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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20282: Controvérsias (141): o triângulo Jabicunda / Sonaco / Contuboel... Nunca foi atacado, porque tinha à volta uma série de zonas-tampão, Bafatá e a Geba, a sul e a oeste; Fajonquito, Sare Bacar, Pirada e Paunca, a norte e a leste... (Cherno Baldé)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 16 de Dezembro de 2009 > O João Graça, médico e músico, posando ao lado do dignitário Braima Sissé. Por cima deste, a foto emodulrada de Fodé Irama Sissé, um importante letrado e membro da confraria quadriyya [, islamismo sunita, seguido pela maior parte dos mandingas da Guiné; tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel; a outra confraria tidjanya, é seguida pela maior parte dos fulas].

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [, presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].(*)

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Jabicunda (?) > C. 1975/76 > Em primeiro plano, sentado, mais do lado esquerdo,  está Fodé Irama Sissé. Em segundo plano, de pé, à direita, O Braima Sissé está à direita, de chapéu vermelho, ainda jovem; atrás de Fodé Irama Sissé, está Sissau Sissé (já falecido) e, "vestido à civil", Malan Sissé que foi quem em Bissau mostrou a fotografia ao nosso amigo, e membro da nossa Tabanca Grande, o antropólogo Eduardo Costa Dias, e lhe me deixou tirar "fotografia da fotografia". Entre Malan e Braima está Arafan Cont+e, aluno de Irama. Fotografia de fotografia, de autor desconhecido, datada provavelmente de 1975/76. 

Foto (e legenda): © Eduardo Costa Dias (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhes > Zona leste > O triàngulo Jabicunda, Sonaco e Contuboel.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Cherno Baldé, Bissau
1. Comentário do nosso assessor para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé (Bissau), ao poste P20267 (**):

Caros amigos,

Acabo de regressar de uma viagem (missão de serviço) à zona Leste, mais precisamente ao Sector de Boé, tendo visitado as localidades de Canjadude, Tchetche (Ché-Ché), Dandum e Beli onde funcionam centros de saúde para a população.

Depois, no regresso e na região de Bafatá,  visitamos Contuboel, Cambaju e Fajonquito. Todas estas localidades estão hoje irreconhecíveis, uma sombra do que foram, sem falar das cidades de Gabu e Bafatá que estão numa situação lastimosa. Entregaram o ouro aos bandidos e não se podia esperar melhor.

Sobre o tema do presente Poste (*), só tenho a dizer aliás a reiterar o que já tinha dito em tempos: Contuboel nunca foi atacada e, na minha modesta opinião, porque não fazia parte dos planos da guerrilha e porque tanto Contuboel como Sonaco estavam rodeados de postos militares que serviam de dissuasão a qualquer ataque (Geba e os seus destacamentos, Fajonquito e seus destacamentos, Saré-Bacar, Paunca, Pirada, entre outros, a servir de tampão).



Mesmo Fajonquito, a 20 km da fronteira e situado perto da região do Oio, só foi atacada em 1964
entre os meses de Agosto e Setembro e, nessa altura, foi muito pressionado com ataques prolongados e sucessivos como nos testemunhou o Diário do soldado Incio Maria Góis´,  da CCaç 674 (1964/66), mas com a resistência da companhia e a colaboração da população e autoridades tradicionais que recrutaram milicias, a guerrilha contentou-se com emboscadas e flagelações aos postos avançados. Na verdade, já tinham conseguido assegurar o isolamento do corredor de Sitató e uma vasta zona de infiltração para o Centro do país e para o  Morés.

Uma observação que queria deixar ao Luis Graça é que, para quem vem de Bambadinca e Bafatá, o trajecto para Sonaco faz-se por estrada a partir da localidade de Djabicunda, antes de Contuboel. Embora muito próximos, a ligação entre as duas localidades fazia-se via terrestre passando por Djabicunda por causa do rio Geba.

Com um abraço amigo.

Cherno Baldé

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segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (167): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca. (*)

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Cherno Baldé, com data de 1 do corrente:

Conforme prometido, junto envio mais um texto fruto de algumas notas de leitura feitas à volta da figura mítica, entre os fulas, de Alfa Moló e a criação do reino de Fuladu. Neste texto faço sobressair a importante figura de El-Hadj Omar (Foutyou) Tall, que as crónicas sobre Firdu e sobre Fuladu conferem o papel primordial no levantamento da população fula contra os soninquês pagãos (mandingas) do reino de Gabu na segunda metade do séc. XIX.(*)

Espero que tenha interesse e possa ser publicado no nosso blogue da Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos, Cherno Baldé




2. Notas de leitura (**):

ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - Parte I

por Cherno Baldé


Em Junho de 2010, no poste P6661 (*), falando sobre os acontecimentos ocorridos no regulado de Sancorlã, nos períodos de antes e após independência (1903-1974), tinha escrito:

“Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana dos últimos séculos, nada acontecia por acaso. Tudo se fundamentava e se justificava, partindo de pressupostos de ordem mística que, aparentemente, estariam na génese de todos os acontecimentos, fossem eles bons ou maus, fossem de natureza política, económica ou social, sempre explicados a partir da conjunção de determinados factores de ordem mística, muitas vezes sob a forma de pactos com seres invisíveis ou simplesmente entre indivíduos ou grupo de pessoas e cujo (in)cumprimento poderia ser sancionado ou premiado a seu justo valor e no devido tempo ».

Estes, eram tempos em que não havia só um Deus, mas muitos deuses, não havia só uma crença, mas uma pluralidade delas, tempos em que a África ainda não se orientava por Meca ou pelo Vaticano, mas sim através dos deuses (Irãs) que habitavam ao seu lado e com os quais podiam falar na sua própria língua.

Os povos que habitavam no reino mandinga de Gabu, mesmo se chegaram em tempos diferenciados, com origens diversas e viviam sob condições sociais diferentes, tinham em comum o facto de partilharem o mesmo espaço sócio-económico e ambiental, obrigando-os, necessariamente, a uma interação económica e mestiçagem cultural constante. Nessas condições, deveras adversas, que os indivíduos fossem de puro sangue (se o termo faz algum sentido) ou que fossem de sangue mestiço ; que fossem homens livres ou de condição servil, as identidades não eram imutáveis, mas submetidas a uma permanente construção, como foi o caso da família de Alfa Moló Baldé.

[Recorde-se: (i) Gabu foi a capital do Império Kaabu (também conhecido por Ngabou ou N’Gabu), um reino Mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na chamada Senegâmbia, região que abarcava o nordeste da atual Guiné-Bissau, mas que se estendia até Casamança, no Senegal. 

(ii( Antes disso, Gabu, ou Kaabu, fora uma província do Império Mali que se tornara independente depois do declínio do império. 

(iii) No século XIX, os fulas estabeleceram a sua supremacia na região, pondo fim ao domínio de Kaabu. 

(iv) Durante o período colonial a cidade passou a ser designada por Nova Lamego, mas recuperou o seu nome tradicional após a independência do país." Fonte: Gabu (região). In: Wikipédia, com a devida vénia...]

(i) A chegada e a instalação de familias Fulas no território mandinga de Gabu

Segundo Abdarahmane Ngaindé, os mandingas do reino de Gabu enquanto guerreiros e esclavagistas, tinham construido fortins (tatas),) cobrindo este grande espaço territorial. Citando Michel Benoît, ele escreve :

 "Uma provincia, muitas vezes, não era mais que um tata instalado no meio da floresta que algumas famílias de pastores fulas percorriam com as suas manadas de gado bovino" (Benoît 1988, 510). 

Esta ocupação descontinua do território e a facilidade de instalação dos pastores fulas permitiam amplo aproveitamento do espaço para a criação itinerante dos seus animais.

Os especialistas da história do império de Gabu não são unânimes quanto à data exacta da chegada das primeiras vagas de famílias fulas nesta região de África Ocidental. As testemunhas, quando solicitadas, perdem-se sempre nas neblinas de longas histórias invocadas com muita emoção, mas pontuadas de muitas fantasias e imprecisões. As migrações, dizem, teriam sido feitas por escalas incessantes, facto que dissipa e impossibilita qualquer tentativa de descrever em detalhes a origem e percurso exacto desta ou daquela vaga de habitantes fulas.

Todavia, é sabido que as populações fulas de Fuladu são de origens diversas, podendo-se dinstinguir as originárias de Macina (actual Mali) ], como é o caso da família do autor destas linhas, o Cherno Baldé], de Bundu e Futa-Toro (actual Senegal), assim como do Futa-Djalon (Guiné-Conacri). A chegada desta última categoria é mais recente e data da segunda metade do séc. XIX.

Alguns autores, tais como Mamadu Mané ou Djibril Tamsir Niane, pensam que uma parte desta população se teria fixado nesses territórios com as primeiras vagas mandingas cuja chegada remonta aos séculos XIII/XIV, baseando-se num provérbio popular entre os mandingas segundo o qual "quando um mandinga chega de manhã, invariavelmente, o fula chega à tarde".

No entanto, pensam outros, é bem possível que tenham chegado um pouco mais tarde do Futa-Djalon na sequência das repressões que se seguiram à tomada de poder dos letrados muçulmanos, contra as populações pagãs a quando da revolução teocrática de 1725 (Ngaide, 1998).

De notar que estes movimentos de populações fulas para esta região foram muito semelhantes à digressão conduzida pelo célebre Coli Tenguella que chegou ao Futa-Toro (Senegal) em 1512 para fundar o primeiro reino fula dos Denyankês, tendo atravessado o Futa-Djalon e o actual território da Guiné-Bissau onde teria tido confrontos com os Biafadas, atravessando o rio Corubal (para os fulas o rio Corubal é Mayôh-Côli, isto é, rio Coli, em homenagem ao lendário chefe fula que teria abandonado o Mali, após a morte do pai «Tenguella Bâ », durante o reinado de Askia Mohamed),  o que teria favorecido o aumento da população fula, juntando-se aqueles que ja lá estavam.

A abundância de pastagens,  aliada à existência de extensas bacias hidrográficas, permitiram-lhes consolidar as suas bases económicas e sociais em todas as províncias que os acolheram, reforçadas pelos dons e oferendas aos príncipes e aos diferentes governadores (Farins) dos clãs mandingas reinantes naquelas províncias. Mais tarde e paulatinamente, eles se sedentarizam e se  passaram a dedicar-se, também, a uma agricultura pouco extensiva aos cuidados dos seus escravos ou servos, a fim de garantirem seu sustento.

Em conclusão, diz-nos Ngaidé Abdurahmane, poder-se-ia dizer que, desde finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, os fulas, chegados em vagas sucessivas, predominam em várias províncias de Gabu e as riquezas destas mesmas províncias dependiam, em larga medida, do número destes últimos. Isto é confirmado, diz-nos Ngaindé, pelo testemunho de Francis Moore [c. 1708 - c. 1756],  citado por Mamadou Mané. Este autor sublinha que « …sem estes estrangeiros (os fulas), os mandingas correriam o risco de passar fome, pois eles tiram deles todo o seu sustento » (F. Moore, 1978).

Este testemunho do inglês F. Moore, é datado do início do sec. XIX (1804). Um pouco mais tarde, na segunda metade do mesmo sêculo, o residente francês em Karabane (Casamansa), E. B. Bocandé (1812-1881), oferece-nos um testemunho similar ao afirmar:

«…é em proporção do número de Fulas estabelecidos no seu território que os chefes das aldeias mandingas devem a sua força, poder, a riqueza e a consideraçao de que beneficiam, porque aqueles o dão presentes de forma continua".

Ainda, segundo Abdarahmane, citando um outro testemunho inglês, Joye Bowman Hawkins « Os fulas eram tratados como sujeitos sob dominação e, como tal, deviam pagar uma taxa anual pela utilização das zonas de pastagens. Nessas condições, cada família era obrigada a pagar um determinado número de cabeças de gado. Os chefes mandingas davam-se ao luxo de escolher os melhores animais da manada, às vezes de forma abusiva, o que tornava as coisas cada vez mais insuportáveis na perspeciva dos fulas" (Bowman,  1981), para os quais aqueles animais não eram simples animais, mas considerados como membros da própria família.

E, é neste mesmo sentido que Mamadou Mané sublinha:  « Porque eram detentores das riquezas materiais (gado e produtos agrícolas como algodão e milho) os fulas eram constantemente abusados e explorados mais que todos os outros, pela aristocracia kaabunké" (Hawkins, 1981 et Quinn, 1971).

Estes testemunhos, entre muitos outros deixados por administradores e aventureiros europeus em África, permitem fazer-nos ver, para além dos abusos recorrentes e das suas consequências sociais, o papel fundamrental que detinham os fulas no reino mandinga de Gabu.

A acumulação de vexames e a situação económica e social no interior do reino no periodo após a abolição da escravatura, pelos ingleses, e o consequente declinio do comércio atlántico, vão estar na origem da revolta que vai derrubar os alicerces do reino e afastar os mandingas dos seus territorios de dominio tradicional.


(ii) Alfa Moló e o nascimento do reino de Fuladu

« Os primeiros anos do reino de Alfa Moló coincidem com a constituição do reino (1867-1881). Durante este período o povoamento fula se reforça e as populações ocupam zonas bem determinadas no antigo reino Gabunké, espalhando-se através do território recentemente 'libertado'. A sociedade fula implanta-se progressivamente e os diferentes elementos da sua organização económica e social se estabilizam. A secunda fase (1881-1903) coincide com o reino do seu filho, Mussa Moló. Este período é caracterizado por uma guerra fratricida que opõe Mussa ao seu tio Bacar Demba e de seguida ao seu irmão Dicori Cumba. Será um período dominado pela recrudescência da violência e das destruições humanas que acompanham-no" (Abdarahmane Ngaindé, 1998).

A juventude de Alfa Moló, diz-nos Abdarahmane citando De Roche, parece ter tido "um carácter particular" (Roche, 1985) na medida em que numerosas fontes de informação confirmam que ele foi educado pelo seu mestre, Samba Egué, que não tinha um filho varão , pelo que considerava aquele como seu filho legítimo a quem, de resto, tinha dado o seu apelido, facto que explica os privilégios que Alfa Moló vai beneficiar durante a sua juventude.

Com efeito, ele teria sido educado como um nobre, beneficiando de toda a atenção requerida e, em vez de se ocupar do gado, ele gostava de se entreter nas lides de cavalos, as idas à caça e ao maneio das armas, actividades reservadas, exclusivamente, aos homens corajosos e também livres. Mais tarde, ele será um caçador destemido, tendo à sua volta auxiliares (aprendizes) aos quais ele introduzia na arte do ofício. Naquela época, os caçadores eram muito considerados, gozando de um grande prestígio, fruto da sua coragem para enfrentar os diversos perigos visíveis e invisíveis escondidos na floresta africana.

Mas, apesar de tudo o que se pode dizer sobre Alfa Moló, que seja de origem nobre ou servil, de nada diminui a importância e o valor da acção que ele e seus companheiros vão realizar e a notoriedade que ele vai adquirir no periodo subsequente. Todavia, o nome de Alfa Moló Baldé só entra, verdadeiramente, em cena depois da passagem de El-Hadj Omar Tall (mais tarde imperador do Sudão), o Marabu que vai estar na origem do mito que envolve o surgimento do reino de Fuladu e os seus principais protagonistas.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19919: Historiografia da presença portuguesa em África (164): O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Cherno Baldé)


Mussá Moló (1845-1931), ao centro, sentado; de pé, à sua direita, Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, cabo de guerra deste último (in: Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate: An Official Handbook, London,  St. Bride's Press, 1906, 364 pp., il.) (*)

Cortesia de Armando Tavares da Silva / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Mensagem de Cherno Baldé [, Bissau, nosso colaborador permanente, nascido c. 1960, faz anos a 20 de junho,l tem cerca de 190 referêmcias no nosso blogue]: 

Data - Quinta-feira, 20/6/2019, 17h32 

Assunto - O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

Caros amigos Luis Graça e Carlos Vinhal, 

Venho pela presente agradecer a todos pela atenção e carinho de sempre e,  juntamente, envio um texto sobre o tardio e efémero reino de Fuladu (reino dos fulas em mandinga) que surgiu nos escombros do antigo reino mandinga de Kaabu ou Gaabu [, Gabu,] entre as bacias dos rios Gâmbia e Corubal. 

Aproveito, igualmente, agradecer o interessante trecho histórico sobre a deslocação do destemido ten Marques Geraldes até a Indornal, capital do reino de Fuladu e suas consequências (*). Da minha parte estão autorizados a publicar no Blogue, caso tenha interesse que o justifique, em atenção ao nosso ilustre historiador português, Armando Tavares da Silva. 

De Bissau, com saudações fraternais, Cherno Baldé. 


2. O REINO DE FULADU DE ALFA MOLÓ BALDÉ A MUSSÁ MOLÓ,  DA BACIA DO RIO GÂMBIA AO RIO CORUBAL (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

por Cherno Baldé

Alfa Moló nasceu no início do séc. XIX na aldeia de Sulabali, região de Firdu (situado entre as duas margens dos rios Gâmbia e Casamansa). O seu avô paterno, Fali Culibali, de origem Bâmbara (Mali), tinha sido comprado por uma família nobre de Fulas pastores,  de apelido «Baldé». 

Mais tarde, entre Malal Culibali,  um dos filhos de Fali Culibali,  e Gueladio Baldé, seu senhor, ambos caçadores, desenvolve-se uma amizade e sobretudo uma cumplicidade que vai permitir a fusão das duas famílias com a adopção pelo seu filho, Moló Egué (futuro Alfa Moló), do apelido dos seus senhores e mestres, eliminando, desta forma, os traços da sua origem servil. 

« Entre o Malal Culibali e Gueladjo Baldé, todos eles grandes caçadores, detentores da mística do ofício, existiam fortes laços de 'badinn’ya' (#),  espécie de pacto de irmandade, de entreajuda e de lealdade,  unindo os membros duma mesma familia mas de linhagens e castas sociais diferentes »,  diz-nos o historiador e especialista da história de Fuladu, o Senegalês Mouhamadou Moustafa Sow (3), Professor de História no Liceu Regional de Kolda, Senegal, apoiando-se nas crónicas e memórias por ele recolhidas na região do antigo Firdu (Gloria Alex) (2). 

Segundo os cronistas, Moló Egué Baldé, com idade de 15 anos, vai a Timbo (Futa-Djalon), para aprender (memorizar) o Alcorão e os rudimentos da religião, convertendo-se ao islamismo. No seu regresso, obtém a permissão de casar com Cumba Udé, filha de Gueladjo Baldé, e futura mãe de Mussá Moló. Entre os Fulacundas de Firdu, Moló Egué e Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) encabeçam a rebelião contra os mandingas pagãos de Gabu, a partir da floresta de Ndorna (Indornal,  na versão portuguesa), onde construiram um fortim (Tata, em mandinga), uma espécie de praça forte, a que, de forma provocatória, designam em mandinga « Mban Ulém – Eu recuso absolutamente…». 

Com a generalização da guerra, enviam um mensageiro ao chefe da Província (Diwal) de Labé, Alfa Ibrahima, a fim de pedir ajuda na sua luta contra os mandingas pagãos de Gabu (Gloria Alex). De 1840 à 1850, intensificam-se em todo o espaço do reino, guerras internas de resistência contra o domínio dos reis mandingas de Gabu. Na sequência, o Alto e o Médio Casamansa transformaram-se em lugares de combates violentos. 

Convertidos ao islamismo, os grupos fulas de Fuladu procuram aliar-se aos Almames de Timbo (Futa-Djalon) para combater os mandingas de Gabu. E, por sua vez, os mandingas islamizados de Gâmbia e do Baixo Casamansa aproveitam-se para se revoltar contra os seus irmãos pagãos de Gabu. Assim, das margens do rio Gâmbia e da Casamança até ao país Gaabunké na Guiné-Portuguesa, os últimos e derradeiros clãs Soninques do império, caiem sob os assaltos dos Fulacundas (Fuladu) e dos Futa-Fulas (Futa-Djalon) assim como dos Marabus mandingas, formando uma verdadeira Confederação de forças muçulmanas. 

Em meados de 1850, os reinos pagãos mandingas (Soninquês) do Médio Casamansa acabam de desaparecer, corridos pelos muçulmanos e os chefes pagãos foram substituídos por Marabus, animados pelo desejo da guerra santa contra os não muçulmanos. Bercolon ou Berecolon (Sankolla), praça forte Soninquê de Birassu (Braço,  na versão portuguesa), é assaltado e destruido em 1852. 

A partir de 1854, a França entra em cena na região e inicia o processo de colonização em direcção ao interior do Sudão Ocidental com o Faidherbe – Capitão e Governador do Senegal (1854/1864). Em 1867, os Confederados muçulmanos, liderados por Alfa Ibrahima de Labé, conseguem tomar Cansala, capital do império mandinga, onde morre Djanké Waly, o último Mansa de Gabu. 

Na iminência da sua derrota, Djanké Waly manda incendiar o paiol de pólvora e acontece o morticínio conhecido em mandinga por «Turuban », ou seja,  o fim da sementeira (dos mandingas de Gabu). Em 1873, a guerra termina com a derrota dos mandingas pagãos de Gabu. Alfa Moló e seus companheiros assinam o tratado de paz com o chefe mandinga, Fodé Madja. 

Entretanto, no campo dos fulacundas há um forte desentendimento sobre quem deve tomar as rédeas do poder no novo reino de Fuladu. Por um lado posiciona-se Moló Egué e grande parte dos seus seguidores saídos das fileiras dos « Jiaábhé » Fulas-Pretos e, por outro, o Samba Egué, da linhagem Fula-Forro,  que pretende ser o detentor da nobreza e logo da condição natural e necessária para chefiar o novo reino que acaba de nascer. 

A batalha entre as duas partes desentendidas terá lugar na localidade de Boguel e termina com a morte de Samba Egué e a ascenção fulgurante de Moló Egué, o filho do antigo cativo (Malal Culibali) que, doravante, assume a liderança do que poderia ser uma dupla revolução ou uma dupla rebelião no reino de Fuladu : a rebelião contra o domínio dos mandingas pagãos de Gabu e também a rebelião contra os seus antigos senhores, da linhagem Fula-Forro. 

Dali para a frente as coisas nunca serão como dantes em Fuladu, e esta nova situação política vai alterar o cenário das relações económicas e sociais até aí estabelecidas no seio das duas categorias de Fulacundas, convivendo no mesmo espaço territorial e que, mais tarde, serão reforçadas pela decisão dos europeus de acabar com todas as relações de servidão entre os seus sujeitos. Mas, a morte de Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) e a consagração de Moló Egué (filho de Maalal Culibali), visto na óptica dos cronistas da epopeia de Fuladugu (terra dos fulas , em mandinga), configura uma violação do pacto entre as duas linhagens da família « Baldé », com origens diferentes mas consagradas pelo ritual de irmandade e de lealdade «badinn’ya». 

Alfa Moló divide o seu reino em cinco Províncias, entregues aos seus homens de confiança: 

(i) os territórios de Monting (Bankuton) e Madina Pakane foram entregues a Maudê Baldé;
(ii) a Provincia de Manda Serakholé – Daba Baldé e os seus descendentes actuais vivem em Bantantoh Thierno (situado a Oeste de Kerewane);
(iii)  Sintcha Suruel – Alanso Cumbirry, seus descendentes actuais formam a familia de Moulaye Baldé (Bâba Moulaye) em Velingará;
(iv) Kandiaye (koukane) – Faran Djabu;
(v) Kaone – Coly Embaló, seus descendentes vivem em Pathiana, actual regiao de Gabu (N’gaide Abdarahmane). 

A partir de 1882, com Mussá Moló (1845-1931), as relações com o Futa-Djalon deterioram-se e a hostilidade é permanente, facto que será bem aproveitado pelos Franceses, presentes na sua colónia do Senegal, onde actua o Governador Faidherbe, decidido a ampliar e pacificar a colónia francesa do Senegal. 

Mussá Moló, para fazer face à ameaça dos Almames de Futa-Djalon que, de facto, o consideram como seu vassalo, vai aproximar-se dos Franceses com os quais vai assinar, em 1883 (3 de Novembro), um tratado de amizade e de protecção (N’gaide Abdarahmane). Com esse acordo, Mussá Moló pensa poder proteger-se contra as pretensões expansionistas de Futa-Djalon e ao mesmo tempo, poder conservar e ampliar o reino legado pelo seu pai. A França, por seu lado, está satisfeita, pois com o acordo vai poder construir o caminho de ferro há muito projectado do Este a Oeste, eliminar todas as contestações da parte da Grã-Bretanha e Portugal sobre aqueles territórios do Alto Casamansa e abrir assim o caminho de acesso ao Futa-Djalon, o seu próximo alvo, já à partir de Noroeste (N’gaide Abdarahmane). 

Alpha Yaya, que sucede ao seu pai (Alfa Ibrahima), vai protestar junto do Governador do Senegal e da Guiné-Francesa contra o que eles consideram de secessão do seu vassalo de Fuladu, mas os Franceses fazem orelhas moucas e preparam-se para atacar o Futa-Djalon com a ajuda de Mussá Moló.

Em 1894 (Abril), Mussá Moló parte em campanha e, com o apoio dos Franceses, derrota o rei de Pakisse, vassalo de Alpha Yaya, mas estes não perdem tempo e apertam o cerco, propondo ao Mussá Moló a assinatura de um novo tratado (1896), entre outros pontos, o pagamento de impostos (metade dos impostos de Fuladu deviam ser entregues a França) e a construção de um posto militar em Hamdalaye, capital do reino de Fuladu, situado entre a bacia do rio Gâmbia e o rio Casamansa. 

Mussá Moló que se aproximara dos Franceses para se libertar da dependência de Labé (Futa-Djalon), e extender o seu território, escolheria assim a melhor forma de perder a sua independência, pois os Franceses encontraram nele o meio para assegurar as suas ambições coloniais naquela zona de Africa (N’gaide Abdarahmane). Em 1903, Mussá Moló, sentindo o peso insuportável de tutela da França, foge para a Gâmbia, junto dos Ingleses, pensando encontrar um tutor que fosse menos exigente. Antes de partir, mandou queimar todas as aldeias a volta da sua capital e foi acompanhado por uma multidão de seguidores. 

Os Ingleses receberam-no muito apreensivos e foi autorizado a ficar sob custódia inglesa, com a condição de mandar embora a sua gente. Decididamente, Mussá Moló tardou muito a compreeender que o tempo dos monarcas africanos tinha chegado ao fim. Morreu em Kesserkunda, sua última residência, em 1931, com 85 anos. Como tinha acontecido com o seu pai, Mussá não será sepultado na sua terra natal e muito menos no território que tinham conquistado e, em partes opostas, o pai, Alfa Moló, enterrado na fronteira Sul, em Dandum (território da Guiné-Portuguesa) e o Mussá na fronteira Norte (território da Gâmbia) deixando o reino de Fuladu dividido em pequenos regulados independentes. 

Tendo durado apenas pouco mais de meio século (69 anos), o reino de Fuladu será um reino efémero (1867-1936). Aconteceu assim, dizem os cronistas, devido a violação de uma das partes (Alfa Moló), ao pacto de sangue, «Badinn’ya»,  celebrado entre Maalal Culibali (o servo) e Gueladjo Baldé (o senhor), aos quais unia uma verdadeira irmandade de sangue, para lá das condições e ditames sociais da época em que viviam.

Com a partida de Mussá Moló para a Gâmbia, a guerra e as razias que a acompanhavam tinham, finalmente, acabado no território de Fuladu e os chefes das províncias (Regulados), que muito o temiam pela sua crueldade e violência, acabaram por se sentir livres de celebrar alianças com os representantes locais das potências coloniais (França e Portugal), os novos senhores da situação que, com a Convenção Luso-francesa de 1886, tinham acabado de traçar as fronteiras que iriam separar os territorios das suas colónias. 
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Notas do autor:

# «Badinn’ya»:  termo mandinga que designa uma relação de irmandade outra que não consanguínia. As famílias e/ou pessoas ligadas por estas relações deviam considerar-se como irmãos de facto, com todas as obrigações e deveres de solidaredade e entreajuda a isso inerentes, e que nenhuma das partes podia violar sob pena de sofrer o castigo dos Irãs onde este ritual era celebrado. 

Referências bibliográficas : 

1. Ngaidé Abdarahmane : Le royaume Peul du Fuladu, de 1867 a 1936: L’Esclave, le Colon et le Marabout, 1997/98, Thèse de doctorat de troisième cycle en histoire, UCAD (Université Cheik Anta Diop, Faculté des Lettres et Science Humaines, Dakar, Sénégal. 

2. Gloria Lex : Le Dialecte Peul du Fouladou (Casamance, Sénégal): Thèse de doctorat en Linguistique et Phonétique. 

3. Mouhamadou Moustafa Sow, Professeur d’histoire, Lycée Régional de Kolda, Sénégal.

______________

(**) Último poste da série > 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (162): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)

quinta-feira, 21 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19608: (De)Caras (124): João Bacar Jaló (1929 -1971), ex-cap 'comando' graduado... Em Príame, c. 1965, na sua casa, ricamente decorada (João Sacôto / Cherno Baldé)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame > 1965 > Da esquerda para a direita Alf Gonçalves, João Bacar Jaló,  Alf Farinha, Mamadu,  milícia muito próximo do João Bacar,  e eu. As crianças eram duas das várias filhas do João que também tinha várias mulheres, como era hábito cultural entre os Fulas.



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: eu, à porta da casa de João Bacar Jaló, uma morança com um fabuloso mural de motivos geométricos, de inspiração. oriental. Um notável eexemplo da arte afro-islâmica. O que será feito hoje desta morança ?

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Comentários ao poste P19604 (*):


(i) Cherno Baldé

Caros amigos Luís e João Sacoto,

Muitos séculos antes da chegada dos Europeus a África, nesse caso, dos Portugueses em particular, a influência da cultura e da civilização oriental já tinha conquistado o seu espaço nas práticas e manifestações culturais dos africanus, em especial dos povos situados no interior da região do Sudão ocidental (Impérios ou grandes estados) com a expansao dos poderes imperiais que foram concomitantes à expansao da religião islâmica.

Quando vi as imagens do poste com as pinturas, a minha primeira reacção foi pensar que se tratava de uma mesquita, pois os motivos são claramente orientais e com ligações às grandes religiões monoteístas (Muçulmana e Judaica).

Entre os Fulas originários de Futa Djalon (Futa-Fulas dos apelidos Djaló, Baldé ou Bah e Barry) mais cultos e letrados, na altura, era muito frequente o embelezamento das suas residências com tais pinturas de motivos orientais (em que não entravam imagens de animais ou de pessoas banidos pela religião) e em que, também, entravam pequenos textos de filósofos Gregos e Arabes e até Salmos biblicos davidianos.

A estrela que se ve nas pinturas simboliza a estrela do rei David a quem os Fulas, por razões que não sei explicar, consideram um dos seus patriarcas da antiguidade,  facto que os faria primos afastados dos Judeus, mas isso ja é outra história que precisa ser investigada por especialistas.

O Português que melhor tentou desenvolver este tema sobre os Fulas e outras etnias da Guiné é o Landerset Simões, autor do livro "Babel Negra, Etnografia, Arte e Cultura dos Índigenas da Guiné", edição do autor, impresso pelas Oficinas do Comércio do Porto, 1935.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

PS - Para quem ainda não leu, recomendo vivamente, pois é dos melhores livros que eu li de um Português colonial, que viveu e trabalhou em principios do sec. XX.

(ii) João Sacôto

Caro Cherno Baldé:

Obrigado pelo esclarecimento. Pelo que dizes, se alguma dúvida tivesse quanto à casa referida, ela está completamente dissipada. Pois trata-se de uma casa em Priame, Catió, tabanca Fula, onde, tenho a certeza, não havia, naquela altura (1964/1965), naquele lugar, nenhuma mesquita.

Por outro lado o João Bacar Jaló era,  para além do mais, um homem rico e importante em Priame. É, portanto à porta dele que eu estou.e  eventualmente, até pode ter sido ele quem disparou a fotografia.

Um abraço, JS

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de março de  2019 > Guiné 61/74 - P19604: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VI: Em Príame, a tabanca do João Bacar Jaló (1929 - 1971)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19406: Agenda cultural (668): Absolutamente a não perder: RTP1, todas as 2ªs feiras, às 23h45, a partir de 14/1/2019, "As Rotas da Escravatura", em 4 episódios de 53 m cada... Do séc. VII até hoje, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global de seres humanos: mais de 20 milhões de africanos foram deportados, vendidos e submetidos à escravatura: Núbios, Fulas, Mandingas, Songais, Sossos, Akans, Iorubás, Igbos, Bacongos, Ajauas, Somalis...



Fotograma do vídeo de apresentação do documentação (1º episódio, RTP1, 14/1/2019) (com a devida  vénia...)


A história da escravatura do séc. VII até aos dias de hoje: documentário em 4 episódios, na RTP1




Esta é a história de um mundo onde o comércio de escravos desenhou os seus territórios e as suas próprias fronteiras. Um mundo onde a violência, a opressão e o lucro impuseram as suas rotas.
A história da escravatura não começou nos campos de algodão. É uma tragédia muito mais antiga que se desenrola desde os primórdios da Humanidade.

A partir do séc. VII e durante mais de mil anos, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global. Este sistema criminal moldou o nosso mundo e a nossa história. A amplitude deste tráfico é tal que, durante muito tempo, foi impossível explicar todos os seus mecanismos.

Nesta série documental volta-se a percorrer as rotas da escravatura, abordando as suas consequências na sociedade contemporânea.

Segundas, às 23h45, na RTP1, a partir de 14/1/2019

As Rotas da Escravatura

1º episódio > 476-1375: Para Além do Deserto,  14 jan 2019 [Pode ser revisto aqui no prazo de 7 dias]

Sinopse:

A partir do séc. VII e durante mais de mil anos, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global. Núbios, Fulas, Mandingas, Songais, Sossos, Akans, Iorubás, Igbos, Bacongos, Ajauas, Somalis... Mais de 20 milhões de africanos foram deportados, vendidos e submetidos à escravatura. Este sistema criminal moldou o nosso mundo e a nossa história. A amplitude deste tráfico é tal, que durante muito tempo foi impossível explicar todos os seus mecanismos.

2º episódio: 1375-1620: Por Todo o Ouro do Mundo, 22 jan 2019

Sinopse:

No século XIV, a Europa abre-se ao mundo e apercebe-se de que se encontra à margem da mais importante zona de trocas comerciais do planeta.

Este mapa, o "Atlas catalão", aguça o apetite de conquistas dos europeus. Mapa dos ventos, o Atlas guia os marinheiros como viajantes por terra firme. Mapa político faculta informações sobre as forças em presença. Por fim, como mapa económico, indica as rotas comerciais com destino a África e aos seus recursos.

Um pequeno reino é o primeiro a lançar-se ao assalto das costas africanas: Portugal. Na sua esteira, desenha-se uma nova rota da escravatura.

Sinopses dos próximos episódios (nº 3 e 4) ainda não disponível

Ficha Técnica

Título Original:  Les Routes de l´esclavage
Realização:  Daniel Cattier, Juan Gelas, Fanny Glissant
Produção: Compagnie des Phares et Balises, ARTE France, Kwassa Films, RTBF, LX Filmes, RTP, Inrap
Música: Jérôme Rebotier
Ano: 2017
Duração de cada episódio: 53 minutos

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19213: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (59): os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações, brochura da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológioco [ACAP], do QG / CCFAG - Parte I



Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto parcial do reordenamento com o fontenário à direita


Guiné > Região de Tombali > Cufar > Matofarroba > Tabanca > 1973 > Aspeto do reordenamento feito pelas NT. Matofarroba ficava/fica, a 2km/3km, a sul de Cufar.


Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Capa da brochura "Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações". Província da Guiné, Bissau: QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné]. Repartição AC/AP [, Assuntos Civis e Ação Psicológioco].  s/d.

Foto: © A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. Na sequência do poste P19196 (*), decidimos reproduzir o documento supracitado, que nos chegou, em tempos, pela mão dos nossos camaradas António Pimentel e A. Marques Lopes, e que já foi publicado, no nosso blogue em 2007 (**) , com revisão e fixação de texto do nosso coeditor Virgínio Briote.  

Vamos pedir ao A. Marques Lopes que nos confirme: (i) o número de páginas da brochura; e (ii) se o texto foi publicado na íntegra na altura. Uma ou outra palavra está ilegível.

Vamos pedir aos nossos leitores, amigos e camaradas da Guiné, que nos disponibilizem textos, fotografias e outros documentos sobre os reordenamentos populacionais. Tanto quanto sabemos, não há trabalhos académicos publicados sobre este tópico. Muitos de nós estiveram envolvidos, direta ou indiretamente, nos reordenamentos populacionais no TO da Guiné, nomeadamente no tempo do Com-Chefe e Governador Geral António Spínola (1968-1973).

Gostávamos de poder fazer um levantamento de todos os reordenamentos populacionais realizados ma Guiné, durante toda a guerra. E idenficar os nossos camaradas que integraram as equipas técnicas dos reordenamentos (graduados e praças) (, caso. por exemplo, do Luís R. Moreira) e que no BENG 447 planearam, coordenaram, apoiaram e/ou supervisionaram a construação de reordenamentos (caso,. pro exemplo, do Fernando Valente Magro).

Reprodução do documento [Revisão e fixação de texto: VB / LG].


INTRODUÇÃO (pag. 1)


1. O problema de fundo de toda a manobra de contra-subversão é a conquista das populações. Na Guiné os argumentos sob os quais o PAIGC construiu a sua máquina subversiva e os objectivos que se propõe atingir, estão sendo anulados ou apropriados pela política prosseguida pelo Governo da Província, que se baseia no desenvolvimento sócio-económico da população em tempo útil.

A estagnação sócio-económica que se verificou no passado, facilitou a tarefa inicial do PAIGC em ordem à mobilização subversiva. Contudo não foi ainda, e não é a curto prazo, possível a
o partido de Amílcar Cabral concretizar os programas de fomento que propagandeia, por não ter ainda a adesão da esmagadora maioria da população e por não ter estruturas e quadros que os ponham em prática, em tempo.

Por outro lado, em relação ao Governo da Província, este esforço de fomento, no campo da manobra contra-subversiva, apresenta alguns aspectos favoráveis ao êxito:

  • reduzidas dimensões do território da Guiné, permitindo a rápida deslocação e que, com meios pouco vultuosos e dentro das possibilidades da Nação, se desenvolva a manobra contra-subversiva pelo fomento; 
  • o baixo nível de vida dos países limítrofes, possibilitando que uma sensível melhoria provoque um contraste notável.


Como atrás foi dito, a conquista das populações pelo desenvolvimento
sócio-económico, terá de fazer-se em tempo útil, "rapidamente e em força", provocando o desiquilíbrio das populações indecisas e mesmo das controladas pelo IN, a favor da causa portuguesa. 

As populações da Guiné apresentam-se extremamente receptivas e sensíveis às realizações que se traduzam numa melhoria visível da situação da Província. Assim, a necessidade de aproveitar todos os meios disponíveis e a colaboração a que as Forças Armadas são chamadas a prestar.


2. Os reordenamentos são um meio de promoção, mesmo quando impostos pela evolução da manobra militar do IN. O desenvolvimento sócio-económico através deles, alcançar-se-á mais facilmente pela:

  • concentração populacional em menores espaços, permitindo auferir maiores benefícios colectivos;
  • maior economia de meios humanos e técnicos;
  • o controle mais eficaz e adequado das populações, subtraindo-as à acção subversiva e impedindo qualquer ajuda que, eventualmente, pudessem dar ao IN;
  • a defesa mais fácil, pela concentração, possibilitando a auto-defesa, a existência de destacamentos militares ou a integração do agregado em planos mais vastos de defesa.

PANORAMA DOS PRINCIPAIS GRUPOS ÉTNICOS (pag. 2-3)



1. Podemos considerar que existem dois grandes grupos humanos na Guiné: islamizados e animistas. No primeiro grupo incluiremos os Fulas, Mandingas, Beafadas, Saracolés, Sossos e Panjadincas e no segundo, Balantas, Manjacos, Papeis, Felupes, Baiotes, Brames, Banhua e Bijagós.


Existem, no entanto, pequenos núcleos híbridos, formados por etnias que utilizam práticas animistas e islâmicas e são, geralmente, sub-grupos em vias de se islamizarem. 
O factor religioso condiciona todo um comportamento social feito de usos, costumes e tradições ligadas às práticas religiosas. 

Assim, existem dentro de cada um dos sub-grupos elementos de afinidade e repulsão, como existem também, e mais vincadamente, entre os islamizados e os animistas. Interessará conhecer os principais elementos de cada grupo e, ainda, de algumas etnias principais, tomadas como padrão.


ISLAMIZADOS
  • forte sentimento tribal;
  • quase fanatismo religioso;
  • apreço pelo gado bovino;
  • fidelidade tradicional às autoridades;
  • respeito pela hierarquia religiosa;
  • dependência jurídica do Alcorão;
  • culto da hospitalidade;
  • espírito guerreiro;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida.

ANIMISTAS
  • sentimento tribal menos intenso;
  • sentimento religioso normal;
  • preconceito racial (em relação aos islamizados);
  • apego à família e à terra;
  • espírito guerreiro;
  • espírito de vingança;
  • desejo de cultura, assistência social e melhoria de vida;
  • coesão familiar;
  • respeito pela vida da mulher;
  • desejo de justiça.
Entre os islamizados existem também afinidades e repulsões, elementos que os caracterizam e que são suficientemente fortes para os opor e, simultaneamente, os unir. Usando como exemplo duas etnias islamizadas, as mais representativas quantitativa e qualitativamente, vamos verificar essas motivações.

FULAS
  • ódio ao mandinga;
  • apreço e dependência do gado bovino...
  • [ilegível].

MANDINGAS

  • ódio ao Fula; 
  • apreço de gado bovino só para fins ... [ilegível].


As afinidades entre os animistas são talvez mais flagrantes, visto que as religiões são diversificadas e não existe uma unidade sob o ponto de vista religioso que, como já se disse, condiciona o seu comportamento social. No entanto, existe similitude de práticas religiosas, o respeito pelos espíritos dos mortos e pelos símbolos que os representam (os Irãs), o respeito e aceitação espontânea e indiscutível das interpretações dos guardas de Irã que constituem uma espécie de sacerdotes do animismo.

Das etnias tomadas como exemplo, os Balantas e os Manjacos constituem as principais dentro do grupo animista. Os Balantas têm uma população de 150.000 habitantes e a totalidade do grupo constitui dois terços da população guineense. Os Felupes, sendo uma minoria étnica é, sem dúvida, extraordináriamente característica por ser uma das mais primitivas e, ainda, a mais antiga que se conhece como originária do território guineense.

BALANTAS
  • culto do roubo como prática social;
  • resistência à cultura europeia;
  • desrespeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse material pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
MANJACOS
  • aversão ao roubo;
  • desejo de toda a cultura;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse relativo pela família;
  • resistência ao cristianismo e islamismo.
FELUPES
  • não aceitação do roubo;
  • resistência à cultura europeia;
  • respeito pelas hierarquias verticais;
  • interesse pela família (influência da mulher);
  • permeabilidade ao cristianismo.
Existindo dentro de cada um dos grupos humanos- Islamizados e Animistas- motivações tão flagrantes, é lógico que entre ambos essas motivações aumentem, já que são duas sociedades distintas em presença, cada uma das quais mantendo em relação à outra uma certa animosidade. A compreensão dessas motivações, facilitará esta visão geral do mosaico étnico- religioso e humano- da Guiné Portuguesa.

ISLAMIZADOS
  • monoteístas;
  • forte sentimento religioso;
  • dependência jurídica do Alcorão.
ANIMISTAS
  • diferentes concepções da divindade;
  • relativo sentimento religioso;
  • independência jurídica de fórmulas religiosas.
(Continua)

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Notas do editor:


sexta-feira, 16 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18424: Agenda cultural (634): Comemoração dos 50 anos da Fundação da Comunidade Islâmica de Lisboa (1968-2018): Mesquita de Lisboa, Praça de Espanha, Lisboa, 16-17 de março: Convite e programa



1. Convite de Abdool Vakil,  líder da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL):

Vimos por este meio informar que no dia 16 de Março pf pelas 15h-30 terá lugar na Mesquita de Lisboa a celebração do Cinquentenário da constituição da Comunidade Islâmica que foi a primeira a reaparecer em Portugal e mesmo na Península Ibérica desde 1497 quando os Muçulmanos saíram destas paragens deixando uma rica herança cultural e artística que ajudou a fertilizar o período do Renascimento que se seguiu e que todos conhecemos. 

Vamos ter a presença de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Prof Doutor Marcelo Rebelo de Sousa; Sua Excelência o Presidente da Assembleia da República Dr Ferro Rodrigues; Sua Excelência o Secretário Geral das Nações Unidas, Eng António Guterres, Sua Excelência Primeiro Ministro Dr. António Costa,​ Sua Eminência o Núncio Apostólico, Dom Rino Passigato e Sua Eminência o Cardeal Patriarca, Dom Manuel Clemente. Também teremos a presença de Sua Eminência Sheikh Ahmed Mohamad El-Tayyeb da Universidade de Al-Azhar, e de outras altas personalidades.

Segue em anexo o Programa Provisório do Evento que decorrerá durante os dias 16 e 17, terminando com um jantar comemorativo com inscrição.
Respeitosos cumprimentos
Fraternalmente

Abdool Vakil 

2. História da CIL:

(...) "A Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) foi constituída em 1968, (Diário do Governo, nº 83, III Série, de 6 de Abril de 1968) por um grupo de jovens estudantes muçulmanos, oriundos das ex-colónias, que na altura se encontravam a estudar aqui em Portugal, nomeadamente em Lisboa.

Nessa época sentiram a necessidade de formarem uma associação, onde pudessem reunir-se e principalmente fazerem as suas orações em conjunto.

Mas, ainda antes da constituição da comunidade, mais precisamente em 1966, uma comissão composta por 10 elementos (5 muçulmanos e 5 católicos), solicita à Câmara Municipal um terreno para a construção de uma Mesquita (...).

No entanto, só após o 25 de Abril, mais precisamente em Setembro de 1977,  é que foi aprovada a proposta de cedência de um terreno situado na Avenida José Malhoa.

A cerimónia de lançamento da primeira pedra teve lugar em Janeiro de 1979 e a inauguração da 1ª fase da construção da Mesquita, a 29 de Março de 1985". (...)

Fonte: Comunidade Islâmica de Lisboa (com a devida vénia)
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Nota do editor:

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17801: Historiografia da presença portuguesa em África (93): a questão dos missionários católicos na Guiné (Armando Tavares da Silva, historiador)


Foto nº 1


Foto nº 1 A


Foto nº 1 B

Guiné < Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Meninos cristãos, em dia de primeira comunhão, ao tempo da CCS/BCAÇ 2952 (1968/70). Foto do álbum do ex-fur mil rebastecimentos José Carlos Lopes, grã-tabanqueiro nº 604.

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Texto enviado pelo nosso amigo Armando Tavares da Silva, com data de 12 de agosto último

Caro Luís Graça,
Segue um texto sobre Missionários na Guiné para publicação no blogue. Se assim o entender, e para facilidade de publicação, pode dividir o texto em duas partes.
Abraço e bom período de férias
Armando Tavares da Silva



Missionários na Guiné

por Armando Tavares da Silva

[Foto à direita: Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.). ]

Os últimos textos do blogue relativos à recente presença de padres missionários na Guiné (*) levam-me a discorrer um pouco sobre esta questão no período de 1878 a 1926, e como sobre ela se pronunciaram alguns governadores. (**)

Assim, em Outubro de 1879 (portanto no mesmo ano em que a Guiné se separou administrativamente de Cabo Verde), o secretário-geral, que ficara encarregado do governo, enquanto o governador Agostinho Coelho se encontrava em Lisboa, escreve que o arquipélago dos Bijagós mantém “as melhores relações com Bolama onde estes ainda muito selvagens indígenas vêm fazer o seu pequeno comércio”. E acrescenta que nesta parte da Guiné se houvesse “mais alguns missionários, teriam estes em que se ocupar”.

Na mesma altura, em Lisboa, Agostinho Coelho, mencionando as necessidades da província referia, entre outras, a falta de padres e de objectos de culto, e relativamente ao problema da instrução pública, requisitava mil exemplares dos compêndios que serviam nas escolas de instrução elementar do reino. Mais tarde, em Março de 1880, o mesmo governador volta a mencionar a falta de padres, notando que na província só havia três “para uma tão vasta colónia”.

O problema da falta de missionários irá manter-se pois, em Junho de 1891, o secretário-geral Viriato Passalagua, que ficara encarregado do governo depois do governador Rogério dos Santos se ter retirado para Lisboa, no rescaldo dos acontecimentos de Bissau desse ano, escrevia ao ministro renovando a proposta já feita no ano anterior para o aumento na província de padres missionários.

Alguns anos mais tarde, em Janeiro de 1900, um outro governador, Herculano da Cunha, renovando um pedido já feito no ano anterior, pede que na Guiné seja estabelecida uma missão, tendo em acréscimo funções de educação elementar e ensino de ofícios, acrescentando ainda o pedido de envio de três padres para as paróquias de Buba, Geba e Farim.

Júdice Biker, que governara a Guiné entre 1900 a 1903, num relatório de Outubro de 1903 para o ministro, onde se refere novamente ao problema da missionação, e civilização do gentio, menciona que seria de grande alcance o estabelecimento de missões, sobretudo no território da Costa de Baixo, habitada por manjacos, mas acrescentando, “contanto que os missionários fossem bons e portugueses”. Não se sabe o que Biker entendia por um “bom missionário”, mas introduz uma restrição, que era o facto de deverem ser portugueses, levando a pensar que os estrangeiros não satisfariam aquele requisito! Teria tido alguma experiência que o levava a assim pensar?

Júdice Biker excluía daquele propósito o território dos fulas e mandingas, pois seguiam a religião muçulmana, que lhes falava melhor aos sentidos e à sensualidade, e que dificilmente abraçariam a religião cristã que é toda espiritual.

Júdice Biker fora o governador que, devidamente autorizado, pela primeira vez procedera à cobrança do imposto de palhota, numa extensa digressão realizada a cavalo e apenas acompanhado pelo seu ajudante de campo, por um médico, por um padre, e por “uma pequena música formada de garotos e regida pelo padre”. Iniciada a 14 de Janeiro de 1903 em Buba, só terminaria a 2 de Março em Geba, depois de percorridos 275 quilómetros. 

Durante essa digressão, o padre, cuja presença deverá ter sido preciosa, dissera missa todas as manhãs, e procedera à realização de 5 baptizados. Terminada a digressão, Júdice Biker mostrara-se satisfeito pela forma como fora recebido nas várias povoações por onde passara e pernoitara, e pelo modo como as populações reagiram a essa cobrança, De facto, estas sempre tinham pago aos régulos um tributo sob o nome de dacha, mas que o governador considerava ser cobrado irregularmente segundo as simpatias dos régulos, não sendo igual para todos. Isso deixava agora de acontecer, recebendo os régulos 20% do imposto cobrado e os chefes de povoação 15%.

Não obstante a escassez de padres e missionários que os relatos anteriores testemunham, é certo que desde cedo encontramos a sua presença na Guiné. Na segunda expedição de Diogo Gomes, é o chefe mandinga Nomimansa que a seu pedido vem a receber o baptismo em 1458. Fora o mesmo chefe que dois anos antes atacara Diogo Gomes quando este, explorando a costa, procurava subir o rio Jumbas, antes de, rumando a sul, vir a atingir o rio de Gâmbia que percorreu em grande extensão. 

Um outro régulo que viria a receber o baptismo no decorrer de uma missa solene fora o régulo de Bolor, Jogane Angulenhor, em 1867. Este baptismo resultara de o régulo, o seu filho e os seus grandes terem solicitado que o governo lhes mandasse um padre para os baptizar, assim como uma pessoa que os curasse em suas doenças. Ao mesmo tempo pediam para que o governo português os tomasse sobre sua protecção, fizesse ali edificar uma igreja, e lhes “desse também um oficial com soldados para defenderem o seu território em caso de ser atacado pelos gentios limítrofes”. 

Um tal ataque vem efectivamente a acontecer dois anos mais tarde, quando o gentio coligado de Jufunco, Ossor e Egin arrasam Bolor. De notar que o régulo de Jufunco, Ampá-Cabú, assinara, em 13 de Agosto de 1869, um tratado pelo qual era cedido “de hoje para sempre todo o território de Jufunco à nação portuguesa, a quem desde muito reconheciam como legítima senhoria deste território”. Aquele ataque fora consequência de os habitantes de Bolor lhes impedirem o caminho de Cacheu, onde pretendiam ir negociar. Ataque este que iria ocasionar pouco depois o chamado “desastre de Bolor”.

A presença missionária portuguesa, traduzindo-se em boa parte na cristianização de muitos nativos, remonta, como se viu, ao século XV, e manifestar-se-ia sob várias formas daí para a frente, embora com meios insuficientes, do que muitos governadores se queixavam.
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sexta-feira, 7 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17215: (De) Caras (62): A lavadeira Miriam e o furriel Mamadu... Comentários: da misogenia ao levirato, da tragédia da infertilidade feminina ao sexo em tempo de guerra...



A Miriam e o furriel Mamadu


Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao último poste do Mário Fitas (*)


[Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô; foto atual, à direita]


(i) Valdemar Queiroz:

Belo texto.
Esquisita aquela passagem 'apesar de ser negra Mariam não era nada de desperdiçar' Não percebo por que é que por ser uma mulher negra tinha que ser desperdiçada?  Mas desperdiçada de quê? (Por cá dizemos o mesmo, mas não é por ser branca)
Ainda bem que naquela pequena tabanca (o Mamudu não sabia se fula ou mandinga ?) a população dominava perfeitamente o crioulo e até o Aqueba tocava kora, mas, estranhamente, nada sabia da infertilidade das mulheres.
Venham mais textos
Valdemar Queiroz

5 de abril de 2017 às 18:46

(ii)  Tabanca Grande:

Mário, é um texto "corajoso", em que te expões, dás a cara... Concordo com o Valdemar, é um pouco "infeliz" a tua observação: "apesar de ser negra, Miriam não era nada de desperdiçar"... Tal como aquela outra, mais à frente: "ao fim de quinze dias na Guiné, as negras começam a ficar brancas”...

Bom, a Miriam é uma grande mulher e se ela foi tua lavadeira e amante, foste um tuga, além de "balente", com sorte na guerra e nos amores... Tiro-lhe o quico, a ela e ao Mamadu!

O teu texto é prosa e da boa. É literatura, é ficção, memso com um fundo autobiográfico. E o romancista, o novelista, o contista, não tem que ser "politicamente correto"!... Hoje temos dificuldade em abordar, com frontalidade, as questões de género...

Muitos de nós, na época, "pensavam" o mesmo... De resto, a misogenia (e o racismo) está ainda bem presente em muitos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa... Aqui vai uma mão chão deles, selecionados por mim:

"A mulher e a mula o pau as cura";

"A raposa tem sete manhas e a mulher a manha de sete raposas";

"Até aos vinte, evita a mulher; depois dos quarenta, foge dela";

"Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca";

"Da cintura para baixo não há mulher feia";

"De má mulher te guarda e da boa não fies nada" (Séc. XVI);

"Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";

"Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher";

"Dia de Santo André, quem não tem porcos mata a mulher";

"Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…";

"Frade e mulher - duas garras do diabo";

"Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";

"Hábito de frade e saia de mulher chega onde quer";

"Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da mulher por todos os lados";

"Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina" (Séc.XVI);

"Mulher beata, mulher velhaca";

"Mulher doente, mulher para sempre";

"Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira";

"Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer";

"Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras";

"O homem deve cheirar a pólvora e a mulher a incenso";

"Para perder a mulher e um tostão, a maior perda é a do dinheiro";

"Para se encontrar o Diabo não se precisa sair de casa";

"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho";

"Vaca triste e pançuda não presta e não muda".

Fonte: Graça (2000) -

http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos76.html

Já quanto à Miriam ter sido "herdada" pelo velho sargento de milícias Aqueba Baldé, por morte do marido, temos que ter alguma "cuidado" com a palavra... O nosso Cherno Baldé é capaz de te vir dizer que a lei islâmica proibe que uma mulher seja "herdada"... Mas uma coisa é a lei e outra a prática social dos fulas, há meio século atrás...

Em todo o caso estamos perante um caso de levirato, que remonta ao antigo Testamento: é um tipo de casamento no qual o irmão de um falecido é obrigado a casar com a viúva de seu irmão, e a viúva é obrigada a casar com o irmão do seu falecido marido.

O casamento levirao foi (e continua a ser) praticado por sociedades com uma forte estrutura tribal e clânica em que o casamento fora do clã (exogamia) era proibido. A prática é semelhante à "herança" da viúva, em que os parentes do falecido marido podem decidir com quem a viúva pode casar.

O termo deriva do latim "levir", o "irmão do marido".

5 de abril de 2017 às 20:06
 

(iii) Tabanca Grande: 

"Jarama" ou "djarama" em fula quer dizer obrigado...

O que é que o velho sargento de milícias queria dizer com a frase:
-Jaramááááá… furiel Mamadu qui na bai na mato e cá tem medo, Jaramááááá!...

Mário, levantas outra questão interessante, e aqui pouco abordada, o uso de "mezinhas" contra bala do inimigo... É interessante a tua descrição do ritual a que o furriel Mamadu foi submetido, com o propósito de "fechar o corpo" contra as balas... Era uma prática "animista", corrente na Guiné... Toda a gente usava "amuletos", tanto os cristãos, como os muçulmanos como os animistas, a começar pelo 'Nino' Vieira... E o pobre do Amílcar Cabral, que combatia a prática "irracional" dos amuletos, também devia usá-los... Se calhar as balas da Kalash do "traidor" Inocêncio Kano não lhe teriam entrado no corpo, na noite de 20 de janeiro de 1973...

5 de abril de 2017 às 20:46

(iv)  Tabanca Grande

O que diz a Bíblia, Antigo Testamento, sobre o levirato:

Deuterónimo, 25: 5-10

5. Se alguns irmãos habitarem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a mulher do defunto não se casará fora com um estranho: seu cunhado a desposará e se aproximará dela, observando o costume do levirato.

6.Ao primeiro filho que ela tiver se porá o nome do irmão morto, a fim de que o seu nome não se extinga em Israel.

7.Porém, se lhe repugnar receber a mulher do seu irmão, essa mulher irá ter com os anciães à porta da cidade e lhes dirá: meu cunhado recusa perpetuar o nome de seu irmão em Israel e não quer observar o costume do levirato, recebendo-me por mulher.

8.Eles o farão logo comparecer e o interrogarão. Se persistir em declarar que não a quer desposar,

9.sua cunhada se aproximará dele em presença dos anciães, tirar-lhe-á a sandália do pé e lhe cuspirá no rosto, dizendo: eis o que se faz ao homem que recusa levantar a casa de seu irmão!

10.E a família desse homem se chamará em Israel a família do descalçado."

Deuteronômio, 25 - Bíblia Católica Online

Leia mais em: http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/deuteronomio/25/

5 de abril de 2017 às 20:57

(v)  Tabanca Grande:

Mário, a tua "Miriam" dá... pano para mangas!... Levantas outra questão que é uma tragédia em África, a da infertilidade "feminina"...

A cultura africana, e nomeadamente subsariana, impõe aos casais uma prole numerosa. Os filhos são a principal riqueza de um homem. E o papel da mulher é a reprodução. A mulher infértil (... não há homens infertéis!) é vítima de discriminação, estigmatizados, marginalização social, rejeição. Sem um filho biológico, a mulher cai facilmente no círculo vicioso da pobreza e da marginalização... Na África subsariana, a proporção dos casais inférteis é muito alta (quase um terço dos indivíduos em idade fértil, segundo estima da OMS - Organização Mundial de Saúde.

Miriam, provavelmente, também sentia culpa e vergonha por não ter filhos... E desejo de os ter, mesmo que fosse um "filho do vento"... Mal sabia ela que os não podia ter...

Mário, é comovente o desfecho da história:

(...) Regresso junto ao pântano, fizeram conversa giro com aquele como fundo. O furriel esquecendo o carregamento e camaradas sentiu-se na obrigação de partilhar alguma coisa com aquela mulher-criança. O corpo de Miriam estremeceu, sentiu algo de novo que nunca tinha conhecido e a lavadeira chorou. As causas ninguém as saberá. No espírito e corpo Miriam nunca mais esqueceria aquele momento em que não houve cor, raça ou fêmea, mas simplesmente foi considerada mulher a corpo inteiro, a quem a sua própria crença e raça tinham castrado, retirando-lhe parte desse estatuto de um ser livre. E acreditou que teria sido o momento do seu sonho. Pelo contrário o militar sentiu-se safado e triste por utilizar os seus instintos brincando com os sentimentos de um ser humano.

Perdoa, mulher negra, mas o teu sonho não será realizado nem por branco safado nem por outro homem qualquer. Serás eternamente uma flor que não transformará a sua polinização em fruto. (...) (**)

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Notas do editor: