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sexta-feira, 5 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continuamos à volta de uma narrativa de largo espectro investigacional, elaborada com uma comunicação acessível, bem estruturada, em que o recurso à diacronia permite ir conhecendo a agenda tumultuosa dos últimos meses do Estado Novo. É interessante verificar que ainda há gente saudosista que é capaz de se procurar convencer de que aquela guerra possuía sustentabilidade, o que contraria toda a documentação produzida ao nível das instâncias militares, os recursos humanos estavam por um fio, procurava-se desesperadamente comprar armas e aviões para manter o conflito em África, o ministro das Finanças estava encostado à parede, o aparecimento do livro de Spínola endureceu duas fações dentro do regime; os autores vão elencando os acontecimentos, logo o agravamento em Moçambique, a franqueza com que Bettencourt Rodrigues vai informando o poder político da gravíssima situação militar que vive. Caetano tenta uma porta de saída, pede uma moção favorável sobre a sua política ultramarina à Assembleia Nacional, convoca depois generais e almirantes (a Brigada do Reumático), para anuir à sua política ultramarina, o MFA entretanto organiza-se, há uma precipitação em 16 de março, a revolta das Caldas. Otelo Saraiva de Carvalho aprende com os erros. A operação seguinte será um êxito estrondoso, o Estado Novo cai aparatosamente, já não há ninguém que o defenda.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

Estamos já em fevereiro de 1974, Costa Gomes regressara de Moçambique, elabora um relatório sobre a situação da província, a guerra agravara-se com a tentativa de expensão da guerrilha para sul, em Cabo Delgado a FRELIMO procurava aliciar as populações Macuas, e no Niassa registava-se também atividade da guerrilha. O potencial relativo de combate passara a ser menos favorável às forças portuguesas, era urgente a revisão das estruturas de comandos, organização das tropas e planos de operações para ganhar eficiência no combate à guerrilha. A cooperação com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul intensificara-se, entretanto, a FRELIMO irá receber o míssil terra-ar Strela, a Força Aérea em Moçambique já estava preparada para a chega do míssil e nenhum avião foi perdido na colónia. Em suma, a situação agravara-se.

E os autores debruçam-se sobre o problema da Guiné onde o míssil terra-ar Strela fez a sua aparição em março de 1973. Perante o abate de aviões e os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael, Spínola clama pelo reforço dos meios de intervenção e de armamento. O Chefe de Gabinete de Costa Gomes, o Coronel Ramires de Oliveira, pronuncia-se sobre o documento enviado por Spínola, e é bem claro: “O exame da situação estratégica leva-nos a concluir que se torna necessário rever as finalidades políticas a atingir, sabendo que o nosso potencial militar, com os meios que dispõe, não pode cumprir a missão que até agora lhe foi cometida.” Costa Gomes vai à Guiné, em 8 de junho haverá uma reunião de alto nível, o documento dessa reunião está hoje amplamente divulgado, cabe a Spínola a iniciativa de propor a saída das zonas de fronteira para posições mais recuadas. “Obviamente que este recuo teria consequências na segurança das populações, que ficariam entregues à sua sorte, mas isso era um problema que teria de ser visto no quadro particular de cada etnia e que podia ser resolvido com o recurso às milícias. Costa Gomes deu o seu aval à estratégia delineada, era a forma de economizar forças e evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. É interessante notar que, pouco tempo depois desta reunião, Spínola acabaria por mudar de ideias, quando, a 9 de junho, escreveu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, discordando do abandono das zonas de fronteira e das respetivas populações, que ficariam sem proteção militar. O retraimento do dispositivo entrava em contradição com os compromissos que teria assumido perante aquelas populações, não lhe restando outra hipótese senão abandonar as funções que desempenhava na Guiné e regressar à metrópole.”

Marcello Caetano reúne com vários ministros e Costa Gomes e pergunta a este se a Guiné era ou não defensável, “ao que o general terá respondido que, se o inimigo não aparecesse na guerra com aviação própria, a Guiné era defensável. Nessa altura, existiam informações do lado português de que o PAIGC tinha um grupo de pilotos a receber instrução na União Soviética, e de que a guerrilha podia vir a dispor de aviões de origem soviética num futuro próximo.” O General Bettencourt Rodrigues é nomeado novo governador e comandante-chefe, duas companhias que iam para Angola (CCAÇ 4641 e CCAV 8452) foram reforçar as tropas na Guiné.

Os milhões de contos que a África do Sul prometia emprestar para cobrir grande parte das necessidades em armamento já estavam a ser discutidas. Os autores dão depois nota dos acontecimentos da declaração unilateral da independência, do reacendimento de ataques fronteiriços e do bom-sucesso da Operação Neve Gelada, realizada pelo batalhão de comandos africanos. Não obstante, os bombardeamentos a Canquelifá com morteiros 120 irão continuar, Bethencourt Rodrigues chegou a equacionar o abandono desta posição, tal como Buruntuma. Numa nota enviada em 20 de abril, “Bettencourt Rodrigues expressa profunda preocupação pelas informações que tem do uso de viaturas blindadas num ataque noturno a Bedanda e das consequências que a evolução do potencial de combate do PAIGC podia ter junto das guarnições de fronteira. A utilização de viaturas blindadas pelo PAIGC preocupava as forças portuguesas há vários meses, havendo informações de que estas viaturas tinham sido desembarcadas no porto de Conacri em princípios de 1974. Costa Gomes efetuava diligências junto do Chefe-de-Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro.”

A documentação de Bettencourt Rodrigues não ilude que o inimigo dispunha de iniciativa tática, melhor equipamento militar e um grande apoio logístico, isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale, além da compra dos caças Mirage, e havia também a intenção de adquirir radares que permitissem uma boa cobertura do território guineense, para além da aquisição de morteiros de 120 mm. O Secretário-de-Estado da Aeronáutica pedia novos meios aéreos, todos contavam com o dinheiro sul-africano. A narrativa prossegue com o nascimento do MFA, o programa político começará a ser definido por uma reunião em Cascais, a 5 de março; um quadro de subversão alastra em várias unidades militares, mas também nas universidades.

Caetano entende que se deve dirigir à Assembleia Nacional, pretende que se vote uma moção que não deixei quaisquer dúvidas acerca da política ultramarina que ele prossegue. Em diferentes níveis, cresce a ebulição, no próprio regime constituem-se blocos, nas Forças Armadas procura-se avaliar o impacto do livro de Spínola, o MFA clarifica posições, escolhe para chefe do movimento Costa Gomes, internamente constituem-se comissões, na militar, sobressaem os nomes de Garcia dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Manuel Monge, na política Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço. A imprensa internacional, devido aos seus correspondentes em Lisboa, não deixa escapar as movimentações que aparentemente estão todas ligadas ao aparecimento de um livro chamado Portugal e o Futuro. A vigilância sobe as movimentações militares leva a que o ministro do Exército mande proceder a transferências compulsivas.

Na segunda semana de março de 1974, Caetano parece muito confiante com a sua política ultramarina, seguem-se reuniões com o Presidente da República, este insiste na demissão de Costa Gomes e Spínola, Caetano pede para não continuar na chefia do governo, escreve carta a Thomaz, este recebe-o ainda nesse mesmo dia, dir-lhe-á “já é tarde para qualquer deles abandonar o seu cargo, temos de ir até ao fim". E é nesse contexto que Caetano forja uma audiência a oficiais de todas as Forças Armadas a que só se recusarão estar presentes Costa Gomes, Spínola e Tierrno Bagulho, evento que ficará para a História com o nome de Brigada do Reumático. Forja-se uma remodelação do governo. E é neste ambiente que vai ter lugar a revolta das Caldas.


José Matos
Zélia Oliveira
Avião C-130
Avião P-3-Orion (Imagem Wikipédia)
Marcello Caetano recebe a Brigada do Reumático
Uma imagem esclarecedora do fim do regime

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de uma narrativa muitíssimo bem urdida, estribada na solidez da documentação, e se dúvidas subsistissem quanto à hierarquia dos problemas cruciais que levaram ao desmoronamento do Estado Novo, o rigor e a probidade deste estudo, a consulta de arquivos nacionais e estrangeiros, falam por si: como o livro de Spínola teve o poder de espoletar a discussão pública e no interior de regime quanto às soluções possíveis depois do prolongamento de uma guerra que conhecia, após 1973, um acirramento asfixiante. 

Naqueles últimos meses que precedem ao baqueamento do regime procurava-se desesperadamente comprar armas para manter a guerra, isto graças ao financiamento sul-africano. E acompanhamos a evolução do que podia parecer exclusivamente uma querela corporativa transformar-se numa vaga estuante, o MFA; e, mais facilmente se torna compreensível como praticamente ninguém tenha vindo defender o regime, que caiu num só dia, e com escasso derramamento de sangue. Mas ainda estamos no princípio, segue-se um corropio de peripécias até ao momento em que a PIDE/DGS capitula, na António Maria Cardoso.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

15 de fevereiro de 1974, Marcello Caetano preside à última reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional. 

“Costa Gomes informa os presentes de que tinha sido assinado um contrato para a aquisição de uma bateria de mísseis antiaéreos, para defender Bissau, e que o governo procurava rapidamente adquirir armas anticarro, para enfrentar as viaturas blindadas que se dizia estarem na posse do PAIGC na fronteira sul da Guiné. As baixas causadas pela guerrilha às forças portuguesas na Guiné, em 1973, tinham sido de 347 mortos e 1007 feridos, o que representava um quantitativo muito elevado. Neste ponto da reunião, Marcello Caetano intervém para referir que o governo sentia grandes dificuldades em comprar armas nos mercados internacionais, dando, como exemplo, o caso dos mísseis antiaéreos franceses Crotale. O governo francês tinha concordado em vender os mísseis por 75 milhões de francos, na perspetiva de que eram armas de defesa e que não seriam usadas no combate às guerrilhas.” 

Costa Gomes passará em revista os teatros de operações de Moçambique e Angola, interveio o secretário de Estado da Aeronáutica, Tello Polleri, sublinhando a importância de prosseguir o programa de reequipamento da Força Aérea, havia que comprar caças Mirage.

Três dias depois desta reunião, Caetano recebeu um exemplar do livro "Portugal e o Futuro", lerá o livro na noite de 20, escreverá mais tarde que tinha compreendido que o golpe de Estado militar era agora inevitável. Os autores debruçam-se sobre as razões de fundo das razões de Spínola que levaram a escrever a obra, as peripécias um tanto tortuosas sobre quem autorizou a publicação, foi uma corrida ao livro que se esgotou no mesmo dia, os leitores aperceberam-se da bomba: a vitória exclusivamente militar era inviável. 

“Pretender ganhar uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, diante mão, a derrota, a menos que se possuam ilimitadas capacidades para prolongar indefinidamente a guerra, fazendo dela uma instituição. Será esse o nosso caso?” 

Costa Gomes e Spínola são convocados a 22 de fevereiro, Caetano sente-se desautorizado e sugere aos dois generais que deviam assumir as suas responsabilidades, que serão enjeitadas por estes.

Por essa altura, a 25 de fevereiro, a Comissão Coordenadora Executiva do MFA reúne-se em casa de Otelo Saraiva de Carvalho, é elaborado um texto, agenda-se um mini plenário para 5 de março. Os autores dão-nos conta do que desencadeara esta movimentação, uma legislação publicada no verão de 1973 que essencialmente procurava atrair oficiais milicianos à profissão militar, de acordo com a primeira legislação promulgada os oficiais milicianos mediante cursos rápidos passariam ao quadro permanente, a antiguidade dos oficiais deste quadro parecia posta em causa. 

“Os oficiais oriundos de milicianos iriam ultrapassar na carreira os oriundos de cadetes do quadro permanente, situação que se considerava ser uma injustiça.” 

Caetano encontra-se com o Presidente da República em 28 de fevereiro, pede a Thomaz que aceite a exoneração do executivo, Thomaz responde que esta não fazia sentido.

A situação internacional era manifestamente intolerável para a vida do regime, o ataque da Síria e do Egito a Israel a 6 outubro de 1973, teve consequências gravíssimas para a economia portuguesa, os grandes produtores árabes bloquearam o fornecimento dos hidrocarbonetos a Portugal, o abastecimento passou a ser feito no mercado livre, a um preço gravoso. Kissinger escreveu mesmo uma carta a Caetano em tom de Ultimatum, precisava da base das Lajes imediatamente, senão… Isto numa altura em que Portugal precisava de obter desesperadamente mísseis terra-ar portáteis, do tipo Redeye para proteger as tropas portuguesas na Guiné. 

Costa Gomes fizera uma análise na reunião de 19 de outubro no Conselho Superior de Defesa Nacional, chamara a atenção para uma possível escalada da guerra da Guiné, “uma vez que aquele país dispunha de caças MiG-15 e MiG-17 e havia informações de pilotos do PAIGC a serem treinados na União Soviética, que se podiam juntar aos da própria Força Aérea da República da Guiné. Costa Gomes refere ainda que a situação militar na colónia se tinha agravado devido às novas capacidades militares da guerrilha e à alteração do conceito de manobra que levou o PAIGC a fazer grandes concentrações à volta de três quartéis das tropas portuguesas, em zonas de fronteira, que isolou e bombardeou com elevado poder de fogo.” O general falou dos números decorrentes destas operações e do agravamento da guerrilha: “As nossas forças tiveram 125 mortos e 586 feridos até ao fim do período em análise, o que são números muito elevados (correspondem à perda de um batalhão), dos quais 96 mortos e 500 feridos só nos mês de maio.”

E os autores continuam: “A situação podia piorar ainda mais no caso de um ataque de aviação que, na opinião de Costa Gomes, poderia conduzir ao colapso militar das forças portuguesas naquele teatro de operações. Sendo assim, defendia que a nova ameaça exigia a existência de meios de defesa antiaérea apropriados para a cidade de Bissau, o que teria de incluir mísseis terra-ar e, complementarmente, aviões de caça modernos que podiam ser usados para retaliar sobre o país vizinho. A defesa de Bissau era prioritária, mas qualquer quartel na Guiné podia ser atacado, o que exigia também mísseis terra-ar portáteis para defender as tropas portuguesas. Sá Viana Rebelo, o ministro da Defesa, deu conta das negociações com a Africa do Sul de fornecimento de material de guerra, nessa altura considerava-se a possibilidade de um empréstimo avultado em dinheiro para reequipar as forças portuguesas que precisavam urgentemente de ser modernizadas.” 

E nesta reunião, Cota Dias, ministro das Finanças, informou não estar em condições de assegurar despesas suplementares.

É num capítulo intitulado “Uma questão de vida ou de morte” que os autores escrevem as conversações luso-norte-americanas para a aquisição de mísseis, veículos, aeronaves, equipamentos. Quando Kissinger vem a Lisboa em 17 de dezembro de 1973 recebe um memorando onde claramente se põem números para mísseis terra-ar, veículos modernos com sistema antitanques e aviões de transporte C-130, o secretário de Estado lembrou que o Congresso dos EUA iriam levantar inúmeros obstáculos, impunha-se encontrar soluções em intermediários, segue-se um período em que Washington andou a empatar até um dia o embaixador português ter recebido uma resposta de que os EUA iriam ofertar uma central nuclear.

No início de 1974 dá-se o agravamento da situação em Moçambique, uma família de agricultores brancos é atacada por guerrilheiros da FRELIMO, a mulher é morta, segue-se uma greve geral, apedreja-se a messe de oficiais do exército na Beira, Costa Gomes vai a Moçambique, é no decurso dessas reuniões que o general confirma as dificuldades decorrentes da dependência portuguesa, crescera o número de países que impediam a venda de armamento, acresce a falta de oficiais do exército para comandar a polícia. 

“As tropas no Ultramar e em instrução na metrópole tinham aproximadamente 200 mil homens, e em função desse número deviam existir 18 mil oficiais. Mas na verdade, no terreno, existiam pouco mais de 4 mil. Um estudo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, datado de março de 1973, já chamava a atenção para o problema referindo que era uma questão inadiável e que os oficiais em funções de combate estavam a atingir o limite da exaustão. No estudo podia-se ver que o número de oficiais que o Exército devia ter na metrópole, no Ultramar e de reserva para as forças de segurança estava muito abaixo do necessário. Em teoria, deviam ser 5650 oficiais na globalidade, mas em janeiro de 1972 existiam apenas 2872. Além disso, as carências eram mais graves ao nível de capitães e oficiais subalternos. Nas conclusões, o estudo alertava para a situação gravíssima e potencialmente perigosa que se vivia no Exército, e para a urgência de medidas de fundo a tomar rapidamente para não se correr o risco do Exército se desmoronar.”

José Matos
Zélia Oliveira
Notícias sobre o levantamento das Caldas, em 16 de março de 1974
Imagem de Guidage ao tempo em que o coronel Moura Calheiros e a sua equipa fora exumar os paraquedistas falecidos durante as operações de libertação do cerco, que ocorreram maio de 1973
Outra imagem de Guidage, da autoria de Albano Costa, publicada no blogue Dos Combatentes da Guerra do Ultramar, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24102: S(C)em comentários (1): Visita de Marcello Caetano a Bissau, em 14 de abril de 1969: a primeira de um chefe de governo ao ultramar (oito anos depois do início da guerra)



Excerto do vespertino "Diário de Lisboa", nº 16637, ano 49, segunda feira, 14 de abril de 1969,3ª edição, pp. 1 e 10. Diretor: António Ruella Ramos. Cortesia de Casa Comum > Fundação Mário Soares > Fundos DRR - Documentos Ruella Ramos.

Citação:(1969), "Diário de Lisboa", nº 16637, Ano 49, Segunda, 14 de Abril de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7219 (2018-2-20) (*)


Guiné > Bissau > 14 de abril de 1969 > Visita presidencial do Professor Marcelo Caetano a Bissau: lado a lado, mas já de costas viradas, Marcelo Caetano e Spínola...

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Às vezes mais vale mais uma foto ou um título de caixa alta do que mil palavras... Daí a razão de ser desta série, "S(C)em Comentários". Há excesso de ruído nas redes sociais. E, depois, com a idade, tudo o que é mais do que duas linhas, é informação gorda poliinsaturada... E a nossa memória é curta e fraca. Afinal, somos animais de racionalidade limitada.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18337: Recortes de imprensa (92): A primeira visita de um chefe do governo português ao Ultramar: Marcelo Caetano, em Bissau ("Diário de Lisboa", 14/4/1969)

(**) Vd. poste de 17 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18326: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XVIII: Visita, a Bissau, do presidente do Conselho de Ministros, prof Marcelo Caetano, em 14 e 15 de abril de 1969 (III)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Cedo se informou que os dois volumes existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia encerram um conjunto lacunar de atas do Conselho Consultivo e depois Legislativo da Guiné, tudo começa em 1917, há diferentes hiatos, faltas que não permitem tentar sequer uma leitura diacrónica do ideário da governação desde a I República até 1971, assomam iniciativas generosas, defesa de interesses económicos, avultam as preocupações com a exequibilidade orçamental, em dados momentos homenageiam-se líderes do Estado Novo, e é percetível o que diferencia Schulz e Spínola, o primeiro no uso da prudência, não querendo asfixiar as finanças da Guiné, exigindo um Plano de Fomento auto-sustentado, o segundo referindo que recebeu meios avultados para pôr em prática a sua Guiné Melhor, e daí a disparidade dos orçamentos destes dois governadores. Para quem pretende estudar a História da Guiné, é compreensível que se sugira a análise desta fonte documental, a despeito de tanta lacuna.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (10)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Os tempos mudaram, já se fez referência que as sessões do Conselho Legislativo têm participação pública, é ótimo para a conversação mediática que Spínola quer manter com os guinéus, começou logo em 1968, e será uma constante do seu mandato. Já se fez referência à sessão de 10 de dezembro, nas vésperas do fim de ano o Conselho reúne-se e aprova o orçamento da Província para 1969, mas é a 14 de abril que o Conselho tem direito a aparecer nos televisores: comparecem Marcello Caetano e Spínola, vão falar para a Guiné, mandam recado para o Império.

Com pompa e circunstância tem a palavra o vogal Joaquim Baticâ Ferreira: “Nasci e vivo na Guiné, onde sou chefe da comunidade Manjaca, mas todas as raças desta Província estão unidas pela sagrada bandeira de Portugal. É por isso que falo em nome da população nativa da Guiné, para dizer a Vossa Excelência que a nossa firme determinação é a de continuar a ser portuguesas.” E apoia o projeta da Guiné Melhor: com boas estradas alcatroadas e portos fluviais; com mais escolas primárias e estabelecimentos de ensino; com mais hospitais, maternidades e postos sanitários.

Tomou seguidamente a palavra António de Spínola: “A Província encontra-se em guerra, aqui luta-se e morre-se pela causa sublime da paz. Vastos e complexos sãos os seus problemas de guerra e de paz, uns já em fase de resolução, outros equacionados, outros ainda apenas esboçados. A Província caminha na senda do seu desenvolvimento económico-social no quadro das estruturas de uma Guiné Melhor.”

Por último, discursou Marcello Caetano: “Os governantes e as autoridades têm procurado incessantemente combater a doença, a miséria, a opressão, como neste momento lutam lado a lado com as populações nativas e as Forças Armadas contra os perturbadores da Paz. O desenvolvimento do território não se obtém na confusão e no tumulto. É obra de amor. É fruto do trabalho. É resultado do emprego intensivo, adequado e oportuno das técnicas que o nosso tempo coloca à disposição do Homem. Portugal está aberto a todos os seus filhos. Mesmo aqueles que algum dia hajam hesitado no caminho e duvidado de que a bandeira verde-rubra fosse o estandarte da liberdade e do progresso, mesmo esses serão bem recebidos se reconhecendo o seu erro. Foi para proteger a admirável fidelidade da gente da terra que da Metrópole e de outras províncias alguns milhares de portugueses dos exércitos da terra, do mar e do ar, vieram reforçar as forças de segurança da Guiné. Unidos nas mesmas dificuldades, nos mesmos riscos e nos mesmos perigos. E no decorrer das ações em que tiveram de enfrentar armas estrangeiras, brandidas pelos agentes da subversão, caíram lado a lado soldados da Guiné e de outras terras portuguesas, misturando o seu sangue generoso na defesa da causa comum. A terra adubada pelo sangue há de florescer. Da nossa vontade, da vontade de nós todos, portugueses de todas as etnias para quem a Guiné constitui parcela da Pátria, depende que o milagre se produza.”

A biblioteca da Sociedade de Geografia inclui atas até 1971, vale a pena mencionar alguns títulos. Em 30 de outubro, Spínola retoma as linhas do seu plano para a ativação do progresso económico-social da Guiné (aumento de salários, subsídio do custo de vida, vencimento para as autoridades tradicionais, apoio pecuniário para um novo gerador destinado a Bissau, reapetrechamento da Imprensa Nacional, melhoramentos em várias localidades, aquisição para os TAGP de 3 aviões, asfaltagem de estradas, saneamento, etc., etc.). Na circunstância o diretor da Fazendo comentou: “Continua a Província a dispor de uma balança de pagamentos com saldos positivos confortáveis e que neste momento se cifra em cem mil contos”.

Em 29 de dezembro ainda desse ano de 1969, a sessão abre com uma exposição de Spínola pondo ênfase na execução de uma política de valorização e dignificação humanas, foi dentro dessa perspetiva que se elaborou o Plano de Ação para 1970 e revelou com alguma minucia as linhas gerais quanto a: comunicações, agricultora e pecuária, assistência médico-sanitária, educação e cultura, melhoramentos rurais, trabalho, economia, justiça, setor administrativo. Em 30 de outubro do ano seguinte, Spínola procede a um balanço da execução do Plano de Ação, e em dada altura observou: “O progresso da Guiné, como parcela de uma nação caracterizadamente africana e multirracial, terá de aferir-se pelo número dos lugares públicos ocupados no futuro proporcionalmente a cada uma das etnias, pois temos de ter bem presente que não se pode construir uma sociedade em bases sólidas e duradouras sem a elevação cultural das massas portuguesas africanas.”.

Era um novo acento tónico da política da Guiné Melhor, declaradamente o conceito da Guiné para os guinéus, os lugares cimeiros ocupados pelos cabo-verdianos passariam a ser ocupados por guineenses. Em 18 de dezembro desse ano é apresentado o diploma legislativo destinado a aprovar o Regulamento do Ensino Primário Elementar da Província da Guiné. Em 30 de dezembro, dando continuação às grandes metas do Plano de Ação para 1970, é apresentado e aprovado o Plano de Ação para 1971. Em 29 de outubro de 1971, Spínola refere-se à participação das populações na defesa da Província: “Criou-se o Comando-Geral da Milícia, estruturou-se em novos moldes o Corpo da Milícia e regulamentaram-se as suas atividades; igualmente foi regulamentada a atividade do Corpo dos Voluntários; formaram-se no corrente ano 720 milícias e estavam em formação mais 800; aumentou-se o efetivo da Força Armada Africana com um destacamento de Fuzileiros e uma Companhia de Comandos; organizaram-se em autodefesa mais 2360 elementos da população a quem foi destinado armamento. E em 22 de dezembro desse ano foram aprovados diferentes regulamentos, entre eles o da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil da Guiné e o regulamento do Corpo de Milícias.”

Findam aqui as atas do Conselho Legislativo da Guiné, resta saber se nalgum arquivo ou biblioteca será possível encontrar um acervo mais completo do que este.

Receção a Marcello Caetano em Bissau, 14 de abril de 1969
António de Spínola, 1968, atrás James Pinto Bull
Postal de Bissau, vista da Avenida Marginal, 1960
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Nota do editor:

Postes anteriores de:

14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)

21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

28 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

11 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

8 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

15 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24068: Historiografia da presença portuguesa em África (355): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (9) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24068: Historiografia da presença portuguesa em África (355): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Na fase final da vida deste Conselho Legislativo é apreciável a mudança de estilo, a conceção de interesse público que norteava Schulz ou Spínola é patente nos seus discursos, Schulz era de uma enorme reserva, utilizava sempre a prudência financeira, Spínola irá utilizar o Conselho como mais um altifalante para chegar aos guineenses e a Lisboa. Veja-se o primeiro discurso de Spínola ao Conselho, independentemente de em reuniões posteriores ter apreciado matérias rotineiras, caso da conceção de um novo empréstimo aos CTT para melhoramento das telecomunicações, isto no mesmo dia em que fez discurso político com pompa e circunstância. Em 23 de outubro de 1968, pouco depois da tomada de posse de Marcello Caetano, Spínola vem a Lisboa, quem preside ao Conselho é o Encarregado de Governo e que dá a notícia de que a publicação do novo Estatuto Político-Administrativo criara um Conselho Legislativo com mais ampla representação de todos os setores da vida da Província. Alguém deplorará que o atual Conselho vive normalmente alheio à maior parte da legislação que estava a ser promulgada. Em 12 de dezembro há a locução de Spínola com participação pública, a 30 de dezembro de 1968 é aprovado o orçamento da Província para o ano seguinte. E em 14 de abril reúne o Conselho presidido por Marcello Caetano, haverá discursos, como veremos mais adiante.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (9)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Caminhando para as últimas atas deste Conselho Legislativo, permito-me pedir a atenção do leitor para dois factos: um, a inexistência de um número impressionante de atas neste acervo da Biblioteca da Sociedade de Geografia, o que dificulta enormemente encontrar-se um fio condutor (se é caso que ele existe) que desse oportunidade a uma apreciação ideológica ao longo do tempo; e verificar, com a chegada de António de Spínola, e passagem do Conselho Legislativo a órgão que admitia a participação pública, há a sua utilização a canal mediático, o governador passa a falar mais para os média, utilizando as reuniões como caixa de ressonância.

Vimos como na reunião de 29 de dezembro de 1964 o governador Schulz refletia sobre o orçamento da Província para 1965 e lembrava aos conselheiros que o Plano de Fomento impunha a necessidade do seu uso prudente, o plano fazia-se de empréstimos, havia os juros, a asfixia financeira era o que menos se podia desejar para a Guiné, e na circunstância o governador analisava três soluções, mas sempre dando ênfase ao aumento das receitas ou à diminuição das despesas; em 27 de abril do ano seguinte o Conselho regozija-se pela promoção do generalato do brigadeiro Schulz; em 10 de junho, procede-se à eleição dos representantes do Conselho Legislativo da Província que iriam participar no Colégio Eleitoral para a eleição do Presidente da República; em 13 de setembro, dá-se o aval aos empreendimentos a realizar em 1966 com verbas do Plano Intercalar de Fomento, e alguém comentou que não havia até ao presente qualquer benefício resultante da aplicação das primeiras fases do plano, havia necessidade de se obter maiores prazos de amortização e um juro mais baixo. “Sem isto, estaremos a gastar dinheiro na quase certeza de não poder pagar”. E o próprio governador observou que a rede de celeiros não tinha sido aproveitada “em virtude da atual situação da Província”. E concluía dizendo que esperava que a Guiné viesse a ter o mesmo tratamento de Cabo-Verde e Timor que recebem verbas dos Planos de Fomento sem pagamento de juros. Por essa época já se incrementava a sementeira do caju.

É uma reunião em que se discute o plano de mecanização da agricultora, propunha-se ao governador uma reformulação dos serviços e a adoção de um diploma legislativo para a conceção de benefícios pautais para carburantes e lubrificantes utilizados no desbravamento ou arroteamento de florestas, em obras de captação e distribuição de água, de defesa contra inundações e trabalhos de enxugo, lavoura e gradagens, amanhos culturais, transporte de fertilizantes e de colheita, etc. O governador informou que se estava a ponderar a criação de uma Caixa de Crédito Agrícola, bem como a construção de dois postos de sanidade pecuária. Votou-se a construção de um cais acostável em Bambadinca e obras nos portos de Binta e Buba. Em 26 de outubro, o Conselho reúne para a cerimónia da entrega de uma medalha de prata de serviços distintos ao Chefe dos Serviços da Fazenda, Tomás Joaquim da Cunha Alves, no texto a louvor é referido explicitamente que logo que a Província entrara na situação de turbulência que ainda se vivia o respetivo funcionário, correndo riscos de vida, percorreu o território para zelar pelo erário público. E no dia seguinte o Conselho voltou a reunir para apreciação o Regulamento dos Serviços de Saúde e Assistência. E não há mais atas da governação de Arnaldo Schulz.

Estamos agora em 22 de julho de 1968, preside António de Spínola, mudou o discurso, a sua alocução não ficará em circuito fechado, será transmitida pelos meios de comunicação social e chegará a Lisboa, é um discurso de Estado:
“Após 5 meses de observação, completada com muitas horas de meditação, creio ter adquirido consciência da real situação da Província. Estudados os problemas básicos respeitantes ao dispositivo de defesa da Província e ao desenvolvimento económico-social, imediatamente se evidenciou a necessidade de reforçar os meios de defesa e de procurar obter um substancial apoio financeiro. Desloquei-me a Lisboa para apresentar ao Governo Central, com todo o realismo, a situação efetiva da Província. Regressei a Bissau confortado com as adequadas e oportunas decisões tomadas pelo Governo Central. Além de um reforço efetivo de meios militares, que me permitem melhorar a estrutura de defesa das populações, foi concedido ao Governo da Província significativo apoio financeiro”.

E pronuncia-se sobre tais medidas e enfatiza o que prevê serem as melhores condições de vida de quem labuta na Guiné: conceção de um subsídio de custo de vida a todos os funcionários da Província; aumento para 100% na contagem de tempo de serviço a todos os funcionários em serviço na Província; aumento do salário mínimo dos trabalhadores pagos pelo orçamento da Província; revisão da tabela de salários mínimos; atribuição de um vencimento fixo aos régulos da Província; assegurar o fornecimento de energia elétrica a Bissau; construção e reapetrechamento da Imprensa Nacional; execução de um plano de melhoramentos públicos a desenvolver no interior da Província, abastecimento de água, saneamento, construção de residências para as autoridades tradicionais, criação de um fundo destinado a subsidiar a população suburbana de forma a permitir a melhoria das suas habitações. Iriam ser potenciados os recursos provenientes do III Plano de Fomento através de empreendimentos em curso ou a iniciar no ano seguinte: construção de estradas, prevendo-se que o asfalto chegasse a Nova Lamego e ao Pelundo, abertura da frente Mansabá-Farim, construção do Centro Materno Infantil e Maternidade de Bissau, etc., etc.

E concluía o governador dizendo que “Este substancial incremento dado ao desenvolvimento da província só foi possível devido à excecional compreensão do Governo Central em relação aos problemas da Guiné. Conto, para levar a cabo tão árdua e complexa missão, com a colaboração efetiva de todos os que trabalham em prol da causa pública, na esperança de que saibam corresponder – com austeridade de conduta e integral dedicação ao trabalho – ao esforço que o governo da Província continuará despendendo no sentido de construir uma Guiné melhor”.

O Conselho Legislativo voltará a reunir com pompa a circunstância sob a presidência de Marcello Caetano, em 14 de abril de 1969. Iremos ouvir o discurso de ambos, já estamos infinitamente longe daqueles tempos e que as reuniões decorriam numa estreita intimidade e onde estava ausente a representação da política.

(continua)
General Arnaldo Schulz
1 Escudo da Guiné, 1946
Chegada do Brigadeiro António de Spínola à Guiné, maio de 1968
Visita de António de Spínola ao Comando da Defesa Marítima da Guiné, junho de 1968
O porto de Bissau em 2021, imagem retirada de Mercados Africanos, com a devida vénia
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Nota do editor:

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que procurar entender o salto que se operou com a chegada de Sarmento Rodrigues em 1945 à Guiné, por isso me socorri de valiosos parágrafos retirados de 2 artigos assinados pelo investigador António Duarte Silva acerca do que representou a política deste Governador no contexto de uma nova era colonial, tal como Marcello Caetano a visionou. Destas atas aqui referenciadas se pode ver com clareza os apoios que o Governante pode obter para um trabalho novo e para o inculcamento de um novo espírito civilizacional, daí a categorização com maior amplitude de indígena, assimilado e civilizado, categorização essa que será radicalmente alterada quando explodirem as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (3)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato. Vimos, no texto anterior, como o novo Governador, o Capitão Tenente Manuel Sarmento Rodrigues apresentou na sessão extraordinária de 3 de julho de 1945 o seu plano de ação, lendo-o à distância destas quase oito centúrias, ficamos cientes que sabia muito bem ao que vinha, tinha o conhecimento profundo dos dossiês e uma visão para o desenvolvimento da colónia.

Um profundo conhecedor e analista deste período, o investigador António Duarte Silva, deixou-nos parágrafos bem elucidativos do que movia o distinto oficial da Marinha:
“Com o termo da II Guerra Mundial à vista, aguardava-se uma remodelação ministerial e Salazar decidiu convidar Marcello Caetano para uma pasta, tanto mais que este começara a interessar-se por uma carreira política e revelava pretensões reformistas. Rejeitada uma primeira proposta quanto ao Ministério da Justiça, Salazar decidiu oferecer-lhe o Ministério das Colónias, cargo que enalteceu como «vastíssimo campo de ação, envolvendo todas as matérias da administração em relação a uma área enorme». Sugeriu mesmo que no Ultramar estava «o futuro da Nação, o seu grande destino histórico», concordando «ter chegado a altura de começar a mudar de rumo» e adotar uma política favorável à autonomia das colónias. Acrescenta Marcello que aceitou estas condições e, de facto, no exercício de funções como Ministro das Colónias, entre 6 de setembro de 1944 e 4 de fevereiro de 1947, destacar-se-á quer como defensor da renovação política do Estado Novo, quer como convicto africanista. Tinha um programa próprio, embora reconhecesse que a política colonial portuguesa deveria continuar assente nos dois pilares consignados desde 1930 no artigo 2.º do Ato Colonial: por um lado, a missão de colonizar mediante a expansão da “raça branca” e, por outro, a missão de civilizar as populações indígenas. Todavia, entendia que, na conjuntura do final da II Guerra Mundial, esta política de colonizar e de civilizar tinha de evoluir, não só para promover a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico e social das colónias, como também para se acautelar perante a ascensão das forças anticolonialistas, especialmente norte-americanas.

Marcello conhecia a Guiné Portuguesa desde 1935, quando a visitara na qualidade de diretor cultural de um cruzeiro de férias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias. A Guiné deixara-lhe «uma recordação muito viva e agradável». Recorda que, ao tentar preparar-se para aquela viagem, não encontrara fontes fidedignas de informação sobre a sua geografia, história, economia, etnografia ou administração, pois era praticamente desconhecida: «daí o espanto com que eu e os meus companheiros de viagem de 1935 vimos o que era e o que podia ser, afinal, a nossa Guiné ao desembarcarmos em Bissau primeiro e depois em Bolama». Por isso, muitos anos depois, em abril de 1969, no início da longa visita que realizou ao Ultramar como Presidente do Conselho, não deixou de recordar aqueles seus primeiros contactos: quer a «imperecível recordação da beleza da terra e da dignidade da gente», quer as tradições combativas de Portugal na Guiné.

A colónia da Guiné iria, pois, ser o primeiro campo de ensaio dos rumos autonomistas e desenvolvimentistas da política portuguesa. Efetivamente, além da referida intenção de a tornar mais conhecida e um território modelar, outras motivações levaram à escolha da Guiné para esse rumo novo na política colonial. Por um lado, vários indícios apontavam para que Bissau e Bolama pudessem ocupar nas redes de transportes marítimos e aéreos após a II Guerra Mundial uma posição destacada de escala internacional e de cruzamento de uma “carreira aérea imperial” ou, ao menos, de ponto de escala dos paquetes que serviam Angola e Moçambique. Por outro lado, pesava um fator de ordem internacional: a circunstância de a Guiné estar rodeada de colónias francesas e inglesas e de se encontrar numa área onde se verificava uma assinalável presença diplomática norte-americana. Eis por que Marcello pretendia apostar na possibilidade de uma «crónica nova da conquista da Guiné para a civilização e para a ciência sempre dentro das conceções tradicionais da política colonial que soube casar a fé e o império: – a necessidade do mando com a fraternidade cristã».

Além da mudança de capital para Bissau, conseguida em 1941, também era necessário remodelar o governo da Guiné, pois o Governador em funções, Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro, empossado a 16 de março de 1941, tinha «14 anos de governo tropical e [estava] já na fase das asneiras frequentes». Marcello Caetano pretendia uma equipa que saneasse a Guiné «do ambiente de depressão e intriga em que constantemente se debatia», e cujos trabalhos, elaborados com uma visão otimista e uma postura construtiva, haveriam de começar «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguir através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Portanto, o perfil desejável apontava para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia». Esse oficial seria o capitão- -tenente Sarmento Rodrigues. Começava a formar-se, aqui e agora, «uma nova escola de política ultramarina»”.

Parágrafos extraídos do artigo intitulado “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, publicado na Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 25, 2008.

“Nos cerca de três anos e três meses de exercício efetivo, de 1945 a 1948, o governo de Sarmento Rodrigues vai reforçar a administração colonial, tentar associar os guineenses à governação e construir a rede de infraestruturas indispensáveis à política de desenvolvimento. Apesar de, na época, a orientação ter causado «alguma controvérsia», esse triénio, resume Peixoto Correia, produziu «obra de alcance e profundidade, porque a política praticada atendeu às características sociais e étnicas locais e ainda por as realizações haverem afetado todos os setores». Segundo o Vice-Almirante Silva Horta, Sarmento Rodrigues acreditou «sinceramente na doutrina oficial de então», contactou toda a população, proibiu os castigos corporais, promoveu a agricultura, a investigação científica e inúmeras obras, tornando «a Guiné melhor» e pondo-a «no mapa».

A sua política prosseguiu a estratégia (iniciada, antes do «28 de maio» de 1926, pelo Governador Vellez Caroço) de privilegiar as alianças com os muçulmanos (sobretudo fulas) e, por outro lado, expandiu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços (que também dominavam o sector comercial), envolvendo, progressivamente, «alguns guineenses de cor escura».

De facto, Sarmento Rodrigues restringiu os poderes dos régulos e manifestou-se «intransigentemente» contra o uso das violências em relação ao trabalho dos indígenas, atitude que terá provocado diversas «lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam». Numa perspetiva de economia política, terá adotado um «populismo agrário», algo romântico, e olhado para a Guiné como se fora «um pomar tropical».


Outra medida significativa foi a aprovação do Diploma dos Cidadãos, como ficou conhecido o Diploma Legislativo n.º 1364, de 7 de outubro de 1946, que reformava o chamado «Diploma dos Assimilados» (Diploma Legislativo n.º 535, de 8 de novembro de 1930), o qual, por sua vez, estabelecera as condições em que os natu¬rais das colónias podiam passar à condição de «assimilados a europeus», definindo, desse modo, um estatuto pessoal, étnico e hereditário, no caso aplicável aos guineenses de origem mas não aos cabo-verdianos (que nunca estiveram sujeitos ao regime de indigenato). Na Guiné, a partir de 1946, passaram, portanto, a distinguir-se relativamente aos «indivíduos de raça negra, ou dela descendentes» apenas duas categorias - os indígenas e os cidadãos (ou «civilizados») -, abolindo aquela terceira categoria de «assimilado». Eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que não preenchessem conjuntamente as seguintes quatro condições: a) falar, ler e escrever português; b) dispor de rendimentos suficientes ao sustento familiar; c) ter bom comportamento; d) ter cumprido os deveres militares. As condições de passagem à condição de cidadão português (ou seja, de «civilizado») eram enunciadas pelos artigos 2.º e 3.º, sendo o bilhete de identidade o «o único documento comprovativo da qualidade adquirida de não indígena» (artigo 4.º). A verdade é que este regime só em 1954 seria aplicado em Angola e Moçambique pelo novo «Estatuto dos Indígenas», desenvolvendo a filosofia de assimilação que enformara a revisão constitucional de 1951 e sendo o próprio Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar. O referido Diploma dos Cidadãos, disse-se então, era «o mais importante no género do Império Colonial Português».
Parágrafos retirados do artigo Guiné-Bissau: A causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, publicado nos Cadernos de Estudos Africanos, setembro/outubro de 2006.

Estamos agora em 20 de setembro de 1946, o Conselho de Governo tem na ordem de dia a apreciação da legislação que estabelece as condições que devem caracterizar os indivíduos naturais da colónia para serem considerados assimilados a europeus. Consta do preâmbulo:
“Sendo da essência orgânica da Nação Portuguesa civilizar as populações indígenas dos domínios ultramarinos, deve encarar-se com verdadeiro júbilo e reconhecimento de todos os progressos verificados neste campo. Por cada novo cidadão responsável que se desprenda do indigenato, é mais um esforço civilizador que se consagra e uma ambição que se preenche. Fiel ao espírito das leis basilares, este diploma garante a conceção de direitos a todos aqueles que os merecem”.
E tipificava-se a condição: são considerados indígenas todos os indivíduos de raça negra (que não estejam abrangidos pelo que dispõe o artigo seguinte para a definição de cidadãos portugueses), não falam, não leem nem escrevem a língua portuguesa, praticam os usos e os costumes do comum da sua raça; são cidadãos portugueses os indivíduos de raça negra que exerçam ou tenham exercido cargo público a que corresponda vencimento de categoria com as habilitações literárias mínimas, faça ou tenha feito parte de órgãos diretivos, de corpos ou corporações administrativas, ser comerciante matriculado, ser proprietário de estabelecimento industrial, possuir como habilitações literárias mínimas o primeiro ciclo dos liceus, ser natural de outra colónia ou território português onde não haja indigenato (era o caso de Cabo Verde). E a lei depois estabelecia as condições em que se podia requerer a qualidade de cidadão.
Sarmento Rodrigues expôs ao Conselho o espírito do diploma:
“Aqui não se trata de agradar, mas sim de educar. E nessas condições não se procura o aplauso de opiniões que não existam, nem se receiam as censuras de quem não sabe criticar. Com a consciência perfeita dos seus deveres, o Governante, o chefe, o civilizado, tem de dar exemplos e indicar os caminhos que devem ser seguidos sem curar de saber se as massas lhe dão um aplauso”. Interveio Mário Lima Wahnon, exaltando a iniciativa, estava convencido de interpretar o sentir de todos os presentes, o Conselho sentia-se honrado dando o incondicional apoio à iniciativa.

Em 8 de fevereiro de 1947, estando reunido o Conselho de Governo, Sarmento Rodrigues recorda a visita do Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné. Julgava-se que o Marechal Carmona viria à Guiné, fizera-se representar, a colónia sentia-se agradecida. Mas o Governador entendeu expender um ponto de vista político:
“É tradicional das gentes das colónias quando são, como agora, benévolas para o seu Governador, desculparem-no, atribuindo todas as deficiências às dificuldades e empecilhos postos pelo Terreiro do Paço. É o que tem sucedido comigo. Mas hoje peço-lhes, meus senhores, que atentem na verdade. Tudo o que tem sido feito é devido ao apoio, ao auxílio, aos incitamentos que tenho recebido da metrópole. Tudo o que não está feito ou saiu mal é, sem dúvida, alguma, culpa, insuficiência minha. Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-nos um avião Tiger e os 2.000 contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública, um batelão, boias, e ainda outro material. O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem”.

E refere levantamentos topográficos, planos de urbanização, projetos para enfermarias, postos sanitários, escolas, moradias, igrejas, postos administrativos, mercados. Tinham sido melhorados os preços para o amendoim, coconote e óleo de palma. “Mas há mais. A ponte de Ensalmá e o porto de Bissau, as suas velhas e quase imaginárias aspirações tradicionais da Guiné, vão ser realizadas”. Tinha chegado dinheiro para a construção de obras de sanidade e escolas para os indígenas. “Senhores vogais: reunimo-nos hoje aqui para agradecermos, não somos mais do que reconhecidos. E, por isso, sem mais palavras, eu proponho que aprovemos, de pé, uma saudação ao ilustre representante do Governo da Metrópole para que transmita ao Governo Central a que pertence, a certeza da nossa inquebrantável dedicação e lealdade e o nosso grande reconhecimento por todos os benefícios materiais e morais que nos está concedendo”.

(continua)


Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Projeto de adaptação do Palácio do Governo, Guiné-Bissau
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
Imagem da vida quotidiana em Bissau, nos dias de hoje
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23828: Notas de leitura (1525): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte V: VPV: "O grande significado do livro, de Spínola, Portugal e o Futuro, era vir a público dizer que a guerra estava perdida"...


1. Vasco Pulido Valente não gostava dos militares, nem dos capitães de Abril, nem muito menos do general Spínola. (Quanto aos antigos combatentes, ignorava-os, pura e simplesmente.) 

Nas entrevistas que dá ao jornalista João Céu e Silva não trata bem nem uns nem outros. Referimo-nos ao livro "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), de que já fizemos cinco notas de leitura (com esta) (*)

Algumas das suas declarações, que ficam agora para a posteridade, mostram como ele tinha tendência, apesar da sua formação académica (e científica), para usar e  abusar do cliché, do estereótipo, do juízo algo sumário. Talvez defeito da sua prática jornalistíca, da "escola de O Independente" (onde fez tandem com Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso e outros)  , do gosto pela parangona,  o "título de caixa alta",  a frase bombástica, as letras garrafais...  Panfletário, afinal, coisa que não deve ser um historiador.

Veja-se o que ele diz sobre o Spínola (mais o político do que o militar, e muito menos o comandante-chefe e governador-geral da Guiné): "o homem era muito estúpido, mesmo bronco" (pág. 184). (Provavelmente, ainda há hoje portugueses que  pensam assim, num juizo a preto e branco, mesmo que publicamente não o manifestem; VPM tinha fama de dizer em voz alto aquilo que alguns ou até muitos pensavam em voz baixa, da nossa elite dirigente, política, de Spínola a Cavaco, de Otelo a Cunhal, mas também social, económica e cultural).

Não tenho ideia de, ao longo do livro, ele citar outros historiadores que estudaram ou analisaram o mesmo período (o fim do marcelismo e o 25 de Abril) ou as mesmas figuras (como o Spínola e o Costa Gomes, de que há já biografias "académicas" e livros de memórias)... 

No caso do Spínola, por exemplo, poderíamos citar o Carlos Alexandre Morais, que foi seu íntimo colaborador na Guiné ("António de Spínola. O Homem. Lisboa, Editorial Estampa, 2007) (**) ou o seu biógrafo, Luís Nuno Rodrigues ("Spínola: biografia". Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010) (***).

Em suma, VPM não parecia gostar do contraditório e tinha tendência para desvalorizar o trabalho de outros historiadores, seus colegas, de "outras escolas" (teóricas ou institucionais): afinal ele vinha de Oxford ...Para ele, os historiadores portugueses, mesmo os bons, eram "amadores" e a universidade portuguesa não lhes oferecia as necessárias condições para trabalhar a sério: a biografia de Salazar, por exemplo,  para ser um trabalho sério, teria que levar uns bons... quinze anos, uma vida!...

Mas VPM não dizia sempre mal dos militares: afinal, pagavam bem quando estes o convidavam, no pós-25 de Abril. para fazer conferências (por ex., no Instituto de Altos Estudos Militares), tinham sítios seletos onde não entravam "saias",  com bares bem  recheados e requintados...

2. Vejamos então o que VPV (em final de vida, ele devia ter consciência disso, do seu "prognóstico reservado"...)  disse ao João Céu e Silva sobre Spínola e o seu livro ("Portugal e o Futuro", lançado em fevereiro de 1974),  além do seu papel no "fim do regime" e no pós-25 de Abril..

(Confesso que também li o livro, na altura, sem entender grande coisa da "solução política" que o autor propunha para as colónias..., mas tive logo a sensação  que era, pelo menos, uma pedrada no charco do marcelismo; devo tê-lo, ao livro, algures guardado no sótão, já roído pelos ratos... Sim, como diz o VPV, toda a gente foi comprar e ler o livro, sem entender patavina do que o homem dizia e sobretudo do que iria acontecer a seguir...)

Spínola e O Spínola que eu conheci são dois descritores do nosso blogue: temos cerca de 450 referências, o que é obra... Apesar de ser (ou ter sido) uma figura controversa como militar e como político.

 

(i) Spínola, Portugal e o Futuro  (1974) 




P- O livro de Spínola, Portugal e o Futuro, foi a machada final no regime ?


R- Sim, porque se o vice-comandante das Forças Armadas em todos os territórios em que se está em conflito vem a público dizer que a guerra está perdida, então a guerra está mesmo perdia.

Foi isso que Spínola fez, esse é o grande significado do livro Portugal e o Futuro [lançado a 22/2/1974] e não o que lá estava escrito, que era uma quantidade de dislates que não convenciam (pág. 150) ninguém. 

O livro não tem qualquer importância e é um dislate, pois defendia uma comunidade de estados portugueses em África governada por um centralismo democrático!

(…) Fazia-se uma federação com todas as colónias e depois, para evitar que houvesse negros independentistas nas assembleias, governava-se aquilo com centralismo democrático. Isto são ideias de um partido estalinista, à PCP.

O verdadeiro significado do livro, no entanto, era o de que a guerra estava perdida e essa verdade simples era dita pelo vice-chefe do Estado-Maior – General das Forças Armadas – portanto, estava perdida” (pág. 181).(… )

Ficou marcada a posição de Spínola, que resultou depois na presidência da Junta de Salvação Nacional – foram buscar Spínola por causa do livro. (pág. 183).

 Spínola: imagem à direita,  retirada da capa do livro de Luís Nuno Rodrigues, "Spínola: biografia",(Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010), com a devida vénia...



(ii) E depois,  o  Mário Soares ainda lhe dará uma comenda...


(…) A PIDE sabia disto tudo [a preparação do 25 de Abril] e, segundo Otelo, não investigou nada, não os seguiu, não atrapalhou a conspiração, porque, se não tinham medo dos civis, já dos militares tinham e muito, e também não sabiam como é que estes iriam reagir. Sabiam de tudo mas não tocaram em nada (pág. 183).

(…) As tropas milicianas mercenárias eram uns tipos que estavam aparafusados a nada senão a um regime que lhes pagava para combater, não eram as Forças Armadas de Portugal. Estas tinham uma legitimidade e um sentido que os milicianos nunca poderiam ter.

O Spínola é a peça principal para o fim do regime mas não tem o poder. Esse está nas mãos dos capitães desde o princípio.

(…) Os golpes do Spínola [depois do 25 de Abril] têm aquele ar de touradas: “Eu sou muito valente, eu é que pego o touro”. Foi assim no 28 de Setembro e foi assim no 11 de Março, uma exibição do marialvismo português. Eu li um relato de um capitão que lá esteve e que conta esses episódios de Spínola: “Vou eu,vou eu” (pag. 184)

(…) Aquilo era uma coisa totalmente improvisada, o homem era muito estúpido, mesmo bronco, e não havia qualquer organização… (pág. 184)

(…) Os capitães [conseguem toureá-lo], coletivamente, são mais espertos do que ele. O homem não via realmente o que estava a fazer. Pode-se dizer que ele era um exemplar que vinha de um regime caduco e que não estava no seu tempo” (pág. 185)

(…) [Soares ainda lhe deu uma comenda] , mas foi por outras razões. Quando Soares quis elimibar o poder militar que havia em Portugal, ou seja, o Conselho da Revolução, pediu ajuda aa Spínola para ver se provocava os capitães, e pô-lo nos festejos de abril. Foi a provocação máxima que se podia fazer aos capitães. (pág. 183)

João Céu e Silva recorda um escrito de VPV de 1993 (sem citar a referência bibliográfica):

(…) Quando entrei no Instituto Superior de Economia para dar umas vaguíssimas aulas no outono de 1973, compreendi, aliás sem dar grande importância à coisa, que o homem [Marcello Caetano,] estava perdido.

O retrato de Amílcar Cabral ornamentava a cantina, os “exames” consistiam em trabalhos coletivos, os professores eram marxistas-leninistas e a classe média explorava, com aplicação, os prazeres do sexo

O mundo autoritário e austero do Estado Novo morrera e com ele a guerra colonial. (pág. 185).

 [Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos e itálicos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Sobre o VPV, vd a última notas de leitura de LG:


(***) Vd. poste de  6 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6329: Notas de leitura (101): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (2) (Mário Beja Santos)