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segunda-feira, 2 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)



Guiné > Bisssau > Filial do BNU - Banco Nacional Ultramariono > Ofício para o Governador, na sede, em Lisboa, datado de 16 de março de 1962, em que se noticia a detenção pela PIDE, entre outros,  do funcionário,  "contínuo" do Banco,  Inácio Soares de Carvalho, por alegadamente pertencer ao clandestino  PAIGC. Cortesia do nosso colaborador permanente Mário Beja Santos (*).




Capa e contracapa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020. (**)

1. O  livro "Memórias da Luta Clandestina" foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.  Dois meses antes, um dos filhos, Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia em 1916,  foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no  MLG – Movimento para Libertação da Guiné, e mais tarde no PAI (futuro PAIGC),  por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos",  para o Tarrafal, donde regressa em 1965. É depois colocado na ilha das Galinhas. Em 1967, é solto,  pela primeira vez. Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2.ª Esquadra de Bissau, sendo solto, 3 meses depois, sempre sem culpa formada. Em 1973, é de novo preso, para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974.  Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Faleceu em 1994. O seu nome de guerra era "Naci Camará", mas nunca andou no mato, fazia parte do "back office" do PAIGC.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné)


2. Excertos do livro  - Parte II

(...) Em 1956, o Sr. Abílio Duarte, que trabalhava, como eu, no Banco Ultramarino em Bissau [1], foi à minha casa levando um volume contendo uns documentos que me entregou e pediu-me que os guardasse num sítio muito seguro e com muito cuidado, porque "tem uns papéis de muita responsabilidade".

Mas, não me explicou do que se tratava. Dado ser pessoa de minha grande confiança, tomei e guardei no sítio onde penso que era um lugar bem seguro. De vez em quando, ele ia à minha casa pedir tal volume e eu o dava; puxava de uma cadeira e sentava à mesa, fazia as suas consultas e depois amarrava de novo como estava e entregava-me outra vez; eu punha de novo no lugar do costume. 

Naquela altura, eu e o Abílio já éramos compadres, porque baptizara meu filho Celso; isso foi pouco tempo antes de me ter entregado tais documentos. O Abílio de vez em quando dizia-me:

– Compadre, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. 

Dizia-me isso sempre no Banco porque, além de trabalharmos juntos, trabalhávamos na mesma secção. Ele era Chefe de Secção de Correspondência e eu, naquela altura, era encarregado do Arquivo. Não sei se não sentia coragem para me dizer o que queria, mas, o que é certo, repetia-me isso várias vezes. Um belo dia, após ter-me dito a mesma coisa, voltei para ele e disse-lhe:

–  Compadre,  não sente receio de me dizer nada, tanto para o bem ou para o mal, porque além de sermos compadres, o compadre já me conhece muito bem, conhece a minha maneira de ser.

Ao tempo, éramos todos novos, embora sendo eu muito mais velho do que ele.

Quando resolveu abrir comigo e contar-me o que se passava, convidou-me um dia para irmos passar uma tarde no seu quarto. Foi um sábado. Voltei para ele e disse-lhe:

 – Está bem compadre, mas tem que me esperar ir à casa almoçar e dizer a minha mulher que tenho assunto muito urgente a tratar no Banco; e então compadre espera por mim, porque se eu não chegar à casa na hora do costume, ela fica muito preocupada, porque não é hábito chegar fora de hora, sem antes lhe ter avisado.

E  assim ficamos combinados. 

Depois do almoço, descansei-me como era de costume, e depois fui ao Banco ter com ele no seu quarto. Dali então começamos a nossa conversa que foi muito prolongada, e no fim disse-me.

 – Pois,  compadre, fica a saber que existe cá, em Bissau, um movimento muito importante que é para a Independência da Guiné e Cabo Verde. O inicial deste movimento é MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde [, confusão do Naci Camará: na época era o MLG - Movimento para a Libertação da Guiné, "tout court", (LG].

Mas, na altura, não me citou nomes dos responsáveis do Movimento. E depois disse-me que é uma grande responsabilidade para todos aqueles que aderirem ao referido Movimento. E disse-me ainda mais:

 –  Compadre,  deve pensar muito bem antes de tomar a decisão que entender, porque é de muita responsabilidade, e requer grande cuidado.

Naquela altura, eu era pai de 4 filhos,  todos menores. A mais velha, que era Fátima, tinha apenas 8 anos de idade. E realmente pensei muito bem e então decidi aceitar o convite. Isso foi em 1957.

O MLGC [, ou melhor, MLG,]  foi fundado por um grupo de alguns Guineenses e Cabo-verdianos, mobilizados por Amílcar Cabral, em 1956. Mais à frente encontra-se nomes de alguns daqueles fundadores.

Quando aceitei o convite, ele disse-me que agora devo ter muito mais cuidado ainda com tais documentos. Falamos muito naquela tarde, e eu então fiquei muito entusiasmado com tudo o que ele me falou sobre a Independência da Guiné e Cabo Verde, e de mais colónias que estão sob domínio português.

Dali então continuamos a trabalhar no sentido de mobilizar pessoas, o povo para a luta pela liberdade.

Depois da sua saída, então o Sr. Rosendo, que era também empregado do Banco, entrou em contacto comigo e dali então começamos a falar muito do nosso Movimento e começou a dar-me nomes de alguns responsáveis que fazem parte do referido Movimento, como: Srs. Fernando Fortes, de S. Vicente, Inácio Semedo, de Bissau, Aristides Pereira, de Boavista, Elisé Turpin, de Bissau, João Rosa, de Bissau, Ladislau Justado Lopes, de Bolama, Epifânio Souto Amado, de Tarrafal, Júlio Almeida, de S. Vicente, José Francisco, de Calequice, Alfredo Menezes d’Alva, de S. Tomé, Rafael Barbosa, de Bissau, Luís Cabral, nascido em Bissau, mas saiu daqui muito criança, mas toda a gente o conhece, e ainda o nome do próprio fundador do nosso Movimento, Sr. Amílcar Cabral, de Geba [2]. E há muito mais que já não me lembro dos nomes.

Dali então o Sr. Rosendo deu-me a responsabilidade de mobilizar todos os meus amigos e conhecidos, mas de minha grande confiança, lembrando-me sempre da grande responsabilidade que vou assumir no seio do nosso Movimento.

O massacre de Pidjiguiti e o inicio da luta

A 3 de Agosto de 1959, aconteceu o massacre de Pidjiguiti.

O 3 de Agosto foi organizado por responsáveis do nosso Movimento, a fim de, por um lado, chamar à atenção do povo para a luta contra o colonialismo e, por outro, chamar à atenção do mundo para o facto de que os povos da Guiné e de Cabo Verde estarem sob o domínio colonial e de não aceitarem pacificamente essa condição. É nessa perspectiva que os militantes do nosso Movimento organizaram a greve e a manifestação que desembocou no grande massacre de Pidjiguiti.

[...] Com o acontecimento de 3 de Agosto, muitos guineenses e cabo-verdianos descobriram que alguma coisa estranha estava a acontecer na Guiné, o que muito nos encorajou e motivou a trabalhar com mais dedicação.

A fundação do PAIGC

No fim do mês de Setembro a Outubro de 1960, o nosso grande líder, Amílcar Cabral, decidiu mudar a denominação do Movimento de MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde,  para PAIGC  – Partido Africano para Independência da Guine e Cabo Verde. E para o efeito, mandou pedir que fosse à Dakar um dos principais responsáveis do Movimento a fim de contactar com ele, para poder trazer de lá um esclarecimento do motivo que lhe obrigou a fazer tal mudança do nome Movimento para Partido.

Para a designação do responsável que devia seguir para Dakar cumprir a missão, realizamos uma reunião de grande escala. A reunião, como não podia deixar de ser, foi presidida pelo Fernando Fortes visto ser ele o responsável máximo do Movimento que se encontrava dentro do território da Guiné-Portuguesa. Depois do Fortes ter esclarecido o motivo da reunião, ficou-se a espera da pessoa que se disponibilizaria para realizar a missão que era seguramente muito espinhosa. Depois de um largo silêncio, ninguém se oferecendo, o Rafael Barbosa levantou o braço e ofereceu-se como voluntário para ir contactar com o nosso grande líder em Dakar.

Naquele momento, todos os presentes ficaram muito contentes com o gesto do Rafael. A pedido do líder, todos deviam quotizar, conforme a possibilidade de cada um, para as despesas do Rafael na viagem à Dakar. Cumprindo as instruções de Cabral, tomamos todos o compromisso de cuidar da família do Rafael já que ele não tinha meios suficientes para manutenção da família, sendo ele um simples capataz e com um salário mísero que mal dava para aguentar a família.

Foi assim que se preparou a saída do Rafael e ele conseguiu ir à Dakar contactar com o líder do nosso Movimento.

(Continua)
______________

Notas de Carlos de Carvalho:

[1] ISC ingressa no BNU (Banco Nacional Ultramarino) em 1939. ISC tinha, na altura, 34 anos de idade. O BNU era das mais importantes instituições nas colónias portuguesas.

[2] As pessoas aqui referenciadas constituíram o núcleo inicial dos responsáveis do Movimento, MLGC.
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19264: Notas de leitura (1128): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (63) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(***) Vd. postes de:

16 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (112): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Capa e contracapa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020.


1. As memórias de Inácio Soares de Carvalho já não são inéditas nesta data... O livro "Memórias da Luta Clandestina" já foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.  

Dois meses antes, um dos filhos, Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (*). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos daobra

Aqui vão alguns excertos das suas mensagens:


(i) sexta, 22/11/2019, 13:37


Exmo. Senhor Luís Graça

Antes de mais meus melhores cumprimentos.

Sou Carlos de Carvalho, natural da Guiné, de nacionalidade cabo-verdiana.

Estou concluindo as Memórias de nosso falecido pai, um Combatente de Liberdade da Pátria, Inácio Soares de Carvalho, de nome de luta Naci Camara, várias vezes preso pela PIDE durante o tempo que durou a luta pela independência.

As Memorias narram a vida politica dele desde 1956 a 1974.  (...)

(ii) sexta, 22/11/2019, 19:13

Caro Sr. Luís Graça,

Boa tarde.

Confesso ter ficado surpreso com sua pronta resposta. Pensava que levaria dias a me responder. Confesso também ter ficado surpreso, claro pela positiva, com o conteúdo de seu email.

É verdade que é um dever de memória resgatar parte de nossa história comum. É o que faremos publicando a obra de nosso velho.(...)

Envio em anexo, extractos do Livro para sua apreciação e com autorização de o publicar no seu/nosso blogue se assim entender. Será uma forma de divulgação do que será o livro.

Meus / nossos (da família) antecipados agradecimentos.
Carlos de Carvalho

(iii) segunda, 25/11/2019, 19:12

(...) Aceito com muito gosto fazer parte da “rede de memórias” que conseguiram criar, sem remorsos, sem ressentimentos. O passado nosso, quer queiramos quer não, foi comum. Tive a felicidade de ter estudado com muitos colegas portugueses que hoje não sei por onde andam mas que na altura éramos amigos, jogávamos à bola juntos, sem perguntarmos donde cada um vinha e quem eram nossos pais. (...)

Eu vivo na Praia, Cabo Verde, V, e sou historiador e arqueólogo de profissão. Trabalho no Instituto do Património Cultural de que fui Presidente largos anos. Faço mais é investigação no domínio da preservação do património e agora estou também me enveredando pela temática da luta de libertação. (...)


2. Na altura, escrevemos o seguinte:

Inácio Soares de Carvalho trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau,  até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos publicar, em breve, um excerto das suas memórias políticas, até há pouco inédita,  com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho. 

Nasceu na Praia, foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política, filiando-se no PAIGC. Era compadre e colega de Abílio Duarte. Foi preso pela primeira vez em 1962. É deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na ilha das Galinhas. Em 1967, é liberto pela primeira vez. Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2.ª Esquadra de Bissau, sendo solto, 3 meses depois, sem culpa formada. Em 1973, é de novo preso, para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974, em Portugal. Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Já faleceu. (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho).

Ficamos, em dois ou três, a sinopse do livro e alguns excertos.


3. Excertos do livro - Parte I

Sinopse

As « Memórias », que se traz a público, constitui o testemunho, em primeira pessoa, do combatente de Liberdade da Pátria, Inácio Soares de Carvalho (ISC),  que consagrou toda sua vida ao desígnio de ver livre suas duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde.

Tendo nascido na cidade da Praia, foi, ainda criança, levado pelos pais para a Guiné, onde viveu quase toda sua vida.

Inácio Soares de Carvalho foi dos militantes da primeira hora da gesta libertadora dos povos da Guiné e Cabo Verde.

Milita no MLGC em 1957, Movimento que se transforma, segundo o próprio autor, nos inícios dos anos sessenta no PAIGC.

Conta que foi mobilizado, em 1956, pelo amigo e compadre Abílio Duarte, seu colega de trabalho no antigo Banco Nacional Ultramarino, na Guiné-Portuguesa.

É preso pela primeira vez em 1962.

Conheceu todas as prisões do regime salazarista na Guiné-Portuguesa: as de Bissau, Mansoa e Ilha das Galinhas.

Em 1962, é deportado para a Colónia Penal do Tarrafal.

Em 1965, regressa a Guiné e segue preso, com mais cinco companheiros, para a Ilha das Galinhas.

Em 1967, é liberto pela primeira vez.

Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2`ª Esquadra de Bissau. Porém, 3 meses depois é liberto.

Em 1973, é de novo preso para conhecer a liberdade definitiva com o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, em Portugal.

Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa.

Após incessantes insistências dos filhos, ISC  resolve escrever suas “Memorias”, tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC.

A vida, em si, de ISC, do nascimento à morte, é também, como se poderá constatar lendo esta obra, o espelho da história dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

O autor morre em Dezembro de 1994, sem ver suas “Memórias” serem do conhecimento daqueles para quem deu grande parte de sua vida.

No intuito de enriquecer a obra e melhor compreender a personalidade do homem e do político que ISC foi, os filhos decidiram publicar a obra introduzindo alguns capítulos. Assim, a obra final apresenta a seguinte estrutura: uma Nota Introdutória, onde se explica toda a história da obra; um Prefácio; os agradecimentos; um 1° capítulo, designado de Pré-luta; o 2° que constitui as “Memórias” propriamente ditas do autor; um 3°, designado de Pós-luta; um 4° capítulo denominado Depoimentos, onde são apresentados testemunhos de companheiros de luta de ISC ainda vivos e contactáveis e de pessoas que, de uma forma ou de outra, lidaram com o autor na sua vida normal e nas “coisas da luta” [1].
Índice:

i) Nota Introdutória ................................................................3-6

ii) Prefácio ..............................................................................7-8

iii) Agradecimentos ...............................................................9-11

iv) Pré-luta ...........................................................................12-23

v) Memorias de ISC ...........................................................24-185

vi) Pós-luta ........................................................................186-254

vii) Depoimentos ...............................................................255-290

viii) Anexos .......................................................................291-300

viii) Bibliografia consultada ..............................................301-302


Nota Introdutória

As « Memórias », que se traz a público, constituem a história da vida política de Inacio Soares de Carvalho, que a consagrou inteiramente ao desígnio de ver livre suas duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde [2].

A vida, em si, de ISC, do nascimento à morte, é também, como se poderá constatar lendo esta obra, o espelho da história dos dois povos.

O autor deu por concluídas as “Memórias” em 1992.

Nelas, ele relata seu engajamento político, ainda de forma não oficial no MLGC, em 1956, através de seu compadre Abílio Duarte, até o dia 29 de Abril de 1974, dia em que os presos políticos, na Ilha das Galinhas - Guiné Bissau, receberam a notícia do golpe de estado havido em Portugal, à 25 de Abril desse mesmo ano, golpe que pôs fim ao longo período do império colonial português.

Terminada a escrita, ISC as dá aos filhos para leitura e preparação da sua publicação. Porém, estes lendo-as ficam algo “decepcionados”, pois, constataram que ISC omitiu episódios interessantes do período da militância clandestina mas, sobretudo, da sua vida política no período pós-independências da Guiné e Cabo Verde. Essa omissão não caiu no agrado dos filhos. Estes consideravam que, procedendo dessa maneira, o autor estaria, por um lado, “retirando” páginas interessantes de sua própria história e da história da luta no seu todo, o que, por sua vez, “roubaria” importância e objectivo à obra. Essa pretensão dos filhos encontrou acérrima e firme oposição do autor, aliás, espelho de seu carácter.

Mesmo vivendo já amargurado com seus companheiros de luta, opôs-se determinantemente às constantes “provocações” dos filhos, tendo ficado unicamente pelo relato dos factos vividos até a libertação das terras pelas quais lutou. Não acrescentou nem mais uma única página à história.

A posição de pai e dos filhos não se concilia. O impasse entre a contínua insistência dos filhos em fazer o autor das “Memórias” esquecer mágoas e “segredus di luta” e contar sua vida política completa, por um lado, e, por outro, a feroz resistência deste em fazê-lo, foi adiando a publicação do livro até que...ISC adoece e a degradação de sua saúde foi tão rápida que não resiste [3].

O autor morre a 26 de Dezembro de 1995/96, sem ver suas “Memórias” serem do conhecimento daqueles para quem deu grande parte de sua vida.

Com o desaparecimento do autor, o dilema continua. Ou os filhos acatam a decisão do pai e publicam as “Memórias” tal como escritas ou a obra ficava sem publicar.

Após algum período de indecisão, os filhos decidem por uma outra via alternativa, cumprindo, porém, o desígnio do pai. Decidindo publicar a obra, resolvem introduzir, em capítulos separados, os episódios vividos e não narrados pelo autor, mas que eram/são do conhecimento da família.

Toda esta situação explica o longo intervalo entre a conclusão das “Memórias” e a sua publicação.

Assim concertados e na expectativa de enriquecer a obra, se decidiu pela sua publicação com a estrutura que apresenta: uma Nota Introdutória, onde se explica toda a história da obra; um Prefácio; um 1° capítulo, designado de Pré-luta; o 2° que constitui as “Memórias” propriamente ditas do autor; um 3°, designado de Pós-luta e um 4° capítulo denominado Depoimentos, onde são apresentados testemunhos de companheiros de luta de ISC ainda vivos e contactáveis e de pessoas que, de uma forma ou de outra, lidaram com o autor nas “coisas da luta”[4].

Não tendo sido escritos pelo autor, impõe-se clarificar porque foram introduzidos o 1°, mas sobretudo o 3° capítulo do livro.

Em relação ao 1° capítulo, entendeu a família que o conhecimento da vida de ISC no “Pré-luta” faria todo o sentido, pois, as peripécias por que passou, nesse período, teriam contribuído certamente para a formação do carácter do “Homem”, o que, por sua vez, ajuda a entender sua postura na política. Assim, no capítulo, se retratou, resumidamente, a difícil vida de ISC, do nascimento até se tornar homem, ingressar no funcionalismo público ultramarino e constituir família.

Com a introdução do «Pós-luta», 3° capítulo, a família quis trazer a público parte dos episódios que ISC recusou narrar, escudando-se, como dito anteriormente, no “respeitável” “segredus di luta”. Os “segredus di luta” constituem normalmente o refúgio da grande maioria dos combatentes que resolvem deixar suas “Memórias”; este “escudo” serve, na essência, para evitar abordar episódios sensíveis passados durante a luta, para não “beliscar” ou “afrontar” camaradas, sobretudo quando estes ainda se encontram em vida.

Interessante seria se ISC contasse, nas Memorias, as inúmeras conversas tidas com os dirigentes máximos do Partido e com RB, no período pós-independência. Contadas essas conversas seriam, com certeza, um importante contributo para o conhecimento de vários episódios “obscuros” da história da luta, tais como o discurso de RB no Palácio, diante do Governador-General Spínola; o assassinato de Amílcar Cabral ou e sobretudo os desvios comportamentais do Partido, no pós-luta.

É essa “falha” que se quis colmatar, introduzindo o 3° capítulo.

O conteúdo do “Pré-luta” e do “Pós-luta” resulta das estórias contadas pelo autor e seus camaradas de luta, no seio familiar, e ao testemunho da mulher, Maria Rosa de Carvalho, companheira de todos os tempos e todas as lutas, mãe dos nove filhos de ISC.

Do ponto de vista estético, tentou-se que o livro, no seu todo, tivesse a linguagem simples que as “Memorias” propriamente ditas apresentam. De se referir que o nível académico do autor era o básico (4a classe ou 2° grau, como também era designado) que a maioria dos cidadãos guineenses podia alcançar na época.

Ao longo das narrações, o autor recorreu à constantes chamadas de atenção ao leitor para o facto de a luta de libertação não ter sido obra fácil e ter exigido muito sacrifício daqueles que nele participaram.

Em relação à este aspecto, a família decidiu não retirar as repetições precisamente para poder realçar o que o autor mesmo quis, procedendo dessa forma.

Recorrentes chamadas de atenção também foram dirigidas aos militantes de 1a hora. Estas últimas foram uma espécie de grito de desespero àqueles que “vieram do mato” no sentido de não se esquecerem de que o avanço da luta até a vitória final só foi possível devido aos enormes esforços consentidos e o inabalável empenho dos companheiros de luta na clandestinidade.

Com largos anos de atraso, eis que se cumpre o desígnio de um dos protagonistas principais da luta clandestina que foi dar (ver) a conhecer, através destas “Memórias”, o contributo duns e doutros fornecendo/disponibilizando mais elementos para o conhecimento de parte da história da luta de libertação dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

É entendimento dos familiares que estas Memorias ou este pequeno livro, como lhe designa o próprio autor, constitui um marco, pois, crê-se ser o primeiro testemunho de quem viveu e relatou, em/na primeira pessoa, os diferentes episódios da luta clandestina do PAIGC, na Guiné, desde os seus primórdios até ao 29 de Abril de 1974, quando conheceram a liberdade os prisioneiros políticos encarcerados na Ilha das Galinhas. Os factos históricos narrados, as personagens elencadas ao longo das páginas que enformam o livro deixam pistas para uma melhor aprofundamento dos estudos da luta de libertação nacional protagonizada pelo PAIGC.

Com este “testemunho” fica o desafio à outros “testemunhos” dos protagonistas da “saga da independência”, nas diferentes frentes de luta, e à estudos mais aprofundados dos estudiosos do “processo” da independência dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Como sabiamente afirma o autor destas “Memorias” a história da luta só seria completa com o testemunho dos que estiveram nas três frentes da luta: 1) os da clandestinidade, tanto na Guiné como em Cabo Verde; 2) os que estiveram nas frentes da luta armada nas matas da Guiné e 3) os que estiveram na sede do PAIGC, em Conakry. Só cruzando as histórias das três frentes de luta se poderia ter a verdadeira “História da Luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde”.

(Continua)
____________

Notas de Carlos de Carvalho:

[1] O 1º e º 3º capítulo constituem recolhas e pesquisas efectuadas pela família junto de determinadas fontes, algumas já fora do mundo dos vivos, e das próprias vivências familiares que, querendo ou não, são partes integrantes das Memórias do autor.

No processo de recolha de Depoimentos, 4° capítulo, constatou-se que os mais velhos companheiros de luta de ISC, na clandestinidade, já não se encontram no mundo dos vivos; constatou-se ainda e com grande mágoa que a História quase que deles se esqueceu. Por isso, os entrevistados foram os que, na altura dos acontecimentos narrados, eram todos jovens: António Cabral, Brigido de Barros, Carlos (Carlitos) Barros, Constantino Costa, Mário Soares, Noberto (Kote) de Carvalho, Wladimir Brito, entre outros.

[2] Doravante encontrar-se-á também ISC, Inácio ou Carvalho,  para se referir ao autor.

[3] A família de ISC é “longevo” e ele sempre foi extremamente resistente pelo que os filhos nunca imaginaram que a doença o levaria assim tão cedo, apesar de saber das imensas torturas que sofrera nas mãos da PIDE. Terão sido, aliás, essas torturas físicas e psíquicas, sofridas nas constantes prisões, ao longo dos 12 anos de luta, que levaram ao seu “precoce” desaparecimento.

[4] O 1º e º 3º capítulo constituem recolhas e pesquisas efectuadas pela família junto de pessoas, companheiros de luta de ISC. A maioria dessas fontes não se encontra no mundo dos vivos. Foram também “recolhas” resultantes das próprias vivências / estórias passadas no seio da família.

Os Depoimentos, 4° capítulo, constituem, so por si, uma fonte importante da luta clandestina de libertação nacional.

No processo de recolha de Depoimentos, constatou-se que os mais velhos companheiros de luta de ISC, na clandestinidade, já não se encontram no mundo dos vivos. Por isso, os entrevistados foram os que, na altura dos acontecimentos narrados, eram todos jovens (António Cabral, Brigido de Barros, Caramo Sanha, Carlos (Carlitos) Barros, Constantino (Tino) Costa, Mário Soares, Noberto (Kote) de Carvalho, Wladimir Brito, entre outros). Constatou-se ainda e com grande mágoa que a História quase que deles se esqueceu.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

16 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (112): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

(**) Último poste da série >  29 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20396: (D)o outro lado do combate (53): Quando um comando das FARP, da Frente Nhacra / Morés, destruiu, em 6 de maio de 1972, o centro emissor regional de Nhacra...(Comunicado do PAIGC, em francês, assinado por Amílcar Cabral)... Afinal, a propaganda era uma arma, tão ou mais eficaz que as minas A/C, a Kalash, a "costureirinha", o morteiro 120 ou o RPG 7... Nesse aspeto, a "Maria Turra" ganhava ao "Pifas"...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II


Guiné > Algures > s/d > Manel Djoquin, com o seu icónico velho Ford, de matrícula G-804, a sua caçadeira e um dos seus ajudantes locais... (Dizem que um deles terá sido o Kumba Yalá, quando jovem... Nasceu em Bula, em 1953 e morreu em Bissau, em 2014, aos 61 anos; foi presidente da república, entre 2000 e 2003).

Foto (e legenda: © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A vovó Nené


A Julinha


Cabo Verde > Santiago > Praia > s/d > c. 1930 > Manuel Joaquim dos Prazeres éra um apaixonado por carros e corridas de carros.. E tinha, em sociedade, uma oficina de reparação de automóveis, a Auto Colonial, na Rua Sá da Bandeira (vd. pág. 29)


Guiné > s/l > s/ d (c. 1950 > O Manuel Djqoquim, numa das suas poses "cinematográficas" (v. pág. 80)

Fotos e legendas (2016): página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita (Com a devida vénia...).


1. Notas de leitura:

Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.

A autora chama "romance" ao seu livro de memórias da família (*)...Na realidade, é um conjunto de histórias de vida, à volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para a casa de Lisboa, onde viveu mais de 60 anos, perfeitamente adotada e integrada na família (cap 1, pp. 9 e ss.; e cap 5, pp. 58 e ss.).

Esclareceu-nos a autora, Lucinda Aranha, a mais nova das filhas do Nequinhas e da Julinha, já nascida em Lisboa: "Efetivamente nunca fui à Guiné ou a Cabo Verde. Para mim,  embora o livro gire à volta do Manel Djoquim, é um livro de mulheres onde dominam as 2 matriarcas. Este trio constitui as 3 personagens mais importantes." (*)

Na contracapa pode ler-se:

"A busca de uma vida melhor. O encontro com a aventura e o desconhecido. A liberdade de uma nova terra. Os encontros e os desencontros de uma vida amorosa"...

Na Guiné andava sempre armado...
Era uma inveterado caçador (pág. 71)
Esta nossa amiga, que nunca viajou, fisicando falando, até Cabo Verde e à Guiné-Bissau, acabou por
escrever um livro que é também uma "hino de amor" àquelas duas terras por onde andou, viveu, amou, trabalhou o seu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977). E um "hino de amor" aos seus pais, aos amigos dos seus pais, às suas manas, à sua ama, escrito de resto com delicadeza e inteligência emocional para não ferir suscetibilidades, até porque há muitas pessoas vivas: as irmãs, os amigos, os seus descendentes... Daí a autora chamar "romance" a este livro.

O livro tem 13 capítulos e 169 pp, onde o crioulo se mistura, saborosamente, com o português. Mas todas as falas ou expressões em crioulo têm tradução, em nota de rodapé, como a fala da vovó Nené (Maria Mendes, no romance): "C'uzas di vida, sima Deus crê. Mim nasci lá lundji, badia di pé ratchado e vem vivi e ve morri cum sinhóra e sus filhu fèmia em Lisboa" ["Coisas da vida, como Deus quer. Nasci longe, vadia de pé rachado e vim viver e morrer com a senhora e as filhas em Lisboa".] (p. 58).

Falando do feitiço de África, tudo começou, por Cabo Verde, onde Manel Djoquim, chega, em 1922, instalando-se na Praia onde começa por trabalhar, como mecânico, na Central Elétrica. Em 1930, casa-se com Tonha, "filha da terra" (pág. 33)., de quem tem duas filhas e um rapaz. 

A alfacinha Julinha, 11 anos mais nova, , aparecerá mais tarde, na viragem dos anos 30 (pp. 45 e ss.). Desta relação,  nascem, na Praia, duas irmãs da Lucinda... Em 1944, a família ruma até Bolama, onde nasceu uma terceira filha... Em 46, a Julinha e as filhas, mais a ama cabo-verdiana,  regressam a Lisboa, onde nasceu  a Lucinda.

Nascido em Lisboa, em 1901, em plena "belle époque" (, que só o era para uma minoria privilegiada da alta nobreza e da burguesia em ascensão...), Manuel Joaquim terá visto em África uma tripla oportunidade para a sua vida... Na época, África estava longe de ser um "destino comum" para os portugueses que procuravam uma "vida melhor", longe da  metrópole, e dos tempos difícdeis do pós-guerra, mas também a "aventura" e o "desconhecido", a par da "liberdade" e dos "amores".. O Brasil era então,  de longe, o grande destino da emigração portuguesa.

Território português durante séculos, povoado por escravos e por europeus,  Cabo Verde não foi, mesmo assim, objeto de grandes memórias escritas por parte das gentes metropolitanas que naquelas ilhas se fixaram ou lá viveram durante uns largos tempos. Daí também o interesse adicional deste livro, com apontamentos e fotos interessantes sobre o quotidiano da vida na Praia, onde o Manel Djoquim viveu, mais de duas décadas,  entre 1922 e 1944. (1922 é uma data aproxiamda, em rigor a autora não sabe o ano exato em que o pai se ficou na Praia.)

Mais sorte terá tido, nesse aspeto,  o Mindelo, na ilha de São Vicente, cidade aberta,  cosmopolita, e que teve sobretudo o privilégio de ter, durante décadas, o Foto Melo, um estúdio fotográfico que atravessou um século (1890-1992), tendo documentado praticamente toda a vida (política, militar, económica, social, cultural...), a demografia e  a geografia  da ilha...

"O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", dado à estampa em 2018, parece-nos ser, de algum modo, um desenvolvimento do livro anterior da autora, "No reino das orelhas de burro" (Lisboa, Colibri, 2012, 106 pp.), baseado também nas estórias  de homens e bichos que povoaram a sua infância (***)...

Na obra, agora em apreço, a autora baseou-se numa exaustiva pesquisa documental (escrita e fotográfica), recorrendo ao arquivo da família mas também e sobretudo às suas recordações de infância, adolescência e juventude  (o pai morreu quando ela estaria já  à beira dos 30), bem como a entrevistas a familiares e amigos do pai e da família, do tempo de Cabo Verde e da Guiné. Pai que é uma personalidade complexa e contraditória, conservador, puritano, moralista, mas também anticlerical, aventureiro, inimigo das corridas de touros e do fado,  e em termos político-ideológicos um admirador de Salazar tanto quanto de Amílcar Cabral...

A autora consultou igualmente a escasssa imprensa local, dessa época, "O Eco de Cabo Verde" (, com início em 1933) e o "Arauto", primeiro semanário e depois diário, que se publicou em Bissau, de 1943 a 1968. Teve, também, verdade se diga, uma boa ajuda dos nosso blogue e dos nossos camaradas e amigos que ainda conheceram o Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, durante a guerra... pelo menos até 1970/71... (A PIDE/DGS e as autoridades militares acabaram por impedi-lo de deambular livremente pelo  mato, com a sua carriplana, alegando razões de segurança; e isso foi "o princípio do fim": em 1973 tem um AVC,  já em Lisboa, e morre quatro anos depois, precisamenre em 25 de dezembro de 1977.)

A "morabeza" cabo-verdiana  está muito bem retratada no capítulo II ("Na cidade da Praia" (pp. 28-44).  Há ali personagens (amigos da tertúlia do Manuel Djoquim) que mereceriam um outro deenvolvimento num romance de maior fôlego: são homens (, não entram aqui mulheres...) das relações de amizade e convívio do futuro homem do cinema...(que, de resto, coneça aqui,  na Praia, a sua carreira de empresário de cinema, prosseguida depois , em 1944, em  Bolama,  onde se fixa, a convite da Associação dos Bombeiros locais, para dar sessões de cinema ao livre, com documentários sobre a II Guerra Mundial). (**).

"Além de mecânico da Central [Elétrica], de dar uma mãozinha na Marconi, fizera-se sócio da oficina-garagem do Pires [, a Auto Colonial,], abrira uma casa de comércio, dessas que vendem um pouco de tudo, dedicara-se à projecção de filmes.

"Ademais lucrava com a comodidade de a Central ficar  perto do cinema, o Teatro Africano, rebatizado  Cineteatro Virgínio Vitorino pelo Estado Novo, que desconfiara do nome primitivo, censurando as veleidades autonomistas africanas.

"A sala  era-lhe subalugada pela Cãmara, que administrava também a luz. Morava então na rua  Serpa Pinto, mesmo junto ao cinema e à Central, numa casa com quintal, árvores e fruta-pão e bananeiras e muito espaço para a criançada que ia nascendo e para os cães e os gatos de que gostava de se rodear.  A casa comercial e a oficina ficavam na rua Sá da Bandeira, a rua mais larga da cidade"  (pág. 23).

Numa terra assolada por secas cíclicas, a fuga à fome, à morte e à pobreza fazia-se muitas vezes emigrando para a Guiné e também para São Tomé e Príncipe. Para os cabo-verdianos,  a vida na Guiné era-lhes mais fácil, "ou não fossem mais estudados,o que lhes garantia bons cargos, posições de chefia" (p.33).

Este e outros temas eram pretexto para a cavaqueira, tal como a chegada á ilha de  exilados políticos, quer ainda no tempo da República como depois durante a Ditadura Militar e o Estado Novo: o coronel  Fernando Freiria ou o médico militar Carlos Almeida, são dois exemplos citados.

Também teve eco, naquela tertúlia,  a "grande escandaleira [que] foi o ataque ao crioulo e aos mulatos no 1º Congresso de Antropologia Colonial realizado no Porto, em setembro de 34. O dr. Luís Chaves, conservador do Museu Etnológico, cheio de zelo ariano, defendendeu que os mestiços eram seres inferiores, degenerados, incapazes de produzir obras literárias" (p. 37)... Com isso, amesquinhavam-se grandes escritores crioulos como o Fausto Duarte, autor do romance "Auá", que ganhara justamente o 1º prémio do 1º Concurso de Literatura Colonial, e em defesa do qual veio a terreiro o Juvenal Cabral, pai do Amílcar Cabral, nas páginas de "O Eco de Cabo Verde".

Depois de 1936, há outro motivo de conversa,  a abertura  da "colónia penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago  (p. 41). E, e ainda antes de (e durante)  a guerra, as histórias dos alemães que, apesar da neutralidade do governo de Salazar, não se coibiam de ir a terra, desembarcados dos submarinos que patrulhavam o Atlântico, quer ´para se reabastecerem quer para fazerem jogatanas de futebol com a miudagem... (pp. 41/42).

Mas o acontecimento mais marcante desta época, pelo insólito, foi a passagem do zepelim, em 1934...

No livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim" (Alcochete: Alfarroba, 2018),
Lucinda Aranha faz referência a este memorável evento nos termos seguintes termos:

" (...) mas nada os fez [ao Manel Djoquim e amigos de tertúlia]  dar tanto à língua como o espetácul nunca visto do zepelim que, na manhã de 12 de junho de 34, pairou sonre o céu  da Praia, em espera de um passageiro alemão que resolveu ìr às comprars de sedas e outros artigos japoneses na casa Serbam. Foi um embascamento que os fez abandonar casa e trabalho " (...) (pág. 34)

Recorde-se que o zepelim era um grande dirigível, rígido,com carcaça metálica, de tecnologia e fábrico alemães, usado para travessias do Atlântico na década de 1930.


Cabo Verde> Ilha de São Vicente > Mindelo >  S/ d > A foto ilustra a passagem dum zepelim mas não tem datas.  Foto do álbum de Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do  R.I. 5,  despois integrado no RI 23... A foto tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser 'recordação de S. Vicente'. O original é "foto Melo". (****)

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2009). Todo os direitos reservados. [Edição e Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

É uma raridade esta foto: ao que parece, dataria de 1937, ano e que o Mindelo foi sobrevoado por um dirigível que pretendia abrir uma carreira entre a Europa e o Novo Mundo, o LZ 129 Hindenburg, de fabrico alemão, origulho do regime hitleriano:

(...) Reza a História, que o dito aparelho, uma das grandes apostas à época para o transporte de passageiros, adoptando os mesmos tipos de luxos dos grandes 'Paquetes Transatlânticos' que estabeleciam as ligações entre os três continentes, Europa, África e Américas, fez só uma viagem ligando os dois continentes. Partiu da Velha Europa para o Novo Mundo - o continente Americano, tendo passado sobre Cabo Verde.

"Mindelo ficou na sua rota e Tuta [Guilherme Melo] registou esse momento, único! O aparelho passou sobre a Ilha de São Vicente, tendo largado três sacos de 'Mala Postal' - a forma complicada como se dizia correio - e teve um fim trágico ao aterrar em Lakehurst nos USA [, em 6 de Maio de 1937].

"Para os arquivos, fica mais esta imagem, só possível em Mindelo, pelo manancial de informação que corria na ilha, por causa dos cruzamentos dos cabos submarinos do Telégrafo Inglês e da Italcable (Italianos) e do seu movimentado Porto, também à época local de passagem obrigatória para os barcos que cruzavam o Atlântico Sul" (...)". 
Fonte: sítio Mindel Na Coraçon

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. postes de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14238: Fotos à procura de ... uma legenda (51): Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário de cinema e caçador, Cabo Verde (1929/1943) e depois Guiné (1943/73)... Fotos da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, com amigos (Lucinda Aranha)

(***) Vd. poste de 15 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante

(****) Vd. poste de 9 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (114): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense


Guiné > Bissau > s/d > Edifício do BNU - Banco Nacional Ultramarino. Cortesia de Mário Beja Santos (2017).

Inácio Soares de Carvalho trabalhou aqui até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos  publicar, em breve, um excerto das suas memórias políticas, ainda inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho. 

Nasceu na Praia, foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política. Foi preso pela primeira vez em 1962. É deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na colóiniua penal da ilha das Galinhas. Em 1967, é liberto pela primeira vez. 

Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2ª Esquadra de Bissau, sendo solto,  3 meses depois, sem culpa formada.  Em 1973, é de novo preso,  para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974, em Portugal.  

Nos finais de setenta, regressa à sua terra natal, Cabo Verde,  e afasta-se praticamente da vida política activa.  Já faleceu. (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho)


1. Mensagem de Carlos de Carvalho (Pria, Santiago, Cabo Verde), com data de 22/11/2019, 19:13

Caro Sr. Luís Graça,
Boa tarde.


Confesso ter ficado surpreso com sua pronta resposta (*). Pensava que levaria dias a me responder. Confesso também ter ficado surpreso, claro pela positiva, com o conteúdo de seu email.

É verdade que é um dever de memória resgatar parte de nossa história comum. É o que faremos publicando a obra de nosso velho.(...)

Envio em anexo, extractos do Livro para sua apreciação e com autorização de o publicar no seu/nosso blogue, se assim entender. Será uma forma de divulgação do que será o livro.

Meus / nossos (da família) antecipados agradecimentos.
Carlos de Carvalho


2. Resposta do editor Luís Graça, com data de 23/11/2019, 18h23

Carlos, aqui tem a autorização do Paulo Santiago. Não se esqueça depois de o citar, a ele e ao nosso blogue. Obrigado pelo texto (resumo das memórias do seu "velho", a cujo memória me inclino), que me mandou e me autoriza a publicar no blogue, o que farei com todo o gosto.

Mas preciso que me dê mais alguns dados  biográficos sobre o seu pai. Gostaria de saber também o título do livro, a editora, o local e o ano de edição (se já tiver editora)... O seu pai deixou-lhe algum manuscrito ? Ou ainda teve tempo de o entrevistar, em vida ?... 

Diga-nos também algo mais sobre si: o que faz, onde vive...Claro que o gostaria de ter, na Tabanca Grande ("onde todos cabemos com tudo aquilo que nos une, e até com aquilo que nos pode separar")... 

Temos aqui diversos "amigos da Guiné", que não foram combatentes, nem de um lado nem do outro, e que são naturais da Guiné: desde o Nelson Herbert Lopes (os nossos "velhos" estiveram ainda juntos no Mindelo em meados de 1943) ao Cherno Baldé (Bissau)... passando pelo saudoso Pepito, mas também o Manuel Amante da Rosa (esse, sim, antigo combatente, fiz o serviço militar na sua terra, em 1973/74...). 

Se aceitar conveniente e oportuna a sua entrada neste grupo (somos 800)... Temos regras de convívio muito simples, de bom senso.

Não somos um blogue de causas (nem temos nenhuma agenda "político-iudeológica"), mas de partilha de memórias (e de afetos). Estamos "on line" há mais de 15 anos. E temos 11,5 milhões de visualizações... Um acervo enorme, plural, sobre a Guiné e a guerra colonial. 

Mantenhas. Bom fim de semana. Luís

3. Resposta do Carlos de Carvalho,  em 25/11/2019, 19:12

Caro Luís Graça

Boa tarde e minhas desculpas pelo atraso na resposta.

Meus imensos agradecimentos pela autorização dada pelo, já considero comum amigo, Paulo Santiago.

Aceito com muito gosto fazer parte da “rede de memórias” que conseguiram criar, sem remorsos, sem ressentimentos. O passado nosso, quer queiramos quer não, foi comum. Tive a felicidade de ter estudado com muitos colegas portugueses que hoje não sei por onde andam mas que na altura éramos amigos, jogávamos à bola juntos, sem perguntarmos donde cada um vinha e quem eram nossos pais.

De seus amigos da Guiné, que citou, o Nelson [Herbert], por exemplo, é meu grande amigo, nossas famílias se relacionam como autênticas famílias mesmo. Ele conhece grandemente a história das memorias e temos trocado ideias sobre o seu conteúdo no geral.

O Amante da Rosa idem. Fui colega de infância e de juventude de seu falecido irmão e ele é colega de serviço de meu irmão. Ambos são hoje Embaixadores.

Como vê,  este mundo é mesmo pequeno.

O triste de tudo é ver aquela linda nossa terra no estado em que se encontra. Dói mesmo!!

O meu velho deixou mesmo suas memorias, instigadas por nós, filhos. O manuscrito existe e algumas páginas irão no livro.

Envio, em anexo, Sinopse e Nota Introdutória das Memórias que permitirão publicar no seu/nosso blogue parte do que vai ser, sem dúvida, umas excelentes memórias sobre a luta clandestina. Segue também o que provavelmente será a capa do livro.

Eu vivo na Praia, CV, e sou historiador e arqueólogo de profissão. Trabalho no Instituto do Património Cultural de que fui Presidente largos anos. Faço mais é investigação no domínio da preservação do património e agora estou também me enveredando pela temática da luta de libertação.

Continuaremos o nosso contacto dentro das regras de convívio que estabeleceram para os amigos do blogue.

Aceite meu abrasu.


4. Comentário de Luís Graça, 26/11/2019, 21:43


É verdade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca é... Grande. O Carlos já aceitou o meu convite para integrar a Tabanca Grande, onde, como eu lhe disse, cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... Autorizou-me a publicar excertos do livro que quer ver publicado, em memória e homenagem ao seu "velho"... Merece o nosso apoio. Gostava que ele me pudesse mandar uma foto, atual, tipo passe.

PS - Vamos oportunamente publicar, aqui no blogue, um excerto das memórias, ainda inéditas,  do falecido pai do Carlos de Carvalho, que foi um nacionalista da primeira hora, um Combatente de Liberdade da Pátria, de seu nome Inacio Soares de Carvalho: na clandestimnidade era o  Naci Camara, trabalhou no BNU - Banco Naciional Ultramarino, erm Bissau, foi várias vezes preso pela PIDE durante o tempo que durou a luta pela independência, conheceu o Tarrafal e a Ilha das Galinhas. As memorias abarcam o período de  1956 a 1974.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

Foto nº 1


 Foto nº 1-A


Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  > Bambadinca > BART 2917 (1970/729 > Março de 1972 > Carreira de tiro > Foto nº1 > Da direita para a esquerda: (i) na primeira fila: o Comandante do CAOP 2, o General Spínola, e o ten cor Polidoro Monteiro (comandante do BART 2917); e atrás, na segunda fila, (ii) o Paulo Santiago (,de bigode e óculos escuros), o ten-cor Tiago Martins (, comandante do BART 3873). e o antigo administrador do oncelho de Bafatá, o então intendente Guerra Ribeiro (Foto nº1-A)

Foto nº 2 > em primeiro plano, dois civis, da administração colonial , sendo o segundo o intendente Guerra Ribeiro, no meio de militares, com o gen Spínola ao centro; ao fundo, à direita o nosso grã-tabanqueiro Paulo Santiago, na altura instrutor e comandante de companhia de milícias.


Fotos (e legendas): © Paulo Santiago (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso leitor Carlos Carvalho, guineense de origem cabo.verdiana, viva na Praia, Santiado, Cabo-Verde, é historiador e arqueólogo de profissão, filho de um antigo militante do PAIGC:

Data - sexta, 22/11/2019, 13:3722/11/2019
Assunto - Memórias: pedido de autorização


Exmo Senhor Luis Graça

Antes de mais meus melhores cumprimentos.

Sou Carlos de Carvalho, natural da Guiné, de nacionalidade cabo.verdiana.

Estou concluindo as Memórias de nosso falecido pai, um Combatente de Liberdade da Pátria, Inacio Soares de Carvalho, de nome de luta Naci Camara, varias vezes preso pela PIDE durante o tempo que durou a luta pela independência.

As Memorias narram a vida politica dele,  desde 1956 a 1974.

Nelas, numa das passagens, ele cita o famoso Guerra Ribeiro com o qual teve um "encontro" nada amigável. Procurando uma imagem desse administrador, alguém me recomendou ver seu blogue. Efectivamente, no seu blogue  vi as duas figuras, o Guerra Ribeiro e o Governador Spinola,  que precisava para ilustrar a passagem narrada nas Memórias.

Nesta conformidade e para salvaguardar os direitos autorais e de imagem, venho, por este meio, solicitar sua autorização para o uso dessa imagem, supondo ser de sua autoria essa fotografia. Em não sendo, muito agradecia que me informasse como poderia chegar à fonte e solicitar autorização para o efeito.

Certo de que este meio correio merecera sua devida atenção, agradeço antecipadamente.

Meus melhores cumprimentos.

Carlos de Carvalho

PS: Venho apreciando com enorme prazer o seu blogue com informações e imagens que ajudam a conhecer e reviver um pouco da historia recente daquela nossa martirizada terra. Às vezes da para perguntar se aquela música "Oh tempo volta pa trs" ´, não tem sentido. 


2. Resposta do nosso editor Luís Graça, com data de 22/11/2019, 17:33, e conhecimento ao Paulo Santiago:


Caro Carlos Carvalho:

Tenho todo o gosto de satisfazer o seu pedido. O nosso blogue (de ex-combatentes da guerra colonial e outros amigos da Guiné, incluindo guineenses, cabo-verdianos, etc.) pretende ser uma ponte entre os nossos dois povos que, afinal, têm uma história em parte comum, além de laços linguísticos e afetivos. (**)

Temos pelo menos 4 referências no nosso blogue ao administrador, e depois intendente da administração colonial, Guerra Ribeira (de seu nome completo, Manuel da Trindade Guerra Ribeiro. natural de Chaves).

As fotos que o Carlos refere são do meu camarada Paulo Santiago, que conheceu o Guerra Ribeira em Bambadinca, por volta de março de 1972...

De acordo com as nossas regras, terei que lhe pedir a sua (dele) autorização. Por parte do administrador do blogue, tem o meu OK, desde que cite a fonte:  Cortesia de © Paulo Santiago (2013) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Mas aguarde a resposta do engº Paulo Santiago, membro desta tertúlia, a quem dou conhecimento do seu pedido e da minha autorização.

Gostava depois que publicasse alguma coisa sobre o seu pai, no nosso blogue. Temos uma série,"(D)o outro lado do combate", já com mais de meia centena de referências. É muito importante que os filhos dos "combatentes da liberdade da Pátria", como é o seu caso, não os deixem "morrer na vala comum do esquecimento"... Fazemos isso, aqui, com os nossos camaradas que fizeram a guerra e a paz no teatro de operações da Guiné (1961/74).

Mantenhas. Muita saúde e longa vida. Luís Graça

3. Resposta, na volta do correio, do Paulo Santiago (, ex-alf mil,  ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72: é engenheiro técnico agrícola, reformado; vive em Águeda; tem 165 referências no nosso blogue):


Olá, Luís, boa noite

Interessante este pedido do filho do Inácio Carvalho, alguém do "outro lado" que vai falar. Acho bem acontecerem estas memórias.Vou dar autorização ao Carlos Carvalho.

Este mês, é o segundo pedido de autorização que recebo.Há dias foi de uma doutoranda,Verónica Ferreira (projecto CROME-CES UC) que chegou a mim através do Jorge Araújo. Perguntei ao Eduardo Costa Dias se conhecia a moça..."Boa miúda" respondeu-me. A Verónica vai enviar-me o capítulo (em inglês) onde será inserida a foto, e envio-te.

O Inácio esteve no Tarrafal. Em 2018 estive um mês em Santiago, Praia,e lá fiz uma visita à prisão, hoje museu da resistência...Tenebroso, aquelas celas disciplinares, a "holandinha", substituta da frigideira, horror.

Abraço, Paulo

4. Comentário do Cherno Baldé (Bissau), nosso colaborador permanente, sobre o Guerra Ribeiro (*):

(...) O Guerra Ribeiro, Administrador da Circunscrição, depois Concelho de Bafatá nos anos 60, era o terror dos nativos "indígenas" que viviam nos arredores ou visitavam a cidade, por força de uma medida administrativa que mandava prender e açoitar todos os nativos que nela entrassem de pés descalços.

A medida era inédita, controversa e paradoxal, porque no seu ambiente natural, salvo raras excepções (personalidades políticas ou religiosas), o nativo guineense, em geral, não usava sapatos no seu dia-a-dia e, também na fase inicial da colonização, o uso de sapatos entre o "gentio" ou era mal visto ou simplesmente proibido pela administração.

E, de repente, nos anos 60, o Administrador de Bafatá confundiu a mentalidade dos nativos com esta medida que intrigava muita gente e teria sido motivo para o surgimento de casos caricatos que ainda hoje se contam e são motivo de divertidas gargalhadas.

Com esta medida histórica, quem tivesse que passar por Bafatá, por qualquer motivo, sabia de antemão ao que era obrigado, mesmo que, por isso, tivesse que arrastar os pés ou andar como um coxo, porque os cipaios de Guerra Ribeiro estavam lá para fazer cumprir a ordem.

Assim, na região de Bafatá a história do uso de sapatos está intimamente ligada ao nome de Guerra Ribeiro, e a maioria dessas pessoas compravam o seu par de sapatos exclusivamente para satisfazer o Senhor Administrador de Bafatá.

O nome de Guerra Ribeiro está também ligado a construção do Bairro da Ajuda, o único Bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau, construído na base de trabalho obrigatório.

É por estas e outras coisas que, hoje, face a situação actual do pais, muita gente questiona (em especial os mais velhos) se não era melhor manter a ordem e a disciplina coloniais. (...)

____________

Notas do editor:


(...) No poste P11281 (...)  fala-se do Guerra Ribeiro, Administrador de Bafatá. Conheci a pessoa num dia em que apareceu no Saltinho,e lá pernoitou.

Mais tarde, apareceu em Bambadinca na cerimónia de encerramento do curso de Milícias. Nesta altura, já não era Administrador, era Intendente, e penso que estava em Bissau, mas sei muito pouco sobre estes cargos da Administração Civil. 

(...) Voltei a Bambadinca em Janeiro de 72 e, durante o novo curso de milícias, tive duas visitas do Com-Chefe, uma aí pelo meio e a outra no final tendo, desta vez, sido cumprido todo o programa de encerramento, que incluiu uma deslocação de viatura à carreira de tiro, que ficava para lá do destacamento da Ponte de Udunduma, a caminho do Xime. (...)

Nas fotos juntas, Março de 72, aparece o então Intendente Guerra Ribeiro. Na primeira, é a pessoa de farda amarela, atrás do Polidoro Monteiro e do Spínola. Na segunda, está a olhar para o lado esquerdo, e vê-se, também fardado,um outro elemento da Administração Civil que não sei quem é. (...)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)



Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a direita, é o meu pai, meu velho,  meu camarada, Luís Henriques, então com 29 anos...

Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jogador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Faria ontem 99 anos, se fosse vivo... Nasceu em 1920 e morreu em 2012, ia completar os 92 anos...

Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica, seu clube de eleição,  ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à sua geração para quem o futebol era uma paixão... Aqui  ficam os seus nomes: "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, Miranda (Alfaiate), Jorge "Tarofa" (ou Jorge Serralheiro), José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo "Russo", Manuel "Swing", António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias ("Néu"), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o "Gino" (ou Higino), o Mário   "Pepe", o Manuel "Ferrador", o António Costa"...


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 >  Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), com a seguinte legenda: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Lourinhã,] no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (hospitalar)."




Luís Henriques (1920-2012), ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, Caldas da Rainha. Esteve 26 meses "desterrado" em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo, Lazareto, de julho de 1941 a setembro de 1943, em missão de soberania. Escrevia vinte e tal cartas por semana, em nome dos muitos camaradas do seu pelotão e da sua companhia que não sabiam ler nem escrever. Eram todos oriundos da Estremadura, Oeste

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.




(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]


71. Sim, descobrirás, mais tarde, os famosos aventais de pau 
[1], no lendário Bairro Alto da formosa Lisboa onde se ia de camioneta, de excursão, uma vez na vida, no passeio da escola ou da catequese, ou quando se ia fazer, os sortudos!, o exame de admissão ao liceu, ou quando um mancebo, cheio de garbo, tiradas as sortes, de fitinha vermelha na lapela, era chamado para a tropa e jurava bandeira, e ia às meninas, para tirar… os três, antes de partir para defender a pátria, lá longe no ultramar, nas Áfricas, nas Índias, como o teu pai, em Cabo Verde em 1941/43…


72. Ah!, e o respeitinho, que naquele tempo ainda era tão bonito, cada macaco no seu galho, Deus no céu e os santos nos altares, nobreza, clero e povo, os três estados, uns em cima e outros em baixo, mal acamados, o povo a cavar a terra, a enxertar o bacelo, a podar, a sulfatar e a vindimar a vinha do Senhor, e o esplendor do cinismo dos grandes e a ostentação da caridade dos ricos, e a abjeção da arraia miúda, que dar aos pobres, era emprestar a Deus, que Deus, santo banqueiro, haveria de pagar-lhes com língua de palmo, juros e dividendos, ámen!... Deus, dizia o padre franciscano, pregador da Quaresma, sempre foi bom nas contas: "Cá se fazem, cá se pagam, meus irmãos!!...


Como os ricos emprestavam a Deus, dando aos pobres, eram cada vez ricos, como os judeus, pro causa dos juros e dividendos. Eles tinham uma conta-corrente no céu, os felizardos. E era importante que houvesse pobres, para os ricos poderem continuar a emprestar a Deus. Era talvez por isso que os ricos da tua aldeia eram gordos e tinham terras e casas, ou tinham terras e casas e eram gordos. Mas o povo mal os via: viviam em Lisboa.Não te lembras de ver um rico, em carne e osso, na tua aldeia. Só os criados e os feitores dos ricos. Os ricos nunca apareciam, tinham os seus representantes na aldeia. Como Deus, que tinha os seus representantes na terra: o papa em Roma, o padre vigário na tua aldeia, a tua catequista, a "Branca de Neve", a senhora professora, o regedor da freguesia, o cabo de esquadra, e poucos mais mais. O "Brutamontes" e o "Frasco do Veneno", esses, eram os representantes do diabo na terra. Nunca lhes viste a credencial passada pelo diabo, mas a verdade é que eram os sacanas que te endiabravam... Ao longo do tempo, irás conhecer outros "Brutamontes" e outros "Frascos do Veneno", na paz e na guerra...


73. E o garboso comandante dos bombeiros, com o seu capacete de latão e o seu machado de paz, faiscante como a espada do samurai, e o aferidor dos pesos e medidas, o avaliador e o agrimensor, e o juiz do julgado de paz e de guerra, e o pobre do legionário, patético, o senhor Pessoa, de seu nome Fernando, sósia do original, escriturário camarário, que era o chefe da Legião Portuguesa, e que fazia ordem unida com os fedelhos, de espingarda Mauser ao ombro, e que era incapaz de fazer mal a uma mosca, e que, dizem, morreu virgem e chupado como uma carocha!...


Ora nenhum herói da pátria, em tempo de paz ou de guerra,  devia morrer virgem, sem reproduzir, ao menos, o ADN do heroísmo. Crescei e multiplicai-vos era então a palavra de ordem. E, pelo menos na tua aldeia, pais e mães faziam o seu trabalho de casa.

Ah!, o senhor capitão Belo, de farda republicana, não menos excelentíssimo presidente do município, pequenitote representante do todo poderoso Estado Novo, que inaugurava o lavadouro e o fontanário e perante quem o povo se desbarretava, sempre atento, venerador e obrigado, o povo, o polvo, temente a Deus e aos grandes deste mundo, o Zé Povinho que só acordava da sua letargia e se agigantava de meio século em meio século.



E, quando acordava, esbaforido, qual gigante cego, era para se alvoraçar e escaqueirar a mobília toda das repartições do Estado e queimar os papéis. E bater na mulher e nos filhos, nos criados e nos marginais, nos judeus e nos pretos, nos malhados e nos comunistas.... O povo dormia demais mas tinha mau despertar, agigantava-se como o ogre. Forte com os fracos, fraco com os fortes... Dava uma manguito e voltava a adormecer por mais cinquenta anos...

Havia um judeu na tua terra chamado Jacó. E um papagaio também chamado Jacó. É estranho: não havia pretos de carapinha. Ou havia, e desfrisavam o cabelo ? 

74. Enfim, havia ainda a charanga no coreto, mas isso era em agosto, na festa da nossa senhora dos Anjos e os foguetes e os meninos, pobretes mas alegretes, e os cães, danados, atrás das canas dos foguetes, alvoraçados, os diabretes, que depois faziam chichi, à noite, na cama, ameaçava-te a tua mãezinha!... (Nunca a trataste por mãezinha, pois não ? Isso eram ternuras citadinas!).


Afinal, eram tantas as emoções!... Mesmo assim... Mesmo se detestasses os domingos à tarde, em que chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Mesmo se nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parasse no relógio, sonolento, da torre sineira da igreja da tua aldeia.


"Experimenta comer um limão à frente do gajo do trombone", ensinava-te o "Brutamontes". "O gajo do trombone começa a salivar e a dar fífias!"... 

As coisas, más, que sabia o "Brutamontes”!... Ou essa ensinou-te o "Frasco do Veneno" ?!... A verdade é que os putos da tua aldeia, provocadores, adoravam comer limões à frente da secção de metais da banda filarmónica. Só havia metais, não havia cordas!...


75. Um cão uivava aos domingos à tarde, enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor descansavam o corpo, magoado, os malteses, os ratinhos que vinham em magotes dos minhos, das beiras, dos ribatejos, dos alentejos, fugidos da fome e dos cavalos da GNR. E dormiam, na papel do trigo ou nas folhas de milho, que se guardavam para se fazer os colchões no inverno.

Em boa verdade, tu nunca chegarás a ver a GNR a cavalo, a espadeirar o povo, só mais tarde em fotografia, isso era no Barreiro da CUF, e tu ainda não sabias que existia o Barreiro da CUF, apenas os sacos de adubo da CUF com que a tua mãe faziam os sacos para o pão, e os aventais de cozinha. No tempo em que nãohvaia sacos de plástico, e tudo se reciclava... 


Muito menos alguma vez tinhas visto as ceifeiras do Alentejo, só conhecias o celeiro do trigo da Federação Nacional do Trigo, com cereal até ao teto em anos de grande fartura de pão. 

Nem sabias da Marinha Grande dos vidreiros ou sequer da Peniche dos pescadores, ali tão perto, as Berlengas à vista e o temível cabo Carvoeiro, o mar da Meia Via, cemitério de corsários, marinheiros, pescadores e outros mareantes.


Sabias lá tu dos operários que estavam em construção, nem muito menos das fábricas de chaminés altas, e dos perigosos comunistas (de que Deus nos livrasse!), inimigos mortais da Nação, metidos a foice e a martelo na fortaleza de Peniche, muda e queda.


76. Tu nunca tinhas saído do perímetro da tua terra, até aos oito anos, idade em que foste de excursão a Lisboa, com a "Branca de Neve" e os "Sete Anões": entrava-se na cidade pela tortuosa e íngreme calçada de Carriche, e pelas vetustas ruas do Lumiar, por meio de quintas, mas só te lembras do Tejo e das velas das fragatas, dos comboios e dos elétricos e do aquário de Vasco da Gama, e dos Jerónimos e do palácio de Belém… 


Não te lembras de ir ao Jardim Zoológico, que devia ser muito caro, para os meninos da tua terra, que levavam farnel e tudo!... Lembras-te dos palacetes do Lumiar e das heras a crescer nos muros altos e da patine do tempo. Nunca mais esquecerás essa expressão, a da patine do tempo.


77. E o Tarrafal ? Sabias lá tu onde ficava o Tarrafal 
[2], o teu pai, expedicionário da II Guerra Mundial, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, nunca te falara do Tarrafal, falava-te do Mindelo, do Monte Cara, do Lazareto, as bias, os tubarões, a morna, a coladera, a baía, o porto grande, a ilha onde até as pedras tinham venéreo, a fome do Joãozinho, a morte do Joãozinho, nosso cabo, bó impedido, Joãozinho, morreu. De fome, da grande fome, da fome milenar, intrínseca, de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, da fome da música e da poesia, da fome de pão de milho, e fome de terra e de céu, de fome de pão de trigo misturado com centeio, de mandioca e de cereal no pilão, e de poesia em crioulo, e de cachupa e de chabéu.


78. Lembras-te do álbum de fotografias do teu pai, o teu único brinquedo de montar e desmontar, que tiveste na infância, lembras-te do Mouzinho de Albuquerque, vapor da nossa orgulhosa marinha mercante, mas sabias lá tu quem era o Xico Vieira Machado, lídimo representante da nação, de visita a Cabo Verde, ministro plenipotenciário, homenzinho atarracado de chapéu colonial, latifundiário da tua terra, patrão do Banco Nacional Ultramarino, banco emissor de patacão da Guiné (, sabê-lo-ás, mais tarde), e que deixou o Joãozinho morrer de fome.


79. Enfim, havia o Império de todos nós, o lusitano império do tamanho da lonjura do Minho a Timor, desmesurado para tão parcas e desvairadas gentes. O último baluarte da civilização ocidental e cristã, lia-se nos títulos de caixa alta dos jornais de Lisboa, que chegavam à província.

Lembras-te, de reler, as cartas apaixonadas que o teu pai escrevia à tua mãe, em papel bíblico, a tinta de cor verde, e belíssima caligrafia, com selo e carimbo do correio de Cabo Verde que ficava lá longe no ultramar dos pretinhos e dos missionários de barbas brancas:

“Maria, minha cachopa,
não me sais do pensamento,
assim que eu sair da tropa,
trataremos do casamento”.



80. Ias para o pequeno rio Grande brincar, o rio Grande da tua aldeia, apanhar as bugalhos dos carvalhos, enquanto o teu pai, o teu ídolo, jogava a ponta esquerda, coitado do sapateiro e campeão das damas, nunca passaria da cepa torta, por jogar à bola e a ponta esquerda num campo pelado, no campo pelado da vida, no campo de jogos da tua terra, ao domingo à tarde, com um cão a uivar na vinha vindimada do Senhor.

Ah!, o rio Grande que só era grande quando galgava as margens e se confundia com o mar, o grande oceano.


(Continua)



[1] Avental de pau  queria dizer as meias portas onde as mulheres do Bairro Alto  se mostravam…

[2] A Colónia Penal do Tarrafal, situada no lugar de Chão Bom do concelho do Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde), foi criada pelo Governo português do Estado Novo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26 539, de 23 de Abril de 1936.

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Nota do editor:

(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)