Mostrar mensagens com a etiqueta Fulacunda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fulacunda. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)




Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do último livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Coimbra, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Um abraço do João Marcelino (que vive na Lourinhã, esteve presente no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2012, e que é amigo do autor desde a Guiné, tendo estado os dois juntos em Aldeia Formosa: o Rui como comandante da CCAÇ 18, o João Marcelino, "Joneca", como alf mil, CCS/BCAÇ 3852).


Foto (e legenda): © Márcio Veiga / Rui Alexandrino Ferreira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Paulo Santiago deu-nos ontem à noite a triste notícia e o João Marcelino acaba de a confirmar junto da família: morreu o nosso Ruizinho, como era carinhosamente tratado o Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022).

Estava reformado como ten cor inf. Foi alf mil inf, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; cap mil da CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). É autor de três livros de memórias.



Rui A. Ferreira
Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce na antiga Sá da Bandeira (hoje Lubango), Angola.

1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.

1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67], dado como um desaparecido em combate.

1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].

1973 - Regressa a Angola em outra comissão.

1975 - Retorna a Portugal.

1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.

2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra 

2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné, igualmente sob a chancela da Palimage.

2017 - Lança um 3º livro, A Caminho de Viseu, nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.

2022 - Morre, em Viseu, de doença crónica degenerativa (Parkinson); tinha inúmeros amigos e camaradas que o estimavam, acarinhavam e admiravam; era um dos históricos  da Tabanca Grande, tem cerca de 80 referências no blogue.

Para a família e amigos e camaradas mais íntimos, fica aqui esta nota de pesar pela sua perda mas também a nossa homenagem a um grande militar, um bom homem e um melhor amigo que soube partilhar, connosco, em vida, as suas memórias da Guiné. LG

PS - Não temos informação sobre o local e a data das cerimónias fúnebres.
__________

domingo, 2 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23662 Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte II: De Cabuca a Fulacunda


Rosto da página pessoal de Luís Graça, socólogo, "Saúde e Trabalho", criada em 1999, e alojada, até a meados de 2022, no sítio da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa, que foi entretanto reformulada. 

A página (www.ensp.unl.pt/luis.graca) pode agora voltar a ser consultada no Arquivo.pt, da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia. Foi aqui, nesta página, que começou a aventura do blogue "Luis Graça & Cmaradas da Guiné", o maior blogue em língua portuguesa criado em 2004 e mantido por antigos combatentes da guerra colonial / guerra do ulltramar na antiga colónia ou província ultramarina portuguesa  da Guiné, abarcando o período de 1961 a 1974. 


1. Estamos a recuperar as cartas (ou mapas) da Guiné,  dos Serviços Cartográficos do Exército, que estavam alojadas desde finais de 2005 na página pessoal do editor Luís Graça, cujo servidor era o da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa, e que ficaram temporariamente, indisponíveis, há alguns meses atrás.

Mais concretamente estavam alojadas numa pasta institulada " Luís Graça e Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial"...De qualquer modo, honra seja feita ao departamento de informática da ENSP/NOVA, os ficheiros da minha página foram-lhe devolvidos, represnetando 263 Mb de dados (5 mil ficheiros, 63 pastas)...

As cartas (ou mapas) da Guiné e os demais recursos da minha antiga página passam doravante a poderem ser consultadas, de novo,  "on line", no Arquivo.pt.(https://arquivo.pt):
 
O Arquivo.pt é uma poderosa infraestrutura de investigação, mantida pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, que permite pesquisar e aceder a páginas da web arquivadas desde 1996. 

O principal objetivo é a preservação da informação publicada na Web  portiguesa para fins de investigação.

É sabido que, passado um ano, apenas 20% de um conjunto de endereços se mantêm válidos. E nada mais irritante e frustrante para os utilizadores da Net (incluindo os investigadores, das mais diversas áreas,  História, Sociologia, Linguística, etc.) do que  encontar "links quebrados".

Isto quer dizer o quê, no nosso caso  ? Que muitas nossas páginas, entusiástica e generosamente  criadas e mantidas, por antigos combatentes da guerra do ultramar / guerra colonial, deixam de aparecer e perdem-se irremediavelmente... Foi o caso de muitas páginas ou sítios que nós seguíamos e que, por essa razão, deixámos de listar no nosso blogue (já não existem ou os links estão quebrados).

Infelizmente, não sabemos se há uma inventário das páginas criadas neste domínio, sobretudo desde há duas décadas para cá. Algumas foram criadas em servidores, portais ou plataformas que permitiam o alojamento gratuito de páginas pessoais ou arquivo de fotos, e que hoje já nem sequer existem ou que passaram a cobrar pelos seus serviços: estou-me a lembrar do portal Terravista, por exemplo, onde eu comecei a publicar na Net,e onde tive uma página; ou do portal Sapo (inicialmenet criado em 1995 pelo Centro de Informática da Universidade de Aveiro); ou do Photobucket (cujas condições de subscrição forma alteradas em 2017, se não erro). Devíamos todos ter percebido, logo na altura, que neste mundo não há almoços grátis...

Daí o interesse do Arquivo.pt (que não deve ser confundido com o Internet Archive), permitindo "a preservação da informação publicada na Web portuguesa para que o conhecimento nela contido esteja acessível às nossas gerações futuras"... 

É o caso da página pessoal do nosso editor, "Saúde e Trabalho - Luís Graça", e o blogue que ele fundou e tem ajudado a manter desde 2004, "Luís Graça & Camaradas da Guiné"Para saber mais, ver aqui: Arquivo.pt.

O Arquivo.pt também tem uma página no Facebook: Arquivo.pt: pesquise páginas do passado.


2. Continuamos, entretanto, a repor as nossas preciosas cartas da Guiné (Escala 1/50 mil), por ordem alfabética, agora alojados no Arquivo.pt. É só carregar no link.

No final desta série continuarão a estar disponíveis na coluna estática do blogue, do lado esquerdo. Por enquanto esses links constinuam quebrados, bem como todos os topónimos que até agora (u até há alguns meses) usavam os links antigos, quando estavam alojados na página da ENSP/NOVA. Aqui vão os novos links, das cartas (de C a F):

Cabuca (1959) (inclui um troço do rio Corubal)

Cacheu / Sâo Domingos (1953) (Carta de Cacheu, inclui Cacheu, São Domingos, rio Cacheu, rio Grande de São Domingos, Caboiana...)

Cacine (1960) (inclui Cacine, rio Cacine, rio Cumbijã, parte do Cantanhez...)

Cacoca  / Gadamael (1954) (incluiu Cacoca, Sangonhã, Gadamael Porto, parte do Quitafine e do Cantanhez, rio Cacine e fronteira sudeste com a Guiné-Conacri)

Caiar  (Ilha de)  ( Como (Ilha do Como) (1959) (inclui as ilhas de Caiar, Como e Catunco, ainda o rio Cumbijã...)

Canchungo / Teixeira Pinto (1953) (carta de Teixeira Pinto, hoje Canchungo, inclui Teixeira Pinto,  Bassarel, Catequisse, Bachile / Churoenque...)


Catió (1956) (inclui Catió, Darsalame, rios Tombali, Pobreza, Cobade...)

Colina do Norte (1956) (incluin Fajonquito...)

Como (Ilha de) / Caiar (Ilha de) (1959): vd. 
Caiar  (Ilha de) (1959)

Contabane (1959) (incluin Saltinho, Contabane, rio Corubal...)

Contuboel (1956) (inclui Contuboel, Jabicunda, rio Geba...)

Duas Fontes (Bangacia) (1959) (inclui Galomaro...) 

Empada (1955) (Inclui Empada, rio Grande de Buba...)

Farim (1954) (inclui Farim, rio Farim, Canjambari, Bironque, Mansabá, K3 / Saliquinhedim...)

domingo, 16 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22912: Ocupação dos aquartelamentos das NT e povoações pelo PAIGC (jul-out 1974), de acordo com o Plano de Retração do Dispositivo: excertos do relatório da 2ª Rep/CC/FAG, datado de 28 de fevereiro de 1975


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Julho de 1974: visita de Bunca Dabó e do seu bigrupo, fortemente armado... Ao centro, o nosso amigo e camarada Jorge Pinto, então alf mil, em farda nº 2, desarmado, fazendo as "honras da casa" (*). O aquartelamento e a povoação foram ocupados pelo PAIGC apenas em 2 de setembro de 1974.  (Natural de Turquel, Alcobaça, o Jorge Pinto é professor do ensino secundário, reformado.)

Foto (e legenda): © Jorge Pinto  (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

Relatório 2ª Rep /Pág.  52


Relatório 2ª Rep /Pág.  53



Relatório 2ª Rep /Pág.  54

 

Luís Gonçalves Vaz


Henrique Gonçalves Vaz (1922-2001)

Excertos do relatório da 2ª Rep/CC/FAG, sobre a situação político-militar em 1974 , publicado em 28 de fevereiro de 1975, e na altura classificado como "Secreto". É 
 assinado pelo chefe da 2ª Rep do CC/FAG [, Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné, comando unificado criado em 17 de Agosto de 1974], o maj inf Tito José Barroso Capela.

Este documento foi digitalizado pelo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande [,foto acima], a partir de um exemplar pertencente ao arquivo pessoal de seu pai, cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (1922-2001), último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74) [, foto també, acima]. (**)

Índice do relatório [que tem 74 páginas] (***)

A. Período até 25Abr74

1. Situação em 25Abr74

a. Generalidades (pp.1/2)
b. Situação política externa:
(1) PAIGC e organizações internacionais (pp. 2/5)
(2) Países limítrofes (pp. 5/8)
(3) O reconhecimento internacional do “Estado da G/B em 25Abr74 (pp.8/9).

c. Situação interna:

1. Situação militar

(a) Actividade do PAIGC (pp. 10/12)
(b) Síntese da atividade do PAIGC e suas consequências (pp.13/15)
(c) Análise da actividade de guerrilha (pp. 16/18)
(d) Dispositivo geral do PAIGC e objetivos (pp. 18/19)
(e) Potencial de combate do PAIG (pp.19/20)
(f) Possibilidades do PAIGC e evolução provável da situação (p. 21)

2. Situação político-administrativa (pp. 22/24).

B. Período de 25Abr74 a 15Out74

2. Evolução da situação após 25Abr74

a. Generalidades (pp. 25/26)
b. Situação política externa (pp. 26/28)

(1) PAIGC (pp. 29/32)
(2) Organizações internacionais (pp. 32/34)
(3) Países africanos (pp. 34/35)
(4) Outros países (pp. 35/36)


c. Situação interna

(1) Situação militar

(a) Aspetos gerais (pp.37/46)

(b) Síntese da actividade de guerrilha

1. Ações de guerrilha realizadas pelo PAIGC após 25abr74 (pp. 47/52)
2. Ações de controlo às viaturas das NT (p. 52)
3. Ocupação dos aquartelamentos das NT e povoações pelo PAIG (pp. 52/54)

(2) Situação político-administrativa(a) PAIGC- Contactos e conversações no TO (pp. 55/64)

(b) Outros partidos políticos ou associações cívicas (pp. 64/66)
(c) Prisioneiros de guerra (pp. 66/68;
(d) Transferência dos serviços públicos sob administração portuguesa para a administração da República da Guiné-Bissau (pp. 68/70);
(e) Diversos (pp. 70/74)

___________

Notas do editor:



 (*** ) Vd. restantes postes da série:




4 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9443: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte V): pp. 10/21

31 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9424: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte IV): pp. 1/9

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22189: Notas de leitura (1355): "Vem Comigo à Guerra do Ultramar", por António Luís Monteiro da Graça (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É sempre uma surpresa agradável encontrar na Feira da Ladra relatos da guerra da Guiné, mesmo aqueles que já são conhecidos e até já estão repertoriados. É o caso destas notas soltas do coronel António Luís Monteiro da Graça que comandou a Companhia de Cavalaria 677 na região de Tite e São João, entre 1964 e 1966. O que mais me impressionou na releitura foi o cuidado posto pelo autor em mostrar-nos, produzindo as cartas geográficas, as dificuldades quase sobrehumanas de percorrer lamaçais atravessados por cursos de água, com a mata cerrada a boa distância, mas dando boa visibilidade para hostis bazucadas e morteiradas. Monteiro da Graça desmonta a falsidade do nosso controlo daquele território, o penoso das assiduidades, a falta de material, a falta de formação, tudo superado pela galhardia e destemor dos seus homens, lêem-se estes relatos de quatro comissões e vê-se que não é fruto do acaso que estes rastos de memória são dedicados a todos os militares da CCAÇ 677, é importante lê-lo para sentir o peso destas solidariedades que nunca se apagaram.

Um abraço do
Mário


Vem comigo às terras barrentas entre S. João, Enxudé e Jabadá

Mário Beja Santos

Já em 2013 aqui se fez menção ao punhado de apontamentos elaborados pelo Coronel António Luís Monteiro da Graça com o título "Vem Comigo à Guerra do Ultramar", episódios soltos das suas quatro comissões em Moçambique, Guiné e Angola (P11399 de 13 de Abril de 2013). Fora possível fazer tal recensão por existir um exemplar que o oficial oferecera à Liga dos Combatentes. Dá sempre gosto voltar a ler estes conjuntos de memórias, tive agora a dita de comprar exemplar na Feira da Ladra, reler com gosto e talvez fazer um comentário com novo olhar. Logo as razões da dedicatória, a Companhia de Cavalaria 677 merece-lhe essa homenagem, foi ele que formou esta unidade independente, mal chegados à Guiné subtraíram-lhe um pelotão que foi reforçar Fulacunda, a sofrer na época uma grande pressão por parte do PAIGC. Recordações não lhe faltam: o alferes Teixeira, que tinha visão deficiente e que bastantes vezes ia de encontro às árvores, as suas grossas lentes nem sempre lhe davam a panorâmica do que estava à frente. E vem o elogio a todos: “Tive a felicidade de comandar homens que iam suportando todas as contingências da guerra com grande espírito de sacrifício, mas eivado de humor e boa disposição que se prolongaram até aos dias de hoje, em que não faltam aos anuais almoços de confraternização. E o elogio é extensivo aos nativos que iam connosco e que sempre foram elementos de grande valor e lealdade, honrando os compromissos assumidos e a esperança de que com a sua participação estarem a contribuir para uma Guiné mais próspera e melhor preparada para a mudança que se esperava”.

Vendo agora com mais cuidado as cartas melhor se percebe como aquela geografia de terras alagadas à volta de Jabadá, Enxudé, Gã Chiquinho eram um tormento na progressão que a guerrilha experimentada aproveitava a oportunidade para flagelar. Em junho de 1964 a guerrilha dispunha de metralhadoras e bazucas. Naquele tempo havia um médico por companhia e o Dr. Pereira não tinha qualquer preparação física, andara duas ou três semanas em Mafra, ia-se abaixo das canetas nas operações. “Daí nasceu uma guerra entre mim e o comandante. Este obrigava-me a levar o médico para as operações. Eu não o levava pois já tinha a experiência e não estava a ver o doutor a mostrar boa vontade para ir. E não o levei mais, chatices tinha eu de sobra. E também analisando bem, que fazia o médico em caso de ferimento grave? Em estancar o sangue e esperar pela evacuação, se possível, coisa que o enfermeiro podia fazer”. Conta-nos a peripécia da CCAÇ 423 que chegara de Lisboa com o destino de São João. Em vez de se ter utilizado um transporte marítimo para pôr a unidade em poucas horas no seu destino, alguém decidiu que deviam partir de Bissau e ir até Bafatá, descer por Fulacunda e Nova Sintra até São João. Foi bico de obra a remover obstáculos nas picadas e já com o quartel de Nova Sintra à vista sofreram uma grande emboscada. Lá seguiram para Tite, depois Enxudé e finalmente São João, que saga. Mas fica-se a perceber como logo no início da guerra muitos itinerários se tornavam progressivamente mais perigosos.

O coronel Monteiro da Graça não deixa de referir o verdadeiro calvário que era percorrer aquelas bolanhas para chegar aos objetivos próximos do Rio Geba. Fazer operações na península de Gampará era igualmente um tormento, do outro lado do Corubal agentes do PAIGC já cultivavam na Ponta do Inglês, na Ponta Luís Dias em Mangai, Mina e Fiofioli. Bem curioso é o que ele nos relata da Operação Crato que se realizou em 18 e 19 de julho de 1964, envolvia a unidade de São João, dois destacamentos de fuzileiros desembarcados em Jabadá, a companhia de Fulacunda e dois pelotões da 677. Saíram do Enxudé, embarque no meio de uma enxurrada de lama, são embarcados em duas LDM, amarinharam por meio de cordas em plena escuridão para o contratorpedeiro Voga, tornearam a ilha de Bolama, entrou-se no Rio Grande de Buba e a progressão começou na península de Buduco, em direção ao norte. Descobrem um acampamento, recentemente abandonado, e ainda com a comida ao lume. Começou a chover torrencialmente e deram de caras com uma patrulha inimiga. Tudo acabou bem. Ficamos igualmente a saber que o PAIGC flagela quando pode a Ponta de Jabadá.

Destaca atos de heroísmo dos seus militares, dois deles foram condecorados com a Medalha de Valor Militar. O controlo do terreno era dificílimo. “A função de intervenção era só teórica, pois as minhas tropas faziam as operações de intervenção e depois de chegarem faziam também as outras atividades. O meu pessoal pouco tempo depois da chegada, três meses, estava quase inoperacional”. Impraticável qualquer tipo de controlo, o terreno não permitia qualquer permanência, e o PAIGC já flagelava com morteiros e bazucas. Havia as marés que obrigavam embarques e desembarques com imensas dificuldades, por vezes Monteiro da Graça tece comentários cáusticos à Marinha.

Em 3 de agosto desse mesmo ano de 1964 três companhias voltam à península de Gampará, na junção dos rios Geba e Corubal. “Acontece que a noite estava de tempestade. Na margem norte do Geba, existia frente à península o quartel de Porto Gole, que não fora avisado da operação. Com a tempestade, as duas LDM foram atiradas para a praia junto ao quartel que começou a atirar morteiradas contra o possível inimigo, nós, neste caso. O segredo da Operação foi-se. No dia seguinte, nem inimigo nem população estavam nos acampamentos e nas tabancas, pouco mais restante do que destruir os seus quartéis”. Queixa-se da falta de instrução da tropa, desde o uso de armas até às granadas. Viveu uma guerra pobrezinha, experimentou a recusa no fornecimento de granadas, a falta de material, e conta uma história de uma operação em que partir às quatro da manhã e às três da tarde antes o comandante do batalhão informa-o de que teria de emprestar para uma outra operação os três morteiros de 60 mm. Surpreendido com a notícia, achou por bem sugerir que se devia suspender a Operação, o comandante recusou-se a tal cancelamento. Veio um avião a Fulacunda e trouxe um morteiro, já ganhara a perceção de que o PAIGC começava a ter mais e melhor armamento.

Tem muitas recordações avulsas, sente-se nesta escrita a densa camaradagem que se estabeleceu e terá sido interrompida quando a litíase renal o obrigou a um tratamento mais sério. Mas esta CCAÇ 677 ficou-lhe no coração, jamais esqueceu todos aqueles lodaçais que encontrou no Sul. Um relato tocante que justificou a releitura de um lugar pouco aflorado na literatura da guerra da Guiné.
Coronel de Cavalaria António Luís Monteiro da Graça (1925-2014)
Companhia de Cavalaria 677, Tite e São João, 1964-1966
Ruínas do antigo quartel português em Tite. Fotografia de Alfredo Cunha, jornal Expresso, com a devida vénia
Porta de armas do quartel de Tite, 1964. Fotografia do blogue
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22167: Notas de leitura (1354): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 2 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21962: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (20): a entrega do nosso destacamento aos guerrilheiros do PAIGC, em 17 de julho de 1974


Foto nº 1 > Guiné > Região de Quínara  > Nova Sintra > 2ª C / BART 6520/72 (1972/74) > 17 de julho de 1974 >  Uma data histórica > Menos de dois meses depois Portugal reconhecia a independência da República da Guiné-Bissau, hoje um país irmão, lusófono, integrado na CPLP.


Foto nº 1A> Guiné > Região de Quínara  > Nova Sintra > 2ª C / BART 6520/72 (1972/74) > 17 de julho de 1974 > Representantes do PAIGC e das NT


Foto nº 1B > Guiné > Região de Quínara  > Nova Sintra > 2ª C / BART 6520/72 (1972/74) > 17 de julho de 1974 > Os representantes do PAIGC vieram armados, como aconteceu em todos ou quase todos os sítios: afinal, o terreno não era neutro... O Comandante do Setor do PAIGC, Quinto Cabi, aqui de perfil, à direita, mostra-se confiante, mas não larga a Kalash.



Foto nº 1 C > Guiné > Região de Quínara  > Nova Sintra > 2ª C / BART 6520/72 (1972/74) > 17 de julho de 1974 > O comandante do pelotão de milícia, de camisola branca, parece estar de semblante carregado, tal como os seus homens.

Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 17 de julho de 1974 > Entrega do destacamento de Nova Sintra aos guerrilheiros do PAIGC.

Foto (e legenda): © Ramiro Figueira / Carlos Barros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; (ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem mais de 2 dezenas e meia de referências


Quando os guerrilheiros entraram no destacamento de Nova Sintra, o Comandante, Capitão Machado e outros graduados, devidamente fardados com os seus camuflados de combate, receberam com dignidade os combatentes do PAIGC acompanhados com uma população civil que lhe era afeta.

Numa fase inicial, depois de contactos prévios com os Comandantes do PAIGC, foram autorizados a entrarem no aquartelamento e, por mera coincidência, os furriéis Barros (eu próprio) e o Ferreira tomaram a iniciativa de irem ao encontro dos guerrilheiro, abrindo-lhes o " portão" junto às bananeiras.

E não houve qualquer problema nessa convivência, embora numa fase inicial, existia um certa "receio", natural, porque algo poderia acontecer de menos bom, como aconteceu em Angola e Moçambique.

Estes são os factos para a história, entre muitos, da Guerra Colonial.

Legenda das fotos:

O primeiro com boina e óculos [1], é o Tenente-Coronel Fernando José de Almeida Mira (falecido). Era o comandante do BART 6520/72 (Tite).

De costas,  o Capitão Mil Inf João Barbosa Machado,  de Nova Sintra [, 2ª C / BART 6520/72] [2]. (Antes dele, a companhia teve dois comandantes: cap mil inf Armando da Fonseca Cirne e cap art José Manuel Campante de Carvalho.)

Boné azul,, o Comandante do Setor do PAIGC, Quinto Cabi (apresentou-se como tal...) [3].

À direita de barrete na cabeça e camisa branca, o Comandante de Milícias que tinham sido
colocados em Nova Sintra. [4]

De camisola verde, junto ao Ten Coronel Almeida Mira, outro comanante do PAIGC, o responsável  da artilharia da zona de Tite, de seu no
me Tchambu Mané [5]. Não se lhe vê o rosto, apenas o peito. Enverga uma camisola com a efíge do Amílcar Cabral.

Fotografia [nº 1] cedida pelo ex-Alferes Miliciano Ramiro Figueira, de Nova Sintra, 2ª CART / Bart 6520/72 (1972/74).


2. Comentário do editor LG:

O Jorge Pinto, ex-alf mil, da 3ª C/BART 6520/72, que estava em Fulacunda, já aqui contou como se processou lá a visita dos homens do PAIGC, a primeira depois da assinatura da paz [, foto à esquerda, desarmado, num grupo de guerrilheiros, na margem esquerda do Rio Geba] (**):


Tentando esclarecer algumas dúvidas e para melhor compreensão do "acontecimento" retratado pelas fotos, importa saber:

1º Em 1972/74, Fulacunda é uma tabanca totalmente isolada. A única picada transitada era a que servia de acesso ao porto de reabastecimento e que distava uns 4/5 km

2º O referido grupo Bunca Dabó, pelo que sei, patrulhava/circulava a zona entre Fulacunda e os rios Corubal e Geba e por isso flagelava/atacava Fulacunda de vez em quando.

3º A visita deste grupo, composto por cerca de 50 elementos a Fulacunda, durante 1 dia, foi programada e preparada, mas desconheço pormenores. Sei, apenas que o mesmo já tinha acontecido noutras localidades da Guiné.

4º  Naturalmente que a população de Fulacunda recebeu estes guerrilheiros, que vinham fortemente armados, em grande tensão. As fotos 3,4 e 4B, demonstram isso.

5º A "exigência" da ida ao porto de Fulacunda, no mesmo dia da visita, considerei-a inútil, pois não fomos fazer nem ver nada de novo. Nesta viagem de 4/5 Km iam cerca de 15 (guerrilheiros), bem armados, conforme fotos demonstram. Da parte das NT ia eu, um furriel e o cabo condutor, totalmente desarmados. Nenhum elemento da população nos acompanhou. Esta ficou dentro do recinto que era cercado por arame farpado conversando com os restantes elementos do PAIGC. As fotos 5 e 5A retratam a saída da Tabanca para o Porto. As outras são tiradas no próprio porto.

Sei que foram colocadas outras questões, mas para essas não possuo respostas com o "rigor cientifico" que a "delicadeza" da situação histórica vivida nessa época exige. O "devir histórico" se encarregará de as desnudar...

 ______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 21 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21930: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (19): o nosso macaquinho de estimação, o Piquete

(**)Vd. comentário ao poste de 3 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15818: (De)caras (32): Visita a Fulacunda, em julho de 1974, de Bunca Dabó e do seu bigrupo, "armado até aos dentes"... (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...


Guiné > Região de Bolama > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72... É possível que este pórtico, "Rancho dos Duros", tenha sido inspirado pelos vizinhos, mais antigos, do "Rancho da Ponderosa", destacamento de Ualada, subsetor de Empada, ao tempo da CCAÇ 1587 (1966/68).

Foto (e legenda): © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Gabu > Piche > Foto nº 112/199 do álbum do João Martins > 1968 > Uma mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha (ou cabritinho ?), provavelmente um dos bens mais preciosos do seu escasso património familiar... Uma ternura de foto do álbum do nosso camarada João Martins, já célebre nas redes sociais.... Era mais fácil aos fulas vender-nos uma vaca do que um cabrito...

Foto: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Carlos Barros, Esposende


1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974:


A cabrinha Inha

por Carlos Barros (*)
 

Os militares da 2ª Companhia de Nova Sintra, com reforços de pelotões de Jabadá (1ª C/BART 6520/72) e Fulacunda (3ª C/BART 6520/72) estiveram envolvidos na abertura da estrada Nova-Sintra –Fulacunda, em 1973.

Ao rasgar essa estrada, por entre mato denso, iriamos ter problemas com o inimigo , o que se veio a verificar já que fomos emboscados algumas vezes, tentando obstruir a nossa progressão porque esse acesso a Fulacunda não interessava militarmente ao PAIGC.

O furriel Barros estava com o seu grupo de combate na segurança da estrada, com outro grupo, e estavam homens e mulheres africanas envolvidas na descapinagem do estradão.

Verifiquei, por mero acaso, que uma indígena tinha apanhado uma cabrinha à mão que se tinha perdido da mãe e perguntei-lhe o que iria fazer com o animal. Prontamente me respondeu, dizendo que a ia matar e depois comê-la!

Abeirei-me dela e pedi que ma vendesse por 50 pesos , o que concordou perante a minha alegria, vendo que o animal não seria morto. (**)

No regresso ao destacamento, trouxe a cabrinha para o quartel, arranjei e adaptei um biberão e comprava leite na cantina e assim a Inha era alimentada por mim com todo o carinho e protecção.

Foi crescendo, dormia debaixo da minha cama na caserna e na parada do destacamento seguia-me para todo o lado.

O Capitão Cirne queria comprar a Inha mas confesso que não a vendia por dinheiro nenhum porque gostava muito do animal. A cabrinha era acarinhada pelos soldados do meu grupo, sendo a coqueluche da companhia e passeava por todo o lado, sem ninguém a molestar.

Tinha chegado a hora do jantar e, quando começávamos a comer o arroz com salsichas, vieram os soldados Cruz , Barros e Lurdes à messe e um deles disse-me:

- A Inha “adormeceu”…

Levantei-me a correr para a caserna e encontrei já morta a minha Inha, perante o meu desgosto…

O que aconteceu?

Um dos soldado deu-lhe cascas de manga e, provavelmente, teve uma congestão,  já que só se alimentava de leite e não vi outra razão…

Perdi a vontade de jantar e peguei n cabrinha, enterrei-a junto à caserna e depois coloquei uma cruz com uma lápide com os dizeres: “Aqui jaz a INHA”…

Foi um dia triste para mim e para os meus companheiros do pelotão e, nesse mesmo dia, morreu à mesma hora, uma gazela selvagem que tinha sido apanhada pelos militares e que se encontrava num galinheiro, “Gazeleiro,  improvisado….Triste coincidência…

Nunca mais desejei nenhum animal comigo, já que eles querem viver em liberdade, como todos nós seres humanos,  que, felizmente, só a conseguimos obtê-la no dia 25 de Abril de 1974.

Nova Sintra, maio de 1973,

Carlos Manuel de Lima Barros

____________

Notas do editor:

(*) Último postes da série > 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará


5 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21142: O nosso livro de visitas (206): Carlos Barros, natural de Esposende, ex-fur mil at art, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1973/74)

(**) Vd, poste de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18393: Fotos à procura de... uma legenda (102): Uma mulher fula a amamentar a "sua" cabrinha!... Ainda em tempo, celebrando o Dia Internacional da Mulher (Foto de João Martins, Piche,1968)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20836: (De)Caras (151): O soldado José Vieira Lauro, que se rendeu ao IN, em 10/10/1965, em Gamol, Fulacunda, mostrou que afinal havia uma saída, menos gloriosa, era verdade, mas mais esperançosa; de resto, não há guerra que não tenha um fim... (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário de Cherno Baldé,ao poste P20814 (*):

Esta triste acontecimento, do meu ponto de vista, mostra o efeito forte e que pode ser nefasto, do doutrinamento ideológico ou psicológico nos conflitos.

Muitos não concordarão, mas acho que o último soldado [, José Vieira Lauro], em desespero de causa e sem ter a coragem suicida dos colegas, mostrou que, afinal, havia uma saída, menos gloriosa é verdade, mas que permitia continuar a ter esperança, pois, como se costuma dizer, não há conflito/guerra que não termine em paz, assim como não há escravidão que não termine em liberdade.

Mas, isto sou eu a pensar e no ano não menos funesto de 2020.

Com um abraço amigo.
Cherno Baldé

2. Comentário do editor LG:
Capa da 2ª edição (2003),
"Rumo a Fulacunda"


Tinha lançado um desafio aos nossos leitores (*):

"Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"...

Recorde-se que, neste episódio (excerto do lirvo "Rumo a Fulacnda"), o seu autor, o nosso camarada Rui A. Ferreira reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Porventura sinal dos tempos que estamos a viver, cada um de nós confinado na sua "toca", ninguém dos nossos leitores ousou pôr-se na pele do alf mil Vasco Cardoso, que foi o último a morrer, em 10/10/1965, em Gamol, Fulacunda.

Comentário o Cherno, nosso amigo  e irmãozinho, que não foi combatente, mas conviveu, como "djubi" em Fajonquito com as NT... Respondi-lhe nestes termos (*)

(...) "Não posso estar mais de acordo contigo...Mas eu não queria antecipar-me a outros comentários, sobretudo daqueles que foram combatentes, como eu... Percebo o seu "pudor", e até mesmo o seu receio de "dar a cara", meio século depois, o seu receio de serem "julgados" pelos seus pares...

Que Deus, Alá e os bons irãs nos protejam nestes tempos difíceis para todos nós, portugueses, guineenses e restante humanidade." (...)


Antes tinha avançado com o seguinte comentário (*)

(...) "É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se. Mas só em abstracto, podemos, 52 anos depois, pormo-nos na pele de um camarada que sabia que ia morrer...

Este trágico episódio dava um extraordinário "thriller" de ação, se houvesse um realizador de cinema português que tivesse "unhas" para agarrar esta e outras memórias da guerra colonial...

É pena que não haja... Lidamos mal com a memória: só agora, 100 anos depois, se começa a fazer alguma, tímida, investigação historiográfica sobre a "pneumónica" que em 1918/19 terá morto 2% da população portuguesa (que era de 6 milhões)" (...)

domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20814: (De) caras (150): Acossados pelo IN, numa agonia de 4 dias, entre 7 e 10 de outubro de 1965: seis camaradas, da CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423, no decurso da Op Lenda, em Gamol, Fulacunda, têm um destino cruel: 3 são abatidos, 2 suicidam-se e o último rende-se (Rui A. Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; e ex-cap mil, CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72)

Rui A.Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.

1. "Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra, muito pouco "guerreiro", da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (,o seu corpor nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui Alexandre Ferreira.

"Rumo a Fulacunda" é o título do primeiro livro de memórias do nosso amigo e camarada Rui A. Ferreira, que hoje vive em Viseu, lutando contra uma doença degenerativa, razão por que há anos que não colabora no nosso blogue, onde tem  mais de 70 referências.

Neste livro, conta-nos um cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423. Seis militares, perdem-se do grosso das NT,  dividas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, nesse próprio dia.

O Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Este episódio já aqui foi publicado, há quase 13 anos atrás (*). Muitos dos novos membros da Tabanca Grande nunca o leram, e o nome do Rui A. Ferreira tende a ficar esquecido. Queremos reavivar esta história, em homenagem às vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro; e o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma).

Por outro lado, e no atual contexto de confinamento, resultante da pandemia de COVID-19 e da declaração do estado de emergência, achámos por útil voltar a reproduzir este excerto do livro "Rumo a Fulacunda", agora noutra série, "(De)Caras" (**).

É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se.  Fica aqui o desafio aos nossos leitores, muitos dos quais poderão pôr-se na pele dos nossos infortunados camaradas: "Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"... 

Não, não é um "jogo de guerra", muito menos electrónico... Foi escrito com sangue, suor e lágrimas... Poderia ser um estudo de caso, relevante para a formação humana e militar e que levanta inúmeras questões, do foro militar, ético, jurídico, psicológico, psicotalógico, socioantropológico, filosófico,  etc.

Falta-nos mais informação sobre este episódio e o seu contexto: por exemplo, oficial ou oficiosamente, os nossos camaradas são dados como mortos em 6/10/1965, mesmo sem os corpos terem sido recuperados...

Por outro lado, só mais tarde se terá sabido do aprisionamento do José Veira Lauro... O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [, sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860],  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423.

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se:  voltaram ao local da emboscada ?... Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic),  num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do Alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,  a primeira baixa do grupo seria  o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o  José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a  10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicído) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os persegiu durante três ou quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda,  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário: L.G.;  fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).

(...) Na madrugada do dia sete de Outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23 [, a CCAÇ 1423], Capitão de Artilharia [ou Infantaria ?]  Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.


Seis homens isolados 
e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso [, alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [, da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo,  que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas 
do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia [, 9 de outubro de 1965] caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a 
dois suicídios

No último dia [, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.


No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


A morte do Alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do Soldado Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia, foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (****)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista nº 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...) (*****)




Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > "[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

______________

(**) Último poste da série > 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (122): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.

(...) Um outro camarada ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)


Militares mortos:

Armando dos Santos Almeida, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 /Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Queiriga, Vila Nova de Paiva / Corpo não recuperado.

Armando Leite Marinho, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Jugueiros, Felgueiras / Corpo não recuperado.

Fernando Manuel de Jesus Alves, 1.º Cabo / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Leiria / Corpo não recuperado.

José Ferreira Araújo, Soldado CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Povolide, Viseu / Corpo não recuperado.

Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, Alferes / CCaç 1420 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Belém, Lisboa / Corpo não recuperado.

[No portal da Liga dos Combatentes, Mortos no Ultramar, todos estes nossos camaradas continuam a ser dados com mortos,  em combate, no dia 6 de outubro de 1965.]

Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para  o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura. Pertence ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pires Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca; pertence ao BCAÇ 1858  (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67).