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sábado, 5 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20207: (Ex)citações (359): Uma noite nos braços de Vénus, três semanas por conta de Mercúrio... Relembrando o fino humor do "alfero Cabral"...


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > "Cinco séculos de história te contemplam!", terá proclamado o "alfero Cabral", perante o anónimo e estupefacto fotógrafo...  Em tronco, nu, o "alfero Cabral", é o segundo a contar da esquerda para a direita, na segunda fila... De pé, e sem cachimbo...

A foto chegou clandestinamente à metrópole. E faz parte hoje do precioso álbum fotográfico do Jorge Cabral, ex-brilhante advogado e  melhor criminalista, reformado, depois que o senhorio lhe aumentou a renda  do escritório  de 400 para 6 mil euros... É uma das milhares de vítimas da "gentrificação" de Lisboa... O país, depois de perder o Império, está em vias de perder a cabeça, isto é, a capital do ex-Império...

Foto:  ©: Jorge Cabral  (2013). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


1. Em matérias como as "doenças sexualmente transmissíveis" (ou, como diria o nosso grande médico do séc. XVIII, Sanches Ribeiro, de Penamacor, "males de amores"), temos aqui, na Tabanca Grande, alguns catedráticos, do José Ferreira ao "alfero Cabral"... São peritos em falar de "esquentamentos" (sic), com elegância, elevação de espírito, competência, devoção,  imaginação, didatismo, profissionalismo e,  sobretudo, com muito fino humor, que é coisa que às vezes nos faz falta..., muita falta.

A propósito do tema, ainda hoje, volvido mais de meio século, do fim da guerra e da mobilização de um milhão de  homens para os vários de teatros de operações no longínquo ultramar, temos as mais diversas opiniões e reações dos ex-combatentes quando se fala dos "ditos cujos"... Convenhamos que, em tratando-se de maleitas nas "partes baixas",  não é de boa educação falar delas em público, para mais num blogue que é lido por toda a gente, lá em  casa, da avó ao neto (*).

Para amenizar as leituras neste dia de feriado (em que se comemora o fim de 700 anos da nossa gloriosa monarquia), nada como ir desencantar algumas das "estórias cabralianas" que, em tempos idos, alegraram as noites de tédio da Tabanca Grande, há dez anos atrás!... E eu proponho esta, as "Trompas de Falópio" que, traduzido em crioulo de Fá Mandinga e Missirá, queriam  dizer "Trombas do Lopes" (**)... 

O "alfero Cabral" e os seus rapazes do Pel Caç Nat 63, do Nanque ao Lopes,  são figuras impagáveis que já ficaram gravadas na memória dos últimos soldados do Império...



Estórias cabralianas: as Trombas do Lopes


por Jorge Cabral


O Amoroso Bando das Quatro (***) deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. 

Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse.

Só então o Alfero ficou preocupado. Ora se nos mandam agora numa operação! Que vergonha! Avançaremos de pernas abertas como se fossemos da Cavalaria no tempo dos cavalos?

Mas como é que a moléstia teria chegado aos Africanos? Mesmo sem poder contar com o investigador Nanque que continuava preso em Bambadinca, o Alfero acabou por descobrir. Reconstituída a noite do Amor, constatou que as damas se tinham ausentado durante meia hora para comer. Fora, então.

E quem? Óbvio suspeito, Preto Turbado, soldado Bijagó, de quem se dizia, que às vezes aliviava os maridos fulas do débito conjugal. Chamado, confessou. Naquela noite oferecera às visitantes a bianda, e à sobremesa... acontecera. Depois contagiara algumas das mulheres dos militares, as quais por sua vez, contaminaram os fidelíssimos maridos...

O assunto era grave. Que fazer perante aquela verdadeira pandemia? Como tratar as mulheres e ao mesmo tempo dissipar as dúvidas sobre o seu comportamento sexual?
Naquele tempo e para aquele Alfero, tudo era possível. Resolveu reunir todos os africanos, soldados, milícias e respectivas mulheres, proibindo os brancos de assistirem, com uma única excepção – o enfermeiro Alpiarça.

E a todos, pregou o mais absurdo discurso da sua vida. Ainda hoje se lembra dos olhos esbugalhados do Alpiarça... Falou de gonococos trazidos pelo vento, das infecções do útero e das trompas de Falópio... Tratamento imediato, frisou, e nada de mezinhas. Claro que perceberam muito pouco, mas ficou com a certeza que no futuro se protegeriam do vento Blenorrágico...

Na semana seguinte, encontrava-se no bar de oficiais em Bambadinca. Conversava e bebia o seu quarto uísque, quando o foram chamar para ir ao Posto de Socorros. Lá foi. Médico, Furriel e Cabo rodeavam um casal de Missirá, o milícia Suma Jau e a mulher. Não os percebiam. Eles queixavam-se das... “Trombas do Lopes”.

O Alfero ouviu e muito sério informou:
- É fula, quer dizer, esquentamento.

Parece que o Furriel apontou no seu caderno de sinónimos...

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20195: (Ex)citações (358): Fernando Calado, camarada de Bambadinca, gostei de ler o teu poste... Também eu escrevia cartas diárias, com muitas páginas, para a minha namorada... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


(***) Vd. poste de 24 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1696: Estórias cabralianas (21): O Amoroso Bando das Quatro em Missirá (Jorge Cabral)

domingo, 28 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19723: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004: repescando velhos postes (2): uma estória cabraliana, a da atribulada iniciação sexual do soldado Casto, apontador do morteiro 81, destacado em Missirá (Jorge Cabral)


Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > O "régulo" Jorge Cabral, sempre benditas entre as mulheres, aqui entre  as suas queridas bajudas mandingas...

Foto: © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. O "alfero Cabral" 
 e não "alfero" Cuca Cabral e muito menos "alfero" CuCabral... (*)  escreveu e publicou no nosso blogue dezenas e dezenas de "estórias cabralianas", deliciosas, de um humor, às vezes brejeiro, outras vezes negro, corrosivo, que nos fazia bem à alma... 

A maior parte são de antologia. É do melhor humor de caserna que temos publicado, e que é conseguido sem o recurso (fácil) ao palavrão. Não me lembro de ler um palavrão nas "estórias cabralianas".  E engane-se quem pensar, sem o conhecer, que ele era um refinado tuga colonialista, machista, racista e misógino... 

Em boa verdade, ele era um menino de coro, talvez mais perfeito e altruista que o outro menino de coro homónino. Havia até uma certa rivalidade entre os dois, ao ponto do "alfero Cabral" mandar recados  à "Maria Turra" e à rapaziada lá das bases do Morés, a dizer que "Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum"... O que é facto é que ele nunca sofreu retaliações por parte do outro, que estava (às vezes) em Conacri... (Dizem, mas não sei se é mentira ou verdade, que passava a vida a viajar, a pedir à porta das igrejas de todo o o mundo, de Estocolmo a Moscovo, de Roma a Pequim, para angariar fundos para os seus "combatentes da liberdade da Pátria" e as suas criancinhas).

Tenho pena que a sua (dele, "alfero Cabral") musa inspiradora tenha emigrado agora para o Facebook...Concorrência desleal, camaradas e amigos...

Já não sei quando é que publicámos a sua última "estória"... Sei que ele anda a preparar um livro, que "está quase pronto"... há anos. Mas falta o "imprimatur" das suas... fãs. Enfim, temos que pô-las a mexer...

Fomos, entretanto - para matar saudades, e para conhecimento dos "periquitos" da Tabanca Grande -, repescar esta "estória", que já tem barbas: 13 anos!... Foi assim anunciada em 4/7/2006:

(...) "Mais um 'short story' do meu amigo e camarada Jorge Cabral, hoje advogado e professor universitário, mas que conheci em Bambadinca, como Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Madinga e Missirá, 1969/71)"..


Esta "estória cabraliana" passa-se em Missirá, no regulado do Cuor, a norte do Rio Geba Estreito, no setor L1 (Bambadinca). Foi outro dos "bu...rakos" onde vivemos... (**)




2. A atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

por Jorge Cabral



À noite, após o jantar, nós os nove brancos do Destacamento [de Missirá], continuávamos à mesa, conversando. Falávamos de tudo, mas principalmente de sexo, mascarando a nossa inexperiência, com o relato de extraordinárias aventuras que assegurávamos ter vivido. O nosso motorista havia até desenhado num caderno as várias posições, indagando de cada um:

- E esta, já experimentaram?

Sobre o assunto, mantinha-se sempre calado um soldado do Pelotão de Morteiros, recém-chegado, o qual havíamos apelidado de Casto.

Natural de uma aldeia perdida na Serra da Estrela, foi ele que,  apresentado em Missirá, me pediu para ir ver, na Televisão, o jogo do Sporting nessa noite, à tasca da Muda, ali à esquina...

Filho do Sacristão, ou talvez do Padre, o Casto era virgem, e de uma inocência absoluta...

Temendo ser gozado pelos outros camaradas, expôs-me as suas dúvidas em privado. Lá lhe expliquei a mecânica da função e a anatomia genital feminina, preparando-o para a grande ocasião, que havia de chegar, quando fosse possível uma escapadela a Bafatá, o que veio a acontecer, na semana seguinte.

Abancados no [café do]Teófilo, apesar dos meus avisos, para ganhar coragem, bebeu três ou quatro whiskys, razão porque quando o depositei nos braços da Sulimato, fiquei desconfiado que não cumpriria... E assim sucedeu. Quase em lágrimas no regresso, confidenciou-me o falhanço.

Após tão frustrante incidente, caiu em desespero, convencendo-se que era, segundo dizia, calisto.

Como comandante do Destacamento, competia-me resolver o problema e foi o que tentei fazer.

Fui buscar a Sulimato, ofereci a minha própria cama, e preparei uma cerimónia que assinalasse condignamente a virilidade do Casto.

Assim que ele conseguisse, devíamos dar três morteiradas...

Ainda nem dez minutos haviam decorrido, porém, apareceu-me esbaforido.


– Que aconteceu ? – perguntei.
- Oh, meu Alferes, nada feito, a gaja tem que ir à Administração.

- À Administração?... Estás maluco!

Fui ter com ela, para saber o que se havia passado.


- Alfero, m´ ca tá podi, sta cu mostração - informou Sulimato.

Em 1998, fui a Paris, a um Congresso. Numa tarde, apanho um táxi. Logo que entro, o motorista olha para mim... e grita:


- Alferes Cabral, Alferes Cabral!... Eu sou o Casto!

Saímos do carro, abraçamo-nos,  engarrafando o trânsito. Fui jantar a casa dele, serviu-me whisky com Perrier para recordar. Conheci a mulher e os dois filhos adolescentes que,  segundo a mãe, saíram ao Pai, pois andavam atrás das pretas... Claro, confirmei que na Guiné não lhe escapou nenhuma.

Piscou-me o olho, o Casto, mas ninguém reparou... (***)

Jorge Cabral 


_____________

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16958: Estórias cabralianas (94): 1º Cabo Monteiro, pedicure: "Ó meu alferes, olhe-me só essas unhas dos pés, essas enxadas! Venha cá!"... (Jorge Cabral)

1. Estórias cabralianas (94) > 1º Cabo Monteiro, pedicure...

por Jorge Cabral

[, ex-alf mil art. cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969-1971]

Já é a segunda vez que o nosso editor me pergunta o que faz um Comandante de Destacamento.
– Olha, não sei… Não comanda, aguenta. Aliás, já te disse, que não é a função que faz o Homem, mas o Homem que faz a função…

Entre os meus militares metropolitanos, há o homem mais habilidoso que conheci, o Monteiro. Foi ele que construiu o forno e desmontou e montou o gerador. Ora uma vez, ainda em Fá, olhando as minhas unhas dos pés, chamou-me
– Oh, Meu Alferes, olhe-me essas enxadas! Venha cá!

E munido de uma enorme tesoura da cozinha, cortou-me as unhas…tarefa que acumulou durante toda a comissão. Foi louvado, claro, embora eu tenha omitido aquele mérito…

Jorge Cabral

P.S. O Monteiro já morreu. Imagino-o no Céu, de tesoura na mão à minha espera:
– Venha cá,  Meu Alferes, não se apresente assim a São Pedro…
____________

Nota do editor:

Último poste ds série > 8 de janeiro de 2017 >Guiné 61/74 - P16930: Estórias cabralianas (93): Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras também tinham Mãe!?! (Jorge Cabral)

(...) NI-OI, NI-OI, NI-OI… Continuamos Amigos e Cinéfilos, Dalila.Tu vês filmes, eu, entro neste, tragicomédia que nunca mais acaba…

Desta vez houve guerra, dois mortos em Salá, mesmo junto a um limoeiro. O milícia Demba pisou uma mina reforçada e desapareceu da cintura para baixo. Os gajos abriram fogo e o meu soldado Guiro de rajada lerpou um turra, de pistola à cinta.
- NI-OI, NI-OI,NI-OI… - berrava o turra. (...) 

domingo, 8 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16930: Estórias cabralianas (93): Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras também tinham Mãe!?! (Jorge Cabral)


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) > Ao centro, de pé, o alf mil art Jorge Cabral que, entre outros muitos interesses, também era cinéfilo..

Foto: © Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados.


1. A primeira mensagem do ano, do nosso "alfero Cabral"

Data: 6 de janeiro de 2017 às 19:26

Assunto: Estória

Ao fim de quase 50 anos, a minha Amiga Cinéfila, devolve-me as 23 cartas que lhe escrevi de Missirá. Eis uma, mas há mais...
ABRAÇO!



2. Estórias cabralianas (93): Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras também tinham Mãe!?

por Jorge Cabral

NI-OI, NI-OI, NI-OI… Continuamos Amigos e Cinéfilos, Dalila.Tu vês filmes, eu, entro neste, tragicomédia que nunca mais acaba…

Desta vez houve guerra, dois mortos em Salá, mesmo junto a um limoeiro. O milícia Demba pisou uma mina reforçada e desapareceu da cintura para baixo. Os gajos abriram fogo e o meu soldado Guiro de rajada lerpou um turra, de pistola à cinta. 

- NI-OI, NI-OI,NI-OI… - berrava o turra. 
- O que é que o gajo diz - perguntou o Cabo Gaspar.
- É Balanta, está a gritar pela mãe. 

Improvisada uma padiola, lá os levámos aos dois, lado a lado, o milícia Fula e o turra Balanta…
À noite ao jantar o ambiente era pesado. Eis quando, o Cabo Gaspar se interroga:
- Porra, meu Alferes, não sabia que os Turras, também tinham Mãe?!

(...) Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho. (...) 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16831: Estórias cabralianas (92): Natal de 1970 em Missirá...E os Três Reis Magos Foram Adorar o Menino Braima! (Jorge Cabral)




Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho (simulando tocar um instrumento tradicional,talvez um "nhanheiro"...) com  uma bajuda e o Amaral (sentado). [Segundo aoportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões étnico-linguísticas,  Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do Kora dos Mandingas.]

Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Estórias cabralianas (92) > Natal de 1970


por Jorge Cabral

[Foto à direita, o ex-alf mil art, cmdt, Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; jurista e professor universitário reformado; contador de estórias do antigamente e que, todos os anos,  pelo Natal,  nos surpreende com mais uma das suas jóias literárias; são "short stories", que já há muito mereciam estar editadas em papel; pode ser que haja por aí um Pai Natal, amigo da Tabanca Grande, que queira  dar uma boa  ajuda para o início de um "crowdfunding", permitindo em 2017 editar finalmente o tão desejado livrinho com as 100 estórias cabralianas que o alfero Cabral se comprometeu a escrever antes da decisão heróica de entrar, vestido de fato de amianto, no formo crematório, à procura dos Antepassados.]


Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
–  Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho. 

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
–  Quanto tempo esteve de molho?
 – Esqueci-me,  meu Alferes, mas o Pechincha, disse que na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra,  Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha… 

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
Alfero! Alfero! Já nasceu! É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?! 

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. Mas não trouxera só a viúva, mas também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de a Antepassada. Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus! 
– Desculpa,  Alfero! Tem que ser Braima! 

 E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o  Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima! 

 Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos,  um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem Antepassados… 

 Jorge Cabral

Lisboa, 7/12/2016




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 63 > c. 1970/71 > O "alfero Cabral" mais o seu pequeno amigo Malan. "Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu amigo Malan".


Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) / CCAÇ 12 (1969/71) > O fur mil at inf Arlando Roda, fotografado no presépio montado em Bambadinca, possivelmente no Natal de 1969, no primeiro ano da CCAÇ 12 (que, de julho de 1969 a agosto  de 1974, esteve ao serviço de 4 batalhões, sediados no setor L1:  BCAÇ 2852 (1968/70),  BART 2917 (1970/72), BART 3873 (1972/74) e BCAÇ 4616/73 (1974). O "alfero Cabral" é contemporâneo da "primeira geração" de graduados da CCAÇ 12.

Foto: © Arlindo Roda (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
______________

Nota do editor:

Ùltimos cinco postes da série > 

9 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar uma parturiente a Bambadinca.

Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...) 



22 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)


(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,  o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...)


3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar..,

Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)



29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)


18 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)



(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)



Outras estórias cabralianas de temática natalícia:


16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)

(...)  A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio.  Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres. (...)


18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)


(...) Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada, os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais. Dizia um:
– Na minha terra…

E acrescentava outro:
– A minha Mãe fazia… (...)



16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2354: Estórias cabralianas (29): A Festa do Corpinho ou... feliz o tuga entre as bajudas, mandingas e balantas (Jorge Cabral)

(...) Porque estamos no Natal, recordas o teu de 1969 e um ataque a Bissaque. Eu passei o meu em Fá, e dias antes, noite dentro, quando já o comemorava por antecipação, acorri a defender a Tabanca de Bissaque, guiado pelo Marinho.Este era um velho, seco e pequenino, guardião das instalações de Fá, desde os anos 50(...).

21 de Dezembro de 2007 >. Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)

(..) Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho (...).

13 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá


(...) Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.

– Alfero, Alfero, é Spínola! –  gritam os meus soldados (...).

sábado, 9 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)

Foto: © Jorge Cabral (2008).

Todos os direitos reservados
1. Mais uma "estória do alfero Cabral" que nos chegou hoje:


Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... 

por Jorge Cabral 

[, foto à direita, em Lisboa, na Sociedade de Geografia em 2008; ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71]


Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar
uma parturiente a Bambadinca.

Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação.  Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina.

A partir de então fui várias vezes chamado a intervir e sempre com sucesso. Não sei como esta minha competência foi conhecida aqui em Portugal, o certo é que há uns anos fui convidado para ser padrinho da Confraria das Parteiras. Convite que aceitei com muita honra.

Foto ©: Jorge Cabral (2016).
Todos os direitos reservados
Em Missirá exerci outras especialidades e até fui dentista... Quando cheguei ao Pelotão, existiam quase todas as etnias, Bijagós, Beafadas, Mandingas,  Papéis, Manjacos e um Balanta, além dos Fulas. Pouco a pouco foram transferindo os não Fulas, mas esqueceram-se do Albino, o Balanta.

Desarranchado com todos os Africanos, comia sempre sozinho, mas de vez em quando  apareciam os seus amigos de Fá Balanta e faziam grandes patuscadas...

Um dia surgiu um deles, com um queixal inflamado e o enfermeiro Pastilhas não sabia tratá-lo. Como habitualmente, recorreu ao Alfero. Pedi ao Albino que fosse buscar um alicate ao mecânico Pechincha e também uma garrafa de Constantino. O doente emborcou dois copázios e depois com toda a minha força extraí uma enorme dentola...

Nunca mais houve patuscada dos amigos do Albino, sem aparecer um paciente dentário. Creio que ele partilhava da anestesia.

Finalmente o Albino foi transferido e a minha auspiciosa carreira terminou... Não sei se há Confraria dos Dentistas... Ninguém me convidou... Nem dos Anestesistas...                                                                            

Jorge Cabral
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezenbro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)

(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,  o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...) 

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > "Cinco séculos de história te contemplam!", terá proclamado o alfero Cabral, perante o anónimo e estupefacto fotógrafo... A foto chegou clandestinamente à metrópole. E faz parte hoje do precioso álbum fotográfico do Jorge Cabral, advogado, criminalista, professor universitário reformado... Camaradas e amigos, esta foto vale ouro... (LG)

Foto ©: Jorge Cabral  (2013). Todos os direitos reservados. {Edição e legendagem: LG]

1. Mensagem de Jorge Cabral [ex-alf mil art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá. 1969/71]:


Data: 5 de dezembro de 2015 às 15:27

Assunto: NATAL


Luís Amigo! Vem aí o Natal. E,  como faço sempre, nesta época, envio este pequeno texto.ABRAÇO GRANDE! Jorge Cabral




2. Estórias cabrilianas (90) > NATAL


Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,

o Sitafá, o puto que vivia connosco,  interrogou-me:

– Alfero, o que é a Pátria?


Revi o velho Cais das Colunas,

o vendedor de castanhas no Campo Pequeno

e as belas raparigas que quase levitavam no Rossio à hora do cansaço,,,

– Sabes que dia é hoje, Sitafá? É Natal!... A Pátria é um Natal! E o Natal é uma Pátria!

J. Cabral    (**)

_________________

Notas do editor;

(*) Vd. poste de  18 de dezembro de  2011 >  Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)

(...) Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada, os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais.
Dizia um:
– Na minha terra…

E acrescentava outro:
– A minha Mãe fazia… (...)

(**) Último poste da série > 3 de setrembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

Foto de Jorge Cabral.
Cortesia de JERO
1. Mais um história, surpreendente, do "alfero" Cabral... Acabada de chegar...

Estórias cabralianas (89) > Os Filhos do Sonho

por Jorge Cabral


Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar..,

Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu: 
 O pai era o Alfero… 
 Mas quando e onde? 
 É que uma noite sonhei com ele…

O Alfero riu, mas o Régulo pareceu levar a sério e apontou mesmo outros casos, que tinham acontecido no passado…Felizmente eu estava a acabar a comissão, mas nunca esqueci o episódio... E quando começava um ano lectivo, avisava sempre as alunas:
– Nunca sonhem com o Professor…

Ultimamente, por via do Facebook, ganhei vários amigos empresários da Guiné, que me fazem propostas de negócios…Um quer construir uma discoteca em cada Tabanca, outro uma pista de gelo a norte de Finete, e outro ainda um viveiro de sardinhas no Mato Cão…Não me lembro das mães deles, mas certamente, quando eram bajudas,  sonharam com o Alfero…Trata-se de um gene cabraliano…

J. Cabral

[ex-alf mil at art, cmdt do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71]
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)


(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)

sábado, 29 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)

1. Mais uma estória do "alfero" Cabral que, na outra incarnação, foi alf mil art, Jorge Cabreal, de seu nome, cmdt do Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo comandado destacamentos  como  Fá Mandinga e Missirá, 1969/71... 

Especialista em direito penal, professor do ensino superior universitário, reformado, o "alfero" Cabar é  o notável, ternurento, inconfundível, inimitável,  talentoso, genial autor desta série, "estórias cabralianas", que há muito procuram a editora que ele merece...  Ninguém, como ele, para escrever uam história curta, "short story", de três ou quatro parágrafos, capaz de nos fazer sorrir, emocionar, amolecer, rir, chorar... Ele é o mestre do fino humor de caserna que se cultivava na Guiné, no tempo em que os tugas ainda andavam por lá a defender os pergaminhos dos seus avoengos de quinhentos...

É aqui, no nosso blogue, no blogue da Tabanca Grande, que ele tem os seus melhores (e maiores) leitores e fãs desde pelo menos 2006 ...  Estas "estórias do outro lado da guerra" (88,  com esta última!) já há muito que mereciam ser reunidas em livro... E, quando o forem, vamos fazer um "grande ronco"!... Até lá, boa saúde, bons encontros, alfero!.. (LG)

2. Estórias cabralianas (88) > A bebé de Missirá

por Jorge Cabral


Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas…

Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. 

Em fevereiro de 1970, com a chegada dos Comandos Africanos, a animação acabou, pois as famílias tiveram de sair, indo para uma pequena tabanca, que ficava muito perto.

Quando em setembro marchámos para Missirá,  a alegria foi geral. Cambámos o Geba em Bambadinca, com a ajuda de uma Lancha da Marinha,  atravessámos a pé a bolanha de Finete em algazarra e alcançámos o nosso destino. Às mulheres dos soldados acresciam agora as dos mílicias e da população civil. Não exagero se disser que nasciam pelo menos uns dez bebés por mês. Quando o parto estava a correr mal chamavam o Alfero, que algumas vezes e de noite, teve de levar mãe e filho para Bambadinca.

Como sabem não passo pelo Rossio, sem ir dar um dedo de conversa aos guineenses que por lá permanecem .Da última vez, encontrei o filho do chefe de tabanca de Fá Mandinga e quando perguntei a três mulheres grandes onde tinham nascido, uma avisou que eu de certo não conhecia .Ela havia nascido em Missirá, filha de um soldado chamado Daíro. E quando? Em março de 1971. 

Então não é que este velhote se comoveu ?!…E desandou, para não o verem chorar. Foi já na rua da Betesga, que se lembrou que não perguntara o nome à mulher. Mas para quê um nome? É a Bebé de Missirá.

Jorge Cabral 

 _____________ 


(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)




Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).

Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legenda; LG]
~

1. Mais uma história de encontros e desencontros, nas margens da vida... Ninguém como o "alfero Cabral",  na nossa Tabanca Grande, sabe evocar, com delicadeza, compaixão e empatia, estas figuras de gente humilde que eram os nossos camaradas, ditos "básicos",  remetidos quase sempre para funções de auxiliar de cozinheiro, e cujos nomes se nos varreram da memória... Todas as companhias tinham um ou mais soldados básicos (sic)... Muitos deles já levavam, para o TO da Guiné, uma cruz às costas: ou "nasceram tortos", ou  a curta vida de 20 anos já lhes era madrasta... Tenho a imagem de um, que foi comigo no Niassa;  "ia a ferros", preso, por ser desertor, segundo se dizia...

Jorge Cabral  foi alf mil art,  Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo comandado destacamentos  como  Fá Mandinga e Missirá, 1969/71;  especialista em direito penal , professor do ensino superior universitário, reformado, é  autor desta série, "estórias cabralianas", aque há muito procuram a editora que ele merece... Mas é aqui, no nosso blogue,. que ele tem os seus melhores (e maiores) leitores e fãs desde pelo menos 2006 ...  Estas "estórias do outro lado da guerra" (87,  com esta última!) já há muito que mereciam ser reunidas em livro... E, quando o forem, vamos fazer um "grande ronco"!... Até lá, boa saúde, bons encontros, alfero!

PS - Com a sua proverbial modéstia, está-me sempre a dizer, quando lhe abordo o tema: "Publicar  um livro, para quê e para quem ? Está tudo no blogue... Quem vai compar e ler ? Os meus leitores estão todos a prazo e não vão pagar para me reler... Só se vive e escreve uma vez, camarada"...


2. Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o Alferes Sá de Miranda e a Borboleta

por Jorge Cabral


Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava.

Segundo ele fora um tigre que lhe comera três dedos do pé esquerdo, num circo de Antequera. Contava que a mãe fugira de Lisboa com um palhaço e o levara ainda bebé, mas que quando fizera dezoito anos regressara para procurar o pai,  o qual nunca chegara a encontrar.

Incorporado,  nem a falta dos dedos o safou... Na altura tinha uma correspondente, que se intitulava Madrinha de Paz. Escrevia bem e às vezes naqueles serões eu citava pequenos trechos das cartas. Uma noite li, que ela escrevera:

”Hoje sonhei que era Borboleta. Mas não serei eu uma Borboleta que está a sonhar que é rapariga?”

A gaja é maluca, foi a opinião unânime. A partir de então, quem ía buscar o correio, vinha logo ter comigo, satisfeito:
– Meu Alferes, carta da Borboleta!.

A comissão acabou. Voltei e nunca mais me lembrei nem do Espanhol nem da Borboleta...

Porém há muitos anos, frequentei com alguma assiduidade, uma “Casa de Pouca Permanência”,  hoje Hostel, ali para os lados da Praça do Chile. Tudo lá era discreto, quase secreto. Tocava-se à campainha, subia-se e as portas da casa e do quarto já estavam abertas. Ninguém via a dama, mas o cavalheiro tinha que dar a cara, junto da recepcionista, uma velhota que não pedia qualquer identificação. Pagava-se e escrevia-se o nome num caderno já gasto. Por mim fui Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e até Luiz Vaz de Camões...

Ora uma vez, para minha surpresa, a recepcionista fora substituída. E adivinhem, por quem? Pelo Espanhol. Eu reconhecio-o e senti que ele também me reconheceu. Mas não dissémos nada. Paguei e assinei. Desta vez... Sá de Miranda. Ainda lá voltei mas a velha senhora retomara o seu posto.

Foi há um mês, descia a Almirante Reis, quando mesmo em frente à Igreja dos Anjos, deparei com o Espanhol:
– É o Alferes Cabral, não é? Ou devo chamar-lhe Alferes Sá de Miranda?
– Malandro... vamos almoçar!

À mesa, diante de um arroz de tomate com joaquinzinhos, conversámos. Lembrava-se bem de Missirá e perguntou logo:
– Então, e a Borboleta?

Foi no entanto parco em informações sobre como lhe correra a vida. Todas as vidas têm altos e baixos, mas deu para entender que a do Espanhol, só teve baixos. Regressado da Guiné, ainda foi a Antequera, mas o palhaço morrera e a mãe emigrara para a Argentina. Durante estes mais de quarenta anos, sonhou ir visitá–la. E ainda sonha...
–Ah! Alferes Cabral se eu ganhasse o euromilhões...

Adeus, Espanhol, mas olha não há duas sem três. Vais ver que o nosso próximo encontro será em Buenos Aires. E até vou levar uma Borboleta, a fingir de rapariga, para dançar o tango.

Jorge Cabral

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Nota do editor:

Último poste da série >  17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association (Jorge Cabral)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association) (Jorge Cabral)

1. Com um especial agradecimento à amiga Anabela Martins, que processou, em word, a versão original, manuscrita, de mais esta estória do alfero Cabral, pensada e alinhavada enquanto o autor se preparava, há dias, para ser submetido aos horrores de uma colonoscopia num daqueles sítios asséticos, de batas brancas, muitas luzes e aparelhos da guerra das estrelas,  num conceituado hospital da capital, onde um gajo, se se descuida, pode muito bem bater a bota ou lerpar, como se dizia em Missirá, antes de ter cantado o fado todo a que foi condenado)...

Quanto ao editor, ele muito se congratula com o regresso, ao mundo dos vivos, do nosso alfero Cabral que já não nos "mandava estória"  desde o último Natal de 2014!  E desta feita, mandou-nos duas, duas estórias!... Se não quisesse correr o risco de ser mal interpretado, até diria: "Bendita colonoscopia, alfero Cabral"!... (LG)

[Foto acima; o "alfero" Cabral não precisa de apresentações... Mas recorde-se que, noutra encarnação,  foi alf mil art, cmdt Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo destacdo em Fá Mandinga e Missirá, 1969/71;  hoje é jurista, professor do ensino superior  universitário, reformado; autor da série "estórias cabralianas" ... há muito à espera de um bom de um editor que as publique em suporte de papel!...]


2. Estórias cabralianas  (86) > Alferofilia

por Jorge Cabar

O Alfero nem oito dias tinha de Missirá, quando Binta, a mulher do Milícia, se meteu no seu quarto – abrigo, convidando-o a ...Ainda pensou resistir, mas... Na função era básica, mas os dotes pedagógicos do Alfero, surtiram efeito.

Era conhecida como a mulher do Milícia, mas não tinha marido, pois o repudiara, segundo os usos e costumes, por questões anatómicas, como se dizia na Tabanca.

Há uns anos, num dos nossos Encontros, conheci o último Comandante de Missirá. Pois não é, que me falou dela?! Também não resistiu... Aliás, no tempo dele chamavam-lhe a Alfera.

Quantos Alferes? Bem,  todos estiveram lá, mas foi para resistir ao PAIGC...

Nas minhas aulas, falava das perversões sexuais, as parafilias (pedofilia, zoolofilia, necrofilia...) e acrescentava sempre a Alferofilia. (**)

– Alferofilia, professor? Não consta do DSM... (1)

Pois não... Os psiquiatras americanos não a conhecem. Com esta estória, tenho a certeza, que a próxima actualização do Manual a vai referir.

Luís,  não te esqueças de a enviar à APA - American Psychiatric Association...
Jorge Cabral
_________________

(1) – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – American Psychiatric Association [Em português,  Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação de Psiquiatria Americana]
_____________

Notas do editor:


(**) "Parafilia (do grego παρά, para, "fora de", e φιλία, philia, "amor") é um padrão de comportamento sexual no qual, em geral, a fonte predominante de prazer não se encontra na cópula, mas em alguma outra atividade. São considerados também parafilias os padrões de comportamento em que o desvio se dá não no ato, mas no objeto do desejo sexual, ou seja, no tipo de parceiro, como, por exemplo, a efebofilia". (Fonte; Wikipédia, com a devida vénia...)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Tabanca de Iale Varela > Dezembro de 2010 > Crianças felupes.

Foto:  © Patrício Ribeiro (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem de ontem do Jorge Cabral...(e lá dentro uma estória de encantar, que só podia sair da "pena de ouro" do nosso "alfero Cabral"):


Com os votos de um Natal-Natal! E um GRANDE ABRAÇO! 
 J. Cabral


2. Estórias cabralianas > Uma floresta de árvores de Natal... Ou natalício apanhanço ?

por Jorge Cabral

[ex-alf mil art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; jurista, prof ensino sup univ, reformado]

A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio. 

Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres.

No dia 25, como fazia sempre de madrugada, fui atrás do meu abrigo, junto ao arame, aliviar a bexiga. Mas, mesmo antes de iniciar a função, olhei a mata. Olhei e vi todas as árvores enfeitadas com luzes e bolas cintilantes:
 –Venham ver! – gritei.

Toda a gente dormia... Só apareceu um puto, o Braima, neto da Binta, que ficou extasiado.

Ao almoço relatei a maravilha. Ninguém levou a sério.  Chamei o Braima, mas de nada serviu. Natalício apanhanço, comentou o Branquinho…

Quarenta e quatro anos passados, confirmo. Eram milhares de árvores de Natal.!

Já contei ao meu neto. Acreditou…

Jorge Cabral

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Nota do editor:

Últimos cinco  postes da série > 


(...) Um dia, ouvi, em Bambadinca, que ia haver um campeonato de futebol. Para além da CCaç 12 , entravam todos os Pelotões e Serviços da CCS. Inscrevi o Pel Caç Nat 63, embora não tivéssemos equipa, nem sequer bola, que me apressei a adquirir.

Chegado a Fá, ordenei treinos diários. Tarefa difícil, pois os meus soldados africanos nem as regras conheciam. Eram fortes e rápidos, mas pareciam especialistas em sarrafadas. Para tirar a bola ao adversário valia tudo. (...)



26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

(...) No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que, de jurídico, tinham muito pouco. (...)


2 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12238: Estórias cabralianas (82): Quando cabeças e rabos não são equivalentes, e nem sempre dois mais dois são igual a quatro: O Sitafá, as fracções e as sardinhas (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos. Um dia porém, o Pechincha conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. (...)


30 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

(...) Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas. Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar. (...)

13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte. (...)


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12556: Estórias cabralianas (84): Ganhámos! O Alfero meteu golo!... (Jorge Cabral)






Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > O 1º Cabo Negado e o Alfero treinando no relvado de Fá.


Foto: © Jorge Cabral (2014) . Todos os direitos reservados.  [Edição de L.G.]

1. Mensagem do Jorge Cabral [
, jurista, advogado de barra, docente universitário reformado, ex-alf mil at art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, setor L1, Bambadinca, 1969/71]:


Data: 7 de Janeiro de 2014 às 16:51

Assunto: Golo!

Amigo!

Na Guiné até o Alfero jogou futebol...
Abraço!
J.Cabral

Junto foto - O 1º Cabo Negado e o Alfero treinando no relvado de Fá.


2. Estórias cabralianas  > Ganhámos! O Alfero meteu golo.

por Jorge Cabral

Um dia, ouvi, em Bambadinca, que ia haver um campeonato de futebol. Para além da CCaç 12 , entravam todos os Pelotões e Serviços da CCS. Inscrevi o Pel Caç Nat 63, embora não tivéssemos equipa, nem sequer bola, que me apressei a adquirir.

Chegado a Fá, ordenei treinos diários. Tarefa difícil, pois os meus soldados africanos nem as regras conheciam. Eram fortes e rápidos, mas pareciam especialistas em sarrafadas. Para tirar a bola ao adversário valia tudo…

Iniciou-se o campeonato e nós sempre a perder. Resultados catastróficos…autênticas cabazadas.. Para apoio moral, levávamos uma enorme claque de miúdos que,  em alarido, aplaudiam tudo.

Não sei porque não fomos desclassificados e chegámos ao último jogo, contra o  Pelotão dos Morteiros. Com o jogo quase a terminar,  e quando já havíamos sofrido oito golos sem resposta, o guarda-redes Mamadú chutou a bola para o Demba que a tocou para o Alfero, e este, em manifesto fora de jogo, rematou. 
Gooooolo! Gooooolo!Gooooolo!

O árbitro, alferes,  hesitou e olhou para o rematador, que encolheu os ombros… Golo validado, claro. A algazarra foi tanta, que o Comandante do Batalhão saiu do seu gabinete, para ver o que se passava, tendo-se mostrado irritado.

Rapidamente regressámos a Fá. Nessa altura, o Pelotão tinha um Segundo Sargento que,  intrigado com a nossa ruidosa alegria, perguntou:
–  Então? Que aconteceu?
– Ganhámos! O Alfero meteu golo! –  gritou-lhe o Sambaro.

Jorge Cabral

________________

 Nota do editor:

Último poste da série > 26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

(...) No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que, de jurídico, tinham muito pouco. (...)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

1. Enviada em 25 do corrente, pelo nosso alfero Cabral [, foto à direita, quando ainda cadete, em Mafra], com a seguinte nota:

 Inteiramente verídica. Se publicares põe bolinha. Abração. 

 J. Cabral 

[ , jurista, advogado de barra, docente universitário reformado, ex-alf mil at art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, setor L1, Bambadinca, 1969/71; foto atual à esquerda]


2. Estórias cabralianas > Da Gata Catota à Tabanca da Queca

por Jorge Cabral


No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam  a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que,  de jurídico,  tinham muito pouco…

Claro que se sentia só, razão pela qual a aconselhei a arranjar um animal de estimação. D. Prazeres seguiu o conselho e comprou um gata, pedindo-me para ser o padrinho. Obrigado a dar-lhe o nome, escolhi…Catota.
– Que nome bonito!| – agradeceu.  – E que quer dizer?
– É chinês. Significa felpuda  – respondi convictamente,


A partir de então as nossas conversas incidiam quase sempre sobre a gatinha.
– Olá,  D. Prazeres como vai a sua Catota?
– Ah ! Doutor está tão bonita! E que pelo luzidio!
–  E come bem?
–  Oh! Sim! É cá uma comilona. Mas tem que a ver –   insistia sempre.

Tanto insistiu que lá fui, cumprindo a minha obrigação de padrinho. A gata estava enorme de gorda e devorou num ápice os seis carapaus que lhe levei como prenda.
– Tenha cuidado,  D. Prazeres. Ponha de vez em quando a Catota de dieta–  disse-lhe, enquanto afagava a bichana.

O tempo foi passando, dando-me ela,  diariamente, notícias da sua Catota… Foi uma época de muitos divórcios e a D.Prazeres, recomendou-me a todas as amigas.
– ~É um querido. Se vissem o carinho com que faz festinhas na Catota – afiançava.

Um dia porém, telefonou-me em pranto. Arranjara um namorado que lhe garantira que catota era um palavrão.
– Não deve saber chinês. O que é que ele faz? – perguntei.
–  É capitão. Também esteve na Guiné. Diz que quer falar consigo.

E falou mesmo. Em fúria…Ciúmes retroactivos talvez…
– Seu depravado! Precisava que lhe partisse a cara!
–  Mas porquê, senhor Capitão? Há um General Buceta, um Coronel Coito, um Sargento Piça e perto de Bambadinca, na Guiné, existia um Tabanca chamada Queca, que infelizmente nunca patrulhei…Porque não pode a adorável gatinha ter o poético nome de  Catota?

Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Qual o significado do vocábulo  catota ? É português de lei ou é chinês de contrabando ? Por que é que o indignado e apaixonado capitão da Guiné esteve quase a desafiar o alfero Cabral para um duelo de consequências imprevisíveis ?... 

Afinal, a palavra catota em português (do Brasil) é inocente, embora designe uma coisa pouco agradável ao tato e à vista, sinónimo de monco (#)... Em português de Portugal, monco quer dizer "Humor espesso, segregado pela mucosa do nariz", "muco, ranho, ranho".  Em sentido informal, "mucosidade nasal seca", "macaco"...

Na realidade, é preciso ter cuidado com a língua... Ou andar sempre munido de um bom dicionário!

(#) ca·to·ta (origem duvidosa)
substantivo feminino

[Brasil, Informal] Muco seco aderente às fossas nasais. = MONCO

"catota", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/catota [consultado em 26-11-2013].
__________

(...) Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos. Um dia porém, o Pechincha conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. (...)


sábado, 2 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12238: Estórias cabralianas (82): Quando cabeças e rabos não são equivalentes, e nem sempre dois mais dois são igual a quatro: O Sitafá, as fracções e as sardinhas (Jorge Cabral)



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > Um bando de estômagos esfomeadas e sedentos para saciar...


Foto: © Jorge Cabral (2006) . Todos os direitos reservados [Edição de L.G.]


1. O alfero Cabral está quase a fazer anos!... A seis corrente...

E em vez de ser eu a dar-lhe uma prenda, foi ele quem, antecipando-se, ma deu a mim e a todos os demais leitores, seus fãs. E sempre foi a assim, desde que o conheço: generoso, desmedido perdulário, capaz de dar o corpinho a uma bajuda e ficar de tanga [, como se comprova na foto  à direita, retirada do seu álbum de recordações da vida castrense].

E já que faz anos, espero bem que este não seja mais um annus horribilis,  que é coisa que ele deveras não merece de todo... E que no próximo, finalmente, ele (e com ele todos nós) possa  ver a famigerada  luz ao fundo do tonel (ou, melhor, da garrafa)... Sim, por que quem viveu em Finete e em Missirá, a medida de todas coisas só podia a ser a garrafa (ou o bidão): a garrafa de uísque com água de Vichy ou de Perrier (nos bares seletos de Bambadinca) ou com a  água do Geba em bidão  (nas tascas do Cuor)... E quem não bebeu a água do Geba, nunca poderá entender a vida, o conteúdo e o continente das estórias cabralianas.

Pela minha parte, já tenho um prefácio, escrito há quatro anos, à espera que saia o livro das Estórias Cabralianas, tão ou mais desejado que El-Rei Nosso Senhor Dom Sebastião... Percebe-se a ansiedade dos seus fãs: afinal, na Guiné,  Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum!... (LG)


2. Estórias cabralianas > O Sitafá, as Fracções e as Sardinhas
por Jorge Cabral

Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos.

Um dia porém, o Pechincha (**) conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. 

No Batalhão, lá nos abastecemos do essencial, tendo como de costume o Alfero matado a sede, no Bar dos Soldados, no Bar dos Sargentos e no Bar dos Oficiais… 

Pelo fim da tarde quando nos preparávamos para o regresso, apareceu o vaguemestre da CCS com uma oferta para o Alfero. Um petisco, seis sardinhas... Chegados a Missirá, o Alfero chamou o Sitafá (**), puto que vivia connosco desde Fá, entregou-lhe as sardinhas e disse-lhe:
–  Agora é que vou ver se aprendeste as fracções. Somos nove. Quero que todos comam a mesma quantidade. Depois de assadas, repartes  pelos pratos. Mas diz ao Teixeirinha (o cozinheiro), que as sardinhas são um aperitivo, uma entrada. Ele que coza batatas para comer com atum. 

Dito isto, o Alfero retirou-se para o seu abrigo, deitando-se na cama a ver se dissipava “alguns vapores”.  Nem cinco minutos passados, surgiu o Teixeirinha, pois não percebera o recado do Sitafá. 
– As sardinhas eram um aprovativo para comer na entrada? Mas em que entrada?

O Alfero explicou, frisando que deixasse o Sitafá distribuir as sardinhas. Depois adormeceu. Após duas horas de sono, dirigiu-se ao pequeno refeitório, não tendo  já encontrado ninguém, salvo o Sitafá a chorar;
–  Que aconteceu ? – perguntou o Alfero.
– Eu acertei, mas os Cabos começaram a discutir. Disseram que não podia ser,  que duas cabeças não eram iguais a duas barrigas, nem a dois rabos. Estragaram as contas, Alfero! (Ele dividira cada sardinha em três partes,  cabeça, barriga e rabo,  cabendo duas a cada um).
– Deixa lá,   Sitafá! Passaste a prova das fracções. Mas olha que eles também  tinham razão. Cabeças e rabos não são bem a mesma coisa…

Jorge Cabral
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de outubro de  2013 > Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

(...) Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas. Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar. (...) 

(**) Vd. postes de:

18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)

(...) Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada, os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais.
Dizia um:
– Na minha terra…

E acrescentava outro:
– A minha Mãe fazia… (...)


5  de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1816: Estórias cabralianas (23): Areia fina ou as conversas de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Conheci muito bem o Alferes que esteve em Missirá nos anos de 1970 e 1971. Diziam que estava apanhado, mas penso que não. Era mesmo assim. Quem com ele privou em Mafra e Vendas Novas certamente o recorda, declamando na Tapada:
No alto da Vela
Fui Sentinela
de coisa nenhuma
Quem hei-de guardar
Quem irei matar…(...)

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

1. Estórias cabralianas (81) > De ronda, na Tasca das Peidocas

por Jorge Cabral

[, foto à esquerda, em Sobreiro, Mafra, 1968,   ainda cadete, num jantar comemorativo do fim da recruta, na EPI- Escola Prática de Infantaria] (*)

Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas.

Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar.

Tantas eram as tarefas que não fazia nada... Quando me calhava em escala, era oficial de piquete ou oficial de ronda.

A força de piquete contava com doze soldados e sempre que soava o respectivo toque, tinha que os reunir para irem... descascar batatas. Gostava mais de estar de ronda. Saía do quartel, bem ataviado, de arreios e pistola à cinta, seguido por uma praça, para fiscalizar a postura e o comportamento dos militares. Corríamos os cafés junto ao quartel rapidamente, seguindo depois para os arrabaldes da vila, onde abundavam tascas com belos petiscos.

Entre as muitas tascas existentes, a melhor era a das Peidocas. Foi lá que conheci o Senhor Ladrão, homem muito considerado que só roubava em Lisboa. As Peidocas, eram mãe e duas filhas gémeas, Isménia e Leocádia, uns amores de raparigas. Tão estranho apelido fora herdado do pai e avô, um Cabo Artilheiro, que ganhara um desafio, realizado há muitos anos, no dia de Santa Bárbara, patrona da Artilharia. O desafio consistira..... pois, "ventosidades anais", curiosa terminologia que aprendi num Acordão do Tribunal da Relação de Évora, que sempre referi aos meus alunos:
- Expelir ventosidades anais em direcção de outrem consubstancia o crime de injúria!

E não é, que quando dava esta aula, me lembrava sempre das adoráveis raparigas Peidocas!...

Jorge Cabral
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte. (...)