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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O Centro Nacional de Cultura organizou em 2004 uma digressão pela Rota dos Escravos, tudo se iniciou em São Tomé e trepou até Santiago. Faz-se uma incursão pela História e de um modo geral o escritor Miguel Real, encarregado do relato da viagem, incumbiu-se bem, leu, documentou-se e dá o seu testemunho e agenda. Adriana Molder publicou ilustrações e Noé Sendas fotografou (infelizmente em tamanho reduzido). Sente-se que as roças estão gradualmente a ser recuperadas, aquele paraíso vegetal mantém o seu fascínio e estamos neste momento no forte recuperado pela Gulbenkian em 1990 de S. João Baptista de Ajudá, uma das placas giratórias do mercado de escravos do Golfo da Guiné. Já se falou de João Oliveira, grande contratador de escravos para o Brasil, teremos a seguir outra figura que entrou na lenda, Francisco Félix de Sousa, que tinha o título de "Chachá", terá sido o último grande negreiro português.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

O escritor tece considerações sobre o fenómeno da escravatura, descreve o seu histórico e como todo este fenómeno entrou na nossa civilização e na nossa cultura. Os portugueses, como outros povos europeus, investiram a fundo na industrialização e internacionalização deste tráfico que era permutado com mercadorias europeias e brasileiras (têxteis, álcool, armas de fogo, cavalos, pólvora, aguardente, tabaco da Baía de terceira qualidade, entre outras). Os escravos africanos destinavam-se a mão de obra nas plantações de algodão, açúcar e café na América. “Ao longo de cerca de 400 anos, entre a segunda metade do século XV e a primeira metade do século XIX, teriam sido comprados em África entre 10 a 15 milhões de escravos, a maioria destinada ao continente americano, do Brasil e Perú até aos atuais Estados Unidos da América”. Está comprovada a presença de escravos africanos em Portugal já em meados do século XVI, exerciam trabalhos servis como o das calhandreiras (recolha matinal dos dejetos da noite em calhandras de barro malcozido). Miguel Real tece a seguinte consideração: “A cultura portuguesa não é uma cultura escravocrata, a civilização e o tempo histórico europeu em que nos integrámos, sim: a passagem em tempo longo da ruralidade medieval para o mercantilismo mundial forçou os europeus a procurarem mão-de-obra intensiva para a produção, vendo no negro a tábua de salvação económica”.

A viagem começa no Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no antigo forte português de São Sebastião. Os visitantes são confrontados com as estátuas de Pêro Escovar, João de Santarém e António da Nóvoa e o escudo de Portugal derribado e quebrado em três partes. Visitaram numa das salas principais as barbaridades do massacre de Batapá, em 1953, cometidas contra a população negra revoltada pelos abusos do poder colonial português. “A ferida civilizacional abriu-se e cada um de nós, percorrendo o museu, sentiu-se confrontado com os atuais fantasmas malignos da História de Portugal – a escravatura, a exploração económica, o esmagamento da cultura negra. Pena foi que quando a Europa se pacificou e descolonizou, não a tivéssemos acompanhado, assumindo a nossa condição de verdadeiros colonialistas logo a seguir à II Guerra Mundial”. E tece considerações mais alongadas sobre a Rota dos Escravos e a respetiva economia, enfatiza a importância do açúcar para a transferência compulsiva de milhões de africanos transferidos para o continente americano, mas não esquece que tudo começou na Madeira (onde não houve escravos na plantação) e depois São Tomé, mais tarde as plantações brasileiras. Estimam-se em cerca de 13 milhões os africanos da sua terra natal e forçados a colonizar a América ao longo de cerca de 400 anos. A compra de escravos tornou-se um investimento vultuoso. No final dos tempos de escravatura, o tráfico negreiro transportava sobretudo crianças e adolescentes, tentando prolongar-lhes a vida ao máximo e reproduzindo-os em uniões forçadas (os criatórios). “Com a plantação do açúcar no Brasil e nas colónias espanholas da América Central, nasce uma nova economia de âmbito internacional, preparando a futura globalização do mundo: mão-de-obra africana, vastas terras americanas e organização e capitais europeus. Nesta fase, Madeira, Cabo Verde e São Tomé tinham abandonado a sua antiga importância colonial, as duas últimas limitavam-se a ser entrepostos de escravos”.

E o grupo prossegue viagem, visitará roças, algumas delas em completa ruína. O autor vai fazendo citações sobre a importância das carreiras de escravos, como São Tomé, São Jorge da Mina, as feitorias da Guiné e adianta uma referência: “Colónia açucareira e plataforma giratória da frota negreira, São Tomé reexporta para a América Portuguesa indivíduos mais resistentes às doenças europeias ou oriundas do litoral africano, falando a ‘língua de São Tomé’. Para o colonato são-tomense, traficar negros torna-se mais interessante do que plantar cana. No início do século XVI a ilha contava com 2 mil escravos fixos e de 5 a 6 mil itinerantes à espera de embarque para outros mercados. Nos anos seguintes, os são-tomenses passam a fazer o trato entre Benim e a Mina ao mesmo tempo que puxam os mercados do Congo para o sistema atlântico”. São elementos retirados de um historiador brasileiro, Luís Felipe de Alencastro.

E o autor volta a fazer uma citação, desta vez retira-a do livro A Manilha e o Limbambo, A África e a escravidão de 1500 a 1700, do embaixador Alberto da Costa e Silva, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2002: “São Tomé mostrou um rápido progresso. Era todo um êxito como centro experimental do que viria a ser a colonização e a exploração europeia nos trópicos húmidos. Ali faziam-se ensaios com gente, plantas, animais, formas de trabalho e fontes de lucros. Ali testavam-se novas maneiras de tratar a terra, de adaptar os vegetais importados, de organizar a mão-de-obra servil e dela retirar o maior proveito possível, de unir numa só classe proprietários da terra e comerciantes, de fazer dos mestiços intermediários entre senhores e escravos”. Visitam as roças, ficam assombrados com o folclore, e era inevitável assistir à peça Tchiloli representada pelo grupo de teatro Formiguinhas da Boa Morte, o grupo representou o seu espetáculo maior, a Tragédia do Imperador de Mântua e do Imperador Carlos Magno, inspirado no auto do século XVI do dramaturgo cego madeirense Baltasar Dias, da Escola Vicentina. Para além desta tragédia do Marquês de Mântua, o grupo tem em cartaz a Tragédia do Capitão Congo e o Auto da Floripes, peças provindas dos séculos XVI e XVII. A descrição das roças é de grande beleza.

E partem para o Museu das Artes e Tradições do Gabão, Miguel Real aproveita para comentar a similitude de instrumentos musicais africanos e brasileiros, a miscigenação do animismo africano com a doutrina cristã e lança-se depois numa narrativa sobre a chamada Passagem do Meio (travessia do Atlântico), o escravo depois de capturado era acartado num batel para o navio veleiro e daqui transportado para a América. Chegado a uma outra realidade, o escravo conhecia os rudimentos da religião cristã, aprendia uma nova língua, era enquadrado numa atividade laboral intensa, adaptava-se a um novo regime alimentar. De novo o autor destaca a mortalidade no decurso destas viagens, a seleção feita nas feitorias por mestres negreiros, embarcado cada um para o seu lugar de trabalho, o pai podia ir para o Recife, a mãe para Hispaniola, o filho para a Jamaica e a filha para a Virgínia, nunca mais saberiam uns dos outros. Visitam Cotonou, uma das mais importantes cidades do Benim, embrenham-se nos cheiros africanos, na cor dos mercados, dá-se uma pitada de História. “Diferentemente de S. Tomé, o Benim possuía já uma História milenar antes dos portugueses aportarem ao Golfo da Guiné na segunda metade do século XV. Presume-se ter sido João de Santarém e Pêro Escobar que, ao serviço do mercador Fernão Gomes, teriam pela primeira vez navegado pelo litoral do atual Benim, embora Rui de Pina afirme ter sido João Afonso de Aveiro, em 1484. As primeiras amostras de malagueta africana terão vindo do Benim para Lisboa, que as reenviaria para a feitoria da Flandres, iniciando assim um comércio intenso que conduzirá à designação inicial da Costa do Benim como Costa da Malagueta, posteriormente substituída por Costa dos Escravos”.

E fala-se do vodu, admite-se que mais de metade da população dos países do Golfo da Guiné e quase 80% das comunidades rurais da região o praticam, independentemente das regiões monoteístas que aqui se implantaram, a população continua a adorar os seus deuses primitivos. A palavra vodu significa potência invisível ou em português espírito. Os vodus são os espíritos que tomam conta das forças naturais. Retomando a história, Portugal foi dos poucos países europeus com fortes contactos com o reino do Daomé, hoje incluído no Benim. Desde o século XV, traficando malagueta, marfim, algum escasso ouro, depois escravos, em troca de ferro, tabaco de baixa qualidade, vidro, sedas e cetins, armas, pólvora e muita quinquilharia. “Até ao século XVII, a forte procura dos escravos situa-se na zona Norte do Golfo da Guiné, entre os atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e Guiné Conacri, e na vasta região entre o Congo e Angola com o transporte dos escravos feito por S. Tomé e Cabo Verde. É a partir de inícios do século XVIII que a Costa da Malagueta é amplamente buscada por europeus, pela compra e venda de escravos, instalando-se então no litoral do Daomé feitorias (sem a imponência do Forte de São Jorge da Mina) por Portugueses, Franceses, Ingleses e Dinamarqueses que passaram a abastecer de negros os mercados de escravos de toda a América".

E o autor, em 9 de setembro de 2004, por aquelas terras de Benim, passa à reflexão:
“Aqueles de entre nós que conhecem o Brasil sabem que a terra que hoje pisam constitui o berço cultural e social de mais de metade do povo brasileiro e que os veios nervosos de grande parte da atual cultura brasileira radicam-se nos costumes religiosos, gastronómicos e antropológicos desta vasta região, da Nigéria ao Togo e à Senegâmbia, tendo como centro ativo os diversos cais de embarque da costa do Benim, mormente de Ajudá, Onim e Porto Novo. Da religião das etnias do Benim nasceu o vodu jamaicano, antilhano e haitiano, e o candomblé brasileiro, da sua alimentação nasceu a moqueca e o acarajé brasileiros, das festas religiosas e dos instrumentos musicais de iniciação vodúnica das etnias fon e ioruba nasceram o agôgô, os atabaques, o berimbau, e do panteão dos seus deuses nasceu o panteão dos orixás”.

O passo seguinte é a visita a S. João Baptista de Ajudá, que foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1990. Com o país independente, em 1960 dirigiu-se ao regime de Salazar o abandono do forte, o ditador mandou incendiá-lo. E vem a descrição: “O forte, de um quilómetro quadrado de área, construção de 1721, foi transformado em museu histórico de Ajudá em 1967. Dependente do governador de São Tomé e Príncipe, depois integrado no vice-reinado do Brasil e, ainda, durante o tempo do consulado do Marquês de Pombal dependente da Companhia Geral de Cabo Verde e Rios de Cacheu, o forte atravessou um conjunto de vicissitudes, ao longo dos séculos XVIII e XIX, que espelham bem a política colonial portuguesa para África, apenas interessada, até ao Ultimatum inglês de 1890 na exploração das riquezas costeiras, sobretudo escravos, ao mais baixo custo possível, totalmente divorciada de uma política de povoamento (…) O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.

Importa dizer que o grande tráfico de escravos sob a bandeira portuguesa iniciou-se ainda na primeira metade do século XVIII e centrou-se nos embarcadouros de Ajudá, de Porto Novo, Jaquim e Onim, todos perto do primeiro. É altura de falar de um escravocrata lendário, Francisco Félix de Sousa, que fora antecedido pelo negro João de Oliveira como atravessador de escravos entre África e o Brasil, este João Oliveira notabilizou-se como exportador para Pernambuco, Baía e Rio de Janeiro, é do seu tempo a introdução do negócio das folhas de tabaco como material de permuta por escravos. Falemos então de Francisco Félix de Sousa.

(continua)


São Tomé e Príncipe, estátua dos descobridores
Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
Entrada da Casa dos Escravos, Ilha da Goreia, Senegal
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22575: Notas de leitura (1385): Francisco Serra Frazão e o crioulo guineense (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
Não é nenhuma lança em África, trata-se de um maço de fichas, alfabeticamente organizadas, um curioso em filologia do mundo africano português, quadro colonial em Angola, escritor premiado, ter-se-á interessado pela filologia comparada e foi juntando elementos sobre línguas étnicas da Guiné, que não desenvolveu. O que aqui se mostra é a transcrição das suas fichas e conta-se com a benevolência e a disponibilidade dos camaradas na Guiné para corrigir o que Francisco Serra Frazão terá mal interpretado, junto dos seus interlocutores. Só nas décadas recentes é que apareceram dicionários, Benjamin Pinto Bull doutorou-se com o crioulo guineense e há missionários italianos que devotam ao crioulo um estudo notável.

Um abraço do
Mário



Francisco Serra Frazão e o crioulo guineense

Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um volume que aberto revela um conjunto impressionante de fichas de trabalho que pertenceram a este administrador de circunscrição, sempre em Angola, em 1914 já era administrador no Golungo Alto, no prefácio a um dos seus trabalhos, Norton de Matos tece-lhe os elogios mais rasgados pela exemplaridade como funcionário e como investigador. O livro aqui mencionado, sobre as associações secretas entre os indígenas de Angola, recebeu o 1.º prémio de etnografia no XX Concurso de Literatura Colonial. O curioso dos seus trabalhos era a filologia comparada, não faltam referências a Angola, Cabo Verde, São Tomé e Guiné. Foi admitido como sócio efetivo da Sociedade de Geografia de Lisboa em 21 de novembro de 1944, era o sócio 15003, faleceu em março de 1948.

Verificados todos os maços de fichas, encontra-se um levantamento de vocábulos do crioulo guineense. Convém recordar que a primeira tentativa de dicionário é da autoria de Padre Marcelino Marques de Barros, nas últimas décadas, graças ao labor de missionários investigadores do crioulo surgiram dicionários. Não se sabe o que levou Francisco Serra Frazão a interessar-se por estas expressões, há mesmo uma tentativa, que só desenvolveu de forma incipiente, de comparar vocábulos portugueses em cinco ou seis línguas étnicas, não passou de um esboço. Mas quanto ao crioulo, veja-se o que consta destas fichas:
Abrandar – barandá; acabar – cabá; aceitar – setá; acender – sendê, cendê; achar – ódja; aconselhar – consedjá; afogar – fogá; água – iágo; agudo – gúdu; ainda – inda; ajuntar – djuntá; alguém – àguém; ali, aqui – li; amor – querê; aquecer – quentá; aquele, aquilo – quel; arrozal – bolanha; assim – sima, sim, ês; atirar – djogá, ramangá; avermelhar – burmedjá; bater – batê, bati; Bolama – Blama; balaio – balé; balcão, varanda – balcon; bandeira – bandera; barafustar – barafustá; bem – bem; bolo – bolo; bote – bote; cacho – cacho; caiar – caiá; camisa – camisa; candeeiro – candia; canoa – canua; carneiro – carnél, amonton; casa – can, cassa; cascos (de animal) – sapata; chão – tchon; chicote – chicote; chover – djobê; cobrir – cubri; colher – cudjer; concordar – setá; conta – conta; contar – contá, cuntá; convir – sentá; copo – copo; coroa – crua; dar – dá; deitar – botá, bota; deixar – dessá; demanda – demanda; Deus – Deus, Dês; doce – dôc; dossel, sanefa – mêc; doido – dôdo; dois – dôs; é (verbo) – i; eles – es; embarcar – bác; enganar – anganhá; então – antã, antam; escolher – escodjê; esconder – sucundi; escondido – condidjo, sucundido; esmola – sumóla; espera – pera; eu – mim; falcão – falcon; faltar – mangá; fazenda – fassenda; fazer – fassê, fossê, facêl; feira – fera; fiar, confiar – fiá; ficar – fica; filho – fidjo; fogo – fugo; figueira – fuguera; galinha – galinha; garfo – garfo; grande – garandi; grão – garâ; história – stória; imbecil – amonton; irado – brabu; irmão, irmãos – ermon, ermons; janeiro – djanero; janela – djanela; jarra – djarra; junto de – longo; jurar – djurmentá; lenço – lenç; levar – rebatá; lobo – lobo; loja – lossa; lua – lua; luz – candia; macho – matcho; mãe – mamãe; mais – más; malhar – madjá; mancarra – mancara; mandar – mandá; manobra – manobra; mar – mar, mádje; marrada – modjadera; marrar – modjá; matança – matança; matar – matá; meio – mi; mulher – mindjer; menino – minino; meu, minha – nha; miséria – fede; molhar – modjá; moradia – morança; mostrar – mostrá; mudança – cambança; mundo – mundo; neto – neto; nós – na; nosso – nô, nos; novo – nobo; nunca – nem; oiro – ôro; oliveira – olbera; ovo – obo; paciência – passença; pai – papai; parida – padida; pássaro – pástro, pástros (plural); pau – pó (árvore); pedir – pidi; pessoa – aquém; pilão – pilon; poder – pudê; poilão – polon; pois – pô; pomba – pomba; pôr – pô; porque – parque; porta – porta; pouco – pouco; prata – prata; prato – prato; pressa – de pressa; providência – purbidência; rabo – rabo; rato – rato; queixar – queçá; rabiar – rabidá; recuar – racuá; reino – reno; rende – renda; requebro – requendel; respeito – respêto; responder – respondê; retalhar – ratadjá; revirar – rabidá; rua – rua; sair – saí; satã – seitáno; seco – sêcu; sem – sim; senhor – nho; servir – sirbí; seu, sua – sê; silva – sirbi; só, somente – djusto; sobre, em cima – riba; sol – sol; tardar – tardá; teimoso – amonton (carneiro); ter – tenê, tem; tina – tina; tio – ti; todo – tudo; tolo – amonton; tomar – tomá, toma; tornar – torna; torcido – torcido; trancar – trancá, tarancá; tratar – taratá; três – tres; tudo – tudo; tufo – bucho (diz-se das velas pandas); vaca – baca; vai – bá; vela – vela, bela (de navio); vem – ben; vender – bendê; verdade – bardade; vermelho – burmedjo; virar – bidá; voar – buá; vós – bós.

Ver site da aprendizagem do crioulo guineense:
MONTE DE PALAVRAS

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22572: Notas de leitura (1384): "Tempo das coisas", tempo de viver, tempo de morrer... A pungente despedida de Renato Monteiro (1946-2021): 31 poemas escritos de rajada na noite de 3 para 4 de julho de 2021 (Luís Graça)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22323: Notas de leitura (1363): “As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins; Edições Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de um projeto científico pertinente e não hesito em dizê-lo original, pelas opções temáticas que foram tidas em conta: a partir das datas marcantes da luta anticolonial, dezenas de autores de diferentes áreas de conhecimento puseram-se a questionar a História e o legado desses tempos de mudança. Denunciam-se mitologias e o mais importante é que aqui se esboça um outro modo de contar a memória de uma guerra que se viveu em muitos teatros e que ainda hoje nos contagia pelo cotejo de críticas ideológicas. É por isso uma leitura a que não nos devemos furtar.

Um abraço do
Mário



As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação

Beja Santos


“As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins, Edições Tinta-da-China, 2018, é uma detalhada evocação, em voz plural, de acontecimentos influentes, eventos selecionados que, como justificam os coordenadores, “têm em comum o facto de terem produzido um lastro memorial presente em discursos e monumentos públicos, em mobilizações sociais, em apropriações políticas. Escolhemos 47 eventos que, tomados em conjunto, podem ser vistos como partes de um caleidoscópio ainda vivo”

É uma tentativa historiográfica para ler um outro modo de contar Portugal e as diferentes nações africanas emergentes da luta anticolonial. Daí o leitor ter oportunidade de recordar em sequência cronológica eventos como o Massacre de Batepá, em São Tomé e Príncipe (1953), o início da vaga de prisões de militantes nacionalistas em Angola e o Massacre do Pidjiquiti, em Bissau (1959), o Massacre do Mueda, Moçambique (1960), a revolta camponesa na baixa de Kasanje, Angola (1961), até ao 25 de Abril, onde terão peso acontecimentos como a libertação dos presos políticos do Tarrafal, a fundação da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, o fim do exercício Alcora, as independências de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola e a ponte aérea da TAP, em 1975. 

Obviamente que há textos de bom quilate e outros que não deixarão memória, escritos em água chilra, acontece. Michel Cahen deixa-nos um texto muitíssimo bem elaborado sobre o Massacre do Mueda, em 16 de junho de 1960. É cortante e denunciador da muita mistificação sobre a propaganda de Mueda. O governador de Cabo Delgado não atinou com as razões de fundo que traziam de volta os Macondes à região, eles voltavam para Moçambique porque a independência do Tanganhica os inquietava, na medida em que os fazendeiros europeus do sisal, sob pressão dos sindicatos, tinham aumentado os salários e já não necessitavam de mão-de-obra estrangeira. E escreve Michel Cahen: 

“Não vinham para pedir com clareza a independência, e ainda menos a independência de Moçambique, mas a liberdade para voltarem livremente à sua terra. Pode-se perfeitamente chamar a isto nacionalismo, mas não era nacionalismo moçambicano”

Referindo-se à tese de outra investigação baseada na memória oral, ele trabalhou principalmente com fontes arquivistas coloniais e fontes orais portuguesas. E termina o seu texto de forma primorosa, lembrando que há equívocos que bem retorcidos ganham foro de lenda ao serviço dos poderes do dia:

“Os arquivos coloniais veiculam a narrativa do colonizador. Mas têm uma vantagem: não mudam. Além disso, os atores coloniais que entrevistei nos anos 1980, um após outro, nunca mais tinham vivido em Mueda. Encontrei obviamente várias contradições nas suas narrativas, mas pude confrontá-las. E também utilizei fontes orais africanas.

Não é uma questão de saber ‘quem tem razão’. Este debate é muitíssimo interessante e deverá ser aprofundado. Trata-se, no fundo, de conhecer as condições de produção da memória. Condensarei essas linhas citando este pequeno debate que tive, em 2000, com uma testemunha africana da tragédia de 16 de junho de 1960:
- Houve muitos mortos?
- Sim, muitos! Foram 16!
- Ah! Pensava que eram 600…
- Sim, depois recebemos a orientação de que eram 600.


Marcelo Bittencourt, relativamente aos ataques em Luanda, em 4 de fevereiro de 1961, também adota uma versão que procura remover a poalha da propaganda e a apropriação da aura dourada de quem vem invocar que é o personificador do evento:

“O fator mais importante na vinculação do 4 de fevereiro ao MPLA é o ingresso dos principais protagonistas da ação na legenda, após a detenção destes, como consequência da contraofensiva colonial que se instala em Luanda. Não tiveram de fazê-lo antes da ação que inaugura a luta de libertação angolana. O MPLA havia começado o processo de estruturação da sua rede clandestina em Luanda, no início do ano de 1960, mas passados alguns meses uma nova onda de prisões iria encarcerar seus líderes, como Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade.

Desta forma, o 4 de fevereiro é o primeiro e último ato insurrecional, violento e anticolonial a refletir essa constelação de organizações clandestinas ainda muito ligadas aos seus vínculos elementares de solidariedade, fossem eles o bairro, a profissão, a família, a escola ou a associação cultural aos quais estavam ligados. Ou seja, a luta no terreno da história e da memória entre as duas principais forças políticas do nacionalismo angolano nos anos de 1960 parece ser o melhor caminho para entender a gestação e o posterior embate pela paternidade do 4 de fevereiro”
.

O leitor passa a dispor de um conjunto de referências sequencialmente cronológicas, conhecer a criação do Movimento Nacional Feminino, a fuga de cem estudantes das colónias, a revogação do Estatuto do Indigenato, a criação dos Comandos, a Operação Tridente, o início da luta armada em Moçambique, o encerramento em Lisboa da Casa dos Estudantes do Império, Cabral na Conferência da Tricontinental em Havana, em janeiro de 1966, o I Congresso da UNITA, a criação em Cuba das Forças Armadas de Cabo-Verde, que acabarão por ser desviadas para a luta armada na Guiné, o assassinato de Eduardo Mondlane, a Operação Mar Verde, a morte de Josina Machel, o Massacre de Wiriamu, o assassinato de Amílcar Cabral (que o autor erradamente fixa pelas 20h30 de 20 de janeiro), a tomada do quartel de Guilege, a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, o fim do exercício Alcora, a independência de Moçambique, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe e depois de Angola.

De leitura obrigatória para quem pretenda aprofundar o conhecimento do período correspondente à guerra colonial. Haverá textos que vão ficar como referência.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22271: Blogues da nossa blogosfera (161): Os Comandos nos Três Teatros da Guerra do Ultramar (1961/75) (Alberto Helder)

 
Imagem: Alberto Helder, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso leitor,  camarada e "blogger", Alberto Helder.

 [O seu blogue, "Alberto Helder", foi criado em agosto de 2007; fez o serviço militar no Comando Territorial Independente de São Tomé e Príncipe, como Soldado e depois 1.º Cabo de Transmissões de Infantaria, entre junho de 1964 a junho de 1966; tem exaustiva investigação sobre os Comandos na guerra do Ultramar (série iniciada em 15 de dezembro de 2019), a par da Polícia Militar (com 121 unidades): sua composição orgânica, lista das principais operações, condecorações e louvores, mortos e feridos, incluindo os fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência, no caso do Batalhão de Comandos  Africano; refira-se que a "navegação" no blogue não é amigável, não havendo links de ligação entre os diferentes postes; em todo o caso, é um trabalho de grande mérito, que merece o nosso aplauso e apreço.]  

Date: sexta, 28/05/2021 à(s) 02:57
Subject: Os Comandos nos  Teatros da Guerra do Ultramar 

Exmª Senhora ou Exmº Senhor

Com os melhores cumprimentos e com imensa satisfação que dou conta ter concluído, hoje, o projecto acima referido, após 530 dias do primeiro tema publicado, que ocorreu em 15 de dezembro de 2019. Este empreendimento estava previsto concretizar num espaço de cinco anos (1826 dias), mas, uma das consequências da crise epidemiológica que nos afeta gravemente, deu para reduzir substancialmente a planificação.

Entretanto, avanço já com os sinceros e profundos agradecimentos às entidades, seus responsáveis, representantes e colaboradores, dado que, sem a sua valiosa ajuda, importante e imprescindível não seria possível concretizar esta tarefa, inédita e histórica.

Eis os signatários: 

  • Associação de Comandos, Arquivo da Defesa Nacional, 
  • Arquivo Geral do Exército, 
  • Arquivo Histórico-Militar, 
  • Biblioteca da Defesa Nacional, 
  • Biblioteca do Exército, 
  • Biblioteca da Liga dos Combatentes, 
  • Câmara Municipal de Lamego, 
  • Câmara Municipal de Tarouca, 
  • CAVE-Centro de Audiovisuais do Exército, 
  • CECA-Comissão para o Estudo das Campanhas de África (Estado-Maior do Exército) (já extinta), 
  • Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, IP, 
  • CTOE-Centro de Tropas de Operações Especiais, 
  • Direção de Administração dos Recursos Humanos do Exército (Ordem do Exército), 
  • Direção de História e Cultura Militar, 
  • Hemeroteca Municipal de Lisboa, 
  • Liga dos Combatentes, 
  • Radio e Televisão de Portugal, SA, 
  • Regimento de Artilharia Antiaérea 1 
  • e Regimento de Comandos.

Naturalmente que o reconhecimento é extensivo a todos aqueles a quem contatei para saber mais e melhor, especialmente junto do saudoso, leal e sempre pronto e prestável Amigo José Manuel Pinto Gomes (27.05.1951/07.01.2021), colaborador da Associação de Comandos, que muito pugnou para que este projeto tivesse o desejado êxito, razão, porque todo este trabalho é-lhe dedicado, pelo merecimento e em sua memória. 

Contudo, a todos, sejam coletivos ou individuais, o meu bem haja, extensivo, como se compreende, aos 40.430 visitantes que fizeram o favor de ir acompanhando e visualizando o trabalho através do blog!

Foi, sem dúvida, para mim, uma agradável tarefa desenvolver esta iniciativa, a qual foi por mim idealizada, planeada, produzida e publicada, a tempo e horas e sem qualquer falha, no meu espaço na Net (http://albertohelder.blogspot.com/), e que se resume em: 

  • 25 séries; 
  • 201 episódios;
  • 2.483 imagens;
  • 10.588 militares mobilizados para África; 
  • 14.966 instruendos frequentaram os cursos da especialidade;
  • 425 óbitos; 
  • 530 condecorações para 412 galardoados;

 entre outros temas que marcaram a vivência dos Comandos naquele confronto.

Recordo que também fui o autor de dois outros trabalhos idênticos, isto é, relacionados com aquele conflito armado, como a coleção "A Polícia Militar no Ultramar", que abrangeu a sua participação em:

  • 131 episódios, referentes às 121 unidades que estiveram em: 
  • Angola (42), 
  • Cabo Verde (12), 
  • Guiné (16), 
  • Macau (8), 
  • Moçambique (21), 
  • São Tomé e Príncipe (15), 
  • e Timor (7); 
  • ilustrados com 2197 imagens; 
  • 11.071 os militares mobilizados para o Ultramar; 
  • 48 óbitos 
  • e 33.515 visualizações. 

Trabalho publicado no mesmo local de 15 de maio de 2017 a 10 de agosto de 2019.

E da colectânea "Outras Unidades que Serviram no Comando Territorial Independente de São Tomé e Príncipe", e "Militares Falecidos em São Tomé e Príncipe", entre 1961 e 1977, onde se destacaram: 

  • 34 episódios; 
  • 31 Unidades militares;
  • 34 imagens; 
  • 2.659 militares; 
  • 15 óbitos; 
  • e 5.948 visualizações. 

Também dado a conhecer no blog, de 29 de novembro de 2018 a 29 de janeiro de 2019.

 Há que dizer que estes desenvolvimentos não tiveram qualquer apoio monetário ou outro e, por mim, foram oferecidos, graciosamente, às 2 Associações das referidas forças militares, assim como os direitos de autor, se vierem a ser acionados. Uma delas já editou o trabalho em papel, tipo "Revista", publicando os contingentes que cumpriram a sua missão em São Tomé e Príncipe, Macau, Timor e Angola.

Para quem não sabe direi que, com 22 anos de idade, cumpri o serviço militar obrigatório no Comando Territorial Independente de São Tomé e Príncipe, de junho de 1964 a junho de 1966, como Soldado/1.º Cabo de Transmissões de Infantaria,  experiência que me ajudou na execução destas tarefas, contribuindo, assim espero, para destacar e registar temas de relevante interesse para memória futura e para o conhecimento geral do que foi a Guerra do Ultramar.

Resta acrescentar a informação que a documentação que serviu de suporte ao tema "Os Comandos nos Três Teatros da Guerra do Ultramar", irá ser entregue na Associação de Comandos, cumprindo o prometido, para que as inúmeras fotocópias, dados e gráficos, assim com as largas centenas de fotografias e imagens, estejam disponíveis a quem desejar continuar a saga, com novas ideias e trabalhos sobre a vivência dos Comandos em terras de África.

Finalmente: o meu próximo passo, a aventura que se segue, a qual está prevista realizar em dois anos:

 "Estado da Índia, 463 anos de história".

Saudações de apreço, consideração e respeito.

 Alberto Helder

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22266: Blogues da nossa blogosfera (160): Vida e morte do capitão Sebastião Roby (Braga, 1883 - Angola, 1915) (Excerto de "O sal da história", de Cristiana Vargas)

segunda-feira, 29 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22049: Notas de leitura (1349): “Trabalho forçado africano, o caminho da ida”, com coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Edições Húmus, 2009 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Aqui está uma boa oportunidade para os interessados em escravatura e trabalho forçado saberem mais a preços módicos: o velho tráfico nas suas condições de transporte, mas também na Costa francesa dos somalis e com incidência em Moçambique e saber mais sobre a intervenção dos Países Baixos no tráfico atlântico de escravos. Extinta formalmente a escravatura, ela manteve-se com outros nomes e daí a análise que se pode ler sobre a mão-de-obra para a cultura do cacau em São Tomé e Príncipe ou os contornos do recrutamento para o trabalho forçado na Companhia dos Diamantes de Angola.

Um abraço do
Mário


Trabalho forçado africano, o caminho da ida

Beja Santos

“Trabalho forçado africano, o caminho da ida”, com coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Edições Húmus, 2009, acolhe um conjunto de trabalhos centrados sobre o caminho da ida, como observa José Capela: o percurso pluriforme que vai da modalidade de tráfico a partir das costas africanas para o Atlântico até ao circuito dos recrutamentos coloniais compulsivos. 

Daí o leque de análises: os “contratados” para a cultura do cacau em São Tomé e Príncipe, o recrutamento para o trabalho forçado na Companhia dos Diamantes de Angola, o tráfico de escravos a partir da Costa francesa dos somalis nas datas tardias de finais do século XIX, atingindo a colónia de Moçambique. 

Mas há ainda mais, precede este trabalho forçado três séculos de comércio negreiro ilícito e daí o estudo das condições de transporte de escravos no Atlântico Sul durante o século XVII; a intervenção dos Países Baixos no tráfico atlântico de escravos e a mão-de-obra fornecida pela Costa da Mina à área servida pelo porto do Recife entre fins do século XVII e a primeira metade do século XVIII.

O leitor interessado por estas matérias encontrará análises de primeira água. Logo a investigação de Arlindo Caldeira sobre as condições de transporte negreiro do Atlântico Sul durante o século XVII. Escreve, em dado passo: 

“O desembarque de multidões de africanos esqueléticos, que faz parte da iconografia da escravatura, não se afasta, em muitos casos, da realidade, mas resulta de múltiplos factores e não apenas da escassez de comida a bordo. A razão principal tem a ver com as condições de saúde. Muitos dos escravos chegavam ao local de embarque bastante debilitados pelas enfermidades e pelo esforço do longo percurso que os trouxera até aí. Mas, mesmo quando não eram atingidos por doenças graves, os escravos embarcados, quase todos criados longe do Litoral e tendo de enfrentar agora mares agitados (e não raros, tempestades) a bordo de pequenas embarcações, eram afectados por violentas crises de enjoo, com náuseas e vómitos. E, nestes casos, o tipo de alimentação disponível não era seguramente a mais atractiva nem a mais indicada. 

Além do enjoo, o pânico e o desespero levavam também muitos a recusarem deliberadamente a comida, como forma de anteciparem uma morte que lhes parecia próxima e ainda mais terrível (…) Um índice significativo das condições de vida a bordo é o das taxas de mortalidade. A mortalidade a bordo revela-se, de uma forma geral, chocantemente alta. Uma doença contagiosa galopante ou um percalço que alargue excessivamente a duração da viagem podiam revelar-se catastróficos. Mas, em contrapartida, as condições de navegação favoráveis, diminuindo o tempo da ligação transoceânica eram, quase sempre, bastante auspiciosas”.

No trabalho de Maciel Santos sobre a compra dos “contratados” para São Tomé avultam aspetos muito interessantes. Logo a conjuntura: 

“Durante a década de 1890, a colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe tornou-se um dos maiores produtores mundiais de cacau. Entre 1894 e 1903, a sua produção cacaueira teve uma taxa de crescimento anual de 15,5% (contra 1,9% do Equador e 8,8% do Brasil). Este crescimento – o maior de todos os produtores com quotas de mercado entre os 10% e os 20% – levou a que a ponderação de São Tomé no mercado mundial tivesse passado, entre esses anos, de cerca de 9% a 18%. 

A intensificação da produção do arquipélago esteve associada a uma fase de prosperidade pregando parte dos capitais aí investidos. Entre 1875 e 1903, a cotação do cacau nos grandes centros de consumo não teve uma tendência continuada de alta. No entanto, para capitais agrícolas produzindo para o mercado mundial, o lucro consiste numa diferença entre preços: o que regula o mercado e o preço individual de produção. Este último era tendencialmente mais baixo no arquipélago. 

Devido à desflorestação recente, os cacaueiros das ilhas deram durante anos produções por hectare superiores às da maioria dos centros produtores mais antigos, da América Central e do Sul”

A investigação aprofunda a natureza do recrutamento, o porquê da escolha dos “angola”, o processo do “resgate”, a produção de escravos pelas mercadorias, tudo para concluir a existência de uma correlação entre a expetativa de rendas e a procura de escravos, processou-se uma oferta de escravos fora da ordem colonial (daí a ficção jurídica do “resgate”), a única solução jurídica para São Tomé.

Recorde-se que a editora Campo das Letras já publicara com a coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto dois outros importantes trabalhos correlativos: Trabalho forçado africano, Experiências coloniais comparadas e Trabalho forçado africano, Articulações com o poder político.

Aproveita-se a oportunidade para se publicitar o importante site do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto que dá informação sobre os conteúdos da primorosa revista Africana Studia, disponível a preços muito acessíveis.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22025: Notas de leitura (1348): "A Batalha do Quitafine", por José Francisco Nico; edição de autor, 2020 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 19 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21663: Pensamento do dia (26): “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade" [ José de Almada Negreiros (São Tomé e Príncipe, 1893 - Lisboa, 1970), um bastardo do Império, que "inventou o dia claro": fascista, colonialista, futurista, modernista, português genial...]. Seleção de Mário Gaspar e Luís Graça.

A inconfundível assinatura
do Alama Negreiros (1893 - 1970)


1. O Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, "Os Zorbas" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), lapidador de diamantes reformado, e colaborador sénior do nosso blogue (com cerca de 125 referências no nosso blogue),manda-nos um frase genial do nosso Almada Negreiros, a primeira que reprozimos a seguir... 

Pesquisámos (e selecionámos) mais umas tantas... São um motivo de reflexão para esta quadra natalícia, este ano aprisionada por um miserável vírus, o Sars-CoV 2. que nos está a tramar a vida... 

Com tantos vendilhões do templo a impingir-nos verdades eternas e salvíticas nestra quadro do ano, ensombrada por um grave crise da humanidade (que não será primeira nem a última), é bom conhecer (e meditar em) o pensamento deste português, um dos grandes e últimos do império. 

Almada Negreiros, juntamente com Fernando Pessoa, é um dos nomes maiores da nossa modernidade cultural ... É um filho bastardo do nosso império: nasceu na Roça da Saudade, freguesia da Trindade, São Tomé e Príncipe, em 1893, sendo o primeiro filho de António Lobo de Almada Negreiros, tenente de cavalaria, alentejano de Aljustrel, administrador do concelho de São Tomé, e de sua mulher Elvira Sobral de Almada Negreiros, uma mestiça com fortuna paterna, sã-tomense, falecida três anos depois, em 1896, uma mãe que ele invoca, evoca, interpela, nos seus escritos, mas de que pouco se podia lembrar!

Quando ele nasceu, numa antiga ilha esclavagista, já tinham nascido todos os grandes gurus da humanidade, de Buda a Confúcio, de Jesus Cristo a Maomé, de Lutero a Karl Marx... E em nome do mesmo Deus, continuamos a matar-nos uns aos outros. Basta percorrer as redes sociais: quantas frases de ódio e violência se irão escrever  no dia de Natal de 2020 ?

2. Citações de A Invenção do Dia Claro [, 1924], de José de Almada Negreiros, selecioanadas por Mário Gaspar e Luís Graça:

(...) “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade.” (...)

(...) “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido.” (...)

(...) "Na montra estava um livro chamado «O leal conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies de seus vassalos! Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja Mestre!" (..,)

(...) “Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!” (...)

(...)“Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo.” (...)

(...) “Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.”(...)

(...) "Imaginava eu que havía tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animaes domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há"

(...) "Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia. "(...)

(...) "O pequeno é como o grande. O que está em cima é análogo ao que está em baixo. O interior é como o exterior das coisas.Tudo está em tudo. "(...)

(...) "Mulheres e homens são as duas metades da humanidade: a metade masculina e a metade feminina. Há coisas inteiras feitas de duas metades e aonde não se pode cortar ao meio para separar essas duas metades. Exemplo: a humanidade com a metade masculina e a metade feminina. São duas metades que deixam, cada uma, de ser uma metade se não houver a outra metade. "(...)


(...) "As mulheres e os homens estavam espalhados pela Terra. Uns estavam maravilhados, outros tinham-se cansado. Os que estavam maravilhados abriam a boca, os que se tinham cançado também abriam a boca. Ambos abriam a boca.

Houve um homem sosinho que se pôs a espreitar esta diferença: havia pessoas maravilhadas e outras que estavam cansadas. Depois ainda espreitou melhor: Todas as pessoas estavam maravilhadas, depois não sabiam aguentar-se maravilhadas e ficavam cansadas. As pessoas estavam tristes ou alegres conforme a luz para cada um: mais luz, alegres, menos luz, tristes.

O homem sosinho ficou a pensar n'esta diferença. Para não esquecer fez uns sinais numa pedra. Este homem sosinho era da minha raça: era um Egípcio! Os sinais que ele gravou na pedra para medir a luz por dentro das pessôas, chamaram-se hieroglifos.

Mais tarde veio outro homem sosinho que tornou estes sinhais ainda mais fáceis. Fez vinte e dois sinais que bastavam para todas as combinações que há ao Sol. Este homem sosinho era da minha raça: era um Fenicio! Cada um dos vinte e dois sinais era uma letra. Cada combinação de lettras uma palavra." (...)

(...) "Jesus Cristo desce sosinho por entre as duas grandes alas da humanidade. As duas grandes alas da humanidade estendem os braços para Jesus Cristo. Uma das duas alas acusa a outra ala, e esta acusa aquella.

Jesus Cristo desce sosinho por entre as duas grandes alas da humanidade, sem se aproximar de uma nem da outra. As duas grandes alas da humanidade. Jesus Christo acabou de passar por entre as duas grandes alas da humanidade, sem se ter approximado de uma nem da outra. As duas grandes alas da humanidade. Em baixo a Terra, em cima o Sol." (...)

(...) "Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessário um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei atrapalhado! Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Poeta! Não acceitaram. Tambem pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Menino! Tambem não acceitaram. "(...)

(...) Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão! Dói.me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! (...)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20443: E as nossas palmas vão para... (20): A morna, património imaterial da humanidade



1. Foi assim que o "Expresso das Ilhas", na sua edição digiiaol, deu a notícia, ontem, às 16h21




"O meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade"."




(...) Agora é que é mesmo. A Morna foi hoje proclamada Património Imaterial da Humanidade. “Para todo o Cabo Verde, hoje é um dia feliz, em que nos sentimos felizes de ser cabo-verdianos”, destacou o Ministro da Cultura e Indústrias Criativas, Abraão Vicente, em língua cabo-verdiana, no discurso de celebração, perante o Comité do Património Cultural Imaterial da UNESCO.

No seu discurso, que prosseguiu em castelhano, Abraão Vicente congratulou a consagração desta prática musical que é a alma de Cabo Verde, agradecendo à UNESCO, aos peritos e a toda a comunidade.

“Hoje o meu país celebra! O meu pequeno país, formado por 10 ilhas no meio do Atlântico, meio milhão de habitantes residentes e um milhão em todo o mundo, o meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade”, disse.

O Ministro assumiu ainda que será cumprido “com honra o privilégio de ver reconhecido como património da Humanidade, o vínculo emocional mais importante do povo e nação de Cabo Verde: a Morna”.

E, em jeito de presente do povo de Cabo Verde, apresentou “dois músicos de referência que irão representar não somente os artistas e os compositores, mas a gente simples de Cabo Verde”.

“Porque a morna é a alma do nosso povo”.

E a morna fez então ouvir, pela voz de Nancy Vieira e a viola de Manuel di Candinho, na reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade.


Caminho longe

A candidatura da Morna foi oficialmente apresentada no passado mês de Março e hoje, na cidade colombiana de Bogotá, foi confirmada como Património Imaterial da Humanidade.

Neste processo de candidatura, Cabo Verde contou com o apoio de Portugal tendo Paulo Lima, especialista na elaboração de processos de candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, estado no país para uma missão de assessoria técnica de apoio à instrução da candidatura.

A 27 de Fevereiro, o parlamento aprovou, por unanimidade, a data de 03 de Dezembro como Dia Nacional da Morna, dia em que nasceu Francisco Xavier da Cruz, mais conhecido por B. Léza (1905 - 1958), um dos maiores compositores do género musical.

A 7 de Novembro, Abraão Vicente já tinha dito que a nomeação era certa, no que foi, por muitos, considerado como uma "partida em falso" uma vez que ainda faltava a confirmação oficial do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade. Esta acabou por surgir hoje durante a reunião que, se iniciou no dia 8 e termina dia 14." (...)



2. Neste dia de alegria e felicidade para os cabo-verdianos (*), a que se associam, seguramente, os demais povos lusófonos, e os amantes da morna, como eu (**), deixem-me aqui lembrar a letra (e a música) da morna talvez mais conhecida em todo o mundo, a mais emblemática, numa interpretação (imortal) da Cesária Évora, a "Sodade":


Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Es caminho pa São Tomé [Esse caminho para São Tomé ?]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]

Si bo screve m', [ Se me escreveres, ]
M' ta screve bo [ Eu escrever-te-ei,]
Si bo squece m' [Se me esqueceres,
M' ta squece bo [Eu te esquecerei,]
Até dia qui bo volta [, Até ao dia em que voltares]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]


A interpretação, na voz luminosa de Cesária Évora, pode ser ouvida aqui no aqui no You Tube, numa ficheiro áudio que tem de 18 milhões de visualizações. Este foi um (ou talvez o maior) dos  sucessos da carreira da cantora mindelense Cesária Èvora (1941-2011), mais conhecida por Cize, entre os amigos e fãs locais. Claro  que há outras mornas, que ficam para a eternidade, como o "Mar Azul" ou a "Miss Perfumado", interpretadas pela "diva de pés descalços"... Mas a morna não é só figura, uma artista, é uma criação coletiva de uma comunidade, de ula cultura,  tal como o fado, e é isso que a torna "património imaterial da humanidade"... E tal como o fado a morna canta a vida e a morte, o amor, o desejo e o ciúme, a alegria e a tristeza, a saudade da partida, a morabeza, a hospitalidade, a amizade, o quotidiano, enfim, a "petite histoire" das gentes das ilhas e da diáspora... E tudo começou na Boavista... onde as primeiras mulheres começaram a cantar a morna. E "os nossos, nossos velhos e nossos camaradas" trouxeram-nos, no sabor de regresso a casa, esse som incomfundível da morna...

Curiosamente a autoria desta morna, a "Sôdade",  ainda hoje é atribuída, indevidamente, nalguns sítios,  à dupla de Amândio Cabral / Luis Morais.

Na realidade, o autor da "Sôdade" foi Armando Zeferino Soares (1920-2007), compositor e comerciante na sua ilha natal, São Nicolau. Segundo declarações à Agência Lusa, sete anos antes de morrer,  ele explicou como esta morna nasceu quando, por volta de 1954,  foi  despedir-se de um grupo de conterrâneos, na situação infamante de "contratados" para trabalhar nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe. Era  habitual , em Cabo Verde, os amigos e familiares irem-se despedir de quem ia partir, talvez para sempre. A emoção era  grande, dada a incerteza da viagem, da estadia e do regresso.

Os "contratados"  cabo-verdianos, a par de angolanos e moçambicanos, alimentavam a economia colonial local, basada na monocultura do cacau e do café.  enquanto a população local, os "forros" (descendentes de escravos), se recusavam a trabalhar nas roças.

Um ano anos, com início em 3 de fevereiro de 1953, tinha acontecido o "massacre de Batepá"  (, despoletado por um conflito laboral, tal como o massacre do Pidjiguiti, em Bissau, em 3 de agosto de 1959, que se tornou, desgraçadamenet, numa espiral de violência.)

Hoje, dia de festa,  não é a  melhor ocasião para lembrar esta triste efeméride...Em todo caso, convém dizer que sobre o massacre de Batepá há um manto diáfano de efabulações e de silêncios que mascaram e escamoteiam uma realidade complexa e contraditória, em que os próprios "contratados" foram instrumentalizados pelo poder colonial, e pelos fazendeiros,  a responder a uma alegada  revolta dos "forros" (Fala-se em mais de mil mortos, segundo fontes são-tomenses, ou em 100 a 200, segundo as autoridades coloniais da época; continua a ser, em todo o caso, um trágico acontecimento da nossa história colonial, pouco ou nada conhecido tanto dos portugueses, como dos próprios são-tomenses e dos cabo-verdianos, nos seus contornos, antecedentes, causas imediatas, processo, protagonistas e consequências; em São Tomé, o 3 de fevereiro de 1953 é feriado nacional, o " Dia dos Mártires da Liberdade"; o governador geral de São Tomé e Príncipe, cor art Carlos Sousa Gorgulho, fica para sempre associado a esta página negra da história do colonialismo; não escrevo "colonialismo português", porque o colonialismo não tem... pátria!)

A letra e a música da morna "Sôdade" traduzem muito da idiossincrasia do cabo-verdiano, dividido entre o "ter de partir" (para fugir da fome e da miséria) e o "querer ficar" (por amor à terra). Entre 1922 e 1971, estima-se em 12 mil o número de cabo-verdianos que foram forçados a emigrar para São Tomé, numa altura de reto em que a economia são-tomense e o sistema dos "contratados" entravam em crise,,,

Por outro lado, com a descolonização e a independência de São Tomé e Príncipe, muitos destes cabo-verdianos não puderam voltar à sua terra e a situação de miséria, na sequência da decadência e encerramento  das roças de cacau e de café  (,com o regresso de dois mil brancos a Portugal),  ainda hoje é um problema social (e diplomático)  que está por resolver entre as três partes implicadas, São Tomé, Cabo-Verde e Portugal.

Oxalá esta consagração mundial da morna seja, tal como aconteceu com o fado, uma oportunidade  histórica para o renascimento deste género musical, com o aparecimento de novos temas, compositores, músicos, letristas e vozes. Também Cabo-Verde está a sofrer as consequências do "rolo compressor" da globalização que, a par de aspetos positivos, está a matar a diversidade cultural da humanidade (, além da biodiversidade, em consequências das alterações climáticas e dos impactos negativos do desenvolvimento económico e social nos ecossistemas).

PS - Pode ser ver-se aqui, na RTP Play, um excelente trabalho de reportagem sobre a Morna Património Mundial da Humanidade (vídeo: 50' 30''). Um dos entrevistados é o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil amanuense, QG, Santa Luzia, Bissau, 1973/74, jornalista, escritor, estudioso da morna e de outras formas da música de Cabo Verde).

Sinopse: "A Morna é um género musical de Cabo Verde, tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos. Reflete a realidade insular do povo crioulo e os seus sentimentos mais genuínos: a saudade; o amor; a morabeza; a chegada e a partida.Apesar das várias versões sobre a sua origem, acredita-se que a Morna terá nascido no século XIX da convergência entre os ritmos melancólicos trazidos pelos judeus do norte de África; da modinha brasileira; do lundum português e mais tarde (princípio do século XX) do fado.

"Tornou-se símbolo nacional, eternizado por vozes tão carismáticas como Bana; Ildo Lobo; Tito Paris; Mayra Andrade; Lura, Mário Lúcio.

"Mas seria Cesária Évora, o seu expoente máximo, a levar a Morna a todo o mundo. Cesária Évora, é, na verdade, um dos mais fortes argumentos do dossier de candidatura da morna a património mundial entregue à Unesco em março de 2018 e cujo desfecho será conhecido entre os dias 10 e 13 de dezembro.

"A confirmar-se o parecer positivo do Comité Científico da Unesco, a Morna será proclamada Património Imaterial da Humanidade." (Fonte: RTP, 5/12/2019).

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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 2 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19642: E as nossas palmas vão para... (19): A. Marques Lopes, cor art ref, DFA, ex-alf mil, CART 1690 (Geba) e CCAÇ 3 (Barro) (1967/68) cujo livro "Cabra-Cega" vai ser publicado no Brasil, em edição revista e aumentada, com a chancela da Paperblur, de São Paulo

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19763: Antropologia (30): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2) (Mário Beja Santos)

Excerto do manuscrito de Valentim Fernandes extraído do blogue Quadrivium


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2016:
Queridos amigos,
O viajante Valentim Fernandes legou-nos uma narrativa que é um documento histórico, trata-se de um manuscrito que abarca o Senegal, a região correspondente à Guiné Portuguesa, a Serra Leoa, e muito mais. É meu propósito fazer uma compilação para onde convirjam nomes maiores da literatura de viagens, isto a propósito da Guiné: Zurara, Donelha, Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes, e os que se seguem. É uma tremenda lacuna não se oferecer ao leitor contemporâneo uma sequência de olhares, descrições e panoramas que deem uma melhor compreensão às mentalidades destes homens da idade moderna, um fio condutor que gere mais chaves explicativas para o conhecimento da Guiné e dos guineenses.

Um abraço do
Mário


Valentim Fernandes e o seu monumento literário 
“Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2)

Beja Santos

Em 1951, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava uma obra fundamental da literatura de viagens quinhentista de autoria de Valentim Fernandes, também conhecido por Valentino de Morávia, era natural da Alemanha, tipógrafo de profissão, veio para Portugal nos últimos anos do século XV e trabalhou associado a outro impressor, também alemão, Nicolau de Saxónia. Três importantes estudiosos apresentavam o documento: Théodore Monod, Avelino Teixeira da Mota e Raymond Mauny. Tratava-se de um acontecimento, ir repescar um manuscrito conservado na Biblioteca de Munique e que tem a originalidade histórica de referir o Senegal, o litoral da futura Guiné Portuguesa, as ilhas de Cabo Verde, S. Tomé e Ano Bom. É uma escrita cheia de vivacidade, onde se descrevem plantas e animais, costumes indígenas, ritos religiosos e onde se regista com clareza o conhecimento exato e profundo que os portugueses já tinham da costa da Guiné, do Senegal e da Serra Leoa. Valentim Fernandes escreveu no seu próprio punho o documento, desenhou as cartas que Conrad Peutinger compilou em volume, hoje na biblioteca de Munique.

Dando continuação a esta espantosa narrativa, importa recordar que Valentim Fernandes é um viajante profundamente atento aquilo que hoje, em termos disciplinares, abarca a antropologia, a etnologia e a etnografia. A viagem em plena Terra dos Negros leva-o a observar e a pedir explicações sobre a justiça dos Mandingas. E faz um largo comentário que se inicia do seguinte modo: "Qualquer malefício que algum negro fizer ou furto de se seja acusado, corta-lhe o rei a cabeça e manda-lhe tomar toda a sua fazenda e toda a sua geração, assim que por causa do malfeitor ficam todos os seus parentes destruídos”. E anota o que interessa comprar na região: “As coisas que destas terras trazem são papagaios verdes, ouro, porém pouco, escravos e escravas, panos de algodão, coiros”. Está igualmente atento a usos e costumes, aos modos de comunicação quando os nativos se encontram: “Costume entre eles é assim dos grandes como dos pequenos que quando um se acha com o outro depois de muito tempos se não virem como cá nos abraçamos eles se põem em joelhos e os cotovelos em terra e com as mãos cobrem os olhos, e dão com os cotovelos no chão muitas vezes, e depois de no chão com um cotovelo e com o outro alça terra e a lança trás de si ou em cima de si”. Valentim Fernandes terá o todo pela parte, certamente que lhe deram a saber que os Mandingas eram mais que preponderantes, praticamente senhores absolutos da região: “Esta geração de Mandingas é a maior geração de uma língua que não há outra tão grande em toda a Guiné”. E apreciou algo que ainda hoje é visível desta zona da África Ocidental: “As mulheres desta terra e em toda a Guiné roçam e cavam e semeiam e mantêm o marido e fiam algodão e fazem muitos panos de algodão assim para se vestirem como para vender”. E chega o momento de apresentar a fauna: “Alifantes há em Mandinga muitos e por isso são grandes monteiros que os matam com arpões postos numa haste de lança e os arremessam. Búfalos há muitos e bravos. Onças muitas. Gatos muitos, com rabos longos e de desvairadas feições e maneiras de cores. Corças muitas. Gazelas ruivas em grandes manadas. Lebres há muitas. Coelhos nenhuns. Vacas poucas e pequenas. Há porcos monteses”. Interessa-se também pela fauna marítima: “Lagartos e muitos grandes são de 30 pés em lombo e quando homens ou mulheres ou vacas vêm para o rio estes lagartos os matam e comem-nos.
Os guinéus matam os lagartos desta maneira. Os pescadores quando vêem o lagarto dormir em terra estando eles em almadias (canoas) espantam-no e o lagarto espantado vai a correr para a água e se mete no fundo na lama e o pescador onde vê bulir para cima a água sabe que ali jaz o lagarto e introduz numa haste comprida, arpão de ferro longo e põe-lhe uma boia na haste com cordel, e logo vai fugindo ao lagarto e se torna a meter debaixo do fundo. Então o segue o pescador e lhe assenta o arpão. E assim tantas vezes até que o cansa e o mata”. E descreve finalmente os frutos e demais alimentos: frutos que parecem maçãs, coco, limões, trigo, feijões brancos, cera e mel.

Estamos agora no Cabo Santa Maria, ponta do rio Cantor. Fala dos Barbacins, Jolofos, Mandingas e Tucurães. Prossegue a viagem pelo rio Casamansa que ele apresenta assim: “É um rio de muito resgate. E vão os navios por este rio acima até 18 léguas e ali é o reino de Casamansa. Neste reino há muita gente misturada de todas as gerações como Mandingas, Felupes e Balangas. Os moradores deste reino são tecelões e fazem panos de muitas maneiras e cores. O rei é de geração Mandinga e se chama Casamansa”.

Nos termos deste livro, a que acaba a narrativa do Rio Senegal ao Cabo Roxo, feita pelos dois investigadores Théodore Monod e Raymond Mauny. A descrição seguinte “Do Cabo Roxo ao Cabo de Monte” é da responsabilidade de Avelino Teixeira da Mota.
Chegámos ao que é hoje a Guiné Portuguesa, e Valentim Fernandes escreve: “Rio de São Domingos é um rio em que entram navios por ele acima 60 léguas. Por aqui vêm os navios das ilhas do Cabo Verde para fazer o resgate do seu algodão para panos assim como em Casamansa”.

Sempre atento aos costumes e modos de viver, observa: “Têm costume nesta terra que de 8 em 8 dias se faz uma feira a qual quando em uma semana se faz em terça-feira outra semana se faz em segunda. Vem a esta feira gente de 15 a 20 léguas em derredor”. Faz uma larga referência aos Banhuns e dá conta do que está perto de S. Domingos: "em frente deste esteiro deste rio de São Domingos contra a banda do Sul está uma terra que se chama Caticheo (Cacheu) e tem rei sobre si. Tem também feira e vão à feira dos Banhuns e os Banhuns a estes”.

A viagem prossegue, chegam ao canal de Geba: “Rio Grande chama-se assim por ser muito grande e de grande largura e há na boca dele 8 ou 10 léguas e é rio de grande força de água e de grandes correntes". Descreve os negros do rio Grande e a viagem continua pelos Bijagós, daqui partem para a Serra Leoa.

Devemos a Valentim Fernandes uma correnteza espantosa de observações, é um grande pioneiro da literatura das viagens, aguçado pela curiosidade e certamente interessado em trazer um reportório informativo que lhe desse notoriedade.

Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
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Nota do editor

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