não obedeciam à sua ordem de marcha. Mãos a massajar, demorou tempo, lá se levantou com muito esforço, o Valente de Sousa a ajudar, arrancou, bamboleante, por ali fora. Pronto, acabou-se, tens que mudar o filtro, os óleos, olha, aproveita e muda tudo, tudo não, mas quase, a rir-se por dentro, a força a voltar, o frio no corpo a manter-se. 
Andaram, como se fosse um treino, para desentorpecer os músculos, os trilhos cheios de água, não se via nada, o Tenente-Coronel Lemos feito Águia no ar, montado no PCV, novidades? 
Águia, guias dizem que caminho não tem sinais recentes, mata ao lado também não, é água por todo o lado, nos trilhos, fora deles, por todo o lado água, água do IN. 
Ok, Diabo Maior, entendido, mostramos-lhes que vamos aonde queremos e quando queremos, retirem, ok, ok, Águia, afirmativo, terminado. Não podia andar mais, nem com a imaginação a trabalhar. Até a cabeça não queria andar mais. 

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3 - E agora para onde?

Em Mansoa desde princípios de Julho, com Setembro a entrar estava terminado o período de tempo de reforço ao Comando de Agrupamento de Mansoa, chefiado pelo tal coronel alto, de cabelos brancos, ar calmo. E a colaborar com o Batalhão comandado pelo Tenente-Coronel Ferreira de Lemos.


Os tempos em Mansoa, naquele final de 66, mantinham-se agitados. Muita informação, a ansiedade entre os militares andava à solta. E aumentava com a aproximação da noite, quando se tinha de proceder à rendição das secções na segurança à povoação. 


Furriel V. Sousa, 1.º Cabo Faria e 2.º Sargento Cordeiro (joelhos)
 

No grupo de comandos, de vez em quando, lá ia mais um, comissão terminada. Já não passavam da dúzia e meia de homens. E foi com esta dúzia e meia que regressou da área de Jugudul, por onde, diziam as fontes, andava o tal bigrupo da guerrilha. O regresso dessa acção, como toda a operação, aliás, feita debaixo de muita água, foi-lhe fisicamente muito difícil. Quando disse para a parelha da frente começar a andar, quando todos obedeceram e as pernas dele é que não, nessa altura concluiu que a comissão, como operacional, estava no fim. A crise de paludismo tinha-o deixado de rastos. 

Dias depois, o Tenente-Coronel Lemos chamou-o. Que tinha recebido uma mensagem do Comandante Militar a ordenar que se apresentasse no QG, no seu gabinete em dia e hora que indicou. 

No dia marcado, no QG em Bissau, dirigiu-se ao gabinete do Comandante Militar, Brigadeiro Reymão Nogueira, que já o conhecia bem de razões que não vêm agora ao caso. 
Mal o mandou entrar, talvez para aquecer a conversa, fez-lhe duas ou três perguntas sobre a situação em Mansoa. A seguir ouviu-o dizer que iria dar por finda a missão do grupo de comandos e que devia apresentar-se, dois dias depois, na 1.ª Rep. do QG, onde lhe seria comunicado o destino do pessoal. E para ele, alferes, dado o escasso tempo para dar a comissão por finda, talvez não fosse má ideia ficar adstrito à CCS do QG. 

No decorrer da conversa, sem perceber a que propósito, entraram cavalos no discurso do Comandante Militar. Que era oriundo de Cavalaria e que lidar com homens não era muito diferente de lidar com cavalos. Foi assim, de forma algo equídea que estava a sair da cena operacional.

Não acho que a história dos cavalos se me aplique, não me parece que seja uma questão a resolver com um molho de palha e torrões de açúcar, nem com 15 dias de licença nas praias de Bubaque, não que me fizesse mal, é mais vasto, não é só físico, é também um cansaço muito grande cá dentro!

Assim, a falar para dentro. Para fora saiu-lhe o que queria dizer. Que, para ele, não era muito importante o local onde iria ser colocado, importante, para ele, era regressar à metrópole, logo que acabasse os 24 meses de comissão.

E agora para onde? Para qualquer lado, Alegre, para Brá não, já não somos de Brá. A esplanada do Bento, àquela hora com pouco movimento, os dois sentados, uma cerveja para cada um, um miúdo a cuspir-lhe nas botas, a puxar o lustro, a pirueta da escova ao ar, o ar triunfante do garoto com ela na mão, a puxar o lustro outra vez, outros miúdos ao lado, nosso alfero, mancarra quer? 
E agora, se nos puséssemos a caminho de Mansoa? Subiram até à Sé, porque vais por aí Alegre? Não queria olhar, mas olhou para aquela casa, o portão, as escadas, a porta fechada, as janelas também, ninguém no jardim, tudo arrumado como se tivessem ido para férias.

Em Mansoa, prepararam-se para sair. Arrumar sacos, armas, tudo, a seguir ao pequeno-almoço, formatura do grupo frente ao Comando do Batalhão, para as despedidas aos Comandantes do Agrupamento e do Batalhão. 
Uma cerimónia simples para um grupo tão pequeno, o tenente-coronel a passar revista, a parar em frente de um, tu donde és, quanto tempo te falta. E depois de algumas palavras, o grupo a desfilar frente aos dois coronéis, em direcção às viaturas, alinhadas para Bissau. 
Óleos, Alegre, óleos? Então, força com essa chocolateira. 


Quando passaram a ponte, voltou-se, viu Mansoa a afastar-se, a ficar para trás. Depois dos cinco meses em Cuntima, 16 nos Comandos, já nem se lembrava de quantas operações, só contou de início, quase tudo golpes de mão, algumas emboscadas e nomadizações, um sem número de contactos com o, quase sempre, competente IN, um morto, o Soldado António Silva, 9 feridos sem gravidade, nem numa emboscada caíram. Há infernos piores, mas no meio deste era difícil ter tido melhor sorte. 

Uma das últimas operações, em Buba, 'Olinda' de código, de grande importância estratégica, segundo rezava a ordem de operações, quando se ia para lá era de escacha-pessegueiro, o grupo a entrar-lhes pela porta dentro, outra vez sem ninguém dar por eles, nem convidados nem nada, não os quiseram receber a bem, o carago a quatro, para não dizer pior. 
A guerra, já que tivera de ser, fora feita, assim. E parabéns ao IN e um sentimento de respeito também, que para os combatentes as guerras são sempre justas. E cansaço, muito cansaço!

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4 - CCS, QG2

Entre, entre, o Capitão Valente, a caminho dos 60, valente no físico pelo menos, para aí 90 quilos. Sentado, óculos na ponta, montes de papelada, Parker 51 na mão, entre, que está aí a fazer à porta? 
Alguns dos seus homens ficam à sua responsabilidade directa, vão prestar serviços aqui no que se entender, dos restantes tem que tratar na 1.ª Repartição, disseram-lhe lá, não foi? 
O nosso alferes fica como meu adjunto no comando da Companhia e acumula com a responsabilidade da cantina, ok? 
Meu capitão, não tenho qualquer experiência na gestão de messes nem de cantinas, nem sequer simpatia pela actividade, e agora, encrencas é que não me dão jeito nenhum. 
Bem, para já, aqui quem manda fazer o serviço é o Capitão Valente, que é este senhor que está a falar consigo, sentado nesta cadeira. E falta de experiência até pode ser bom, nosso alferes. Com a sua idade, que experiência é que tem, ora diga lá? Aqui na CCS do QG, faz-se o que é preciso, com os militares que cá temos. Experiência, experiência! Temos que a ganhar alguma vez, olhe, gajos com experiência em messes e cantinas, aqui são aos pontapés, um alferes que esteve aqui ganhou tanta experiência que em meia dúzia de meses já sabia mais que eu, tive que o mandar fazer uma viagem, a experiência que ganhou aqui nas cantinas deve estar a ser-lhe muito útil agora. 
Fecho de contas diárias, existências e movimentos dos géneros, entradas e saídas ao mês, relatórios de fecho até ao 5.º dia útil do mês seguinte, contactos com os fornecedores mais pequenos, os maiores ficam à minha responsabilidade, entendido? 
A olhar para o grande Capitão Valente, se calhar Mansoa seria melhor, amanhã a que horas, meu capitão? 
Às horas do regimento, porquê, não lhe dá jeito? 
Então, com a sua licença, meu capitão, até amanhã. 
Assistiu ao desembarque do grupo, à escolha das camas, as parelhas a manterem-se, a arrumação dos materiais, o habitual nestas andanças. Alegre, dá cá as chaves do jeep. Entrou pelo bairro residencial do QG, onde fica a casa do Alferes Neves3, aquela ali, junto à piscina?

Com licença, posso? Viva, um tipo que nunca tinha visto, de Minolta na mão, deitado na cama. Manaças4 da 4.ª, tudo o que seja transportes aqui na Guiné tem que passar por mim! Disseram-me ontem que eras tu o novo morador! Conheço-te por causa dos jeeps, isso é que foi bater recordes, tanto jeep gripado em tão pouco tempo, e o Major Gama como uma barata, todo lixado! É pá, tiveste sorte, aqui é tudo malta fixe! Onde ficas? No quarto lá de dentro tens duas camas vagas, escolhe uma.


Um conjunto de vivendas térreas, todas pequenas, dispostas em roda, de frente para a messe, a piscina logo ali, meia dúzia de passos abaixo. A vivenda que lhe tinha sido destinada tinha uma única porta, à entrada um quarto grande, duas camas, uma de cada lado, encostadas às paredes, um armário em frente, uma aparelhagem Akai, de um deles, com gravador de bobines. Depois, um pequeno corredor, armários nas paredes dos dois lados, o quarto de banho em frente, à esquerda outro quarto, duas camas, como no da entrada, encostadas às paredes, um luxo. 

Escolhe a cama, o amigável Manaças. 

Agora, a minha nova morada é aqui, até ao fim, os olhos a passarem pela estante-armário vazia, os tapetes de fio indígena no chão, a mesinha de cabeceira com um candeeiro, as paredes a cheirar a tinta fresca, tudo muito melhor do que esperava. Abriu o saco verde de lona, virou-o para baixo, sacudiu-o em cima de uma das camas, duas camisas de manga curta, dois pares de calças à civil, as meias da guerra, as poucas coisas que tinha, ora vamos arrumar esta tarecada toda, dez minutos, tudo nos sítios, o espaço nas prateleiras da estante iria enchê-lo com os livros que trazia no caixote. 
O outro saco, as botas para fora, o par de sapatos para civil e militar, os dois camuflados, o que restava arrumou tudo em pouco tempo.

(Continua)
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Notas:
2 - Companhia de Comando e Serviços do Quartel General, em Santa Luzia, Bissau
3 - Nome fictício
4 - Nome fictício
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Nota do editor

Últimos 10 postes da série de:

20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

27 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo
e
5 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

1. Parte XX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 5 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XX

1 - Hospital Militar 241 

Foi acordando à medida que tomava consciência do que se passava naquele quarto e do local onde estava. 
Lembrava-se vagamente do que se tinha passado, de querer dizer que não era preciso, mas não conseguia falar, só ouvia vozes, o médico do batalhão de Mansoa a dizer que o iam levar, o Furriel Valente de Sousa a dizer que talvez não fosse necessário e a voz do Tenente-Coronel Lemos a dizer que o médico é que sabia. A seguir, deve ter adormecido, a ideia de ir numa maca, de o terem metido numa cama, de acordar encharcado em suor, de mudança de lençóis, de tiritar de frio, mas nem tinha a certeza de que tivesse sido assim, que é que interessava também agora! 
Passou o dia agitado, inquieto. Barulhos de motores, vozes altas no corredor. Dormia, acordava com as vozes e os motores, adormecia outra vez, motores e vozes de novo acordavam-no. De vez em quando, um enfermeiro perguntava-lhe qualquer coisa, enquanto lhe dava uma injecção ou mexia num frasco dependurado ao lado da cama. 

Bissau, Hospital Militar. Imagem da net. 

Dois companheiros no quarto, um capitão e um alferes. O capitão apanhou com estilhaços de uma granada de morteiro no braço esquerdo, já tinha sido operado duas vezes e ouviu-o dizer que ia ser evacuado para a metrópole. O alferes tinha pisado uma mina, amputaram-lhe uma perna acima do joelho e cortaram-lhe mais qualquer coisa, segundo depreendeu da conversa entre o enfermeiro e o capitão. 

Está muito melhor, o sargento enfermeiro virado para ele. Sem febre desde ontem. Agora é comer e beber uns uísques. Se tivesse bebido alguns talvez não tivesse apanhado paludismo. Para ele, não deve ter sido por falta de uísque, foi a picada do mosquito e o Dar-a-Prim1 que já não tomava desde que saíra de Cuntima.
O médico não tinha vindo de manhã, apareceu para fazer a visita a seguir ao almoço com o sargento enfermeiro atrás. 
Entrou por ali dentro bem-disposto. Olhou-o de relance, trocou algumas palavras com o enfermeiro, perguntou-lhe se já se tinha posto a pé. Claro, como é que havia de ir aos lavabos? Acha que pode ter alta hoje? 
Parabéns senhor capitão, isto está a evoluir muito melhor do que pensávamos, talvez já nem seja necessário evacuá-lo, não sei, amanhã vamos tirar-lhe umas radiografias e depois tomamos a decisão. 
Veja lá, doutor, eu tenho que ficar completamente bom. Em Lisboa há outros recursos, é melhor tratarem da minha evacuação. Não estou a duvidar da competência do doutor, claro, mas em Lisboa há outras possibilidades. 
Vamos ver, amanhã vamos radiografar esse braço e depois decidimos. 
E depois, para o alferes da ponta, então, este artista tem cantado muito? 
O alferes não lhe respondeu, mantinha-se com um ar ausente, não estava ali. E o major médico a insistir, então, gastou o gás todo a noite passada, não? O alferes tinha passado uma noite como as anteriores, uma noite muito má. As luzes estiveram quase toda a noite acesas, duas ou três vezes, que tenha dado por isso, entrou gente lá dentro, para o picarem, sem perguntarem nada ao desgraçado. 
E, de repente, falou. Você é médico ou palhaço, o alferes desalmado, ouça lá, seu cabrão, se acha que tem graça vá trabalhar para o circo! 
O coitado do médico, a cara desconsolada como se tivesse levado com um balde de chichi velho pela cabeça abaixo, o artista da ponta cheio de gás outra vez, filho da puta, nós no mato a dar os braços, as pernas, o coiro todo e este palhaço a vir para aqui gozar com a malta. Respeitinho, seu cabrão! 
O médico virou costas, a murmurar qualquer coisa que ninguém ouviu. 

Ao olhar para a janela, deu-lhe a vontade de sair porta fora. Pôs o pé no chão, a cabeça rodou-lhe lá dentro, frio pelo corpo abaixo, manchas esbranquiçadas a subirem pelas paredes, a cabeça outra vez na almofada, o coração disparado, suor a correr. O vizinho do lado, não se sente bem? 
Enfermeiro à beira da cama, mão na testa, deixe-se estar quieto, deve ser tensão. Alguém lhe meteu um termómetro enquanto o sargento lhe via as tensões. É, estão baixas. Umas punhetas de bacalhau agora é que lhe faziam bem, levantam-lhe tudo. 
Por volta das 6, hora de jantar, entraram carrinhos a deitarem fumo pelos pratos. O da cama da ponta não conseguia, aos arrancos, aguadilha a escorrer-lhe da boca, engasgava-se, tossia-se todo. 
Quando chegou a sua vez, empurrou o carrinho do prato para o lado, uma massa com carne picada no meio, tudo muito branco. 
E a minha punheta? Quê, a jovem guineense, solas brancas dos pés maiores que ela. 

Sentou-se a desenrolar o pacote de cartas que o Valente de Sousa lhe tinha trazido de Mansoa. Separou-as, as dos pais para cima da cama que os bons conselhos têm tempo, as outras em cima dos joelhos. Abriu-as, ordenou-as por datas, como de costume, o perfume dela a entrar-lhe pelo nariz afinado. 
A olhar pela janela fora, não a via, mas desenhava-lhe as bochechas redondas na cara, os gestos dela, o andar alegre, despachada. Começou a ler devagar como gostava, a ver-lhe as letras apressadas, desenhadas em redondo, até as riscadas, o capitão a interrompê-lo, a querer ler a Bola. 

O alferes a esta hora já está a caminho da metrópole. Para onde? Agora deve ir para a Estrela, para o anexo dos oficiais, um edifício novo junto à Basílica, depois deve fazer o itinerário do costume, Alcoitão, Alemanha, é conforme. Põem-lhe as próteses onde puderem, que há outras que ainda não se fazem, não é? Depois? Depois, se o comandante da companhia dele fez as coisas como devia, o louvor já deve vir a caminho, a seguir dão-lhe uma Cruz de Guerra, 2.ª Classe, talvez, e até podem promovê-lo a tenente. Para onde vai? 
Sair, sair daqui, é o que vou fazer depois de arrumar esta tralha.
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Nota
1 - Anti-palúdico
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2 - Mamadú

Os turras também têm os seus problemas, tal como nós, até mais agudos, espero. Uma organização como a deles, muito jovem ainda, a crescer uns por cima dos outros, claro que alguns que ficam por baixo, mais corajosos ou imprevidentes, tomam o freio nos dentes, ultrapassam as directivas do Partido, põem-se a fazer coisas. Se resultam, se nos causam mossa, são louvados e às vezes, como aconteceu com o Nino no Sul, ficam outra vez em cima, são promovidos e tal. Se o custo da imprevidência for pesada, ou que os comissários considerem demasiado alta, pagam-na cara, claro! Parece, parece que estamos num caso desses. 

Acampamento do PAIGC. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Um tal Mamadú Injai, não, não deve ser esse em que estão a pensar, Mamadús há-os às centenas aqui, Injais nem tantos, mas muitos também. Adiante, para atalhar caminho, o tal Mamadú Injai que, até este momento, só eu e o nosso major aqui conhecemos, apresentou-se há dois dias na tabanca aqui atrás, a um parente dele. 
Estes Mamadús como todos sabemos têm parentes no Oio, no Gabú, no Cantanhez, têm primos e sobrinhos, em toda a Guiné Portuguesa, Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri, Mauritânia, por aí fora. 
Bom, em conversa com o tal parente manifestou o desejo de falar com o chefe da tabanca, apresentar-lhe uma questão, sem avançar mais nada. Este Mamadú já há muito que sabia que o chefe da tabanca é um tipo da nossa confiança, total não digo, mas enfim, até agora tem dado provas de ser um aliado da nossa maneira de estar na Guiné. Temos tratado de algumas necessidades da tabanca, consegui, inclusive, que o Governo-Geral aprovasse uma espécie de tença anual. 
O homem grande da tabanca sabia com quem estava a falar, recebeu-o com prudência, que só queria o bem-estar da população, que mantinha com as nossas tropas relações amistosas, que eram bem tratados, que tinham médico à disposição para o que fosse preciso, que ainda há tempos tinha sido incansável na assistência aos nascimentos, dois partos numa noite, que elas resolvem parir quase todas ao mesmo tempo, não sei bem como combinam, se têm algumas regras entre eles e elas, se calhar até têm. 

Parto na Guiné. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Bem o nosso homem grande lá lhe foi dizendo que compreendia as razões do Partido, os esforços gigantescos que faziam contra a tropa, com aviação, marinha e tudo, mas o partido também tinha de compreender, que ele como chefe da tabanca, tinha a obrigação de entender as necessidades da população, ir ao encontro delas, etc, etc, etc. 
Para grande surpresa dele, o Mamadú, começou a dizer que alguns do Partido, principalmente os cabo-verdianos, não gostavam do entendimento dele com a nossa tropa, mas o Injai estava de acordo, o Partido sim, mas só depois das necessidades do povo. Que, assim, não só via com bons olhos o trabalho que o homem grande estava a fazer, como tomava a liberdade de lhe dizer que se todos fossem como o homem que estava à sua frente, muitos problemas nem sequer existiam. 
E mais, que o Partido estava a passar por grandes dificuldades, tão grandes que até o Abel Djassi, nome de guerra do Amílcar Cabral, como sabem, tinha tido alguns problemas com camaradas que não viam com bons olhos tanto cabo-verdiano na cúpula e tanto balanta, tanto manjaco, tanto mandinga, tanto fula até, tanto guineense afinal, na frente armada. 
Muito problema, homem grande, para tão pouco guerrilheiro e tanta tropa, esta luta vai durar anos e anos, no nosso tempo não vai acabar de certeza. 
Pelos vistos, no essencial, os dois estavam de acordo. 
Qual então a razão da visita de Mamadú, para além de partir mantenhas? Bom, ele Mamadú, bem gostaria de prestar apoio ao homem grande da tabanca, mas este desconfiado, disse que tudo estava a correr bem com a nossa tropa. 
Continuando, dizia eu que o homem grande da tabanca agradecia muito a visita, que dissesse ao Partido que, afinal, ambos deveriam querer o bem da Guiné, e que se estavam a dar muito bem com a tropa de Mansoa. 
Mamadú não despegava e o chefe da tabanca estava cada vez mais desconfiado, mas seguro dos dois homens seus da tabanca, cá fora para o que desse e viesse. Então o Mamadú, de repente, disse-lhe que se vinha entregar a ele, para fazer dele o que quisesse, entregá-lo à tropa até. 
Os senhores estão a ver a cara do homem grande, não é difícil de imaginar, não é? Pois, nosso alferes, tem à sua disposição um homem que o vai levar a Morés.

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3 - Fuga? 

Um turra, apresentado ainda por cima, sem ninguém pedir, nem apanhado foi, a querer agora levar-nos a Morés? Qual Morés, já conheci três ou quatro, acho que isto traz água no bico, o meu alferes é que sabe, mas isto cheira mais a uma armadilha montada para nós cairmos, interroga-se alto o Valente de Sousa. Ele também tem a perder se as coisas correrem para o torto, não é, o furriel Ázera a contrapor. 
Bom, temos nas mãos um guerrilheiro que até há pouco esteve do lado deles, e que agora se oferece para nos levar a Morés. Algo deve ter corrido mal com ele, o que foi não sabemos. Ele conhece os cantos à casa, os trilhos da zona, os acampamentos maiores e as barracas à volta, ninguém o obrigou, oferece-se para nos guiar até à arrecadação das armas, material pesado e tudo. E nós não acabámos de chegar, já temos uns meses disto, já vimos muito, até guias a fugir. Se nos apercebermos que as coisas estão a fugir do nosso controlo lá estaremos para decidir o que fazer. O que temos a perder? 
A esta hora já mudaram as bases todas! Acho a história mal contada, não sei, não me cheira, se calhar estou a pensar mal, a deitar areia na engrenagem, não sei, insiste o furriel. 
A ideia é irmos na coluna de reabastecimentos para Mansabá, saltamos das viaturas na zona de Cutia, aqui por estes lados e um pouco antes deste trilho metemos para dentro, a apontar o dedo para o mapa da zona. Amanhã, ao anoitecer convocam o pessoal, material conferido, metem-no nas três últimas Mercedes, lonas corridas até baixo, quando houver ordem para sair, temos um minuto para o fazer, as viaturas nem abrandam sequer, rádios sempre ligados. 
A tarde de Mansoa devagar, civis nas calmas pelas ruas, crianças a correr atrás de um aro de bicicleta, um grupo pequeno de soldados numa esplanada, uma tarde igual a outras, um pouco escura, calor sem sol, fardas colada à pele, sovacos encharcados, grandes rodas molhadas nas costas, um peso vindo do céu, em cima de todos, a empurrá-los para o chão, o costume nesta época. 
Ainda não estava completamente refeito das febres, as pernas parece que bamboleavam em vez de andar, manchas claras às vezes. 

Amanhã como vai ser, vais ter força para andar, vais-te aguentar nas canetas? Ora, quando as coisas aquecem, as forças vêm de todo o lado, poupa-te no início, reserva-te para a hora, depois deixa as coisas acontecerem. 

Com o Ázera ao lado, a fazerem horas, sentados a uma mesa da esplanada, o Valente de Sousa apareceu-lhes por trás. O Tenente Coronel Lemos quer falar consigo. 

Como foi não sei, apenas que o homem grande me apareceu muito constrangido, a contar o que tinha acontecido e que você já sabe, agora como foi não sei, não sei mais nada. A olhar para ele, a cara desolada do tenente-coronel. 
Custava-lhe a acreditar no que o velho negro de barba branca estava a dizer, a voz aguda, aos solavancos, os olhos com manchas vermelhas. 
Mamadú desapareceu na tabanca, foi Fatma quem chamou, ninguém sabe nada, juntei pessoal, perguntei quem sabia, ninguém viu, ninguém sabe, eu também não, nosso alfero! A túnica a arrastar-se pelo chão, as sandálias de plástico, pó fino a levantar-se, como posso saber como fugiu, nosso alfero, mas fica descansado, vou saber quem sabe. 
Fácil, não é, homem grande? 
Eu não dizia? Era uma história mal contada, meu alferes! Ainda por cima, deixaram-no andar por aí, a falar com este e aquele, a visitar as instalações como se fosse um convidado. 

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4 - Só água fria por baixo 

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos, primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo, quis espreitar, e ela mostrou-lhe outras coisas que tinha. Uma moça diferente das que conhecera aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas delas e depois parágrafo. 
Com a Matilde nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto. Adiantou-lhe um mês de renda para a casa, a caminho do Cupilom, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim. Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. 

Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo. Ainda não percebeste, quero homem que viva comigo! 
E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê? Matilde, gosto de ti, do teu rosto, do cabelo negro que te fica tão bem assim, do teu peito pequeno e tão bem feito, da tua barriga lisa, das tuas coxas redondas, das pernas como nunca vi, da tua cor. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Mais nada, Matilde. É melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre. 
Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares. Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? 
Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada. 

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, foi muito mais do que aquilo que esperavas. 
Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, foi o que te interessou, de início, não? Depois viste outras coisas nela, de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem estás, a solidariedade, o interesse pelo povo guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela. 
E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela. Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa. 
Um merdas, um merdas como aquele que viste em Bigene, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um merdas na mesma. A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti. 
Nem tanto assim? O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? 
Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outras mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, nem o céu imagina. De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro. Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, já não há razões para continuar, vamos dar por terminado o nosso conhecimento, começámos porque achámos graça um ao outro e, pelos vistos, este tempo passado diz-nos que é melhor acabarmos, e pronto. Já agora, continua merdas até ao fim! 

Os olhos dela não queriam acreditar, insistentes, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um passo para trás a tomar balanço. 
Como quiseres! Não me vou perder a chorar por aí, não penses. Fui ingénua, enganei-me, pensei que eras verdadeiro, que tinhas sentimento. É melhor assim. Olha, há tempos, quando estava a ler um livro ali, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse só impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento. Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo. 

(Continua)
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Nota do editor

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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

1. Parte XIX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIX

1 - Chegou a 3.ª Companhia de Comandos 

Jeeps e Mercedes, tudo pintado de camuflado, G3 novas, e o que é que isto nos reserva, escrito nas caras deles, novas também, boinas a estrear na cabeça, de tecido camuflado para ser tudo a condizer, olhares dentro dos óculos escuros. Tudo, tudo novo a estrear, tudo camuflado. Apresentaram-se uns aos outros no cais, os tarecos nas mãos com destino a Brá, para as instalações deixadas pelos velhos.
Bem-vindos à Guiné, que tudo vos corra bem, felicidades.


A vida em Mansoa continuava animada, o IN e a selecção de futebol na primeira linha dos pensamentos. Emboscadas, patrulhamentos, um ou outro tiro, só de longe.

O grupo a caminho da Bissau, para mais uma saída, marcada para o dia seguinte. Uma Mercedes à frente, outra a fechar, o jeep no meio. Já tinham passado Nhacra há muito, estavam próximos de Bissalanca, o jeep a andar mais devagar, calor a vir do motor, cheiro a queimado, olhou para o Alegre, a boina na cabeça, as fitas verde e vermelha a baterem-lhe na nuca, o jeep a andar ainda mais devagar, então vais parar, o Alegre com a cara a ficar vermelha, meu alferes, o jeep não responde, não me digas Alegre, meteste óleo, meti ontem, meu alferes. Capot no ar, as mãos a sacudir a fumarada, e agora, caraças?
Qualquer dia dá-lhe o badagaio, pensara há tempos, tanto pisar no acelerador e tanto pensamento nisso, era inevitável, o ME-14-04 pifou, gripou mesmo. Envolto numa grande fumarada, rebocaram-no até Bissau. E em Brá, quando lhe virou costas, parou e voltou a olhar para ele. Fiel companheiro há cerca de um ano, não o podia abandonar assim, sem o tocar mais uma vez. Quando se chegou a ele, com o motor ainda a fumegar, viu esfumarem-se também recordações que ambos tinham vivido.
Em Bissau, entregaram-lhe outro, isto também gasta óleo, é bom não se esquecer, a linguagem polida do major do serviço de material do QG.

Em Brá, os novos continuavam os treinos. Na mata em frente, ouviam-se disparos e os gritos dos instrutores. Aulas de aplicação militar a tiro, para habituarem os ouvidos às chicotadas. Na parada encontrou-se com o Capitão Alves Cardoso.
Então, quando é que saem? Precisam de alguma coisa?
Preciso mesmo, leve-me alguns na próxima saída do seu grupo, ok?

Adulai Jamanca, o 1.º à esquerda e Lifna Cumba, o "Joaquim" ao centro, em Brá, antes da saída

Ajustar pormenores da acção 

Base aérea de Bissalanca. Com a devida vénia ao blogue especialistas da BA12. 

Seis horas, na Base Aérea de Bissalanca, o grupo com 4 equipas.
Helis no ar, sobrevoaram Mansoa, o Oio, o pequeno Olossato lá em baixo, sempre em rota para Noroeste, em direcção à fronteira com o Senegal.


A formação a desviar-se para a esquerda, Ganturé dum lado, Binta à direita, começaram a baixar, a bolanha, saltar, corrida para a mata. 

Estávamos na zona de Bigene. Notícias recentes insistiam em referir aumento da actividade IN no corredor Sano-Sinchã-Fangor-Canja. O objectivo do grupo era nomadizar na zona durante cerca de 48 horas, procurar indícios de actividade IN. Deram com alguns trilhos e um, com marcas de movimento, pareceu-lhes adequado para ali passarem a noite, emboscados. 
Duas ou três da madrugada, um restolho. Uma cobra mordeu uma das pernas do Lifna Cumba, mais conhecido entre eles por Joaquim. Com a ajuda de uma lanterna, localizada a mordedura, o enfermeiro deu-lhe o soro anti-ofídico depois de ter lavado e desinfectado a ferida. 
A partir daquela altura, se alguém estava com sono, acordou mesmo. Ninguém dormiu, a atenção redobrou. Após a chegada do sol calcorrearam as margens daquele trilho que acabou por os levar a uma picada. Atravessaram-na e continuaram a andar para norte em direcção à fronteira. Por volta do meio-dia, de um Dornier que os sobrevoava, receberam a ordem para voltarem para trás em direcção à estrada Ingoré-Barro, que antes tinham atravessado, e que aguardassem a recolha. Horas mais tarde o grupo foi recolhido, por uma força do BCav 790.

Na estrada Barro-Ingoré, a aguardar coluna de regresso, com o alferes Rogério Coutinho (frente direita) e mais dois elementos da 3.ª Companhia de Comandos (atrás à direita)

Locais diferentes, quase sempre o mesmo, apenas para marcar presença num dos santuários do IN. Macacos, casas de mato abandonadas, gado, trilhos pisados. 

Depois foi o regresso a Mansoa, pele gasta de tanta porcaria e tanto banho. Joaquim Lifna Cumba, em último plano, sorridente. O susto já tinha passado.
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Nota
1 - Comandante da 3.ª Companhia de Comandos

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2 - Pesadelo 


Uma povoação junto ao mar, o dia nevoento, o vento a soprar forte, a ronca do farol, a sirene dos Socorros a Náufragos, as mulheres dos pescadores, todas de preto, mantos negros das cabeças até às costas, a correrem descalças para a praia, aos gritos, um velho louco chamado Pilau a gritar para os céus, uma pistola de madeira, uma camisa verde, a bicicleta com o nome dele pintado no quadro, a brincar sozinho no quintal, o pai a deixá-lo na casa dos avós, a desaparecer ao longe na Lutz2, o nascimento do irmão, a azáfama do parto no quarto dos pais, a madrinha, o tio e a avó, o espelho interior do guarda-vestidos a partir-se, os ditos delas da má sorte que os espelhos partidos trazem, a entrada na escola, a vontade de fazer chichi, a vergonha de pedir para sair da sala, o tinteiro da carteira na mão, a transbordar de chichi roxo, o professor Martins zangado, aos berros, os outros a rirem-se, os calções a molharem-se-lhe cada vez mais, a mãe a dar-lhe palmadas no rabo enquanto lhe dava banho, seu porco, o padrinho a dar-lhe uma moeda de 2$50, uma mulher a lavar as escadas de pedra com um sabão amarelo, não passes agora que escorregas, ele sempre a teimar, a mãe a fazer-lhe pontaria com não sei quê, a acertar-lhe na cabeça, a corrida para a farmácia, a gritaria, o senhor Monteiro a limpar-lhe a ferida com álcool. 
Vontade de fazer chichi, barulhos de vozes, muito longe dali, um mal-estar sem descrição, água a escorrer pelo corpo, dentes a bater, um frio de arrepiar, o lençol todo molhado para trás, calor, a tiritar de frio outra vez, lençóis até ao queixo. 

A ida para o Gerês, naqueles tempos nem luz tinha, uma casa antiga e grande. O medo do escuro, o irmão doente, o ambiente mais escuro, uma noite quente, as janelas, todas as que estavam viradas para a serra, a abrirem-se com um sopro de vento. 
Depois a mudança para uma casa linda e cheia de sol. A escola, a paixão pela professora mal a viu, o primeiro livro de leitura, os rabiscos, as letras a desenharem-se, a primeira carta de amor para a Marília no meio do livro, a mãe a folheá-lo à noite, o encontro da carta com as mãos da mãe. O que é isto? 
Para a cama já, imediatamente! O pai a chegar mal disposto, a entrar no quarto com a carta na mão, então é isto que andas a aprender, seu malandro, o cu das calças do pijama cortado às fatias pelo cavalo-marinho. 
A noite aos ais, dentro dos cobertores, pela manhã arrastado até à escola pela mão, a conversa do pai com a professora, vermelha a ler aquelas indecências, mas é a letra do menino, quem lhe ditou esta pouca vergonha, o pai a sair todo sorrisos para ela, cara feia para ele, estás tramado, a professora com uma cara tão zangada a dizer para a classe que eram tantas as poucas-vergonhas escritas que nem as podia ler e a palmatória a cair numa mão e na outra, vezes que nem contou. 
O pior estava para vir, não acabara ainda o castigo. Vá ao quadro de honra, risque os pontos que tem neste período, já! Era uma vez o 2.º episódio do Ladrão de Bagdad, a desaparecer à medida que os pontos iam ficando debaixo dos riscos. As brincadeiras com os Dantas e com o “Merda-Seca”, as bolas de todos os tamanhos, as pistolas de pau e de barro, as corridas, o baloiço alto, parecia o trapézio do circo que vira uma vez, o baloiço a ganhar balanço, a corda a partir-se, ele e o baloiço a caírem em cima do arame farpado espalhado pelo chão, o sangue a escorrer dos buraquinhos, todo, outra vez a mãe a lavá-lo com água, sabão e palmadas. 

Vozes outra vez, uma luz difusa, noite talvez, o corpo todo picado de dor, costas e tudo, um calor de escorrer águas, lençol fora, dentes a bater.

Numa tarde quente, viu-se a subir sozinho para a Casa do Povo, ninguém lá dentro, uma sala abandonada, montes de papéis espalhados pelo chão, no meio uma fotografia grande de um homem com bigode, de cabelo escorrido, farda castanha, Adolfo Hitler escrito em baixo, quem será? 
Outra vez de cama, quente na cabeça e frio no corpo, o jornal com fotografias de muita gente junto de um caixão, oh mãe quem é este que diz aqui que morreu? 
O Chefe do Estado, o Marechal Carmona, não sabes ler? 
Dias quentes e abafados, os domingos passados em Quintã, na quinta dos Noronhas, os relatos dos jogos de hóquei em patins, Emídio Pinto, Raio, Edgar, Jesus Correia e Correia dos Santos, os golos na baliza dos espanhóis, Zabalia, Trias, Más, Rocca, Puigbó, os ruídos das interferências do rádio, é muito longe, pai? 

Gritos, pareceu-lhe ouvir, um rádio roufenho, golo de quê, Portugal não sei quantos, Inglaterra, uma voz que não era estranha, a esperança é a última coisa. 

O liceu, os dias passados entre as aulas e as viagens da camioneta do Gerês, as tardes a matrecos no Carvalhal, as aulas, os soquetes das meninas, os namoricos imaginários, os olhos presos na televisão do café, a única em toda a povoação e redondezas, que maravilha, como se pode ver ali tudo que se está a passar agora? Os jogos do Benfica com o Barcelona e o Real Madrid, as taças ganhas no meio dos vivas ao Benfica e ao Costa Pereira, ao Ângelo, Germano, Eusébio, aos Cavéns, ao capitão Coluna, o José Augusto numa ponta, Simões na outra, Bella Guttman de pé no banco, o Santamaria a chorar, o Di Stefano à beira do Gento, metro e meio de um gajo a correr como o carago, colado à linha da esquerda, manda-me esse galego para canto, um espectador com um Kentucky, enrolado numa mão, a fazer fumo, boina na cabeça que não deixava os outros verem. 
A Florbela Queiroz em biquíni na piscina, o Henrique Mendes de laço, a Simone e a Madalena Iglésias, a Paula Ribas, o Galarza a falar espanhol com um piano, o Robin Hood com um frade ao lado a assaltarem um coche, o Danger Man a chegar de descapotável ao cimo de um monte, lá em baixo as luzes de Hong-Kong a iluminarem a baía, um carro sozinho a andar com o Homem Invisível ao volante, o Santo do Roger Moore, o pai do Litlle John, do Adam, do Hoss gordo, dos Cartwrights todos, a música a incendiar a pradaria, o papel a arder, Bonanza a aparecer com eles a cavalo. 
E, num dia, outras coisas, um capitão chamado Galvão tomou o Santa Maria, o Pandita Nehru ocupou Goa, Damão e Diu, o Artur Agostinho a contar como se lá estivesse, a brava resistência das gloriosas tropas portuguesas, as chacinas das populações no Norte de Angola, tudo a seguir e ao mesmo tempo, nós todos a olhar, calados, o arrepio pela espinha, uma vontade de lá estar também, o Salazar a falar com os óculos na ponta do nariz, as tropas a desfilarem, o assalto ao quartel de Beja feito por um tal Varela Gomes. 
Lisboa, os cheiros da cidade, Mafra ao longe, o Convento, guerras com cartucho de bala simulada, com alfinetes nos caracóis, melão com verde branco, crosses em fato zuarte quase até à Ericeira, 10 dias de licença, guia de marcha para Angra do Heroísmo, alcatra com vinho de cheiro, formação da recruta, 3 ou 4 meses depois de muita maluqueira, a notícia, para a Guiné, uns dias de férias outra vez na terra, numa despedida um amor súbito a abrir-se. 
Vozes desconhecidas, os olhos pesados, caras enormes em cima dele a mexerem os lábios, devo estar a sonhar, tanta coisa junta, um de bata branca com uma seringa, o que se passa, a cabeça, o peito, as costas, o corpo todo a doer, a escorrer suor até nos pés. 
Há dois dias que está assim, ouviu longe. Fala alto, deve estar a delirar, ouviu um a dizer, vamos levá-lo para Bissau, para o hospital. 
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Nota
2 - Motorizada alemã

(Continua)

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Nota do editor

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