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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13439: Notas de leitura (617): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Delfim da Silva é nome proeminente na política guineense. Licenciou-se em Filosofia em Leningrado, esteve ligado ao sistema educativo e foi dirigente da juventude Amílcar Cabral.

Entrou na rampa ascendente em 1990, como diretor geral da Presidência do Conselho de Estado, foi depois secretário de Estado e várias vezes ministro; foi prisioneiro político em 1972/73 e em 1985/86.

Este seu livro é assumido como uma coletânea de memórias da sua experiência política, tem um aporte sobre o processo eleitoral e o modo de o emendar e uma análise aos partidos políticos então existentes (conjuntura de 2003).

Trata-se de um depoimento incontornável, estranhamente silenciado em análises posteriores de gente credenciada. Coisa que faz parte dos chamados silêncios africanos…

Um abraço do
Mário


Fernando Delfim da Silva:
Memórias e considerações de um político guineense (1)

Beja Santos

Desafortunadamente, os escritos oriundos de antigos combatentes do PAIGC e de políticos guineenses pós-independência são raros e nem sempre esclarecedores.

Devemos a Luís Cabral, depois da sua prisão, após o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, um depoimento de inegável importância sobre a vida e obra de Cabral, é uma crónica que não deixa equívocos sobre a articulação estreitíssima entre o líder e a sua obra; Aristides Pereira começou por ser comedido e até entediante sobre a história do PAIGC e o fim da unidade Guiné-Cabo Verde, no final da vida, numa longuíssima entrevista a José Vicente Lopes foi de uma franqueza inesperada; Bobo Keita, uma figura militar de segunda grandeza, aceitou ser entrevistado e trouxe dados pertinentes sobre o regime de Nino e lançou uma outra luz sobre o assassínio de Amílcar Cabral; Filinto Barros, um dos políticos mais experientes e íntegros do PAIGC, escreveu um romance primoroso sobre a condição dos ex-combatentes numa Guiné-Bissau já desalentada, Kikia Matcho, o seu derradeiro testemunho foi publicado sem ser revisto, trata-se de um texto intragável onde o antigo político acusa muita gente de gestão danosa sem explicar muito bem quais os corretivos que deviam ter sido aplicados.

E há outros depoimentos, até aos dias de hoje, basta recordar o que aqui se escreveu sobre os livros de considerações políticas atuais assinados por Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. O nome de Fernando Delfim da Silva e o seu livro “Guiné-Bissau, Páginas de história política, rumos da democracia”, Firquidja Editora, Bissau, 2003, não me podia deixar indiferente.

Convivi com Delfim da Silva em 1991, quando ele, pela noitinha, a caminho de casa, e depois de ter trabalhado nos serviços da Presidência da República, me dava boleia entre a Pensão Central e a Cicer, salvou-me muitas vezes de dar trambolhões na noite sem lua; em 2010, quando eu estava a ultimar “A Viagem do Tangomau”, acedeu várias vezes a conversar comigo sobre a história recente da Guiné-Bissau, registei os seus pontos de vista, estou certo que nos despedimos com respeito e consideração mútuos.

O livro do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros divide-se entre considerações de por vezes do grau íntimo sobre políticos guineenses e uma vasta apreciação sobre o processo eleitoral, isto em vésperas das eleições de 2004, após o afastamento compulsivo de Kumba Yalá da Presidência da República onde este, pouco antes da partida, dissolvera a Assembleia Nacional Popular. Por razões compreensíveis, não cabe nesta recensão dissecar as suas opiniões sobre um sistema eleitoral mais apropriado para a Guiné-Bissau, vamos ater-nos às considerações políticas.

Ele chama ao seu depoimento a história de uma geração, “uma história que ninguém sabe quando vai terminar, nem como vai terminar”. Geração vitoriosa, que levou a Guiné à independência, geração do 14 de novembro de 1980, que cindiu o PAIGC a que se seguiu o golpe da polícia política no chamado “caso 17 de outubro de 1985”, e depois a guerra civil de 1998-1999, com outros episódios pelo meio menos relevantes mas muitíssimo significativos de um poder autocrático que procriou um golpismo militar permanente.

É um livro de recordações, por vezes circulares, por vezes ordenadas na cronologia dos factos. Recorda as primeiras eleições legislativas e presidenciais livres, as de julho de 1994, acreditava-se então numa transição política de sucesso. Politicamente, sempre segundo Delfim da Silva, foram falhanços atrás de falhanços, daí ele considerar de primeiríssima importância a necessidade de se construir um modelo de maior justiça eleitoral, o livro termina por uma abordagem e descreve-os resumidamente, são apontamentos de consideração obrigatória para a historiografia política guineense.

Delfim da Silva afastara-se da política quando foi estudar filosofia na então Leninegrado. Em 1990, diz ter acreditado no processo de transição democrática e tornou-se num estreito colaborador de Nino Vieira. Acompanhou a revisão constitucional de maio de 1991 que revogou o artigo 4.º que consagrava o PAIGC como (única) “força política dirigente da sociedade e do Estado”, que tornou possível o aparecimento de legislação sobre os partidos, a liberdade de imprensa, o direito de reunião e manifestação e a liberdade sindical, entre outros.

Ninguém debateu nem ninguém escreveu, nem ninguém anteviu que a competição interpartidária podia vir a acarretar um populismo extremamente corrosivo no quadro de uma democracia parlamentar de fresca data. Parece ter havido uma confiança cega na transição democrática. O PAIGC vivia ferreamente atado aos princípios definidos por Cabral quanto ao partido-Estado, desde 1964. A omnipresença do PAIGC parecia um dogma, como escreveu Amílcar Cabral:

“Estamos organizados como um partido: por tabanca, por zona e por região. O Sul da Guiné é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Sul, e o Norte é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Norte. Isto constitui uma estrutura básica de Governo. De facto, as regiões libertadas têm já todos os elementos de um Estado – serviços administrativos, serviços de saúde, serviços de educação, forças armadas locais para a defesa dos ataques portugueses, tribunais e prisões. O problema imediato é alargar o nosso Estado até abarcar todo o país. A transição para a estrutura do Estado não será um problema”.

E assim aconteceu, o PAIGC instalou-se em Bissau, em outubro de 1974, e teve a ilusão da sua capilaridade por todo o território, planificou a economia, a direção política imaginou uma industrialização pujante, cercou-se de uma polícia política e instalou o esbirrismo, com os insucessos procuraram-se complôs irresponsáveis, caso dos comandos africanos; a latência da tensão entre os nacionais e os cabo-verdianos atingiu o clímax com uma nova proposta de revisão constitucional.

Nino coordenou o golpe, o poder militar superou o poder político, deu-se a cisão com os cabo-verdianos e a prisão de figuras importantíssimas da luta, guineenses de gema. Reforçou-se o poder autocrático, graças a militares como Ansumane Mané. Delfim da Silva recorda figuras que ele classifica como importantes, caso de Sanussi Cassamá que em julho de 1992 ascendeu a chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, nele se depositou esperança da reforma das Forças Armadas, institucionalizando-as em parâmetros modernos, adequados à tradição democrática. Sanussi Cassamá morreu de doença e sucedeu-lhe Ansumane Mané.

Estava lançada, com insidiosa violência, a questão militar que parecia resolvida desde o Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964. A questão militar entrou de enxurrada na vida política guineense a partir de 1980: o descontentamento dos antigos combatentes, a arrogância dos agentes da segurança do Estado, a clique militar à volta de Nino, uma burocracia de Estado montada à custa dos heróis indiscutíveis, fomentaram rivalidades e espírito de complô que irão desembocar na humilhação de Victor Saúde Maria, na paranóia de um “golpe militar Balanta” e no caso de Paulo Correia e de outros dirigentes, fuzilados em 1986.

(Continua)
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Nota do editor

Ultimo poste da série de 25 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13435: Notas de leitura (616): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13234: Fotos à procura... de uma legenda (28): Será que algum me saberá dizer de que cerimónias/festas se tratam? Qual a etnia e região? Será que algum dos militares retratados faz parte da Tabanca Grande? (Lucinda Aranha)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde (1929/1943) e Guiné (1943/1973), com data de 22 de Abril de 2014:

Caro Carlos:

1. Gostei muito dos mails que me mandou sobre as memórias de uma adolescente e sobre o Kumba Ialá.

Na minha investigação, tenho testemunhos sobre o Kumba Ialá ter sido ajudante do meu pai. Segundo me disseram, admirava-o tanto que queria ser chamado por Manuel Joaquim;

2. Envio-lhe várias fotografias acompanhadas do seguinte texto:

Camaradas tabanqueiros:

Será que algum me saberá dizer de que cerimónias/festas se tratam? Qual a etnia e região? Será que algum dos militares retratados faz parte da Tabanca Grande?

Se for o caso ou se eventualmente alguém os reconhecer, será que me saberá dizer quando e em que circunstâncias a fotografia foi tirada? Será que me podem confirmar se a fotografia que mostra a carrinha terá sido tirada no Senegal, em Ginigishor?

3. Caro Valdemar Silva:

Se eventualmente quiser usar, no meu novo livro, a sua fotografia com o cartaz do filme Rififi põe algum obstáculo?

Cumprimentos,

Lucinda Aranha

Foto nº.1

Foto n.º 2

Foto n.º 3

Foto n.º 4

Foto n.º 5

Foto n.º 6

 Foto n.º 7
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13134: Fotos à procura... de uma legenda (27): Alguns de nós, poucos, passaram por lá... Foi centro de instrução militar...

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
O Dr. Onofre dos Santos participou em vários atos eleitorais na Guiné-Bissau, em 1994 e depois no período de 2003-2005. É um amante fervoroso da Guiné e não o disfarça.
Este livro reporta-se às eleições de 1994, são minuciosamente versadas, mostra-se a legislação, os partidos em competição, a estimulante educação cívica desenvolvida no período que procedeu o ato eleitoral, ouvem-se os comentários e os sonhos por quem suspirava por aquela ansiada alvorada democrática, pois pareciam franqueadas as portas da democracia multipartidária. Este livro é um testemunho e um registo e uma referência obrigatória para o estudo do que aconteceu na Guiné-Bissau entre 1991 e 1994.

Um abraço do
Mário


Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau, por Onofre dos Santos

Beja Santos

De Onofre dos Santos já aqui se fez recensão ao seu importante livro “Eleições em tempo de cólera”(*), de 2006, a reunião das suas lembranças do período em que viveu na Guiné-Bissau entre 2003 e 2005. Anteriormente Onofre dos Santos estivera na Guiné-Bissau na Missão de Observação Eleitoral das Nações Unidas a propósito das eleições de 1994 que pareciam marcar definitivamente a entrada da república da Guiné-Bissau no quadro dos países africanos em busca de uma legitimidade democrática fundada na livre escolha dos eleitores. É dessas eleições que ele escreveu o livro “Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau”, edição de autor, 1996.

Como ele escreve à guisa de introdução, a Guiné-Bissau era o penúltimo dos cinco PALOP a adotar um figurino democrático depois de uma década e meia de sistema de partido único. Nas eleições presidenciais houve segunda volta entre Nino Vieira e Koumba Yalá, foi um processo vibrante e com consequências no futuro. Para se chegar a essas eleições, durante três anos e meio decorreu um processo de democratização que começou pelo reconhecimento da democracia multipartidária, foram produzidas várias leis constitucionais, alterou-se a lei da imprensa, o estatuto dos jornalistas, regulou-se o acesso dos partidos políticos aos meios de comunicação social, aprovou-se a liberdade sindical, etc. Entrou em funcionamento uma Comissão Multipartidária de Transição para preparar a realização de eleições. É possível imaginar as polémicas e fricções que este processo de democratização suscitou, tanto na Assembleia Nacional Popular como nos partidos políticos.

Em 1993 foi criada a Comissão Nacional de Eleições, surgiu apoio da comunidade internacional, mormente para o financiamento do recenseamento e montagem de todo o aparelho eleitoral. Onofre dos Santos depois de apresentar este cenário onde iriam decorrer as eleições de 1994, apresentou o país de uma síntese. É desse punhado de reflexões que se retira o que ele escreveu sobre a integração falhada de Cabo Verde: “A falhada experiência de integração, projetada no próprio nome do PAIGC, nascera de um objetivo anticolonial, confirmado por uma luta sangrenta travada nas florestas da Guiné-Bissau, na qual os cabo-verdianos tiveram uma ação relevante.

A experiência colonial conjunta, a unidade cultural e étnica e o imperativo pan-africanista da unidade do continente africano, os laços seculares entre os dois países não foram suficientes para superar o ressentimento latente e profundo em relação aos cabo-verdianos, associados à presença colonial portuguesa de quem ao longo de um século foram os melhores agentes, em consequência do relativamente alto índice de alfabetização no arquipélago, onde todos os habitantes eram arbitrariamente classificados como civilizados e gozavam, pelo menos teoricamente, do mesmo estatuto legal que os portugueses metropolitanos.

De facto, a experiência colonial de Guiné e Cabo Verde, embora conjunta, teve traços de caracterização que as diferenciou, nomeadamente a interiorização pela elite colonial educada e predominantemente mestiça, da maioria dos pressupostos racistas de superioridades veiculados pela função civilizadora portuguesa e tanto bastou para que a clivagem se tornasse num fosse que desde a ascensão às independências respetivas impediu a sua maior aproximação e unificação”.

Onofre dos Santos dá-nos no seu livro um quadro abrangente do leque partidário e respetivos dirigentes, aflora as difíceis alianças a que não seriam alheios os fenómenos da fulanização e da falta de clarificação ideológica. Define depois o trabalho da Comissão Nacional de Eleições, como se processou o recenseamento eleitoral e dificuldades sentidas, como se pôs em prática um programa de educação cívica com a colaboração dos média e de formadores nas tabancas. A rádio teve um papel crucial tanto no recenseamento como na campanha e no acompanhamento minuto a minuto do ato eleitoral. A Comissão Nacional de Eleições produziu banda desenhada intitulada “A decisão está em ti” e que fazia parte do programa de educação física extensivo a todo o país. Segue-se uma apresentação quanto ao modo como a comunidade internacional interveio e apoiou o processo eleitoral. Na sequência desta exposição, o autor apresenta o sistema eleitoral, o controlo e fiscalização dos partidos políticos e o papel dos órgãos jurídicos, a que se segue uma curta abordagem sobre o papel dos observadores no processo eleitoral.

É do maior interesse o conjunto de referências que o autor apresenta sobre comentários dos candidatos como Nino Vieira, Cadogo (Carlos Domingos Gomes), Koumba Yalá, Victor Saúde Maria, François Mendy entre outros, fala-se de incompetência, violação dos direitos elementares, desastre económico, corrupção, promessas de paz e estabilidade, etc.

Entramos nas eleições legislativas e primeira volta das presidenciais, no caso das primeiras surgem reações, torna-se notório o fenómeno Koumba Yalá que procurou juntar todas as forças oponentes ao PAIGC logo que se soube que o PAIGC tivera mais votos que Nino Vieira, exigindo uma segunda volta. O PAIGC teve uma maioria de 62 lugares entre os 100 do parlamento com apenas 37 % dos votos obtidos. A Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Bafatá teve 19 lugares e o PRS – Partido da Renovação Social 12. Quanto às presidenciais da primeira volta, Nino obteve 46,20 % e Koumba Yalá 21, 88%. Ia seguir-se o duelo entre Nino e Koumba, o fator étnico entrou em ação, houve mesmo pronúncios de violência e chegou a segunda volta das presidenciais em que as chuvas de Agosto dificultaram o acesso dos eleitores em certas zonas do país. Nino Vieira foi o vencedor com mais de 12 mil votos de diferença. A declaração final de Koumba teve a maior importância para o regresso à calma dos espíritos: “Estou contente, porque finalmente o povo da Guiné vai conquistar a liberdade”. Mas essa declaração não iludia a referência a atos de repressão e intimidação, arbitrariedades e corrupção eleitoral. Num surpreendente agradecimento, elogiou Rafael Barbosa, dizendo que na sua pessoa “está refletida a coragem e decisão dos guineenses na luta por dias melhores, em que não haja repressão, abusos, prisões arbitrárias nem quaisquer outros crimes que violem a dignidade da pessoa humana”. E continuou: “Se em termos de números perdi as eleições, em termos políticos ganhei-as largamente pois se o povo guineense mesmo atemorizado pela Segurança do Estado votou massivamente na minha candidatura, livremente ter-me-ia dado uma larga maioria do seu voto. E é essa vitória política que nos vai permitir a conquista de novas vitórias no caminho da democratização e construção do bem-estar da sociedade guineense juntamente com todos os que me apoiaram no quadro do conjunto da oposição”.

Em 18 de Agosto, tomaram posse os deputados eleitos à nova Assembleia Nacional Popular. Emerge como segunda figura do Estado Malan Bacai Sanhá, elogia-se a transição sem violência e sem ódio, o elevado grau de civismo dos guineenses. Bacai Sanhá comenta: “Esta terá sido a melhor homenagem que podia ser prestada a Amílcar Cabral e a todos os combatentes da liberdade deste país que pode ser pequeno no tamanho e ainda pobre nos seus recursos mas que é muito grande e principalmente rico na unidade que é conseguida na convivência de todos os dias e secular entre guineenses tão diferentes entre si”.

Esta a substância do livro de Onofre dos Santos. Infelizmente, os sonhos de Bacai Sanhá não se confirmaram.


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Notas do editor:

(*) - Vd. postes de:

28 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)
e
31 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12917: Notas de leitura (577): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13100: Notas de leitura (586): "O Tráfico de Escravos nos Rios da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)", por António Carreira e "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13006: 10º aniversário do nosso blogue (12): Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou... Em sua memória reproduzimos aqui um vídeo de 2012, em que ele relata, com humor e boa disposição, uma das cenas de violência de que foi vítima, na sua casa do Quelelé, ao tempo de Kumba Ialá (c. 2000)...



Vídeo: 12' 18''... Alojado no You Tube > Nhabijões


Alcobaça > São Martinho do Porto >  Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 >  3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto

Pepito (1949-2014) o anfitrião, depois do almoço, conta-nos,  com grande sentido de humor e boa disposição, uma das várias péripécias por que passou na sua terra, a Guiné-Bissau, ao tempo do Kumba Ialá, c. 2000, quando 3 ninjas, fardados e armados de Kalash,  cercam a sua casa, no bairro do Quelelé,  às 3 horas da madrugada, amarram o guarda noturno, dando  assim início à concretização de uma ameaça de morte que tinha chegado uns dias antes, sob a forma de uma carta anónimo (*)..

Valeu.-lhe na ocasião a pronta ajuda do vizinho e amigo Nelson Dias bem como um  ou mais elementos do GOE [Grupo de Operações Especiais] (?) da cooperação portuguesa, alertados por um desesperado telefonema da mulher do Pepito... Em voz off, ouve-se o Luís Graça que fez a gravação bem a Isabel Levy Ribeiro, mulher do Pepito, e cidadã portuguesa, e ainda o Zé Teixeira, da Tabanca Pequena de Matosinhos, que está à direita do Pepito.

Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou, enquanto cresce a nossa saudade e a admiração que sertimos pela sua grandeza como ser humano. 'Nino' Vieira e Kumba Ialá eram dois políticos que o nosso Pepito detestava (*)...  Mas nós nunca ouvimos ou lemos palavras suas  de ódio para com os seus inimigos políticos... Até nisso, o Pepito era um homem dos nossos dias que nos inspirava e nos dava constantes exemplos de coragem (física e moral), de cidadania e de humanidade... A sua associação, póstuma, às comemorações dos 10 anos do nosso blogue, é mais que justa:  ele foi um grã-tabanqueiro da primeira hora, e tínhamos por nós, ex-combatentes, um especial carinho... Nunca foi combatente nem tinha armas em casa... Dois meses depois, ele está bem presente na nossa memóriaL Foi um privilégio, para alguns de nós, conhecê-lo e tê-lo como amigo. G
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Pepito.
Foto de Luís Graça (2007)
(*) Excerto do notável escrito do Pepito, de cunho aubiográfico, e que é para todos os efeitos o seu testamento vital, "A sombra do pau torto",  de julho de 2008, e já aqui publicado duas vezes:

(...) Com o Golpe de 14 de Novembro de 1980 reintroduziu-se na história da Guiné a divisão étnica: no início a divisão era entre caboverdianos, apelidados de cavaleiros, e guineenses, chamados de cavalos. Esquecendo-se os seus promotores que. uma vez estabelecida a primeira divisão étnica, outras se lhe seguiriam, surge a estigmatização dos balantas, tanto mística com o fenómeno iang-iang, como política 
com o caso Paulo Correia, 
prosseguindo com a divisão entre muçulmanos e animistas, 
e mais recentemente entre os naturais da cidade e os da tabanca. 
Tudo isto em função da conveniência e interesse da estratégia 
do líder político da ocasião.

Kumba Ialá, que viria a ser mais tarde Presidente, revelou-se neste domínio, o maior, indo buscar os piores traços comuns dos balantas, unificou-os à volta de conceitos demagógicos e populistas, em contraponto aos tempos idos de 'Nino' Vieira em que os membros do governo pouco variavam, limitando-se os seus titulares a mudarem de cadeira. Nessa ocasião, lembro-me de um Ministro que, com três pastas num só ano, bateu o recorde olímpico nacional.

Já o antigo animista Kumba Ialá, travestido agora de muçulmano com a designação de Mohamed Ialá Embaló, introduziu pela primeira vez o conceito de acesso universal ao governo, isto é, passou a promover a entrada para o governo de todos os cidadãos que se julgassem capazes e predispostos a serem ministros. Analfabetos houve que aproveitaram a ocasião…A partir dos anos 2000 assistiu-se à mais louca gestão de um Estado, de que há memória. No fundo até durou pouco tempo…porque, entretanto, o Estado desapareceu!

Foi nesse período em que tudo valia, que um dia, deixaram “cair” perto do meu local de trabalho um bilhete anónimo que dizia: ”neste fim de semana vais sofrer um atentado para te matarem”. Entendi isso apenas como uma tentativa de intimidação. Todavia, às 3 horas da madrugada desse dia, três ninjas (polícia especial armada), acorrentavam o velho guarda da casa e iniciam a tentativa de demolição das janelas. Só a intervenção determinante do nosso vizinho, Nelson Dias, nos salvou, a mim e à Isabel, perante o completo desinteresse da polícia que se escusara a prestar socorro. Os assaltantes, esses, nunca foram punidos, embora saiba que a polícia os identificou. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13004: 10º aniversário do nosso blogue (11): 40 anos depois do 25 de abril: "Que inveja eu tive daqueles soldados, a maioria muito jovens sem qualquer experiência de combate, a quem tinha calhado a sorte de ajudar a derrubar a brigada do reumático, abrir as prisões e este país ao Mundo" (Juvenal Amado)

segunda-feira, 31 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12917: Notas de leitura (577): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Está aqui uma análise serena e rigorosa dos acontecimentos guineenses entre 2003 e 2005.
A deposição de Koumba Yalá por um golpe militar que trouxe alteração profunda à vida constitucional. São tempos de transição (mas será que alguma vez a Guiné viveu fora da transição?), haverá eleições e formar-se-á uma coligação entre o PAIGC e o PRS. A sombra de Koumba é uma constante da política guineense. E o exilado Nino Vieira regressa e é reeleito.
Onofre dos Santos honrou a literatura portuguesa com crónicas de grande valor e de altíssima qualidade literária. Talvez seja tarde para o editar em Portugal. Mas pelo menos os guineenses deviam conhecer as advertências que ele lançou à política do sacrificado país.

Um abraço do
Mário


Um enternecido olhar luandense sobre a Guiné-Bissau (2003-2005) - II

Beja Santos


Devido ao seu trabalho na Comissão Eleitoral da Guiné-Bissau, o angolano Onofre dos Santos acompanhou de perto os acontecimentos políticos guineenses entre 2003 e 2005. Previam-se eleições, mas antes houve um golpe de Estado em 14 de Setembro, a Constituição foi suspensa, o presidente Koumba Yalá foi deposto e instituído um Comité Militar. Seguiram-se negociações, vários chefes de Estado de países vizinhos intercederam. Os militares tomaram conta do poder, uma Carta de Transição Política passou a regular de forma jurídica os efeitos do golpe de Estado. Nomeou-se um Presidente da República de Transição. O que parecia uma alvorada da reconciliação não o foi. Ao longo do seu livro “Eleições em tempo de cólera”, Edições Chá de Caxinde, 2006, Onofre dos Santos explica porquê. Quando o Presidente da República de Transição assumiu funções, foi confrontado com questões básicas, altamente prementes: era preciso obter financiamento para pagar um ano de salários atrasados, depois criar uma atmosfera de estabilidade para governar com alguma autoridade. Onofre dos Santos escreve artigos para um jornal de Angola, Folha 8, regista as suas impressões pessoais de um país que ele passou a amar. Por exemplo, o fascínio do mercado de Bandim, “uma área de mais de 30 mil metros quadrados, em plena cidade de Bissau, onde há meio século havia um pequeno entreposto na encruzilhada de três reinos tradicionais e onde hoje, diariamente, transitam mais de 100 mil pessoas e se transacionam produtos no valor de mais de um milhão de dólares. Não admira que Bandim seja não só a praça mais concorrida e extensa da Guiné-Bissau, como a sua principal praça comercial e financeira. Os seus artigos vão dando conta das decisões tomadas ou adiadas". A propósito das eleições para o Supremo Tribunal de Justiça refere as flagrantes e incessantes violações do princípio da separação dos poderes: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça tinha sido compulsiva e ilegalmente substituído e preso, sendo frequente os juízes serem substituídos e mudados sem justificação regulamentar. Nino Vieira tinha exonerado o presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 1994. Koumba Yalá despediu o presidente antes de ter sido apeado pelo golpe de Estado. Temos aqui alguns indicadores do despotismo mascarado de democracia.

Para quem quer saber o que é preparar um ato eleitoral na Guiné-Bissau, o livro de Onofre dos Santos é leitura suculenta. Por exemplo, as diásporas, há guineenses nos países africanos à volta, há centenas de guineenses na Ilha de Lançarote, em Portugal (não esquecer que são dados do tempo) residem cerca de 80 mil cidadãos guineenses. Há votantes possíveis em Dakar, Ziguinchor, Conacri, Banjul e Nouachkot, mas também Madrid e Paris. Traça o retrato (bem lisonjeiro) do general de quatro estrelas Veríssimo Seabra, homem que contava com um currículo notável, incluindo experiência internacional. Onofre especula como se irão consorciar o Presidente de Transição e o comité militar e os órgãos democraticamente eleitos nas eleições que se avizinham. Deploravelmente, esta conjetura deixará de ser interessante quando o general Seabra for assassinado com um tiro na nuca. Descreve garridamente o carnaval em Bissau, aprecia sobretudo os grupos dos Bijagós “com as suas pinturas guerreiras, as suas máscaras e adereços, as jovens com as suas famosas saias de ráfia mostrando toda a altura da perna esbelta e adolescente”. Comenta um livro que acaba de ser publicado “Páginas de história política, rumos da democracia”, de Fernando Delfim da Silva, político proeminente. Foi considerado um provável sucessor de Nino Vieira, era seu protegido. Ora no livro Delfim da Silva coloca Nino na cadeira de réu pela autoria do golpe militar de 14 de Novembro. O que Onofre não sabe é que quando Nino Vieira reassumir poder Delfim da Silva estará de novo a seu lado.

O autor observa a inquietação dos chefes religiosos, a começar pelos católicos. Nas suas homilias, os bispos de Bissau e Bafatá pedem insistentemente um discurso realista, que se fale verdade e que não se mate a esperança. Há momentos de desânimo, como aquele que transmitiu o bispo de Bissau dizendo que qualquer que seja o resultado tudo vai ficar na mesma porque destas eleições não vai emergir nenhum líder com o carisma e autoridade necessários para resolver os males que afligem a Guiné-Bissau.

Em Março de 2004, o cenário político fica ainda mais baralhado quando o Supremo Tribunal de Justiça considerou inválida a declaração de renúncia de Koumba Yalá. E escreve uma observação que pode funcionar até aos dias de hoje, a propósito de Koumba: “Ele é na política guineense um ponta de lança invejável, fazendo avançadas surpreendestes sempre com os olhos postos na baliza e capaz de virar o jogo até ao último minuto da partida”.

Feitas as eleições, o PRS, o partido fundado por Koumba e que fora vencedor em 1999, resolve protestar por questões manifestamente insignificantes, o Supremo Tribunal de Justiça indefere. Carlos Gomes Júnior, presidente do PAIGC, foi indigitado pelo Presidente da República de Transição como Primeiro-Ministro. E a observação de Onofre sobre a votação obtida pelo PRS é do maior interesse: “Veio demonstrar que este partido já não se concentrava apenas nas regiões onde a população de etnia Balanta está particularmente localizada mas estende de facto a todo o território nacional, ou quase. Na realidade, se excetuarmos Bissau, o PRS acaba nestas eleições exatamente a par do PAIGC em número de votos o que é um resultado inesperado. Apesar de derrotado nas urnas, o PRS emerge destas eleições como um partido nacional que não era de facto e esta alteração das circunstâncias, só por si, muda toda estratégia que envolvia até agora o partido criado por Koumba Yalá e considerado como um partido destinado magnetizar o eleitorado da etnia Balanta”.

A seguir o autor espraia-se longamente sobre Angola, os estudiosos da realidade angolana encontram aqui pano para mangas, não sendo um constitucionalista Onofre dos Santos conhece profundamente a política angolana, como se depreende das suas riquíssimas observações, e conhece África e revela uma grande integridade, e assim se compreende pela escolha que as Nações Unidas para observador de variados atos eleitorais em todo o continente. E é culto e estudioso como se pode ler no seu relato sobre a fortaleza de S. Jorge da Mina, de onde ele escreve: “Sentado no areal que circunda a fortaleza de S. Jorge da Mina, vendo os barcos à vela que sulcam a sua baia, recordo Luanda e os últimos vestígios do Império que lá e aqui ainda despertam sentimentos contraditórios, uma saudade indefinível de um tempo que já passou à história, mas que nos deixou irmanados, portugueses, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, santomenses, moçambicanos, macaístas e timorenses. A Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, nos anos 50 e 60 do século passado, foi a placa-tornante dos muitos que por lá passaram e de lá partiram para fazer história nos seus próprios países. O Império nos irmanou e o Império determinou o nosso destino”.

As crónicas sucedem-se, Nino Vieira é candidato presidencial, o general Veríssimo Seabra é assassinado, o fantasma sobre os direitos humanos voltou a cair pesadamente sobre a Guiné, Nino é eleito, mostra ser um corredor de fundo, os bichos voltam a fazer apelo à reconstrução nacional e referem que a conciliação exige perdão, perdoar é uma opção, implica um ato de vontade para pôr acima dos interesses de grupos, de etnias, o interesse do bem-comum e da Pátria; Koumba Yalá regressa à cena política, como regressam os rumores de atentados e liquidações sumárias. É um belíssimo livro de crónicas, que fatalmente teria que terminar com esta frase: “A Guiné, vou ter de a amar de longe, mas todos os dias rezarei para que os que ficam a amem de verdade, mais e melhor do que eu”. Os guineenses e os portugueses só têm a ganhar em ler esta prosa vibrante, de alta qualidade, de tão sincera esperança.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Mais uma agradável surpresa, crónicas em português de estilo de um luandense que foi colocado na Comissão Eleitoral da Guiné-Bissau, quase todas elas foram escritas em Bissau e publicadas num semanário de Luanda.
Trata-se de um olhar agudo, cuidado e profundamente afetivo. Despedir-se-á, dizendo mesmo: “A Guiné, vou ter de a amar de longe, mas todos os dias rezarei para o que ficam a amem de verdade, mais e melhor do que eu”.
Ao longo destas crónicas, assistiremos a um golpe de Estado, ao aparecimento de um Conselho Nacional de Transição e a um novo ato eleitoral do qual resultou o regresso de Nino Vieira.
Pergunto-me como foi possível ter até agora ignorado a existência deste talentoso cronista angolano.

Um abraço do
Mário


Um enternecido olhar luandense sobre a Guiné-Bissau (2003-2005) - I

Beja Santos

“Eleições em tempo de cólera”, por Onofre dos Santos, Edições Chá de Cachinde, Luanda, 2006, apanhou-me completamente de surpresa. O autor desempenhou em Luanda o cargo de Diretor-Geral das Eleições e a partir daí andou em trânsito por diversos teatros eleitorais. À República da Guiné-Bissau, onde esteve em 1994 como coordenador das Nações Unidas dos Observadores Internacionais nas eleições que elegeram o Presidente Nino Vieira, Onofre dos Santos voltou em 2003, tendo acompanhado o golpe de Estado que depôs o Presidente Kumba Yalá, e prestou assistência técnica pelas Nações Unidas nas eleições presidenciais de 2005 que consagrou o regresso ao poder de Nino Vieira. É exatamente nesse período de 2003/2005 que Onofre dos Santos foi enviando de Bissau para um semanário luandense (Folha 8) as suas crónicas cujas temáticas por vezes extravasam as realidades eleitorais guineenses.

Havia eleições marcadas para Outubro de 2003, na Guiné, mas um golpe militar derrubou o presidente Yalá, seguiu-se um período de transição moroso e complexo que ele descreve admiravelmente. O livro de crónicas é mesmo uma surpresa, subjacente ao cronista atento está um escritor de primeira água. Basta ver esta descrição junto ao porto de Pindjiquiti: “No cais é a imobilidade total dos barcos presos na lama que a maré vazia deixou a descoberto, quais passarinhos presos no visgo do caçador. Homens e mulheres em pequenos grupos também apenas parecem esperar que as águas subam enquanto um balafon invisível vai ressoando a marcar o tempo que esse não para nunca. Quando a maré lentamente começar a subir a lama verde acinzentada vai-se animar, endireitando pouco a pouco cada uma das embarcações encarapinhadas no molhe. Mais uma partida para longe, para as ilhas, para o paraíso escondido dos Bijagós. Vêm-nos à mente as recordações de enxames de morcegos gigantes volteando ao entardecer entre os telhados arruinados e as árvores frondosas e centenárias de Bolama”.

Explica ao leitor como se está a processar. Entra diretamente nas contradições que envolveram a postura política de Kumba Yalá: é presidente mas não comanda o PAIGC, o seu PRS, partido que o apoiou e apoia, não é maioritário. O presidente parecia apostar numa nova geração de políticos, com formação académica, acreditou ser possível uma governação sobre a égide da unidade nacional. Falhou, foi incapaz de pôr em prática esse sentido da reconciliação. O presidente confia que as novas eleições ratificarão o seu projeto. Num fim de semana, visita os Bijagós, vai até Bruce, a praia mais famosa de Bubaque. Vai numa carrinha carregada de jerricans de vinho de caju: “Lá me enfiei o melhor que pude e seguimos pela única estrada que corta a ilha e vai quase até ao outro extremo. Foi o presidente Luís Cabral que mandou construir esta estrada, explicam-me. Mas depois ninguém mais cuidou dela e veja o estado em que ela se encontra”. E vem o golpe de Estado, os militares deram voz à insatisfação popular, como ele comenta: “Os buracos financeiros cada vez mais profundos e escabrosos deixavam desesperados governantes e governados. Os governantes sem soluções eram despedidos uns atrás dos outros com o rótulo de incompetência com que se pretendia aplacar o descontentamento cada vez menos resignado dos funcionários, militares e trabalhadores sem pagamento desde o princípio do ano. No rol de despedimentos com ou sem justa causa entraram uns Juízes do Supremo e os Deputados da Assembleia Nacional Popular. Como todos os que não têm meios financeiros, Koumba viveu do crédito e acabou quando este se esgotou”. E tece uma consideração sobre a natureza da destituição: “Não tendo sido disparado um único tiro, este golpe não foi um verdadeiro golpe de Estado. De facto, todos o apoiaram, desde os partidos às igrejas e organizações da sociedade civil. Até o próprio Presidente veio a anuir em retirar-se voluntariamente da Presidência (…) Entretanto um governo de transição de unidade nacional está na forja com a provável bênção do Bispo de Bissau”.

O que parecia apaziguador deu origem a desacordos infernais, desentendimento entre os partidos e a sociedade civil. Arranjou-se um Presidente da República de Transição “que goza de uma absoluta e geral confiança pela sua reputação impoluta como um homem de bem”. O autor recorre à figura do jugudés (jagudi) para falar da agitação da classe política, rubricaram um novo pacto, “os representantes dos partidos políticos vão debicando pastas ministeriais e posições na hierarquia do Estado, emprestando a sua legitimidade representativa aos reais detentores do poder. Francisco Fadul protestou. A carta foi assinada na presença de 25 generais ou oficiais superiores das forças armadas, os representantes de 24 partidos políticos e de 8 organizações da sociedade civil. O Bispo de Bissau, D. José Câmanate na Bissign, Balanta, apela à reconciliação e escreve em carta pastoral: “Sonhemos e trabalhemos para que a Guiné-Bissau possa encontrar o seu verdadeiro caminho para o desenvolvimento do exercício das Leis, da Democracia, do Trabalho, da Honestidade, do Diálogo, da Justiça, da Paz, da Credibilidade”. Fica de pé um Conselho Nacional de Transição, uma espécie de Parlamento, emana do Comité Militar, que engloba todos os generais e oficiais superiores revoltosos.

Transição? A Guiné-Bissau nunca saiu da transição, mas agora tem um presidente com um mandato previsto de um ano e meio e um governo que deve administrar o País até que um novo governo constitucional saia das eleições previstas para Março de 2004. E o cronista questiona: “A reflexão que se impõe é a de descortinar a natureza do regime de transição na Guiné-Bissau, depois da eleição dos novos parlamentares. Renovada que esteja a Assembleia Nacional Popular, ou seja, criadas as condições para os representantes legítimos do povo soberano dizerem o que querem como Constituição e como Governo do País, qual o papel que estará igualmente reservado aos autores do golpe de 14 de Setembro, isto é, qual o destino do Comité Militar de Restituição da Ordem Constitucional e Democrática”.

Os militares aparecem pois em força neste regime de transição, misturam-se com todos os partidos políticos (ou quase), com as religiões e com as organizações da sociedade civil. Aprovou-se uma Carta Política de Transição. E o cronista aproveita para fazer uma leve digressão sobre o aparato constitucional guineense. Recorda que só em 1993 é que foi adotada uma Constituição aberta ao pluralismo político. A Guiné consagrou um semipresidencialismo em que o poder do Presidente da República é de algum modo contrabalançado pelo poder do Governo e do seu Primeiro-Ministro. O Presidente da República nomeia e exonera o Primeiro-Ministro tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidas as forças politicas representadas da Assembleia Popular. Em 2002, a Assembleia Nacional Popular aprovou alterações constitucionais no sentido de cercear os poderes presidenciais. Kumba Yalá não gostou, não promulgou e dissolveu a Assembleia Nacional Popular. Com este seu gesto, terá porventura lançado uma decisiva pazada de cal na sua sepultura.

(Continua)
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Nota de editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12895: Notas de leitura (575): "Como Fui Expulso de Capelão Militar", por Pe. Mário de Oliveira (Mário Beja Santos)

terça-feira, 3 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3973: Nuvens negras sobre Bissau (11): Em Novembro de 2000, no golpe de Ansumane Mané, eu também estava lá... (Albano Costa)


Guiné-Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > Tensão em Bissau com mais uma tentativa de golpe de Estado, liderada por Ansumane Mané (1940-2000). Albano Costa, o filho Hugo Costa e os camaradas que estavam, com eles, na Guiné, em 'turismo de saudade', foram apanhados pelos acontecimentos, mas não alteraram os seus planos.

Fotos: © Albano Costa (2009). Direitos reservados

A história (recente e passada) da Guiné-Bissau tem sido marcada pela violência política. Recorde-se que em 14 de Novembro de 1980, o presidente Luís Cabral é derrubado pelo 1.º golpe de Estado da jovem República, liderado por Nino Vieira, seu primeiro ministro e antigo camarada de armas.
Em 1984 é aprovada uma nova Constituição mas só em 1991 passa a haver um sistema multipartidário. Com o novo regime, as primeiras eleições têm em 1994. Nino Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, é eleito Presidente da República à 2.ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994.

Em 1998, a Guiné-Bissau mergulha numa sangrenta guerra civil. O golpe que derruba Nino Vieira é precedido por uma rebelião militar em 7 de Junho de 1998, causada pela destituição do general Ansumane Mané como Chefe do Estado Maior das Forças Armadas.

Mané destitui Nino Vieira em 7 de Maio de 1999 (que se vê obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal).

Em 13 de Maio de 1999, o presidente do Parlamento, Malam Bacai Sanhá, ocupou interinamente a presidência, ficando Ansumane Mané à frente da Junta Militar.

Em Janeiro de 2000, o líder do Partido da Renovação Social (PRS), Kumba Yalá é eleito presidente e tem pela frente a difícil tarefa de reconstruir um país, devastado pela guerra civil. Em Novembro de 2000, o general Mané, que reivindicava o comando supremo das Forças Armadas, protagoniza mais uma frustrada tentativa de golpe. É assassinado a 30 desse mês. Há novas tentativas de golpe de Estado em Dezembro de 2001 e em Maio de 2002.

Em Novembro de 2002, Yalá dissolve o Parlamento. A pedido das Nações Unidas, são convocadas eleições para Outubro de 2003, mas, em 14 de Setembro desse ano, um novo golpe depõe Yalá. A Junta Militar nomeia Henrique Rosa como presidente interino.

As eleições legislativas de 28 de Março de 2004 foram ganhas pelo o PAIGC: Carlos Gomes Júnior é nomeado primeiro-ministro. Em Outubro daquele ano, devido à falta de pagamento de salários dos capacetes azuis guineenses em serviço na Libéria causou um motim no qual morreu o chefe de Estado-Maior, general Correia Seabra.

Em Maio de 2005, Nino Vieira e Kumba Yalá regressam ao país. Nino ganha a segunda a volta das eleições, contra Bacai Sanhá, o candidato oficial do PAIGC.

Em agosto de 2008, Nino Vieira nomeou Carlos Correia como primeiro-ministro, após dissolver o Parlamento e convocar eleições legislativas para novembro.

Poucos dias antes, os serviços de segurança militar prendem o almirante José Américo Bubo Na Tchuto, acusado de preparar um golpe de Estado. Em 16 de novembro de 2008, o PAIGC obteve a maioria absoluta nas eleições legislativas.

Após outra tentativa de golpe militar, em 23 de novembro, o presidente 'Nino' Vieira nomeou Carlos Gomes Júnior, líder do PAIGC como primeiro-ministro, em 26 de Dezembro.

Em 2 de Março de 2009 Vieira é assassinado por militares leais ao Chefe do Estado-Maior do Exército, general Tagme Na Waie, de etnia balanta, morto no dia anterior num atentado à bomba.


1. Mensagem de Albano Costa (Guifões, Matosinhos)

Eu estava na Guiné, em 2000, quando se deu um golpe de estado na Guiné-Bissau (*).

Queria deixar uma palavra de conforto para os familiares e amigos dos nossos colegas portugueses que estão hoje na Guiné-Bissau em missão de solidariedade e turismo de saudade.

Devem estar descansados, porque os guineenses são um povo que sabe destrinçar as coisas, ao contrário do que muitas vezes se pensa deles, isto quero dizer pela experiência que tive, os estrangeiros e principalmente nós portugueses somos sempre muito bem aceites, eles vão ter o cuidado de informar que nada lhes vai acontecer e que vão poder continuar o seu percurso normal por terra da «nossa» Guiné-Bissau.

Aos familiares e amigos podem ficar descansados que tudo vai seguir o seu percurso normal com um pequeno senão, que é uma pequena tensão, o que é normal, e quando regressarem, ficam logo com saudades de lá voltar.

Também queria deixar aqui um abraço de esperança ao povo da Guiné-Bissau, para que ultrapassem mais este percalço no seu país, e que há sempre vida para além da morte.

Um abraço de amizade e conforto para todos,
Albano Costa
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Nota de L.G.

(*) Vd. último poste da série Nuvens negras sobre Bissau > 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3968: Nuvens negras sobre Bissau (10): Voluntários da missão humanitária 2009 a distribuir água pelos militares nas ruas da capital

sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

Dos editores do blogue> Série em construção, PAIGC - Quem foi quem ... (1). Contributos de todos os amigos e camaradas serão bem vindos, tendo em vista actualizar, completar, aprofundar ou esclarecer estas notas biográficas. (Os editores LG/CV/VB)

Nino Vieira (n. 1939)

Um guerrilheiro e uma lenda viva.


João Bernardo Vieira, Nino Vieira, Nino ou Kabi Nafantchammma como também era chamado, foi uma personalidade que nos acompanhou ao longo dos anos que durou a guerra.

Uns só ouviram falar dele, outros, principalmente os que estiveram no sul do território, sentiram na pele as acções em que directa ou indirectamente esteve envolvido.

Nino nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
Electricista de formação, filiou-se no PAIGC em 1960 e no mesmo ano partiu para a China, integrado no primeiro grupo de militantes do PAIGC que frequentou a Academia Militar de Pequim.

De volta à Guiné, foi encarregado de organizar a estrutura militar da guerrilha no Sul do território.

E teve logo que provar na prática o que tinha aprendido. Nos inícios de 1964, durante a Operação Tridente, forças do BCAV 490, fuzileiros, paraquedistas e comandos, comandadas pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro reocuparam (enquanto lá permaneceram...)a ilha de Como (ou Komo), numa acção que durou cerca de 70 dias e que custou às NT 9 mortos, 47 feridos e um T6 abatido.

Com 25 anos apenas, Nino já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conacri. Aliás, foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos de Guileje, que ele veio a ocupar em 1973, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros.

Além da indesmentível coragem, Nino teve também pelo seu lado a sorte que faz os heróis sobreviverem, e foi essa sorte que lhe permitiu escapar por várias vezes a emboscadas montadas pelas forças portuguesas, sendo o caso mais conhecido o da Operação Jove, em que uma força de páras capturou o capitão cubano Pedro Peralta.

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, Nino Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.
Luís Cabral nomeou-o 1º Ministro do Governo da Guiné-Bissau em 28 de Setembro de 1978.
Em 1980, com as condições económicas deterioradas e o crescente descontentamento da população, Nino Vieira liderou um golpe militar que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral.

As consequências do golpe tiveram profundas repercussões na vida do PAIGC. O PAIGC de Cabo Verde resolveu separar-se e a união dos povos guineense e cabo-verdiano, tão acarinhada por Amílcar Cabral, foi interrompida.
Na sequência do pronunciamento militar, suspensa a Constituição da República da Guiné-Bissau, tomou posse o Conselho Militar da Revolução chefiado por Nino Vieira.

Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.
Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. Nino Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994.

Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo. A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casemance, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fieis a Nino. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999, e Nino Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Em 7 de Abril de 2005, regressou a Bissau anunciando a sua candidatura às presidenciais de Junho de 2005.
Depois de várias controvérsias, a sua candidatura foi aceite. Concorreu contra o seu antigo Partido, o PAIGC, que apresentou Malan Sanhá como candidato. Depois de ter ficado atrás de Malan na 1ª volta, Nino ganhou à 2ª, principalmente devido a apoios de outros candidatos, nomeadamente de Kumba Yalá.

Fonte: Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril
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Nota dos editores:

(1) Vd. posts anteriores:

Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)