Mostrar mensagens com a etiqueta escravatura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta escravatura. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23146: Historiografia da presença portuguesa em África (311): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira é um investigador incontornável, esta obra sobre as Companhias Pombalinas é absolutamente indispensável para o estudo de uma época. Enquanto lia quer o conteúdo da investigação quer o precioso acervo documental em anexo, a mente voava para um dos mantras do PAIGC referente à unidade Guiné - Cabo Verde, quase um dogma de fé, seriam povos afins, com a mesma proveniência. Hoje sabe-se (e na época igualmente já se suspeitava) que esta argumentação era por demais duvidosa. Como se lê no livro de Carreira, o tráfico de escravos proveniente da costa africana abarcava uma enorme região, e ponho já de parte o tráfico negreiro angolano que usava Cabo Verde como ponto de passagem. Fica igualmente claro que a vida nestas praças (Cacheu, Farim, Ziguinchor e Bissau, sobretudo) era um tumulto permanente e daí a citação que Carreira faz de pareceres do Conselho Ultramarino em que se diz claramente que sem o tráfico de escravos da Guiné não se podia manter Cabo Verde e que quanto ao título usado por Sua Alteza de Senhor da Guiné, ele fazia-se à custa da reputação do monarca, havia que pagar um tributo ao rei negro de Cacheu. Se subsistissem ainda dúvidas sobre a precariedade da presença portuguesa nesta costa de África, no século XVIII, tome-se em conta o que dizem os documentos.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos.

Na continuação da leitura do livro de António Carreira, e depois de já termos a génese e o enquadramento socioeconómico em que decorrer a criação de tais companhias, o autor avança um conjunto de informações sobre a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, por exemplo o número de escravos saídos da Costa Africana, a frota utilizada, como se processava o transporte de escravos e quais as mercadorias e géneros na viagem de retorno. Faz também uma análise da escravidão como instituição natural nas sociedades africanas e os diferentes modos como se obtinham os escravos nestas micro-sociedades. A Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi construtora da fortaleza de S. José em Bissau, tinha ali enormes armazéns para escravos, e Carreira diz que ainda ali viu grossas argolas de ferro embutidas na parede e nas quais acorrentavam os escravos, enquanto aguardavam embarque. E diz que noutras casas de Bissau, nos primeiros anos do século XX, ainda se viam argolas desse tipo colocadas nas paredes dos armazéns.

As suas notas sobre a concorrência estrangeira no tráfico de escravos são relevantes, ficamos a saber as suas proveniências e os seus destinos. Lembra-nos que a partir de 1641-1642 quase todas as informações, pareceres e comunicações do Conselho Ultramarino aludem a uma decadência das Praças de Cacheu e Ziguinchor, Farim e Bissau, sobretudo. Reconhecia-se a gravidade da situação e as possíveis consequências, como lembra num parecer o Conselho Ultramarino em 1 de junho de 1647: “Faltando Guiné, não há que fazer conta de Cabo Verde nem de todas aquelas ilhas, por Cabo Verde se não pode sustentar sem Guiné”.

A vida nestas Praças era atribulada, persistiam as tentativas de assalto. Por exemplo, Cacheu resistia com 420 vizinhos, era defendida por uma fraca tabanca de estacaria de mangue, constantemente atacada pelo gentio. O Conselho Ultramarino dirige-se ao monarca em termos duros e concretos: “E ultimamente Vossa Alteza intitula-se Senhor da Guiné, não tendo em toda aquela costa mais que uma pequena parte de terra e o pior é que a conserva Vossa Alteza à custa da sua reputação, porque pagam tributo ao feudo ao rei negro por mão do Capitão de Cacheu”. Carreira procura fazer a contabilidade do tráfico de escravos e diz que dos comprados 19.935 saíram da área compreendida entre o rio Casamansa (talvez alguns mesmo da Gâmbia) e a Serra Leoa. Guiné – Cabo Verde – Serra Leoa (71%) e 8.143 dos reinos de Angola – Luanda – Benguela (29%).

Em 1759 foi criada uma outra companhia, a de Pernambuco e Paraíba, associada à de Grão-Pará e Maranhão, aglutinando estas duas empresas todo o comércio geral e de escravos para o Nordeste brasileiro. Os escravos das ilhas de Cabo Verde, escreve Lucas de Senna em Dissertação sobre as Ilhas de Cabo Verde, Manuscrito azul nº 248, da Academia das Ciências de Lisboa, vêm todos da costa da Guiné, Bissau, Cacheu, Serra Leoa e outros. A compra deles faz-se com pólvora, espingardas, espadas, aguardente, panos, missanga e outros géneros. É avaliado cada escravo ou escrava por certo número de vacas. Estas ou são gordas ou são magras. Cada vaca gorda computa-se por certo número de pólvora, espingardas, etc.

Carreira procede a uma descrição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba e dá-nos um curiosíssimo quadro das etnias de escravos levadas para o Brasil. Diz que entre o rio Gâmbia e o rio Casamansa existiam as seguintes etnias: Felupes, Mandingas e Soninqués, Jalofos e Fulas. A partir da Gâmbia para sul, era a zona ótima para a compra de escravos. Esta abundava e o negócio tinha tradições muito antigas. Entre o Casamansa e o Cacheu deveriam ter embarcado para o Brasil Banhuns, Cassangas, Felupes, Baiotes, Balantas, Brames, Papéis e Caboianas. Pelo porto de Bissau devem ter embarcado Papéis da própria ilha, Balantas, Manjacos de Pecixe e da zona continental, também Bijagós, Beafadas, Nalus e presumivelmente Mandingas, Soninqués e Pajadincas, trazidos do interior. Diz Carreira que para termos um melhor entendimento da organização socioeconómica, política e cultural destas etnias, as devemos classificar em dois grupos. No primeiro, há que situar Felupes, Baiotes, Papéis, Brames, Manjacos, Caboianas ou Cobianas, Balantas, Banhuns, Cassangas e Bijagós, dotados de economia de subsistência, aproveitando frutos da palmeira, criadores de gado bovino, alguns deles ligados à tecelagem de panos de algodão, todos eles habitando num território em chãos, uns dependentes do poder do régulo, outros não, algumas dessas etnias têm na direção uma sacerdotisa, os Balantas dependem do Conselho dos Grandes, são praticamente todos animistas, posteriormente ao século XVIII os Banhuns e os Cassangas iniciaram um processo de islamização. Num segundo grupo Carreira coloca Jalofos, Mandingas, e os subgrupos Soninqués e Pajadincas, Fulas, Beafadas e Nalus, têm em comum a economia do milho, arroz e palmeira do azeite, criação de gado bovino, praticam artesanato e dedicam-se ao negócio ambulante.

Diz Carreira que a influência decisiva da cultura e da religião muçulmanas só se veio a concretizar em meados do século XVIII e daí por diante de forma avassaladora. Quanto ao problema linguístico, há etnias como os Jalofos, Mandingas e Fulas que se enquadram nas línguas sudanesas e os outros nas línguas aglutinantes definidas pelo uso de prefixos. Carreira também refere o tráfico de escravos nas rias do Sul, do rio Nuno à Serra Leoa, refere as etnias, perspetivas.

Chama-se a atenção do leitor que existe no Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume I, 1950, um importante artigo intitulado Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné, documentos para a sua história, por Cândido da Silva Teixeira, António Carreira refere-o na sua bibliografia. E de seguida vamos ver o que é que o Arquivo das Colónias nos oferece sobre a Guiné, e assim termina esta expedição a fundos de gaveta.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22789: Historiografia da presença portuguesa em África (293): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Não se pode esconder que há um claro desequilíbrio no propósito de uma viagem à Rota dos Escravos, e ao papel preponderante desempenhado por Portugal desde o século XV ao século XIX, pôs-se acento tónico no Golfo da Guiné, pode aceitar-se privilegiar São Tomé e não ter havido necessidade de ir a Luanda para dar a imagem de entreposto e lugar de roças com escravos (mais tarde aqui arribarão os trabalhadores cabo-verdianos), foi útil ir ao Benim e visitar S. João Baptista de Ajudá e os seus entrepostos negreiros. 

Visitar Goré sem visitar Cacheu já é um pouco estranho e mais estranho é ir à Ilha de Santiago e não se dar uma só linha do que aqui se passou como ponto culminante da Rota dos Escravos, vinha-se da Senegâmbia e era nestes entrepostos cabo-verdianos que se partia para as Américas ou para Portugal. Porquê esta omissão, nem uma palavra de quem organizou a viagem nem de quem a passou a escrito, o escritor Miguel Real.

Enfim, silêncios que deixam na escuridão a grande linha da Rota dos Escravos.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. 

Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, A viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

Os visitantes estão neste momento no Museu de História de Ajudá. A diretora do Forte faz uma incursão pelo passado.

“Nos finais do século XVIII, o Administrador do Forte, Francisco de Fonseca e Aragão, recém-chegado a Ajudá, queixava-se dos costumes dissolutos dos brancos da região e dos mestres-negreiros portugueses (brasileiros), acusando-os de total ausência de prática cristã, nem a missa dominical frequentavam, queixava-se”.

 Nos últimos vinte anos do século XVIII o Forte entrara em total decadência e a sua importância fora substituída pela emergência de Porto Novo e Onim. E assim continuará a ser até que Francisco Félix de Sousa, a partir da segunda década do século XIX, faça reviver Ajudá. E o autor carreia elementos históricos. Desde a sua fundação, S. João Baptista de Ajudá em nada interessa ao Portugal de D. João V, mas sim aos banqueiros baianos e pernambucanos, que duplicavam fortunas investindo no negócio da escravatura.

 Quase ao longo de todo o século XVIII, o enclave de Ajudá depende do vice-rei do Brasil, mas não possui importância. Quem faz sair Ajudá da letargia é Francisco Félix de Sousa que aqui arribou nos primeiros anos do século XIX, vindo de S. Salvador da Baía. Nada se sabe sobre o seu passado, chegou pobre, não mais regressou ao Brasil. Chega e nasce uma lenda. Conta-se que desembarcou sozinho, numa piroga, no embarcadouro de Ajudá, não fora molestado por um bando de negros porque ostentava um anel com uma serpente gravada.

É a partir da história deste anel que se presta algum crédito à tradição que o faz adorador de Dangbé, a píton, vodu africano. Desconhece-se como viveu os seus primeiros anos em Ajudá, terá sido ajudado por um negreiro francês, tomado como feitor ou guarda armado do depósito de escravos. Esse negreiro francês terá levado Francisco Félix de Sousa à presença do rei e este ter-lhe-á permitido entrar no negócio da escravatura. Não se sabe a proveniência dos seus haveres, mas começou a oferecer ao rei e aos régulos e aos caçadores de escravos armas de fogo, pólvora, ferro, panos finos, tabaco de terceira categoria, aguardente e bricabraque. É bem possível que o rei que recebia ofertas gradas deste negreiro não lhe tenha retribuído com a proporção correspondente de escravos, insolvente, o negreiro dirigiu-se à cidade dos palácios reais e apresentou o seu protesto.

 Conta-se a história que o negreiro foi metido na prisão, mas que fez um pacto com o irmão ou sobrinho do rei, este ascendeu ao poder, o negreiro voltou ao seu negócio próspero. Tudo isto é narração lendária, o facto é que ele se tornou no mercador português do reino de Ajudá, é o período dos anos de ouro de Francisco Félix de Sousa que fez uma fabulosa fortuna. E dentro da lenda fala-se das suas riquezas, sempre indumentado à europeia, com casa mobilada à europeia, servia-se à mesa com talheres de ouro e prata, segundo relatos da época.

Prosseguiu a viagem atravessando Ajudá, no centro lá está a praça Chachá, com a casa de Francisco Félix de Sousa que o escritor Bruce Chatwin consagrou no romance O Vice-Rei de Ajudá.

 Francisco Félix de Sousa morreu, dizem uns com 90 outros com 70 anos, os seus negócios já estavam em declínio, a abolição da escravatura afetou-lhe a riqueza. E Miguel Real faz o histórico da família, que não deixa de ser empolgante. Visitaram depois o 17.º rei de Ajudá, assistem a um ritual vodu, para o autor fora o dia mais importante da viagem, a visita ao Benim e ao mundo de Francisco Félix de Sousa e o autor adverte o leitor que lhe está a nascer a ideia para um romance baseado nesta figura espantosa da rota dos escravos. E partem para Dacar, dá-nos um quadro lisonjeiro da chegada: 

“A genuinidade tropical do mercado de São Tomé desapareceu, o abarracamento caótico do mercado da Rua do Benim desapareceu também, os pés nus, descalços, dos jovens africanos desapareceram, o pano-da-costa que enrola o corpo da mulher africana desapareceu, as papaias, os mamões, os ananases, as pencas de bananas desapareceram das ruas, remetidos para os expositores dos supermercados, a parafernália dos trajes garridos africanos desapareceu, substituída pelas camisas brancas, os polos de cores discretas, as calças de fazenda, os jeans ocidentais, o ponto de madeira e zinco onde se talha a melancia e espreme a toranja desapareceu. Dacar é, com exceção dos arredores, a cidade africana mais europeia que visitámos”.

Haverá referências a Benjamim Pinto Bull, que ensinou na Universidade de Dacar e que deixou um relevante trabalho sobre o crioulo da Guiné-Bissau. Viajaram até à ilha de Goré, a três quilómetros da capital, é um ilhéu para sermos mais precisos, de 900 metros de comprimento e 400 de largura. Dali avista-se o Cabo Verde continental. 

“Goré é constituída por uma fortaleza acastelada, construída pelos holandeses no século XVII, um pequeno forte que funcionou como prisão e depósito de escravos. Sustentado na força internacional da França, o Senegal viu aprovado, em 1978, a elevação de Goré a Património Mundial pela UNESCO. Goré, de flagelo humano vivido entre os séculos XVI e XIX, tornou-se atração turística de massas, com excursões contínuas de ricos negros americanos procurando a emoção de pisarem a terra que seus pais históricos pela última vez pisaram quando abandonaram África.

A Casa dos Escravos constituí hoje o centro histórico africano do ilhéu, cujo casario denota uma forte influência muçulmana. Aqui eram depositados os escravos vindos de toda a região da Senegâmbia, esperando partida para as possessões francesas na América”.

E depois o autor discreteia sobre a chegada do escravo à América, são elementos de divulgação bem conhecidos. E de Dacar parte-se para o aeroporto da Praia, é o termo da Rota dos Escravos. É a parte mais dececionante do relato, diga-se em abono da verdade. Falar-se-á pouco de escravatura e muito do Tarrafal, sem prejuízo de boas referências à cultura cabo-verdiana, predomina a descrição do campo de concentração do Tarrafal, visita-se a Cidade Velha e abonam-se elementos sobre a primeira fase de Cabo Verde, em dado momento fala-se na tabanca, uma das festas culturais profano-religiosas mais antigas e singulares de Cabo Verde, escreve-se que tabanca significa aldeia em guineense, o que pode denotar a existência primitiva de sociedades secretas; a tabanca é atualmente uma confraria ou irmandade de socorros mútuos.

 Percorre-se a Cidade Velha ou Ribeira Grande e parte-se para a Ilha do Sal, elogia-se a camaradagem do grupo e nem uma palavra sobre a importância do comércio negreiro desta Senegâmbia onde fomos o principal interventor.

 Durante a fase da luta ideológica do PAIGC pretendeu demonstrar como indiscutível a unidade histórica da Guiné e Cabo Verde, esqueceu-se de dizer que os escravos da Senegâmbia negociados por mercadores e os seus atravessadores vinham desde o Cabo Verde continental até à Serra Leoa e de regiões do interior que excediam o que é hoje a geografia da Guiné-Bissau. Forjou-se o mito de uma miscigenação jamais comprovada. Recordo-me de uma vez Teixeira da Mota me ter dito que era preciso compulsar muito bem os documentos existentes quer no Arquivo Histórico Ultramarino quer em Cabo Verde para se poder com o mínimo de rigor especular sobre as origens dos escravos chegados a Cabo Verde. A questão ideológica arrefeceu, tanto quanto sei está completamente silenciada, mas parece-me um tanto tosco fazer uma viagem desta dimensão, com a chancela do Centro Nacional de Cultura, não se ter ido a Cacheu e não se falar do tráfico de escravos em paragens cabo-verdianas.

E disse, fica feita a recensão de um livro que relata uma viagem à Rota dos Escravos, onde Portugal foi ator e não pode negá-lo.

Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O Centro Nacional de Cultura organizou em 2004 uma digressão pela Rota dos Escravos, tudo se iniciou em São Tomé e trepou até Santiago. Faz-se uma incursão pela História e de um modo geral o escritor Miguel Real, encarregado do relato da viagem, incumbiu-se bem, leu, documentou-se e dá o seu testemunho e agenda. Adriana Molder publicou ilustrações e Noé Sendas fotografou (infelizmente em tamanho reduzido). Sente-se que as roças estão gradualmente a ser recuperadas, aquele paraíso vegetal mantém o seu fascínio e estamos neste momento no forte recuperado pela Gulbenkian em 1990 de S. João Baptista de Ajudá, uma das placas giratórias do mercado de escravos do Golfo da Guiné. Já se falou de João Oliveira, grande contratador de escravos para o Brasil, teremos a seguir outra figura que entrou na lenda, Francisco Félix de Sousa, que tinha o título de "Chachá", terá sido o último grande negreiro português.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

O escritor tece considerações sobre o fenómeno da escravatura, descreve o seu histórico e como todo este fenómeno entrou na nossa civilização e na nossa cultura. Os portugueses, como outros povos europeus, investiram a fundo na industrialização e internacionalização deste tráfico que era permutado com mercadorias europeias e brasileiras (têxteis, álcool, armas de fogo, cavalos, pólvora, aguardente, tabaco da Baía de terceira qualidade, entre outras). Os escravos africanos destinavam-se a mão de obra nas plantações de algodão, açúcar e café na América. “Ao longo de cerca de 400 anos, entre a segunda metade do século XV e a primeira metade do século XIX, teriam sido comprados em África entre 10 a 15 milhões de escravos, a maioria destinada ao continente americano, do Brasil e Perú até aos atuais Estados Unidos da América”. Está comprovada a presença de escravos africanos em Portugal já em meados do século XVI, exerciam trabalhos servis como o das calhandreiras (recolha matinal dos dejetos da noite em calhandras de barro malcozido). Miguel Real tece a seguinte consideração: “A cultura portuguesa não é uma cultura escravocrata, a civilização e o tempo histórico europeu em que nos integrámos, sim: a passagem em tempo longo da ruralidade medieval para o mercantilismo mundial forçou os europeus a procurarem mão-de-obra intensiva para a produção, vendo no negro a tábua de salvação económica”.

A viagem começa no Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no antigo forte português de São Sebastião. Os visitantes são confrontados com as estátuas de Pêro Escovar, João de Santarém e António da Nóvoa e o escudo de Portugal derribado e quebrado em três partes. Visitaram numa das salas principais as barbaridades do massacre de Batapá, em 1953, cometidas contra a população negra revoltada pelos abusos do poder colonial português. “A ferida civilizacional abriu-se e cada um de nós, percorrendo o museu, sentiu-se confrontado com os atuais fantasmas malignos da História de Portugal – a escravatura, a exploração económica, o esmagamento da cultura negra. Pena foi que quando a Europa se pacificou e descolonizou, não a tivéssemos acompanhado, assumindo a nossa condição de verdadeiros colonialistas logo a seguir à II Guerra Mundial”. E tece considerações mais alongadas sobre a Rota dos Escravos e a respetiva economia, enfatiza a importância do açúcar para a transferência compulsiva de milhões de africanos transferidos para o continente americano, mas não esquece que tudo começou na Madeira (onde não houve escravos na plantação) e depois São Tomé, mais tarde as plantações brasileiras. Estimam-se em cerca de 13 milhões os africanos da sua terra natal e forçados a colonizar a América ao longo de cerca de 400 anos. A compra de escravos tornou-se um investimento vultuoso. No final dos tempos de escravatura, o tráfico negreiro transportava sobretudo crianças e adolescentes, tentando prolongar-lhes a vida ao máximo e reproduzindo-os em uniões forçadas (os criatórios). “Com a plantação do açúcar no Brasil e nas colónias espanholas da América Central, nasce uma nova economia de âmbito internacional, preparando a futura globalização do mundo: mão-de-obra africana, vastas terras americanas e organização e capitais europeus. Nesta fase, Madeira, Cabo Verde e São Tomé tinham abandonado a sua antiga importância colonial, as duas últimas limitavam-se a ser entrepostos de escravos”.

E o grupo prossegue viagem, visitará roças, algumas delas em completa ruína. O autor vai fazendo citações sobre a importância das carreiras de escravos, como São Tomé, São Jorge da Mina, as feitorias da Guiné e adianta uma referência: “Colónia açucareira e plataforma giratória da frota negreira, São Tomé reexporta para a América Portuguesa indivíduos mais resistentes às doenças europeias ou oriundas do litoral africano, falando a ‘língua de São Tomé’. Para o colonato são-tomense, traficar negros torna-se mais interessante do que plantar cana. No início do século XVI a ilha contava com 2 mil escravos fixos e de 5 a 6 mil itinerantes à espera de embarque para outros mercados. Nos anos seguintes, os são-tomenses passam a fazer o trato entre Benim e a Mina ao mesmo tempo que puxam os mercados do Congo para o sistema atlântico”. São elementos retirados de um historiador brasileiro, Luís Felipe de Alencastro.

E o autor volta a fazer uma citação, desta vez retira-a do livro A Manilha e o Limbambo, A África e a escravidão de 1500 a 1700, do embaixador Alberto da Costa e Silva, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2002: “São Tomé mostrou um rápido progresso. Era todo um êxito como centro experimental do que viria a ser a colonização e a exploração europeia nos trópicos húmidos. Ali faziam-se ensaios com gente, plantas, animais, formas de trabalho e fontes de lucros. Ali testavam-se novas maneiras de tratar a terra, de adaptar os vegetais importados, de organizar a mão-de-obra servil e dela retirar o maior proveito possível, de unir numa só classe proprietários da terra e comerciantes, de fazer dos mestiços intermediários entre senhores e escravos”. Visitam as roças, ficam assombrados com o folclore, e era inevitável assistir à peça Tchiloli representada pelo grupo de teatro Formiguinhas da Boa Morte, o grupo representou o seu espetáculo maior, a Tragédia do Imperador de Mântua e do Imperador Carlos Magno, inspirado no auto do século XVI do dramaturgo cego madeirense Baltasar Dias, da Escola Vicentina. Para além desta tragédia do Marquês de Mântua, o grupo tem em cartaz a Tragédia do Capitão Congo e o Auto da Floripes, peças provindas dos séculos XVI e XVII. A descrição das roças é de grande beleza.

E partem para o Museu das Artes e Tradições do Gabão, Miguel Real aproveita para comentar a similitude de instrumentos musicais africanos e brasileiros, a miscigenação do animismo africano com a doutrina cristã e lança-se depois numa narrativa sobre a chamada Passagem do Meio (travessia do Atlântico), o escravo depois de capturado era acartado num batel para o navio veleiro e daqui transportado para a América. Chegado a uma outra realidade, o escravo conhecia os rudimentos da religião cristã, aprendia uma nova língua, era enquadrado numa atividade laboral intensa, adaptava-se a um novo regime alimentar. De novo o autor destaca a mortalidade no decurso destas viagens, a seleção feita nas feitorias por mestres negreiros, embarcado cada um para o seu lugar de trabalho, o pai podia ir para o Recife, a mãe para Hispaniola, o filho para a Jamaica e a filha para a Virgínia, nunca mais saberiam uns dos outros. Visitam Cotonou, uma das mais importantes cidades do Benim, embrenham-se nos cheiros africanos, na cor dos mercados, dá-se uma pitada de História. “Diferentemente de S. Tomé, o Benim possuía já uma História milenar antes dos portugueses aportarem ao Golfo da Guiné na segunda metade do século XV. Presume-se ter sido João de Santarém e Pêro Escobar que, ao serviço do mercador Fernão Gomes, teriam pela primeira vez navegado pelo litoral do atual Benim, embora Rui de Pina afirme ter sido João Afonso de Aveiro, em 1484. As primeiras amostras de malagueta africana terão vindo do Benim para Lisboa, que as reenviaria para a feitoria da Flandres, iniciando assim um comércio intenso que conduzirá à designação inicial da Costa do Benim como Costa da Malagueta, posteriormente substituída por Costa dos Escravos”.

E fala-se do vodu, admite-se que mais de metade da população dos países do Golfo da Guiné e quase 80% das comunidades rurais da região o praticam, independentemente das regiões monoteístas que aqui se implantaram, a população continua a adorar os seus deuses primitivos. A palavra vodu significa potência invisível ou em português espírito. Os vodus são os espíritos que tomam conta das forças naturais. Retomando a história, Portugal foi dos poucos países europeus com fortes contactos com o reino do Daomé, hoje incluído no Benim. Desde o século XV, traficando malagueta, marfim, algum escasso ouro, depois escravos, em troca de ferro, tabaco de baixa qualidade, vidro, sedas e cetins, armas, pólvora e muita quinquilharia. “Até ao século XVII, a forte procura dos escravos situa-se na zona Norte do Golfo da Guiné, entre os atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e Guiné Conacri, e na vasta região entre o Congo e Angola com o transporte dos escravos feito por S. Tomé e Cabo Verde. É a partir de inícios do século XVIII que a Costa da Malagueta é amplamente buscada por europeus, pela compra e venda de escravos, instalando-se então no litoral do Daomé feitorias (sem a imponência do Forte de São Jorge da Mina) por Portugueses, Franceses, Ingleses e Dinamarqueses que passaram a abastecer de negros os mercados de escravos de toda a América".

E o autor, em 9 de setembro de 2004, por aquelas terras de Benim, passa à reflexão:
“Aqueles de entre nós que conhecem o Brasil sabem que a terra que hoje pisam constitui o berço cultural e social de mais de metade do povo brasileiro e que os veios nervosos de grande parte da atual cultura brasileira radicam-se nos costumes religiosos, gastronómicos e antropológicos desta vasta região, da Nigéria ao Togo e à Senegâmbia, tendo como centro ativo os diversos cais de embarque da costa do Benim, mormente de Ajudá, Onim e Porto Novo. Da religião das etnias do Benim nasceu o vodu jamaicano, antilhano e haitiano, e o candomblé brasileiro, da sua alimentação nasceu a moqueca e o acarajé brasileiros, das festas religiosas e dos instrumentos musicais de iniciação vodúnica das etnias fon e ioruba nasceram o agôgô, os atabaques, o berimbau, e do panteão dos seus deuses nasceu o panteão dos orixás”.

O passo seguinte é a visita a S. João Baptista de Ajudá, que foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1990. Com o país independente, em 1960 dirigiu-se ao regime de Salazar o abandono do forte, o ditador mandou incendiá-lo. E vem a descrição: “O forte, de um quilómetro quadrado de área, construção de 1721, foi transformado em museu histórico de Ajudá em 1967. Dependente do governador de São Tomé e Príncipe, depois integrado no vice-reinado do Brasil e, ainda, durante o tempo do consulado do Marquês de Pombal dependente da Companhia Geral de Cabo Verde e Rios de Cacheu, o forte atravessou um conjunto de vicissitudes, ao longo dos séculos XVIII e XIX, que espelham bem a política colonial portuguesa para África, apenas interessada, até ao Ultimatum inglês de 1890 na exploração das riquezas costeiras, sobretudo escravos, ao mais baixo custo possível, totalmente divorciada de uma política de povoamento (…) O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.

Importa dizer que o grande tráfico de escravos sob a bandeira portuguesa iniciou-se ainda na primeira metade do século XVIII e centrou-se nos embarcadouros de Ajudá, de Porto Novo, Jaquim e Onim, todos perto do primeiro. É altura de falar de um escravocrata lendário, Francisco Félix de Sousa, que fora antecedido pelo negro João de Oliveira como atravessador de escravos entre África e o Brasil, este João Oliveira notabilizou-se como exportador para Pernambuco, Baía e Rio de Janeiro, é do seu tempo a introdução do negócio das folhas de tabaco como material de permuta por escravos. Falemos então de Francisco Félix de Sousa.

(continua)


São Tomé e Príncipe, estátua dos descobridores
Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
Entrada da Casa dos Escravos, Ilha da Goreia, Senegal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22344: Notas de leitura (1364): “O Colonialismo Europeu no Continente Africano”, por Mário Gonçalves Martins; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
O autor destes apontamentos universitários é um professor catedrático com larga bibliografia e ainda a dar aulas. É de questionar a utilidade do seu trabalho: a bibliografia não chega ao século XXI e não há contraditório; não se entende a organização deste trabalho em que se está a falar da Conferência de Berlim e logo adiante se fala das caraterísticas do colonialismo português em todo o Estado Novo. Para os saudosistas do Império Português, é no entanto uma obra interessante, na medida em que o autor detalha as sucessivas etapas da extinção do colonialismo português, primeiro com as intromissões que acabaram por ter força de Lei, dos impérios francês e britânico; e depois da Conferência de Berlim como sucessivos tratados diminuíram a presença portuguesa em África. Resta dizer que nem sempre foi assim como se exemplifica com a Convenção Luso-Francesa de 1886, em que se definiram as fronteiras da Guiné, o tratado deu largamente vantagens a Portugal, em termos de território para ocupar, mesmo à custa do sacrifício do Casamansa.

Um abraço do
Mário


O colonialismo europeu em África, séculos XIX e XX

Beja Santos

“O Colonialismo Europeu no Continente Africano”, por Mário Gonçalves Martins, Chiado Editora, 2017, é uma obra escolar destinada, segundo o autor, a um conjunto de unidades curriculares onde esta temática tem cabimento. Segundo o esquema anunciado pelo autor, temos três abordagens: os êxitos do colonialismo europeu em África; os obstáculos sentidos; os fracassos desse colonialismo.

É recordado que no início do século XIX os ingleses já estavam instalados na Índia, na África do Sul e no Canadá, possuíam colónias na Austrália, na Nova Zelândia, nas Caraíbas e na Guiana; a Holanda controlava a Indonésia; a França a Espanha e Portugal possuíam territórios ultramarinos e a partir da década de 1870 outras potências europeias deram sinal de vida em prol do expansionismo imperial. A partir de 1830 desencadeia-se na Europa um fenómeno que teve o nome de missão civilizadora, uma convergência da herança do iluminismo, da avidez dos recursos africanos, o que implicava a subjugação do território, a erradicação da escravatura e o espírito missionário. Em 1830, a França implanta-se na Argélia, por essa época a Grã-Bretanha conduz uma cruzada antiesclavagista e as entidades científicas começaram a enviar missões ao interior do continente. Em meados do século XIX, essa presença colonial era relativamente modesta: a França implantara-se na Argélia, na região da Senegâmbia e no Gabão; a Grã-Bretanha possuía a colónia do Cabo, a Serra Leoa e a Costa do Ouro, uma parcela do que virá a ser a Nigéria; Portugal possuía as colónias que irão ficar independentes entre 1974 e 1975. Em 1914, o mapa político era totalmente diferente, França, Itália, Grã-Bretanha, Alemanha, Portugal, Bélgica e Espanha eram as potências imperiais, desaparecera a soberania africana.

Mário Gonçalves Martins centra-se no que aconteceu depois da segunda metade desse século, a descoberta de riquezas, as explorações científicas, os grandes projetos de desenvolvimento, releva os interesses belgas, franceses, britânicos e alemães. Regista o que ele designa por direitos históricos de Portugal e a sua contestação por britânicos, franceses e alemães. E, inopinadamente, o autor dedica-se a falar das caraterísticas do colonialismo português, indicando uma estranhíssima bibliografia que não chega ao século XXI e onde não há contraditório.

Segue-se a Conferência de Berlim, são enunciadas as suas consequências e a partilha do continente.

Conferida esta dimensão de êxitos do colonialismo europeu, o autor centra-se nos obstáculos: as sublevações, as manifestações anticolonialistas, mormente depois da II Guerra Mundial e a deslocação da Guerra Fria para o continente africano, bem como para os anfiteatros da ONU. De novo o autor passa do geral para o particular e dá-nos uma resenha acerca das lutas contra o colonialismo português, designadamente o que se passou em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique, que movimentos e agrupamentos aí se formaram. Essa oposição anticolonial também se manifestou na metrópole, fundamentalmente pelas manifestações apresentadas pela oposição, o descontentamento da Igreja Católica e o próprio sistema empresarial que a partir de dado momento se apercebeu que as despesas militares eram um verdadeiro entrave ao desenvolvimento português; e o autor esquematiza as contestações exógenas desde o Movimento dos não-Alinhados até aos nossos Estados independentes africanos.

E chegamos à terceira e derradeira parte do livro em que Manuel Gonçalves Martins enumera os fracassos do colonialismo europeu, tornado visível ainda na década de 1950, autêntico turbilhão a partir dos anos 1960. É sobre a extinção do colonialismo português que este autor expende uma opinião curiosa. Logo com a perda dos direitos históricos de Portugal concretizada durante a Conferência de Berlim (1884-1885) e nalguns tratados assinados entre Portugal e algumas potências europeias (1885-1914). Antes da Conferência de Berlim, a Grã-Bretanha intrometeu-se nas zonas de Cabinda, em Bolama, na Baía de Lourenço Marques; a França desde cedo pretendeu a supremacia sobre o rio Casamansa; a Associação Internacional do Congo infiltrou-se nos territórios da margem sul do Zaire; e o Transval assinou com Portugal um tratado sobre os limites de Moçambique que arrebatou o Império Português e uma importante região mineira ao sul do Lourenço Marques; o Tratado Luso-Britânico de 1884 trouxe inúmeros prejuízos a Portugal, o sonho de Angola à Contracosta esfumou-se.

Na Conferência de Berlim foram eliminados os direitos ou privilégios de Portugal anteriormente alicerçados, deu-se como irrealizável o Tratado Luso-Britânico de 1884 (o Tratado do Zaire). O convénio assinado por Portugal com a Alemanha em 30 de dezembro de 1886 delimitou a fronteira entre os territórios da Alemanha e a África portuguesa, o Governo Português sacrificou os territórios compreendidos entre o rio Cunene e o Cabo Frio. Mas há mais, o autor repertoria outros documentos que reduziram a influência portuguesa em África. Para Manuel Gonçalves Martins, os tratados assinados em Inglaterra conduziram Portugal à decadência e à ruina.

Noutro apartado, este docente universitário refere-se à liquidação dos restos do Império Português, vai diretamente para o golpe de Estado de 25 de abril de 1974, segue-se a Lei n.º 7/77, de 27 de julho, onde se reconheceu o direito dos povos à autodeterminação, seguem-se as medidas de concretização da descolonização, e depois de uma forma vaga e genérica fazem-se referências ao abandono dos restos do Império e a quem interferiu no processo descolonizador. Não há uma só referência aos acontecimentos associados à luta armada e à sua evolução nem a escalada armamentista na Guiné e em Moçambique, parece que o Império Português foi liquidado por obra dos diplomatas. Num aparato pretensamente neutral fala-se dos partidos políticos portugueses associados a essa descolonização e a seguir desanca-se no Governo de Marcello Caetano, sempre falando em “alguns autores”: “Foi o principal impulsionador da destruição total do Império Português. A sua Administração impressionou-se com as dificuldades inerentes à conjuntura, e (desprezando os seus compromissos, a vontade da Nação, e as orientações coerentes e constantes de Salazar) suprimiu as disposições constitucionais que apresentavam como motivo para a defesa do Império Português o cumprimento da missão nacional”. Como o docente se põe atrás de alguns autores, desta vez cita Adriano Moreira, dizendo que para este, a política de Marcello Caetano destruiu os motivos para defender as colónias portuguesas. E vale a pena concluir com este arrazoado do autor: “Quando Marcello Caetano decidiu opor-se claramente à independência política das colónias portuguesas, não conseguiu evitar o desastre”. É invocado que Jorge Jardim se reuniu com os emissários do Governo da Zâmbia, que o General Spínola escreveu o livro “Portugal e o Futuro” e, desta vez, citando Franco Nogueira acrescenta que tudo se arruinou e desmoronou. Referiu-se atrás que o autor é escandalosamente parcial na bibliografia que apresenta. Bastava que ele tivesse lido o que se escreveu sobre as conversações com o PAIGC, as reuniões em Roma com o MPLA, o que Marcello Caetano propôs a Santos e Castro para a independência unilateral de Angola e ficar-se-ia com a ideia correta que no final do regime Marcello Caetano não se opunha à independência política das colónias portuguesas, tentava desesperadamente garantir independências brancas em Angola e Moçambique, não havia quaisquer ilusões de que a Guiné era um Estado independente, um processo irreversível.

Fica-se sem perceber muito bem para que é que se escreve um livro de lições antiquado e escandalosamente parcial, nem chega a ser gato escondido com o rabo de fora. O que ainda é mais bizarro, atendendo ao currículo deste professor catedrático. Já não me admiro com coisa nenhuma. Aqui há uns anos atrás, o professor Veríssimo Serrão dedicou um volume da sua História de Portugal ao regime de Salazar. A bibliografia era eloquente: as memórias do Almirante Américo Tomás, os discursos de Salazar e o Diário do Governo. Não há explicação para esta historiografia de risota.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 de Junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22323: Notas de leitura (1363): “As Voltas do Passado, a Guerra Colonial e as Lutas de Libertação”, organização de Manuel Cardina e de Bruno Sena Martins; Edições Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22207: Notas de leitura (1357): "Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James; Edições Saída de Emergência, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Uma condensação de valor apreciável sobre a constituição de impérios a partir do século XIX, as idiossincrasias, as motivações comerciais, o espírito missionário, os choques entre a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Foi pena Lawrence James não ter estudado convenientemente o caso português, chega ao cúmulo, na hora da descolonização, de afirmar seraficamente que Portugal lutava em Angola e Moçambique e que o grande ideólogo da luta pela independência das colónias portuguesas era Agostinho Neto. Será lastimável se um especialista não lhe fizer chegar notícia do que significou a Guiné no fim do império.

Um abraço do
Mário


“Impérios ao Sol, A Luta pelo Domínio de África”, por Lawrence James (1)

Beja Santos

Vale a pena destacar os dois primeiros parágrafos do prefácio, para que o leitor saiba o que tem pela frente, trata-se de um autêntico e suculento prato de substância:
“Este livro expõe as transformações ocorridas em África ao longo dos séculos XIX e XX, uma época em que praticamente todo o continente passou a fazer parte dos impérios globais europeus. Trata-se de uma história sobre os conflitos de poder entre nações e entre governantes e governados. A mudança provocou conflitos, pois foi imposta a partir de cima por estrangeiros que a denominavam progresso e afiançavam que este seria uma fonte de proventos para eles e para os seus súbditos africanos. Alguns assentiram, cooperaram com os invasores e alcançaram a prosperidade, outros resistiram. As guerras de conquista e pacificação arrastaram-se por mais de um século, findando apenas com a subjugação da Abissínia pela Itália, em 1936. O conflito foi sempre um fenómeno endémico em África, mas os europeus entraram no continente levando consigo os avanços mais recentes da tecnologia militar. Na fase inicial da conquista, as metralhadoras representavam uma enorme vantagem para as suas forças e, durante as décadas de 1920 e 1930, espanhóis, franceses e italianos mobilizaram bombardeiros, carros de combate e gás mostarda contra marroquinos, líbios e abissínios.
O continente foi arrastado para as duas guerras mundiais que custaram à Alemanha, primeiro, e depois à Itália, as suas colónias. Mais de um milhão de africanos alistaram-se como voluntários ou foram recrutados para combater no Exército, muitos em longínquas frentes de combate. Durante a II Guerra Mundial, os soldados negros das colónias britânicas combateram as tropas japonesas na Birmânia, enquanto argelinos e marroquinos serviram ao lado das forças francesas contra os alemães, em Itália e na Europa Ocidental. Os veteranos regressaram a casa orgulhosos, perplexos e zangados. Fora-lhes dito que arriscavam a sua vida pela liberdade universal e em prol de um mundo melhor, mas a ordem imperial continuava enraizada em África”
.

“Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James, Edições Saída de Emergência, 2018, põe em imenso ecrã as ambiguidades deste conceito de progresso e de missão civilizadora e de ocupação que se forjou a partir de 1830, aproximadamente; desvela uma luta sem quartel para tomar posse de domínios por todo o continente, entre 1882 e 1918, no Egito e no Sudão, na África Austral, no Congo, em combate religioso; assistimos à ascensão dos nacionalismos, a presença de contingentes africanos em duas guerras mundiais para medir as consequências do que se seguiu, aproveitando a boleia da Guerra Fria; e de 1945 a 1990 o continente africano foi mudando de look, todos os povos se encaminharam para a independência; e assim chegamos aos últimos dias da África branca.

Por volta de 1830, a presença europeia em África mudou de slogan, passou-se a falar sistematicamente de missão civilizadora, o que durante séculos colonizadores franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e britânicos tinham praticado era tráfico de escravos, criação de entrepostos comerciais e uma certa presença missionária. Um novo modelo capitalista punha tudo em questão, logo em 1807 a Grã-Bretanha proibira o tráfico de escravos e o comércio negreiro declinou. Como o autor observa, a cruzada antiesclavagista empreendida pela Grã-Bretanha coincidiu com o apogeu da Revolução Industrial, entrara-se na euforia das manufaturas, era preciso fazer chegar aos consumidores africanos esses produtos manufaturados, e nada melhor do que falar em progresso, em ciência, em civilização, bons pretextos para viagens científicas e conhecer as riquezas de solo e subsolo, do vastíssimo continente. Novos e velhos impérios passaram a conflituar, não lhes faltava poder expansionista: a Grã-Bretanha queria proteger solidamente a Rota do Cabo, os russos lançavam-se num ambicioso programa expansionista, a França pós-napoleónica suspirava por pôr um pé no Norte de África, começou pela Argélia, o Império Otomano abrangia do Sudeste da Europa à Turquia, Médio Oriente e Norte de África, entrara em desagregação, o Egito, a Tunísia e a Argélia eram Estados praticamente independentes.
Mas estamos numa época em que os conhecimentos sobre a natureza das sociedades africanas situadas nas regiões para lá do Sara, da África Ocidental e da Colónia do Cabo eram pouco mais do que vagos.

As potências com apetites imperiais conheciam a violência endémica africana, o comércio negreiro praticado pelos árabes à cabeça e a própria cultura europeia tinha o que hoje se pode considerar ideias aberrantes sobre os africanos, como o próprio autor observa. Lineu, o naturalista, catalogou o negro como ignorante. O filósofo David Hume pensava que as faculdades intelectuais de um negro se assemelhavam às de um papagaio enquanto John Wesley via nas suas imperfeições a prova da capacidade do homem para a degeneração moral. Estavam espalhados os conceitos de inferioridade africana, muitos deles ligados ao tráfico negreiro: o negro seria devasso, cobarde, indolente, cruel, supersticioso, antropófago. Essas ideias passaram a ser contestadas desde o século XIX, quer pelo romantismo, quer pela religião evangélica. Os românticos defendiam com insistência que o negro tinha sentimentos como o resto da humanidade e os evangélicos acreditavam que a sua conversão ao Cristianismo completaria a sua felicidade.

O autor é detalhado sobre a problemática da escravatura e o tráfico de escravos, concluindo que “A guerra mais ou menos isolada travada pela Grã-Bretanha contra o comércio de escravos alcançou um enorme êxito. Entre 1810 e 1864, a Royal Navy libertou 150 mil escravos. Em 1864, o comércio atlântico encontrava-se em rápido declínio e as operações no Oceano Índico sofreram um duro golpe, embora não fatal. Restava o comércio no interior do continente africano, favorecido pela distância geográfica e pela solidariedade dos regimes locais”. Nesse mesmo século XIX, vão multiplicar-se as missões cristãs, acarretarão tensões de toda a ordem: cismas, caráter concorrencial entre igrejas cristãs, diabolização de comportamentos que deixavam os africanos em fúria, guerra à feitiçaria, embate entre os pregadores cristãos e os islâmicos, a chegada da medicina praticada pelos missionários pondo de parte as técnicas dos curandeiros. O quinino foi mais forte que o curandeirismo, as escolas foram ganhando simpatia, era o triunfo da missão civilizadora enquanto a França conquistava a Argélia, a Grã-Bretanha se apropriava da África do Sul, resolvendo a seu contento a questão bóer e consolidando a supremacia branca enquanto o continente africano era percorrido de lés a lés por exploradores de várias nacionalidades. Lawrence James dá-nos o perfil dos grandes exploradores e as suas idiossincrasias e o retrato de uma das figuras mais ignóbeis do colonialismo, Leopoldo II da Bélgica, exprime-se deste modo:
“O monarca Leopoldo dedicou a sua vida a fazer dinheiro nos territórios ultramarinos. Entreteve-se com alguns projetos nas Ilhas Orientais e na América do Sul, mas em meados da década de 1870 persuadiu-se de que conseguia fazer fortuna em África. Agiu com deslealdade e astúcia, apresentando-se inicialmente como filantropo e patrono da investigação científica. Sob esta máscara, e apoiando-se no seu estatuto régio para conseguir legitimidade, convocou uma conferência, em 1876, para discutir a descolonização da África Central. O resultado foi a criação da Association Internationale Africaine, uma organização de fachada, enganadoramente benévola, que depressa se transformou no Comité d’Études du Haut Congo, investida de uma missão humanitária igualmente falsa”.

Vamos agora entrar na segunda parte do trabalho, a partilha de África, nem tudo será cor-de-rosa.

(Continua)
Leopoldo II da Bélgica
Encontro de Stanley com Livingstone
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22205: Notas de leitura (1356): Lembrando livros do Beja Santos sobre a Guiné (João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439)

quarta-feira, 17 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22013: Historiografia da presença portuguesa em África (256): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Anda por aí esse novo fenómeno social em torno de Portugal e dos escravos, falando de culpa do Ocidente cristão e do abominável negócio de escravos africanos para a Europa e América, Portugal estaria inteiramente nesse banco dos réus. O que acontece é que todo este processo embusteiro está fartamente documentado, só pode granjear adeptos entre fanáticos. Já não falo dos servos medievais, se a Igreja de Roma e os credos protestantes muitas vezes defenderam a pessoa humana, se houve o Padre António Vieira e a República Jesuíta do Paraguai, também houve cumplicidades, até padres cabo-verdianos andaram metidos no tráfico. E os árabes? Porque é que se faz tábua rasa do esclavagismo muçulmano, enquanto os árabes andaram afoitamente no Mediterrâneo, na Idade Média, não se dedicaram ao tráfico de escravos? Saquearam e piratearam e raptaram, estamos a falar de turcos. O império otomano tinha escravatura; a indústria da castração era uma especificidade do esclavagismo árabe-muçulmano. São realidades bem documentadas, e já não falo das castas indianas nem na escravatura que existiu no Império do Meio. Mas em nada desabona esta leitura do Conde de Porto Santo, terrífica e paradoxal, estamos a falar de alguém que sonha com a industrialização e com o desenvolvimento mas que trata o africano como um menor mental que está à espreita de todos os eflúvios da civilização cristã. Viram-se os resultados com as independências africanas.

Um abraço do
Mário


Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (2)

Mário Beja Santos

António Saldanha da Gama, como dissemos anteriormente, era alguém na linhagem e na política portuguesa: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África, precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um certo estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa.

No termo da exaltação que faz à valorização das colónias da África Ocidental, emite um juízo quanto ao modo como se deveria no futuro processar essa administração, como escreve:
“As possessões coloniais são geralmente consideradas entre nós como espécies de herdades que de nada valem quando directamente não rendem somas líquidas para o Tesouro. A utilidade e importância das colónias não consiste, todavia somente no rendimento que delas entra directamente nos cofres públicos, mas também nos lucros do comércio exclusivo que com elas faz a mãe-pátria, nos empregos que elas fornecem à população do país de que dependem, no alimento que dão à navegação nacional, etc. Estas vantagens são tão grandes que compensam exuberantemente a falta de rendimentos directos, e mesmo as despesas que com as colónias faça a metrópole (…) Cumpre não perder nunca de vista que as colónias concorrem eficazmente para a riqueza nacional, ainda quando não rendam coisa alguma para o Tesouro. O sistema espremê-las é não só iliberal, mas impolítico e funesto”.

Agora a nota mais curiosa deste documento é que o Sr. Conde de Porto Santo era a favor da escravatura, e escreve sem qualquer dissimulação o que pensa sobre a matéria, qualquer coisa de extraordinário e que até agora nada de parecido tive a oportunidade de ler:
“Deslumbradas pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projectos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Por que razão não merecem à Inglaterra igual zelo os escravos cristãos das regências barbarescas, os escravos do Egipto, da Pérsia, da Turquia, os servos da Rússia, etc.? Será porventura porque a cor preta melhor excita as simpatias britânicas?
Quem viu de perto os povos negros de África, quem conhece a feroz crueza das suas leis e dos seus usos, a imensa quantidade de crimes e de contingências fortuitas que envolvem a perda da liberdade, não pôde deixar de reconhecer que o tráfico, ou como mais propriamente se dizia em outro tempo, o resgate dos negros, era um bem para a humanidade.

A escravidão em terra de cristãos, por dura que seja, é sempre muito preferível à escravidão em terra de bárbaros, e tanto é assim que havendo no Brasil grande número de negros Forros, e partindo dali frequentes navios para a costa de África, ainda não houve um daqueles negros que quisesse voltar para a sua pátria. A filantropia sensata e bem entendida deveria, portanto, começar por civilizar a África antes de se ocupar da abolição do tráfico; mas seria isso possível? Motivos bastantes há para o duvidar. Em Angola estiveram os jesuítas, a quem se não pode negar o talento de civilizadores; ali estamos nós há alguns séculos, e, todavia, os povos em trato e contacto connosco acham-se hoje com pouca diferença no mesmo estado em que se achavam quando pela primeira vez aportámos àquelas regiões. O preto não carece, a bem dizer, nem de casa nem de vestuário para se defender das inclemências da atmosfera, o seu sustento é simples e frugal, e pouco trabalho lhe basta para satisfazer a estas simples precisões. O clima que o preto habita favorece naturalmente a preguiça. Nestes termos, como trabalhará o preto além do estrito indispensável para prover à sua parca subsistência, se não tiver necessidades factícias a que queira satisfazer?

Mas a que se reduzem as necessidades factícias que até agora se tem podido introduzir entre eles? Algumas louçainhas, missangas, armas e o líquido fascinante da gerebita (cachaça brasileira), que tanto prezam os povos selvagens. Mas não se creia que para obter os objectos mesmo que lisonjeiam a sua vaidade ou o seu paladar, o preto seja capaz de se dar a grandes trabalhos, pois a estes prefere ele sempre a privação daqueles, e as doçuras da preguiça e da calaçaria. As necessidades factícias nunca para o preto se transformam em verdadeiras, e enquanto isto assim for, como poderá a civilização penetrar nos sertões africanos? Ora, enquanto a África permanecer no seu estado actual de barbárie, o resgate dos negros escravos, ou a mudança do senhor bárbaro para senhor civilizado, que vem a ser o mesmo, parecerá um acto de humanidade a todo o homem despido dos prejuízos de uma falsa filantropia, e que vir as coisas como elas são, e não como o interesse ou a paixão as pintam. Os males e inconvenientes do tráfico dos pretos, e sobretudo do tráfico enquanto foi lícito e sujeito à vigilância das autoridades, não redundavam em prejuízos dos pretos, mas sim dos povos que as admitiam em seu grémio. Considerado por este lado, o tráfico deveria certamente cessar o quanto antes, mas olhado filantropicamente, a sua cessação, em vez de ser um bem, é um mal para a humanidade. Tem-se dito e crido de leve, que o tráfico da escravatura era um incentivo, e uma causa de frequentes guerras dos pretos; como se quem move a guerra pudesse estar certo da vitória, quando aliás nada há tão incerto e dependente de contingências fortuitas, de acasos não sonhados, e dos favores da fortuna. O potentado que fizesse guerra por especulação, para colher cativos, não podia deixar de prever que, se a sorte lhe fosse avessa, cairia ele e o seu povo no cativeiro que ao inimigo preparava. Com igual lógica se poderia dizer que o tráfico da escravatura era estorvo e impedimento de guerra, pelo horror salutar do cativeiro a que ficavam indubitavelmente sujeitos os vencidos. Na verdade, com melhores intenções, nunca se propagaram tantos erros, nem se disseram tantos disparates, como nesta questão da escravatura!”
.

Assim pensava o Conde de Porto Santo e escusado é dizer que deixou uma certa escola.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
 
Nunca ouvira falar em António de Saldanha da Gama e li num só ápice este documento que terá sido produzido à volta de 1814 e editado em Paris em 1839. Os documentos foram apresentados aos eleitores do Círculo Eleitoral de Viana do Minho pelo Ajudante de Ordens de Saldanha da Gama, o Visconde da Carreira. 

No seu discurso preliminar, o antigo Governador do Reino de Angola procura sacudir quem o leia, dizendo coisas como esta:
 
"Qual será o português que não se envergonha, que não sinta uma nobre indignação, à vista da nossa inferioridade, da nossa nulidade, dos impropérios ignominiosos, do desprezo desdenhoso com que somos tratados pelas nações da Europa! Cuidemos sem demora de nos reabilitar, de sair de tão abjeto estado e de recuperar no grémio das nações o posto e consideração que nos competem".

E lança-se exultante num exórdio à industrialização, à liberdade de comércio. Saldanha da Gama estaria em campanha eleitoral. É admissível que tenha dado à estampa a sua Memória sobre as colónias de Portugal, tenho extrema dificuldade em vê-lo, em reuniões e comícios, a fazer apologia do comércio negreiro.
 
Sobre essa surpresa, completamente inusitada, falaremos a seguir.

Um abraço do
Mário




Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (1)

Mário Beja Santos

António Saldanha da Gama não era um qualquer um: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-Cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. 

Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África", precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa. No seu discurso preliminar, esse Saldanha da Gama se anda a ocupar sobre a importância da industrialização, contudo abre com um discurso acabrunhante:

“As colónias que ainda restam a Portugal dos velhos continentes e mares de África e Ásia são monumentos da nossa antiga glória, portentos espantosos da gigantesca força, diligência e perseverança da antiga gente portuguesa, que acabrunham a nossa pequenez e insultam a atual indolência”.
 
Deplora algumas fundações que se estavam a fazer em Angola, alerta para a necessidade de ter um bom governo, governo estável e não em perpétuo tirocínio. Exalta civilizações do passado e alerta para um novo quadro de desenvolvimento:

“A experiência mostra que as nações que se limitam a poucas espécies de trabalho de produção, ainda quando são fornecidas pela fertilidade e riqueza do seu território, permanecem sempre pobres, estacionárias e privadas de grande número dos confortos da civilização moderna”.
 
Exemplifica com Inglaterra e a sua prosperidade, o seu comércio interno e externo e lembra que as indústrias tinham passado a ser a principal fonte das riquezas. Para haver indústrias são indispensáveis as vias de escoamento, rios, canais, estradas, comunicações céleres, e faz a apologia das instituições constitucionais, dá exemplo do que ele está a ver em França, mas o seu azimute parece ser sempre em Inglaterra. E deste discurso preliminar entramos propriamente no texto da memória sobre as colónias de Portugal.

Parecendo irremediavelmente perdido o tráfico negreiro, haverá que melhorar a vida das colónias portuguesas na África Ocidental, são elas: Cabo Verde, Bissau e Cacheu, S. Tomé e Príncipe e Angola e Benguela. É muito útil o que ele diz sobre Cabo Verde, importa não esquecer que a desafetação da Guiné será cerca de 60 anos depois. A colheita e a venda da urzela parecia ser a principal riqueza. 

“A Fazenda Real compra toda a urzela por um preço fixo, e desta compra são encarregados os capitães-mor dos distritos. Não é fácil descrever as vexações que estes exercem naquele ato, negando-se a paga em dinheiro e fazendo-a em géneros, em que os miseráveis cultivadores perdem às vezes 100%. Seria sumamente útil isentar a urzela do estanco Real, e permitir a sua livre venda, impondo-lhe um módico tributo de exportação”

Mas outros ramos viam animar a economia das ilhas, segundo Saldanha da Gama, enuncia o amendoim, o gergelim, a palmeira de dendém, exalta a importância de pescarias e salgas de pescado. Conclui esta apresentação referindo uma manufatura de tecidos grosseiros de algodão que é artigo de comércio para os presídios de Bissau e Cacheu, conviria aperfeiçoar tal manufatura.
 
Chegou agora o momento de falar de Bissau e Cacheu, cita-se integralmente o que escreve:

“Abundam nestas colónias artigos de grande importância, que poderiam fazer a riqueza delas, como são muitas gomas, resinas, marfim, madeiras, etc. A goma arábica se encontra nestes países, e bem conhecido é o seu préstimo e o seu valor. Das outras gomas e resinas seria necessário averiguar o préstimo e fazê-las depois conhecidas na Europa.

Há aqui muitas terras próprias para o cultivo de arroz, e os habitantes com gosto se dão a esse trabalho. Ora se a América do Norte pôde por muitos anos abastecer a Europa daquele artigo, se o Maranhão, a Baía, etc., ainda hoje o fornecem a Portugal, por que razão o não poderão fazer Bissau e Cacheu, que além de terem as mesmas proporções, estão mais perto de nós? As pescarias também aqui se poderiam promover, tanto para as salgas, como para a extracção do azeite de peixe.

Não falecem aqui os vegetais de que se podem extrair óleos, como o rícino, o amendoim e a palmeira dendém. As madeiras de África são entre nós pouco conhecidas, e a experiência me tem mostrado que se a natureza não dotou abundantemente esta parte do mundo de grandes florestas, concedeu em compensação às árvores pequenas desta terra muita solidez e um delicado colorido que as faz próprias para obras primorosas de marcenaria e de embutido. Deverão portanto examinar-se cuidadosamente as árvores que crescem nestas possessões, para além das suas madeiras se tirarem o conveniente proveito. Creio que não me iludo persuadindo-me que os aromas da Ásia prosperariam facilmente em Bissau e Cacheu, e que a pimenta, hoje cultivada na Baía com tanto proveito, poderia também aclimatar-se nestas terras”.


Discreteia depois sobre S. Tomé e Príncipe, tendo sido Governador no Reino de Angola vai dedicar o essencial da sua memória às riquezas da terra, não esquecendo o carvão de pedra e o marfim. Findo o documento, apensa várias notas, a última serve exatamente para expor o que ele pensa sobre o tráfico da escravatura. Prepare-se o leitor para uma defesa que hoje, pelo menos no campo formal, não tem seguidores, a despeito, como é público e notório, que ainda há escravatura no mundo, e pensa-se que se trata de negócio chorudo.

Ele começa por dizer o seguinte:
 
“Não cremos que haja pessoa alguma dotada da faculdade de discorrer que se persuada que o zelo e pertinácia da Inglaterra para abolir o tráfico da escravatura proviesse simplesmente do amor da humanidade, ou de uma filantropia pura e desinteressada. Entretanto é certo que não foi sem proveito que aquela potência invocou em apoio da sua política as simpatias das almas verdadeiramente virtuosas e sensíveis.

Deslumbrados pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa-fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projetos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Uma simples reflexão bastaria, contudo, para desabusar esta crédula e com passiva falange”
.

Daremos conta do que falta desta litania na próxima oportunidade, sem descurar o contraditório, muito de rigoroso e altamente documentado sobre o tráfico negreiro se tem publicado em muitas línguas, aqui se fará referência a trabalhos portugueses.

(continua)

Tráfico negreiro praticado pelos árabes
Tráfico negreiro no século XIX
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21965: Historiografia da presença portuguesa em África (254): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21629: Agenda cultural (765): Lançamento, em Alcácer do Sal, no sábado, dia 12,do livro de Isabel Castro Henriques, Os «Pretos do Sado»: História e memória de uma comunidade alentejana de origem Africana (Séculos XV-XX)

 





1, Convite da Câmara Municipal de Alcácer do Sal e das  Edições Colibri (, página do Facebook aqui,) para o lançamento do livro Os 'Pretos do Sado', da autoria de Isabel Castro Henriques, em Alcácer do Sal, na Biblioteca Municipal, Rua Rui Salema, nº 23, no próximo sábado, dia 12 de dezembro, às 10h30. (*)

Apresentação de Manuel Macaísta Malheiros, jurista, magistrado, natural de Álcácer do Sal, e nosso camarada, tendo feito uma comissão de serviço no TO da Guiné em 1966/68. (Uso de máscara obrigatório.)

FICHA TÉCNICA;

Título: Os «Pretos do Sado»
Autores: Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva 
ISBN: 9789896899967
Edição: 09-2020
Editor: Edições Colibri
Idioma: Português
Dimensões: 161 x 229 x 19 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 314
Tipo de Produto: Livro
 Preço de capa: 16€

SINOPSE:

Nos finais do século XIX, José Leite de Vasconcelos registava a presença de uma comunidade de origem africana instalada na região alentejana do Vale do rio Sado. Retomando a questão em 1920, Vasconcelos chamou a atenção para as múltiplas fórmulas que eram utilizadas para designar esses homens e mulheres de pele escura que seriam descendentes de africanos escravos ou livres, ali instalados há séculos, sem que se conhecesse a origem dessa instalação: Pretos do Sado, Carapinhas do Sado, Atravessadiços, Mulatos do Sado. (**)

Constituindo um grupo singular pela sua permanência secular e pela sua especificidade física no espaço alentejano, os «Pretos do Sado» definiam-se igualmente pelo desinteresse da comunidade científica perante a necessidade de esclarecer a sua existência histórica. Este estudo pretende dar a conhecer a história de homens e de mulheres oriundos do continente africano, trazidos como escravos e que foram instalados durante séculos no território do Vale do Sado, provavelmente a partir de finais do século XV.

Mas o espaço temporal deste trabalho estende-se através dos séculos seguintes, procurando nas dinâmicas económicas, sociais e políticas da história de Portugal, os elementos que permitem compreender a sua presença ligada a culturas extensivas como a do arroz a partir do século XVIII e a sua consolidação como comunidade estabelecida, afirmando uma identidade alentejana e portuguesa, que exclui hoje quaisquer marcas culturais significativas de um passado africano.

1º AUTOR: ISABEL CASTRO HENRIQUES

(i) nasceu em Lisboa em 1946;

(ii) licenciou-se o em História em 1974, na Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne;

(iii)  em 1993, doutorou-se em História de África na mesma universidade francesa, com uma tese consagrada ao estudo da Angola oitocentista, numa perspetiva de longa duração;

(iv)  Professora Associada com Agregação do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v)  introduziu os estudos de História de África em 1974, orientou teses de mestrado e doutoramento e ensinou durante quase 40 anos História de África, História do Colonialismo e História das Relações Afro-Portuguesas;

(vi)  desenvolve hoje a sua investigação histórica sobre África e sobre os Africanos no CEsA/ISEG-Universidade de Lisboa;

(vii) além de trabalhos científicos de natureza diversa, como projetos de investigação, programas museológicos, exposições, documentos fílmicos, colóquios e congressos, seminários, conferências, publicou dezenas de artigos e livros centrados nas temáticas históricas africanas.

Fonte: Adapt de portal Wook, com a devida vénia,

_______________


(**) Vd. postes de:

1 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)

1 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18275: Manuscrito(s) (Luís Graça) (137): aprendiz de ornitólogo ao km 71 da autoestrada da vida... Obrigado, amigos e camaradas, pelos "vivas" que me deram no passado dia 29...