Mostrar mensagens com a etiqueta Nova Lamego. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nova Lamego. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Guiné 61/74 – P24585: Memórias de Gabú (José Saúde) (98): Histórias e explanações sobre a existência de Gabu (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.

As minhas memórias de Gabu

Histórias e explanações sobre a existência de Gabu

Camaradas,

As zonas da Guiné pelas quais passámos têm obviamente as suas histórias, as suas origens e, como é lógico, a sua respetiva evolução ao longo dos tempos. Sabe-se que naquela antiga Província Ultramarina, hoje País, se registam cerca de 40 etnias que se espalham pelas suas diversas regiões e as explanações sobre a existência de Gabu atrai o mais singelo camarada que por lá andou na procura de conhecimentos acerca dos seus conteúdos, sendo o meu caso um exemplo acabado na procura dessas compreensíveis ilustrações.

Assim sendo, viajo pela interioridade histórica de Gabu, uma área que tive, em parte, a possibilidade em conhecer, retirando dela reflexíveis opiniões, onde conheci alguns dos seus usos e costumes, mormente na antiga cidade de Nova Lamego, onde visualizei alguns dos seus segredos que levavam a elite militar ao êxtase, mormente aquando o momento era, por exemplo, as noites do batuque ou outras festas locais, onde a fantasia das suas gentes com as vestes garridas, ou o traje dos homens que vestiam vestes brancas até aos pés, de entre outros momentos de enlevo que deliciavam o pessoal que fora para ali levado, mas sem dó nem piedade.  

Gabu é uma região onde proliferam as etnias fula, esta em larga maioria, e a mandiga. Por razões normais, assim o entendo, vamos hoje jornadear pelo seu interior.

Cherno Baldé, um homem estudioso da sua Guiné, onde a terra vermelha ou o seu capim pintavam, com certeza, uma sumptuosa aguarela do conhecido pintor Pablo Picasso, sendo tu guineense e conhecedor profundo das origens do teu país, assim o entendo com merecida justiça dado que costumo ler o que escreves aqui no nosso blogue, solicitava-te uma opinião sobre o tema que abaixo exponho.

Lembro que este texto está inserido no meu nono livro (11 já editados) e cujo título é “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – MEMÓRIAS DE GABU”, uma obra lançada pelas Edições Colibri, Lisboa, e que tem como editor Fernando Mão de Ferro.  

 

Antiga Nova Lamego. Habitações palacianas de Gabu.  

Denominada como cidade de Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra Colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a Norte com o Senegal, a Leste e a Sul com as regiões de Tombali e a Oeste com Bafatá.

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona, mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 km2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.  

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país, Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.  

 

 A população em movimento

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam, normalmente, os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado, a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos, onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.

 

Uma rua

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós antigos combatentes incessantemente recordaremos para sempre.

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 25 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24340: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Jovens da tabanca Rostos de inocência. Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos. Crianças. (José Saúde)

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24579: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (3): Abílio Duarte, ex-fur mil art, CART 2479 / CART 11, “Os Lacraus” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) - Parte II


Foto nº 13  > Capa do álbum da minha saudosa mãe, "Honra e Glória"


Foto nº 14 >  A foto da ordem, a farda nº 1, emprestada...


Foto nº 15  > Eu e o famoso e afamado Pechinchado meu pelotão, o 3º, CART 2497 / CART 11 (1969/70); era  fur mil op esp, e desenhador na vida civil...
 

Foto nº 16 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > O Abílio Duarte na messe, em Nova Lamego, decorada pelo Pechincha, lendo a revista brasileira "O Cruzeiro"...


Foto nº 17 >  Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > Uma parelha de Fiat G-91 na pista de Nova Lamego


Foto nº  18 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel  > CART 2497 / CART 11 (1969/70) >1969 > Praia de Contuboel, no rio Geba





Fotos nº 19  e 19A>  Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > Vista aérea de Piche... Pormenor do espaldão do obus, valas e abrigosSão visíveis, para além das instalações do perssoal e o perímetro de valas que circundavam o aquartelamento.

(...) Era um quartel novo, com razoáveis instalações para a CCS e para mais duas companhias operacionais. Tinha água canalizada e gerador elétrico. As instalações do quartel incluíam trincheiras, base de fogos do morteiro 81, três peças 11,4 e as habituais casernas, messe, cozinha e posto de socorros, tudo rodeado por arame farpado, com a respetiva Porta de Armas" (...)  (Mendes Paulo, maj cav, 1932-2006)...


Foto nº 20 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego ou Piche (?)  > CART 2497 / CART 11 (1969/70)  > Corte de cabelo, do soldado que, para mim, era um mistério: pessoa muito recatada, os outros obedeciam-lhe, sem qualquer dúvida; muito calmo, dialogante, julgo agora que ele era um líder religioso.


Foto nº 21 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor L6 (Pirada) > Paunca >  CART 2479 / CART 11 ( 1969/70) > Cerimónia do Ramadão de 1970 em Paunca. Nesse ano o Ramadão começou a 31 de outubro e terminou a 30 de novembro.


Foto nº 22 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > CART 2479 / CART 11  (1969/70) > Algures  >  Uma aldeia atacada e destruída pelo IN...


Foto nº 23 > Guiné > Zona Leste > s/l  >    CART 2479 / CART 11  (1969/70)  > Algures no Corubal... Foto do 3º Pelotão: ao centro,  Abílio Duarte bebe água...   

(...) A nossa companhia foi constituída por soldados de 2ª linha, provenientes da evacuação de Madina do Boé, Cheche e Beli, ao sul do Rio Corubal.

Foi dada instrução militar, em Contuboel, donde se formaram duas Companhias de Fulas [CART 11 e CCAÇ 12] e um Pelotão de Mandingas, que foi depois enviado para a Zona de Bambadinca e Xime.

A nossa Companhia era comandada, pelo cap mil Analido Aniceto Pinto  [já falecido, trabalhou na Petrogal, com o Tony Levezinho, por exemplo],  que muito considero, pois alinhou sempre.

Depois da Formação e Juramento de Bandeira em Bissau, fomos colocados no Leste da Guiné como força de Intervenção subordinada ao Com-Chefe, e depois ao COP 5 de Bafatá.

Durante 14 meses de Operações Militares de toda a espécie, Nomadizações, Colunas, Emboscadas, Segurança na Fronteira com o Senegal, Apoio Logístico no conflito de Buruntuma (Fronteira com a Guiné-Conakri) e Apoio no Deslocamento de Rebeldes de Nova Lamego até à Fronteira com a Guiné, para o Golpe de Estado contra Sekou Touré [, Op Mar Verde], tudo foi feito com dignidade e honra" (...).




Fotos nº 24  e 24A > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca  >   CART 2479 / CART 11  (1969/70) >  "Eu, dentro do possível, fazendo psico"...


Foto nº 25 > Guiné > Zona Leste > Regiáo de Gabu > Paunca>   CART 2479 / CART 11  (1969/70) >  "Refrescando-me no SPA de Paunca"... [O depósito de água é um bidão de gasolina da SACOR, Bissau]


Foto nº 26 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca>   CART 2479 / CART 11  (1969/70) > A nossa cozinha...



Foto nº 27 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca> CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Na suite do Ali Babá em Gabu (Nova Lamego).





Foto nº 28 > Moita, Praia do Rosário > 13 de maio de 2023 > CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus", 1969/70 > Convívio >  Um grupo de resistentes... O primeiro da esquerda para a direita, na primeira fila (sentados): eu, Abílio Duarte, o Pais de Sousa, o Manuel Macias, o Alf Martins e um camarada condutor, que agora não recordo o seu nome. De pé, e também da esquerda para a direita: o Pechincha, o Silva, o Reina, o Saraiva, o Artur Dias e o Cândido Cunha.

Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de uma seleção das fotos (*) do Abílio Duarte, ex-fur mil art MA, CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11), "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70).

Faz parte da Tabanca Grande desde 27/8/2010. Tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue. Esteve no CTIG de fevereiro de 1969 e a dezembro de 1970.

Na CART 2479/CART 11 havia vários militares equipados com máquinas fotográficas além do Abílio Duarte, o ex-fur mil Cândido Cunha, o ex-1º ccabi trms Pais  (já falecido) e o  ex-alf mil Pina Cabral (também já falecido). Infelizmenmte destes quatro nomes, só o Abílio é membro da nossa Tabanca Grande.

Bancário reformado, residente na Amadora, o Abílio Duarte continua a fazer alguma fotografia, nomeadamenmte por ocasião dos convívios anuais dos "Lacraus". As fotos agora selecionadas são provenientes dos postes abaixo identificados (**)

2. Sobre a primeira máquina fotográfica Canon que comprou a bordo do T/T Timor, escreveu ele:

(...) Entrando na tertúlia das máquinas fotográficas, não quero deixar de deixar algumas palavras sobre a minha CANON.

Comprei-a a bordo do navio que nos levou à Guiné, o "Timor", e que me acompanhou em toda a comissão, tendo ido muitas vezes para o mato.

Foi a minha 1.ª câmara, que me despertou muito para a actividade de fotógrafo, e com ela tirei centenas de fotos e slides. Aprendi o que era abertura vs velocidade, grandes planos, campo de profundidade, etc.

Era uma máquina bastante resistente e tinha um bom estojo, que a salvou de muitas quedas, e apanhou bastantes chuvadas. Tive-a até bastante tempo depois de regressar, mas um dia caiu e já não teve conserto, para tristeza minha. (...)

Uma coisa que estranhei, quando estava na Guiné, é que quando mandava slides para revelar, para a Alemanha, nunca me desapareceu nenhum rolo, o que na altura me deixava bastante satisfeito. (...)


3. Comentário do editor LG (ao poste P15886):

(...) Abílio, então ouve lá: não sabes se as fotos "etnográficas" são de Piche, Contuboel, Nova Lamego ou Paunca...? Sei que passaste por muitos sítios, mas, vá lá, faz um esforço de memória... 

Eu sei que, quando a gente mandava a uma foto à família, não tinha a preocupação de mandar uma legenda completa... Uma foto era apenas uma forma de "prova de vida"... Se tivesse algum "exotismo", melhor... "Eu e bajudinha", "eu e o homem grande", "eu, junto ao rio Geba, a pensar no rio da minha aldeia"... E "já só faltam 600 dias para vos beijar e abraçar!"... O que eram 600 dias na vida de um homem, mobilizado para defender as costas dos grandes senhores do império?!...

Para a família, a milhares de quilómetros de distância, fazia alguma diferença que a gente tivesse em Paunca ou Piche?!... Coitados dos nossos pais, irmãos e amigos, eles sabiam lá onde ficavam esses lugarejos do fim do mundo!... Eles sabiam lá onde ficava a Guiné, a não ser que ficava a cinco dias de viagem por barco!... E que havia mosquitos, crocodilos e "turras"...

Tirando eles, os nossos pais, irmãos e amigos íntimos, quem dos restantes 10 milhões de portugueses se preocupavam connosco!?... Só quem tinha filhos ou irmãos ou amigos íntimos na Guiné, no ultramar, na guerra!... (...)

Vd. poste inicial da série > 15 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24555: Por onde andam os nossos fotógrafos ?  (1): Luís Graça

(**) Fotos selecionadas de:

17 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24321: Facebook...ando (28): Convívio anual da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) em que apareceu, pela primeira vez, o Pechincha, que já não via desde 1969 (Abílio Duarte)

27 de abril de  2016 > Guiné 63/74 - P16023: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte V: A FAP no Gabu

<> 

22 de maqrço de 2016 > Guiné 63/74 - P15886: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte II

16 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15862: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte I

31 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14103: A minha máquina fotográfica (17): Comprei uma Canon no navio "Timor" e andei com ela muitas vezes no mato... Tirou centenas de fotos e "slides" (que mandava para a Alemanha, para revelar) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970)

14 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13399: Efemérides (164): O Ramadão de 1970 em Paunca (Abílio Duarte, ex-fur mil art, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

2 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12380: O que é que a malta lia, nas horas vagas (2): a revista brasileira, ilustrada, "O Cruzeiro" (Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

13 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11092: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paúnca, 1969/70) (Parte II)

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 – P24509: (Ex)citações (429): AVC - No reino dos silêncios (José Saúde)

 

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


AVC No reino dos silêncios

AVC, um mal que faz hoje 17 anos, 27 de julho de 2023, de existência no corpo deste antigo combatente

Camaradas,

Somos seres humanos cujo estado de saúde, em invulgares momentos, faz o obséquio de nos incomodar. Foi precisamente na madrugada de 27 de julho de 2006 que o meu AVC – Acidente Vascular Cerebral – me tocou à porta, entrou na minha residência e se instalou de vez no meu corpo. Tempos difíceis onde imperou a incerteza. Estive numa finíssima corda entre o sobreviver e o morrer. Essa corda, contudo, manteve-me hirto e eu lá fui, aos poucos, reencontrando um equilíbrio que parecia ausente. A situação, considerada caótica e muito grave, impunha restrições na minha ânsia de viver.

Meditava num além que tendia conduzir-me ao reino dos defuntos, tendo em linha de conta a gravidade que o meu estado de saúde indicava. Mas, recusava perentoriamente caminhar por esse trilho. Utilizei então trilhos, e alguns calcorreei na Guiné, região de Gabu, que me encaminhavam para um porto seguro. Aqui não existia o medo duma emboscada do IN. O autor da enfadonha sorte era minha e só minha, logo, cabia-me sair da “zona da morte”.

Tinha 55 anos de vida e um passado que em nada se enquadrava com a hedionda situação constatada. A ausência da fala incomodava-me. Não conseguia emitir sons. Memorialmente tinha a noção do objeto que o terapeuta da fala colocava à minha frente. Aos poucos lá fui soltando algumas palavras, mas não corretamente. Vinham os engasgos e os sons vocais não traduziam o que dantes me era familiar. Levou anos a conseguir a perceção correta no falar.


Porém, era, e é, no reino dos silêncios que pesquisava, e ainda hoje pesquiso, um amanhã sempre melhor. Contei, e que fique registado para a posterioridade, com ajuda médica, do pessoal da enfermagem, da fisioterapia, da terapia da fala, dos Centros de Fisioterapia que frequentei, do pessoal auxiliar e de toda uma equipa de trabalho que executaram os seus saberes e que me deram vida para que aqui chegasse.

Por outro lado, foi no reio dos silêncios de um AVC, que não dava tréguas, que tive a eficaz colaboração das minhas filhas, dos familiares e, sobretudo, dos amigos, alguns de longa data, que jamais me abandoaram. Todos foram enormes e a todos fica o meu profundo OBRIGADO!

Foi, também, no reino dos silêncios que elaborei duas obras sobre o tema AVC.

Neste contexto, no mês de janeiro de 2009 lancei um primeiro livro sobre a temática do AVC. Agora, e já consciente da realidade, recomeçou a minha empatia pelo mundo da escrita e veio para os escaparates AVC NA PRIMEIRA PESSOA, Edições MEL, Estarreja, e em 2017 AVC RECUPERAÇÃO DO GUERREIRO DA LIBERDADE, Editora Chiado. Recebi, na primeira obra, um convite para participar no Programa Consigo, RTP 2, com a jornalista Dora, enquanto o segundo livro proporcionou-me uma ida à TVI no programa A Tarde é Sua, com a Fátima Lopes. Ambos aceitei, pois claro. Tanto mais que surgiam as minhas viagens por este país fora como participante em seminários onde o tema era, naturalmente, o AVC.

E o certo é que jamais parei, não obstante as limitações começarem cada vez mais a apoquentar. 11 livros já lançados e todas as semanas com uma crónica no Diário do Alentejo, cuja coluna tem como título “Bola de trapos”, desígnio desta minha última obra.

Camaradas, fiquem bem e lanço este um repto: tenham cuidado com o AVC, uma doença que nos chega e sem avisar!


Obs: publicidade na TVI, CNN, da segunda obra, aquando do seu lançamento.

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 18 DEJULHO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24485: (Ex)citações (428): Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas. De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce (José Saúde)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora numa verdadeira maratona, depois de missa na capelinha de Catió, a comitiva parte a 8 de maio passando por Aldeia Formosa e paragem no Saltinho, a ponte que terá o seu nome só estará concluída em agosto do ano seguinte, é aguardada com grande expetativa para melhorar a situação de pessoas e mercadorias. Descerrada a placa alusiva à visita, segue-se pelo Xitole, Bambadinca e chega-se a Bafatá. A partir deste momento não vão parar as referências elogiosas ao trabalho de Sarmento Rodrigues, nem aqui nem no Gabu, aliás o ministro do Ultramar é padrinho do filho do régulo de Chanha, Madiu Embaló. E fico a saber que perto de Nova Lamego fica a gruta neolítica de Nhampassaré, nela se fala muito frugalmente no Google. Craveiro Lopes pernoita em Bafatá e agora segue para Farim, o jornalista mete-se ao caminho num jipe, irá conhecer a extensa e densa floresta do Oio e aproveita a circunstância para publicar largo texto sobre a etnia Mandinga retirado de um dos clássicos de António Carreira, "Mandingas da Guiné Portuguesa".

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Estamos agora a 8 de maio, o jornalista Rodrigues Matias vai-nos traçar o dia movimentado da comitiva presidencial. Craveiro Lopes assiste ao amanhecer a uma missa na capelita branca de Nossa Senhora de Fátima em Catió, e começam os encómios: “Deve esta simples missa de domingo ter valido no espírito da população nativa, por muitos eloquentes discursos e muita argumentação dos missionários católicos.” A viagem vai de Catió a Aldeia Formosa e Saltinho, diz-se que há muitas nativas com saias de seda e homens com chapéus de coco empenhando vergastas com retratos do Homem-Grande na ponta. Neste dia ir-se-á falar muito de alguém que marcou profundamente a Guiné, Sarmento Rodrigues. Diz o jornalista no Saltinho: “Por sobre os topos dos rochedos, com a água a escoar-se-lhe por baixo, através dos aquedutos, ao longo de centenas de metros, passa, desde o tempo do governador Sarmento Rodrigues, a estrada de cimento para Bafatá.”

Craveiro Lopes veio assistir ao trabalho da construção da ponte que terá o seu nome. Estará concluída em agosto de 1956, tem quatro vãos com o comprimento total de 144 metros. Esta infraestrutura permitirá mais rápida ligação com a parte Sul da província e, assim, mais facilmente a circunscrição de Bafatá poderá encaminhar os seus produtos para os portos fluviais da Guiné. Craveiro Lopes descerrou uma placa alusiva a esta visita, imagem que se publicou no texto anterior.

O destino seguinte é Bafatá, para lá chegar percorre-se Xitole, Bambadinca e atravessa-se a ponte sobre o Colufi. O jornalista observa que agora estamos à vista desarmada em terra de Fulas, é outra coisa: “Quem viaja pelo interior de África, cedo se habitua ao espetáculo comum do nativo normalmente vestido com muita deficiência e pouco asseio. Por isso, a estranheza o assalta, ao entrar na região dos Fulas. Tudo é diferente. Há um ar lavado e um aroma de civilização cobrindo tudo.” A cavalo ou a pé, avistam-se os régulos paramentados de guarnições de prata e ouro. O administrador, na sessão solene, agradece o foral concedido a Bafatá e prontamente tece elogios a Sarmento Rodrigues: “Há alguns anos tivemos um governador desta província que jamais podemos esquecer, por ter dedicado a Bafatá o maior carinho e amor, desenvolvendo-a, tanto cultural como economicamente. Deve-lhe Bafatá escolas, hospital, enfermeiros, pontes, estradas, fontes, água, parte do seu cais. Mas, acima de tudo, o carinho e a bondade com que a todos tratava, quer a civilizados que a indígenas. Ainda como governador desta província, idealizou a grande obra que V.ª Ex.ª vai inaugurar: a ponte Salazar.” E, de seguida, a ponte foi mesmo inaugurada. O jornalista aproveita para citar Fausto Duarte e como este estudioso se referiu às dificuldades sentidas nas investigações quanto à origem dos Fulas, e aproveita o relato para descrever aspetos etnológicos e etnográficos importantes quanto a esta etnia.

À noite, Craveiro Lopes assistiu a um torneio de luta envolvendo Fulas e Mandingas. O jornalista faz-nos uma bonita descrição: “Joelho em terra. Coreografia de mãos. Cabeça contra cabeça. Pega pelos antebraços. Salto de uma das mãos para as espáduas. Um molho de músculos espantosamente retesados. Bailados de pés, em cata de equilíbrio estável. Rodopios para a esquerda e para a direita. Um dos contendores levanta o outro do chão e, rapidamente, sem lhe dar tempo a que os pés se fixem de novo na areia, estende-o de costas em terra.”

Dorme-se em Bafatá e o jornalista aproveita para nos dar uns apontamentos históricos: “Filhos de Geba, conduzidos pelo Capitão-Mor Gonçalo Gamboa Ayala foram plantar de estaca a povoação de Farim. Tinha presídio com guarnição, ambulância, aquartelamentos, escola régia e fonte de água potável. Em 1907, é transferida a residência oficial de Geba para Bafatá e no ano seguinte juntaram-se ao presídio a ambulância e a escola régia e foi criada uma estação telégrafo-postal. Em 1912, era criada a circunscrição de Geba, com sede em Bafatá. Dois anos depois, ligada à margem esquerda do Colufi, por uma ponte, a povoação era vila. Geba morreu.”

Estamos agora a 9 de maio, Craveiro Lopes vai visitar o Gabu. A caravana segue logo de manhã para Nova Lamego. O jornalista dá-nos informações: “A circunscrição do Gabu foi criada em 1931, compreendendo 9 mil quilómetros dos territórios da parte Leste da Guiné. Foi sua sede, até 1948, a vila de Gabu Sara, agora batizada Nova Lamego, em homenagem à terra de naturalidade do homem que a fundou junto à povoação Fula de Sara e que lhe deu o primeiro nome de Vila Lamego – o Tenente A. Leopoldo.” É uma povoação essencialmente comercial. Ficamos a saber que a maioria da população indígena é islamizada, composta principalmente por Fulas-pretos e Fulas-forros, aparecendo, por ordem decrescente, os Mandingas e os Fula-Fulas. É após esta exposição que ele nos vai dar uma importante informação sobre o passado da Guiné: “Perto de Nova Lamego fica a gruta de Nhampassaré, estação neolítica de grande importância, descoberta recentemente pelo Dr. Amílcar Mateus, e onde forma encontradas centenas de objetos de pedra lascada, de pedra polida e cerâmica com gravuras incisas e estampadas em quartzo, quartzite e dolerito. É esta a primeira descoberta do género na Guiné.”

Haverá desfile dos povos da região. Antes, Craveiro Lopes entregou a cinco dos régulos presentes medalhas de prata e cinturões de prata com talabarte; a outros, medalhas de cobre, medalhas comemorativas, bandeiras e retratos. Haverá um cortejo apoteótico, uma série de bailados, não faltará música de todos os instrumentos. Craveiro Lopes visitou a fonte de Cabo Sara, mandada construir em 1945, na sequência da “política de água potável”, gizada por Sarmento Rodrigues. Ficamos a saber que o então ministro do Ultramar era padrinho de Manuel Maria Sarmento Rodrigues Embaló, este era filho do régulo Fula-forro de Chanha, Madiu Embaló.

A comitiva presidencial regressa de avião até Bafatá, o jornalista aproveita para conversar com um dos onze régulos do Gabu, Alarba Embaló, este não esconde uma admiração profunda por Sarmento Rodrigues, é um fervoroso adepto do desenvolvimento rural, quer mais tratores e mais escolas. Regressado a Bafatá, Craveiro Lopes não para, vai visitar os belos jardins do Parque das Águas, a enfermaria regional e a missão católica.

A comitiva presidencial jantou e pernoitou em Bafatá, partindo de manhã cedo para Farim. O jornalista foi de jipe, cerca de 80 quilómetros atravessando as florestas do Oio. Ele julga que tem todo o sentido, indo a comitiva em direção a Farim, onde predominam os Mandingas, fazer uma larga citação sobre esta etnia, elementos que ele vai buscar a um importante livro de António Carreira.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes durante a visita de Isabel II a Portugal, 1957
Ponte Craveiro Lopes, imagem do nosso blogue
Bafatá e a Ponte Salazar
Imagem antiga do mercado de Bafatá

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de julho de 2023

Guiné 61/74 – P24485: (Ex)citações (428): Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas. De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas

De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce

Porra! Desculpem-me camaradas por esta dicotomia de palavreado porque sou cidadão do Baixo Alentejo, natural da freguesia de Aldeia Nova de São Bento e oriundo de famílias humildes. Gentes que, modestamente, souberam laborar, com precisão, o” pão que o diabo amassou”. Não foram pessoas letradas, mas gentes que bem souberam, com o seu erudito conhecimento, distinguir “o trigo do joio”.

Com um dujbi a tirar água de poço em pleno mato
Na perceção de um antigo combatente, eu de carne e osso, fui um fruto oriundo de excelentes pomares, estes polvilhados de estrume de animais que me deram vida e que foi ganhando alicerces que me permitiram chegar à idade presente, 72 anos, e ser quem hoje o sou. O meu saudoso pai, Francisco Saúde, foi um dos militares que “guardaram” a fronteira entre Portugal e Espanha no tempo da guerra civil espanhola (1936). Dele, meu pai, recolhi excelentes ensinamentos que guardarei para sempre neste já débil corpinho.

A cédula militar do meu pai, com a sua impressão digital

Estamos em pleno século XXI, onde a voraz notícia se transmite facilmente com os meios tecnológicos de que facilmente cada um de nós dispomos. O tempo de irmos aos correios para contactarmos alguém telefonicamente, e que estava longe, era do tipo em que a telefonista lá colocava uma “cavilha” no seu “painel” telefónico, sendo que ouvir do outro lado da linha alguém, entretanto solicitado, obedecia a um demasiado tempo de espera. Ou enviar um telegrama, ou quando a notícia chegava através de uma telefonia, a pilhas, ou a chegada da televisão a preto e branco. Recordo, desses tempos, ouvir aquela trova do antigo regime quando a guerra rebentou em território angolano e que dizia: “Angola é nossa!”. Ora, eis que anos mais tarde o meu destino militar passou por conhecer uma das antigas províncias ultramarinas.

Hoje, porém, todo esse voraz passado dissipou-se nas auréolas do tempo, sabendo nós o quão difícil fora chegar ao momento presente, onde o poder tecnológico permite examinar o Mundo de uma outra forma pronta, ou seja, de fio a pavio, ou conhecer conteúdos de uma outra guerra, que sabemos que existe, em cima do acontecimento.

Sento-me ao meu computador portátil e lá vou debitando ideias que o meu coração me suscita, um coração que teima em bater, não obstante as delinquências sofridas ao logo da vida, mormente como protagonista de um antigo combatente numa Guiné a ferro e fogo. Sim, porque na verdade a vida, em toda a sua extensão, é uma ligeira passagem por este cosmo terrestre e o nosso final irreversivelmente certo.

Longe vão os tempos em que a “máquina” humana correspondia na sua totalidade. Agora… “emperrou”

Presentemente, a minha “máquina” acusa irreparáveis falhas que o tempo jamais recuperará, dado que as peças incriminam desgaste, o que é normal, e não usufruírem do deleite de uma retificação, ou da sua oportuna substituição. A tal “máquina” que sempre correspondeu aos meus imperecíveis desejos, mesmo quando fui um dos muitos camaradas da guerrilha em território guineense. Aquela velha “máquina” humana jamais recuou perante as adversidades surgidas. Ficaram as imagens que detenho e que viajarão comigo para a perpetuidade.

De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce tudo foi rápido. Mas, fica para a história a nossa passagem por este planeta de onde colhemos excelentes momentos, sendo que existiram ainda outros piores, sendo o caso específico, e em particular, alguns dos instantes constatados na guerra de além-mar. Tudo, no fundo, fez parte das nossas vivências. Regressámos a solo lusitano vivos e sãos, sendo que os nossos corpos regressaram tal como partiram. Outros, infelizmente, não poderão partilhar da mesma filosofia de uma vida.

Pessoalmente parti, muito novo, da minha aldeia, Beja recebeu-me e conheci a algazarra de uma Lisboa deveras eletrizante. Nasci, após o fim da 2ª Guerra Mundial, à beira das searas e de um campo essencialmente marcado pelo prisma do literalmente saudável. Pelas ruas da minha aldeia, umas empedradas outras em terra batida, delineei os meus primeiros passos de vida. Vi mulheres com xailes pretos a tapar-lhes o rosto e parte do corpo, ou conterrâneas cujos xailes tinham um preceito que anunciava a presença de um filho na guerra colonial, os ranchos de homens que aos domingos percorriam o povoado parando às portas das tabernas e lá seguia o voluntário a caminho do taberneiro a comprar uma garrafa de vinho, trazendo consigo um copo por onde todos bebiam, enquanto os outros lá se lançavam em mais uma moda.

Assisti, ainda, ao abrir de valas cujas canalizações tinha como efeito que água canalizada chegasse a casa de quem o quisesse, ou a ida à bica comunitária situada no rossio, ou ao poço lobo. Recordo, com nostalgia, o tempo das matanças do porco. Da construção do depósito da água. O barulho de uma carroça, puxada por animais, a deslocar-se sobre as ruas empedradas. As aleluias com os moços, sempre em correria, andarem de loja em loja em busca de rebuçados, ou figos, de entre tantas outras brincadeiras de criança. Das profissões de então, sendo muitas delas agrestes. A luta das classes sociais. De homens que deixaram história. Do tempo que eu, com quatro ou cinco anos, fui “abarroado” pelos cães galgos do “Galdrapas” quando ao sair da taberna do meu tio Zé Torrão, rua do Sobral, se atiraram a mim e me “sacaram” uma sande que, entretanto, comia.

Dos jogos de futebol dos rapazes e do jogo do ringue das moças. O saltar aos “aviões”, do pau da lua ou do eixo. Memórias, embora sintéticas, que nos fazem viajar no tempo e que nos enviam para a nossa juventude. Ou uma ida aos ninhos lá para as bandas do monte do campinho onde o montado imperava e um barranco no qual as mulheres lavavam a roupa, ou uma ida para as califórnias, uma zona onde havia figos de qualidade. Beber água do poço do “tio” Matias e com a rapaziada exausta pelo calor que se sentia. Poço do “tio” Matias que ao lado tinha um forno onde se coziam os tijolos.

Da feira anual de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia, e das romarias que nos enchiam de prazer e orgulho. A Festa das Santas Cruzes é disso um exemplo óbvio. O dia de São Sebastião, 20 de janeiro, a sua procissão e a venda de ramos de laranjas. E tão bem que o nosso João Lucas o fazia.

Saudades de um tempo que se definhou enquanto o “diabo” esfregou os olhos. Do Bairro Alto ao Algés, nas baixas, passando pela malta da rua da Atafona, do Rossio, do Bairrinho, do Rabo Toureiro, de entre muitos outros, todas essas “guerrilhas” futebolísticas amigáveis o tempo queimou. Ou, dos jovens que partiam para a guerra do Ultramar e o presumível “luto” de ausência que os pais e irmãos assumiam.

Hoje, encostado, não a um cajado, mas a uma bengala, lá vou prosseguindo o meu viver, “queimando” as pestanas dos meus olhos, tendo como finalidade deixar memórias para as gerações presentes e futuras poderem observar desde que o interesse lhes desperte a atenção. Testemunhos também de uma Guiné onde fui mais um dos camaradas que se depararam com tal conflito.

O meu AVC que leva praticamente 17 anos de “convívio” com a minha pessoa e que data a 27 de julho de 2006, uma madrugada que nunca esquecerei, não me derrubou, pelo contrário deu-me ganas que me trouxeram eloquentes prazeres.

Comandando uma coluna que se dirigia a Bafatá

Um dia partirei para um outro mundo, ficando, porém, a certeza que repousarei para a eternidade na terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. Restos de uma saudade que se definha no tempo, ou seja, de uma juventude saudável a um envelhecer agridoce, sabendo, no entanto, que naquele recanto lá descansam camaradas e amigos infância, da minha geração, que perderam a vida nas então três frentes da guerra colonial.

Ficará, porém, no meu cardápio uma passagem pela guerrilha na Guiné, território onde conheci o quão difícil fora assumir um conflito onde os poderes das armas impunham, obviamente, respeito. Mas, jamais me sairá da minha memória a despedida dos jovens mancebos que eram enviados para as frentes de guerra. Na minha aldeia, a exemplo daquilo que passava em quase todo o nosso território, era comum as famílias e amigos se juntarem para prestarem ânimo a quem partia. Ou, os regressos daqueles que chegavam aparentemente bons de saúde, ou daqueles que faziam essa viagem de regresso, mas “embrulhados” em quatro tábuas de madeira.

Retratos de uma vida que ficarão eternamente no meu mero historial! 

Abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
____________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 5 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 – P24101: (Ex)citações (421): Sim, estou velho! (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Sim, estou velho!

A idade não perdoa. Que tínhamos todos a noção dessa inquestionável realidade. Fui, tal como todos os camaradas de armas, um jovem que conheceu momentos de alegria e também de horrores na guerra da Guiné. Todavia, sim estou velho. Conto, resumidamente, momentos de prazeres e de angústia pelo tempo que já passou.

Deixo os livros que já escrevi, 11, e da árdua labuta como jornalista ao longo de mais de trinta anos. Somos, agora, meros seres humanos que vagueamos pelos pingos da chuva e que paulatinamente nos deparamos com a estonteante viagem que já fizemos ao cimo deste imenso globo terrestre.

Na nossa cédula pessoal ficou registada a nossa presença por terras da Guiné, bem como os nossos tempos de meninos e moços.

********************

Condicionalidades de um tempo sem tempo: Sim, estou velho!

Sim, estou velho! Sim, o tempo, esse vadio, já voou. Dissipou-se. As gotas de orvalho diluem-se a uma velocidade impressionante. O meu rosto determina uma idade já avançada (72 anos). Sim, porque a saudade mata devagarinho os anos já consumidos pela essência das eras passadas. Sim, essa tal melancolia que parece previamente distante, perdeu-se pela fresta de uma porta que se foi definhando com o declinar das épocas. Vagueio pelo trilho “desarmadilhado” de uma vereda que inevitavelmente vai estreitando. Sim, esta é uma das inevitáveis realidades que o ser humano literalmente terá de compreender e sobretudo aceitar.

Curvo-me perante a transformação física do meu corpo. É verdade. Não o escondo. Mas atenção: ainda não me considero um trapo. Talvez um trapo de um fino fio de seda vindo das equidistantes arábias, mas impregnado com uma juventude já perdida. Ficaram os requintados cheiros que dantes me arregalaram as narinas. Ou, o toque em “matéria proibida” onde proliferavam memoráveis mistérios. Sim, esses frenéticos momentos continuam fixamente emoldurados na minha mente, mas com traços de um puro êxtase dantes ocorrido.

Recreio-me, agora, com a saudade. O que fiz e o que deixei de fazer. O meu corpo, outrora atlético, está velho. Cansado. De uma aldeia, a minha sempre querida Aldeia Nova de São Bento onde nasci, a metrópoles de maior dimensão, de tudo conheci. Conheci e fiz amizades. Tudo, porém, foi ontem. E foi ontem que brinquei com os meus amigos no Largo do Ferreira, lá para as bandas do Algés. Do João Luís, ao João Ferro, António, vulgo “Encherto”, António e Bento Charrinho, dois irmãos infelizmente já desaparecidos, Manel “Galha Galha”, Bento “Tomba Lobos”, Chico do Toril e o João Cheta, de entre muitos outros miúdos, foram companheiros no jogo de futebol com uma bola de trapos, ou com uma bexiga de porco regateada no mercado da aldeia. As leis, então impostas pela rapaziada, impunham que o jogo terminava aos 10, a mudança de campo aos 5 e as balizas eram delimitadas com duas pedras, sendo que o retângulo de jogo, desproporcionado, não tinha linhas que limitassem o espaço.

Mas, eis que numa elementar reciclagem feita à razão desta minha existência, revejo, com saudade, a mocidade perdida e uma vida preenchida de aventuras e desventuras. Ninguém é perfeito e eu também o não fui e nem tão-pouco o sou e, logicamente, jamais o serei.

Saí do meu recanto sagrado, ou seja, da minha sempre querida e adorada Aldeia Nova de São Bento, muito novo com destino a Beja, urbe onde concluí a instrução primária e fiz grande parte da minha vida. Todavia, jamais renunciei uma ida ao berço que me viu nascer e me consumirá para a eternidade. É lá, na minha aldeia, que um dia repousarei para a perpetuidade.

Existiu sempre no meu ego o espírito de aventura, ora quando a adrenalina me levava ao êxtase, ora quando o momento implicava uma maior concentração, tendo em conta o passo seguinte que, por força de uma razão maior, teria de ser dado. Mas nem sempre as coisas funcionaram da melhor maneira. É natural e aceito esses ímpetos momentâneos. Errei, tal como todo o ser humano. Ninguém é um exemplo imaculado e nem tão pouco um ser perfeito.

O mundo do futebol traçou-me um outro destino. Do Despertar ao Sporting, com uma passagem pelo Benfica, foi o desenho traçado e fundamentalmente concluído. Depois, veio o Desportivo de Beja, o FC Serpa e o Atlético Aldenovense.

Pelo meio ficou o cumprimento do serviço militar obrigatório. De Tavira aos Rangers, em Lamego, sendo o quartel em Penude, foi um estreitíssimo passo. Seguiu-se a Guiné, onde cruzei a guerra com a paz. Ali conheci uma outra realidade. Uma realidade onde os odores africanos se cruzaram com o “cantar” das armas. Regressei, felizmente, tal como parti. Apenas mais velho de idade. Fica, contudo, nas minhas mágoas de ver partir camaradas para a tal viagem sem regresso.

No retorno de África um emprego em Lisboa assinalou a minha volta à capital do Império. Regressei, depois e mais velho em idade, à velha Pax Júlia em 1978 e onde dei os primeiros passos no maravilhoso universo do jornalismo com o meu saudoso amigo Delmiro Palma, no jornal “O ÁS”, um semanário que adquiri no ano de 2000, sendo, para além de proprietário, o seu Diretor.

Trabalhei, em simultâneo, para vários órgãos de comunicação social desportiva, quer regionais quer nacionais, ficando a certeza que o jornal “A BOLA” terá levado o meu nome e a nossa região baixo alentejana além-fronteiras, para além do JN (Jornal de Notícias). O jornalismo preenchia a minha profícua mente. 12 anos na Rádio Voz da Planície, como coordenador da área desportiva, levou-me a possuir nos três programas na RVP: O “Estádio”, aos sábados; “Planície Desportiva” aos domingos com relatos de futebol incluídos; e diariamente o “Livre Direto”, com dois apontamentos, um logo pela manhã, um outro à tarde. Em 2005 assumi dar a cara pela TV Beja, televisão por Internet.

Um dia, em finais de 1990, lancei o primeiro livro, “Glórias do Passado”, seguindo-se uma segunda obra, ou seja, o II volume sobre a mesma matéria. Em 2006, com 55 anos de idade, fui “contemplado” com um AVC que me deixou entre a vida e morte. Sobrevivi e lutei, incansavelmente, pela minha liberdade. Recuperei o possível.

Limitado a uma cadeira de rodas tracei cenários quiçá inimagináveis. A mente, porém, comandava felizmente o corpo, logo a minha luta titânica passava pelo regresso ao mundo da escrita e ao seio de uma sociedade que me fora sempre cordial. Aliás, a mente, essa fascinante ferramenta de que todos somos possuidores, estava limpa, não obstante a afasia entretanto manifestada. As palavras não saíam com a fluidez que dantes me era comum. Gaguejava e os movimentos físicos estavam ausentes, todavia, esses pequenos/grandes pormenores foram por mim ultrapassado, dado que nunca atirei a toalha ao chão. Segui em frente e de cabeça levantada.

Mas, eis que comecei a vislumbrar a prosperidade do caminho do futuro. Recuperei o que esteve ao meu alcance e regressei ao mundo real e ao computador, principiando-me a elaborar textos para os leitores contemplarem. Em 2008 surgiu o convite do Diário do Alentejo. Aceitei e não mais parei. Paralelamente ressurgiu a veia de escritor e toca a lançar livros, sendo o antepenúltimo, tal como o anterior, com a chancela da Editora Colibri, “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”. Para trás ficaram, para além daquele que atrás citei: Glórias do Passado, volumes I e II; O Trilho; AVC Na Primeira Pessoa; Guiné-Bissau As Minhas Memórias de Gabu; Associação de Futebol de Beja 90 Anos de Memórias e Relatos; AVC O Guerreiro da Liberdade; Aldenovense Foot-Ball Club ao Clube Atlético Aldenovense; Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/1974 e Bola de Trapos - Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022.

Este apurado texto, sendo na minha opinião bastante exígua, reconheço, no entanto, que reproduz retalhos de uma vida de um ser humano nascido numa aldeia que vive de paredes-meias com a vizinha Espanha, província de Andaluzia, que leva 72 anos contabilizados e que assumindo um raciocínio lógico me leva a concluir: Estou velho! Sim, estou velho, mas ainda pronto para continuar hirto ao cimo deste globo terrestre, embora reconheça que as minhas limitações físicas já pesam no meu corpo, hospedando a certeza que as curtas viagens aventureiras se vão diluindo com o evoluir dos tempos. Presentemente o meu carro são as minhas pernas e é com ele, o carro, que me desloco para qualquer ponto deste solo lusitano. Mas, estando velho, e residente neste pequeno “invólucro” terreno, sinto-me ainda capaz em continuar a senda da escrita.

Para trás ficam imagens de anteontem, de ontem e de hoje. Somos, afinal, pequenas gotas de orvalho que se diluem em pequeníssimos ciclos de vida. Aqui ficam imagens dos livros por mim já publicados.

Abraços e beijos
Zé Saúde (Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523)
Jornalista/escritor

Observação: Os três últimos livros publicados, Um Ranger na Guerra Colonial – Guiné-Bissau 1973/1974, Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes e Bola de Trapos Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022, foram editados pela Editora Colibri, Lisboa. Deixo, para já a minha obra feita como escritor, onde enalteço o meu ilustre "torrão sagrado".













___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

6 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24042: (Ex)citações (420): As caçadas por meios aéreos só ao alcance de alguns (Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pil)