Mostrar mensagens com a etiqueta minas e armadilhas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta minas e armadilhas. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24069: Blogues da nossa blogosfera (178): Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/74), blogue criado por Manuel Seleiro, ex-1º cabo caçador, DFA, natural de Serpa - Parte II: O fornilho que podia ter acabado em tragédia...



Guiné > Região de Cacheu > S.Domingos > 1969 > Equipa de minas e rmadilhas; CCAV Conpanhia 2539 (1969/71) e Pel Caç Nat 60 (1968/74). A pousar para a fotografia. Num dos raros momentos de descontração. Na foto estão alguns dos elementos do Pel Caç Nat 60,  dois elementos do Pel Daimler e, em primeiro plano,  o alf mil Paiva,  da CCAV 2539, mais o 1º cabo Seleiro (caçador), do Pel Caç Nat 60.


Guiné > Região de Cacheu > S. Domingos > 1969 >  CCAV  2539 e Pel Caç Nat 60 > Explosão controlada pela equipa de minas e armadilhas.


Guiné > Região de Cacheu > Ingoré > 1968 > Pel Caç Nat 60 > 3ª secção > Ao centro, na 2ª fila, o 1º cabo Seleiro (que foi ferido gravemente, em 13 de Março de 1970, juntamente com o alf mil  Hugo Guerra, quando tentavam levantar uma mina: um das muitas histórias de antologia que temos publicado no nosso blogue: ambos ficaram DFA)

Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mais um poste do blogue Pel Caç Nat 60, Guiné, 68/74, que é editado pelo ex-1º cabo caçador Manuel Seleiro, DFA, natural de Serpa, a viver em Cascais (e a quem já convidámos para integrar a Tabanca Grande)... Reprodução com a devida vénia (*):

8 de outubro de 2010 > Pel Caç Nat 60 Guiné - 68/74 - P84: Podia resultar em (tragédia...)

Podia ter resultado em tragédia a montagem de um fornilho  no início da picada S. Domingos / Senegal. Foram necessárias três longas horas.

O fornilho tinha 5 metros de cumprimento, as cargas estavam com intervalos de dois metros . Ocupavam os dois lados da picada . O total de explosivos: 20 cargas de 500 gramas de TNT, duas granadas para armadilhas …

Foi aberto um buraco na picada de um lado e do outro com as seguintes dimensões: 40 por 20, as granadas,foram colocadas na horizontal e encaixadas nas paredes do buraco, onde foi introduzida uma pequena ripa de madeira, que estava colocada nas duas argolas das granadas 

O mais difícil ía começar agora… Era retirar as cavilhas de segurança ! A seguir era só fazer a camuflagem do local do fornilho. E depois levantar a segurança do pessoal .

Já com todo o mundo à distância, era o momento de eu retirar… E fazer uma última inspeção ao local do fornilho...  E depois retirar . 

No momento em que dei o primeiro passo fiquei sem pinga de sangue… Tinha colocado o pé em cima do fornilho onde estavam as duas granadas, foram momentos dramáticos…

Todo o pessoal olhava para mim ! Já se deram conta de que o fornilho não tinha sido acionado ?!

Depois foi tudo uma questão de tempo, e tirar o pé de dentro do buraco .

PS - Ah! Já me esquecia, foram utilizados 20 detonadores e vários metros de cordão detonante.

1.º Cabo Manuel Seleiro (Caçador), DFA
Pel Caç Nat 60, Guiné 68/70

[Revisão / Fixação de texto: LG ]
 ___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 15 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24067: Blogues da nossa blogosfera (177): Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/74), blogue criado por Manuel Seleiro, ex-1º cabo caçador, DFA, natural de Serpa - Parte I: Histórias de minas que marcaram corpos e almas...

Guiné 61/74 - P24067: Blogues da nossa blogosfera (177): Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/74), blogue criado por Manuel Seleiro, ex-1º cabo caçador, DFA, natural de Serpa - Parte I: Histórias de minas que marcaram corpos e almas...



Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Caç Nat 60 (1968/70) > > Estrada São Domingos - Susana - Varela >  Nhambalã > 13 de novembro de 1969 >  O 1º cabo caçador Manuel Saleiro, que era o "sapador" do pelotão, aqui levantando uma mina anticarro... Foi desativada sem problemas... Mas a 30 metros havia outra... 


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel  Caç Nat 60 (1968/70) >  Estrada São Domingos - Susana - Varela > Nhambalã > 13 de novembro de 1969  > O alf mil Nelson Gonçalves, cmdt do Pelotão, e o 1º cabo Manuel Seleiro, junto da primeira mina A/C. 


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Caç Nat 60 (1968/70) > E
strada São Domingos - Susana - Varela >  Nhambalã >  13 de novembro de 1969 > O 1º cabo Manuel Seleiro, que fazia parte da equipa de minas e armadilhas


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Caç Nat 60 (1968/70) >Estrada São Domingos - Susana - Varela  >    Nhambalã > 13 de novembro de 1969 > Este é o buraco provocado pela segunda  mina anticarro, e o estado em que ficou a viatura onde seguia o alf mil Gonçalves.


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Caç Nat 60 (1968/70) > S/d > S/l > Legenda lacónica: equipa de minas e armadilhas... O Manuel Seleiro pode ser o primeiro do lado direito, em primeiro plano.

Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Os créditos fotográficos das fotos de 13/11/1969 devem ser atribuídos ao fur mil Moreira, que vive hoje em Riba D' Ave. Ele foi o fotógrafo que estava lá, nesse dia fatídico de 13/11/1969. Em Nhambalã (n0me de uma localidade no setor de São Domingos). No blogue do Pel Caç Nat 60 as estão em formato reduzido, sem edição.



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Susana (1953) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Susana e Nhambalã, na estrada de São Domingos-Susana-Varela

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Não é frequente encontrar-se, na Net, uma página ou um blogue dedicado a um Pelotão de Caçadores Nativos.  Uma agradável surpresa é o https://pelcac60guine.blogspot.com/ (Guiné. Pel Caç Nat 60). 

O criador e administrador do blogue é o 1º cabo Manuel Seleiro, DFA, natural de Serpa, a viver em Cascais,  e, como tal, fã  (com uma página de divulgação) do Cante Alentejano.  

Fundado em 2009, o blogue do Pel Caç Nat 60  tem cerca de 2 centenas de postes. Ainda está ativo, se bem que o maior número de postes se encontre no período de 2009-2015. Tem mais de 55 mil visualizações de páginas e 14 seguidores. 

Fica aqui o convite para o Manuel Seleiro, que segue o nosso blogue, para integrar de pleno direito a nossa Tabanca Grande. (**)

O 1º cabo caçador Manuel  Seleiro foi ferido, juntamente com o alf mil Hugo Guerra, na explosão de uma mina A/P, em 13 de Março de 1970. Os dois foram evacuados para o HMP, em Lisboa.  Ambos são DFA.

O Hugo Guerra é membro da nossa Tabanca Grande e já nos contou aqui a história atribulada da sua vida, incluindo o acidente, grave, com a mina que estava a ser desativada pelo Manuel Seleiro (***).

O Pel Caç Nat 60 tem cerca de duas dezenas de referências no nosso blogue. 


Blogue do Pel Caç Nat 60 (1968/74), da autoria de Manuel Seleiro

História da unidade: 

(i) o Pel Caç Nat 60 foi formado a 7 de Maio de 1968, em S. Domingos; 

(ii) esteve com a CCS/BCaç 1933, CCaç 1790, CCaç 1791, em São Domingos, de maio a fins de novembro de 1968; 

(iii) o pessoal seguiu depois  para Ingoré, ficando adido à CCaç 1801 de novembro de 1968 até agosto de 1969; 

(iv) de regresso  a S. Domingos, em agosto de 1969, fica  adido à CCav 2539;

(vi) ficaria aquartelado em S. Domingos e Susana, até ao ano de 1974; 

(vii) o primeiro comandante  foi  o ex-alf mil  Luís Almeida, rendido pelo ex-alf mil Nelson Gonçalves (ao tempo do BCAV 2876, São Domingos, 1969/71); 

(viii) a 13 de novembro, de 1969 a viatura em que seguia  o Nelson Gonçalves, acionou uma mina A/C,  sendo este sido ferido com gravidade, e helievacuado para o HM 241 e depois para o HMP; 

(ix) de novembro de 1969 a janeiro de 1970, o pelotão foi comandado pelo ex-fur mil  Rocha

(x) em janeiro de 1970 o ex-alf mil Hugo Guerra comandava o pelotão,  sendo ferido no dia 10 de março,  quando o 1º cabo Manuel Seleiro desativava uma mina anti-pessoal.(...)


2. Tomamos a liberdade de reproduzir aqui, com a devida vénia,  um dos postes deste blogue, respeitante ao dia em que o alf mil Nelson Gonçalves foi gravemente ferido na estrada São Domingos-Susana, em Nhambalã, em 13 de novembro de 1969, quando a viatura em que seguia acionou uma mina: evacuado para o HM241 (e depois o HMP), foi-lhe  amputada uma perna (*).


São Domingos, 13-11-69

O Pel Caç Nat 60 e um pelotão da CCAV  2539 saíram numa coluna auto para uma missão a Susana/Varela.

A coluna era comandada pelo alf mil Nelson Gonçalves,  do Pel Caç Nat 60, encontrava-se na terceira viatura que era um Unimog novinho em folha, tinha uma semana...

No dia 13 de novembro (não sei se era sexta feira!)   
[por acaso, era um quinta-feira... Editor LG ]... O soldado Guilherme que fazia anos nesse dia teve uma sorte incrível, Três minutos antes da mina anticarro ter sido accionada,  o Guilherme ia a falar com o alferes Gonçalves junto à roda que accionou a mina anticarro.

Por um daqueles mistérios que ninguém sabe explicar,  o Guilherme avançou uns cinco metros para a frente da viatura,  Assim escapou a morte certa...

A primeira mina anticarro foi descoberta e foi desactivada pelo 1º cabo Seleiro, que está na foto com o alferes Gonçalves. A segunda mina anticarro estava a uns trinta metros   mais á frente num local que escapou aos homens das picas. 
[ Ou estava a 300 metros ? .. Editor LG ] (*)
.
Era uma ligeira subida onde o terreno era bastante duro, suponho que o que levou o IN a montar a mina naquele local foi que há algum tempo atrás caíra ali uma árvore de grande porte. Como havia vestígios de alguns ramos e folhas secas, era portanto o local certo para colocar a mina...

Na altura da explosão houve uns momentos de supresa, a reacção foi atirarmo-nos para o chão... Passados os primeiros minutos que antecedem o choque da explosão, esperávamos que houvesse uma emboscada...

Não foi o caso, a minha secção vinha na última viatura. Montada a segurança,  socorreu-se o alf mil Gonçalves que estava gravemente ferido, creio que a secção que ia na GMC na frente da coluna éra comandada pelo fur mil Félix Dias, da CCAV 2539,  que seguia com o alf mil Gonçalves para São Domingos...

Nós ficámos no local da viatura acidentada, decorridos uns dez minutos ainda não sabíamos do Gama, o condutor da viatura, perante o nosso espanto vimos sair do mato um homem mais parecido com um sonâmblo e a sua cara estava mascarrada, o seu olhar ausente,  o seu andar mais parecia um autómato,  foi preciso muito tempo para que falasse, mas não sabia o que se tinha passado ali... Este homem levou muitos dias para recuperar totalmente.

O Guilherme,  o soldado de transmissões, quando se apercebeu no que lhe podia ter acontecido,  chorava.

Nós só saímos do local cerca das 17h33 com a viatura acidentada para o quartel de São Domingos.

Manuel Seleiro
Primeiro Cabo

[Revisão / Fixação de texto / título / Notas em parênteses retos: LG ]

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)



(...) Fiquei a comandar o Pel Caç Nat 60 e ainda tenho algumas lembranças de coisas que por lá aconteceram. Adiante.

No dia 13 de Março de 1970, ia comandar um patrulhamento até à fronteira e eis senão quando detectámos uma primeira mina reforçada, mas em tal estado de conservação que não houve qualquer problema para a levantar.

Tinha no Pelotão um Primeiro Cabo, de nome Seleiro, já com um longo historial de levantar minas e, depois de a vermos, concordei que ele a levantasse, o que foi feito sem qualquer problema. Passámos o detonador para a bolsa do enfermeiro e continuámos a progressão.

Como eu era sempre o terceiro ou quarto homem depois das picas, vi perfeitamente que os picadores tinham localizado qualquer coisa. Montada a segurança lá chamei de novo o Seleiro para conferenciarmos sobre aquela.

Depois de nos certificarmos que estava isolada, tinha que decidir se abortava a operação, rebentando a mesma e regressando a São Domingos, expostos a alguma emboscada do IN. Se fosse entendido desactivar a mesma, poderíamos ir ao objectivo e no regresso levantá-la sem qualquer perigo.

Um e outro rastejámos até à mina que parecia nova e eu comecei a dizer ao seleiro que a queria levantar. Ele acabaria a sua comissão dois meses mais tarde.

Comecei a suar por todos os poros e depois de olhar bem aquela malvada, disse ao Seleiro que não era capaz. Ele disse-me que não havia crise e tomou o meu lugar.

Deitado no chão a cerca de 5 metros, acompanhei todos os seus movimentos com angústia e só relaxei um pouco quando ele, de joelhos e com a mina na mão, prestes a desarmadilhá-la me chamou:

- Meu Alferes, olhe aqui.

Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto…

Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo.

Quarenta e oito horas depois chegámos ao aeroporto de Figo Maduro e, como já foi dito por um camarada nosso, fomos colocados dentro de ambulâncias militares e sem qualquer barulho para não acordar a cidade, levaram-me a mim para o HMP na Infante Santo e o Seleiro foi levado para o Anexo, em Campolide.(...)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24066: Notas de leitura (1556): Em "A Minha Guerra a Petróleo", por António José Pereira da Costa; Chiado Editora, 2019 - "Cerca das 281330AGO71", uma memória de guerra, uma apreciação de um facto (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Mansabá ea lgumas das tabancas (Mansomine, Manhau, Mantida, etc.) desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau (Vd. poste P12150, de Ernesto Duarte)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


N
o meu primeiro comentário no Poste 24063, fiz referência ao infortúnio que atingiu o então Cap Faria Monteiro, comandante da CART 3417, quando pisou uma mina antipessoal ali para os lados de Manhau.

No seu livro "A Minha Guerra a Petróleo", o nosso camarada António José Pereira da Costa, Cor Art Ref, faz referência este incidente nas páginas 159 a 167, porque o Cap Monteiro era, e é, seu amigo. Porque a narrativa está muito pormenorizada e fiel ao acontecimento, pelo menos nas horas difíceis passadas em Mansabá e em que eu e os meus camaradas tivemos a nossa modesta intervenção, não resisti a transcrever aqui no Blogue o capítulo na íntegra. Só espero que o nosso esforço tenha minorado a extensão dos ferimentos sofridos pelo Cap Monteiro.

A propósito, o livro "A Minha Guerra a Petróleo" ainda pode ser adquirido, tendo um custo actual de 14,00€, através da WOOK, por exemplo.
São 187 páginas de leitura interessante complementada com algumas fotos.

CV
********************

Cerca das 281330AGO71[2]

Este texto não é só mais uma memória de guerra, uma apreciação de um facto que veio ter comigo. Será a maneira como observei algo que sucedeu a outra pessoa e a memória que disso guardei, influenciada por situações que vivi antes e depois. Julgo que este texto pode ser considerado uma homenagem.

Saindo de Mansabá em direcção a nascente encontrávamos três pequenas localidades abandonadas: Mansomine, Manhau e Mantida. No tempo da paz eram servidas pela estrada que seguia para Banjara - esta já a mais de 18 km de distância - e que, na altura em que por ali andei, também já fora abandonada. Não pertencia ao nosso sector. Era apenas algo de que se falava...

Nos patrulhamentos que realizávamos naquela direcção, marcou-me especialmente a visão do quartel de Manhau, abandonado e destruído. Segundo apurei, fora um destacamento da Companhia de Mansabá, ocupado quinzenalmente por um grupo de combate e um pelotão de milícia com umas condições de vida muito más e para onde era necessário levar tudo, até a água, numa viatura-tanque. Qual seria a vantagem táctica de uma posição com aquelas características? Como tantos outros "quartéis da malta", acabara abandonado e destruído "à granada de mão", por volta de 1966.

Naquela altura, ainda se reconheciam as duas fiadas de arame farpado, agora ferruegnto e quebrado aqui e além, vagamente esticado entre as últimas varas que o tinham suportado. O cavalo-de-frisa ainda se mantinha de pé, mas inútil não chegava a vedar o acesso ao interior da área quadrada, que deveria ter tido cerca de trinta a quarenta metros de lado. No interior, nenhuma construção ou mesmo restos do que pudesse ter sido uma, eram identificáveis com clareza, mas no exterior, o sistema de iluminação continuava bem representado por alguns postes: uns já caídos, outros resistindo às intempéries numa posição quase vertical. Cada poste não era mais do que um tronco de palmeira cravado no solo, ao qual havia sido adossado pela geratriz um "abat-jour" cilíndrico deveras original.

Era constituído por um bidon vazio que tinha sofrido umas pequenas, digamos, adaptações. Uma das tampas - a que ficaria para baixo - fora removida, mas a outra apenas havia sido separada da superfície lateral do cilindro em pouco mais de metade do perímetro. Depois de aberta a geratriz oposta à que fora pregada ao poste, um petromax ficava pendente da face inferior da tampa, no interior do cilindro. Julgo que assim se pretendia preservar o candeeiro dos ventos e das chuvadas, mantendo o perímetro do aquartelamento iluminado. Sempre que um dos Petromax fraquejasse, o "electricista de noite" tinha uma tarefa a cumprir. Considero este abat-jour mais uma prova do "desenrascanço nacional" e do engenho (que não arte) dos Portugueses.

Todavia, o sistema fornecia pouca iluminação para que os defensores pudessem observar a área circundante da posição. Em compensação, o In dispunha de uma visão privilegiada sobre ela, a algumas centenas de metros de distância. Agora, olhar para este "quartel" era contemplar uma espécie de peça de arqueologia militar, que entristecia se procurássemos saber o que levava a que o destacamento fosse construído, sabe-se lá com que esforço, e depois abandonado. Depois deste, era a tabanca de Mantida, onde os militares que guarneciam Manhauiriam buscar laranjas de boa qualidade e correndo os inerentes riscos. Era uma lenda, mas para que tenha surgido é necessário que, pelo menos uma vez, lá tenham ido...

Devo ter ido a Manhau e Mantida duas ou três vezes, mas para além da visão das ruínas do quartel, tenho a imagem de uns dois metros de estrada onde a erva não tinha crescido, passado mais de um ano. Tinha sido ali... segundo se dizia e eu acredito, pois - soube dpois - que, além da mina que vitimara o Monteiro, havia mais três que o furriel de minas e armadilhas tinha detonado.

Eu estava em Bissau com a Bateria Ati-aérea, quando o Joaquim Evaristo me deu a notícia. O Monteiro[4] tinha pisado uma mina anti-pessoal. Há notícias que não podem ser dadas de outra maneira: de modo brutal e com uma frase curta e, como todas do mesmo tipo, de significado imediatamente dedutível. Não sei porquê, mas não fui logo ao Hospital. O Joaquim foi e, pouco tempo depois, só medisse:
- Está sem um pé.

Logo que me foi possível fui ao Hospital e localizei-o. Estava num quarto, deitado na cama com uma perna esticada e a outra erguida e apoiada em algo que se parecia com uma almofada...

Fiquei sem saber o que dizer, mas o silêncio de poucos segundos tornou-se impossível de suportar. Nestes momentos, sabemos que é necessário dizer ou fazer qualquer coisa, mas não temos a ideia do que possa ser. Se calhar, concentramo-nos em nós e no que sentimos, quando deveríamos considerar que o ferido ou o doente grave que ali está é que deverá estar antes de tudo.

Tartamudeei qualquer coisa, nem sei o quê. Depois tentei saber como as coisas tinham sucedido. A estrada abandonada ainda conservava as rodeiras, as marcas dos pneus das viaturas que por ali tinham passado. E foi ao movimentar-se pela área entre rodeiras que encontrou a mina.

Por outras experiências que tive, sei que a surpresa inicial deu lugar ao espanto e à pergunta feita a si mesmo:

- O que sucedeu?

Depois é uma mistura de dor sentida e uma vontade de sair dali, de tudo aquilo que não seja verdade e de um turbilão de perguntas que acabam por se redizir a uma certeza: "Estou gravemente ferido. Isto também me aconteceu a mim".

- A mim? Porquê a mim?

Os outros têm muito que fazer. A nós, nada mais resta do que aguentar a dor e sentir revolta contra a falta de sorte e a irreversibilidade da situação

Dez dias depoi de ter completado 24 anos!...

À chegada dos reforços vindos de Mansabá, os enfermeiros da sua Companhia já tinham garrotado a perna e metido o soro, procedimentos habituais nestas situações. Agora eram sete quilómetros em coluna, de regresso ao quartel, num percurso em que se queria evitar solavancos, sempre excessivos para quem sofre. Porém, nesse dia chovia e, devido à pouca visibilidade, os helicópteros não voavam. Podia ser que as condições melhorassem, mas há dias em que nem os astros ajudam. Cerca das cinco da tarde confirmou-se que o héli não viria e não houve outra solução que não fosse a evacuação, em coluna auto. A espera inglória na enfermaria foi angustiante. Uma tortura que nada justificava. 

Por fim, o pessoal de enfermagem "depositou" a maca numa das viaturas e a coluna partiu em marcha moderada. Seria uma viagem até Mansoa e daí, em ambulância, até ao hospital. Todavia a viagem de Mansoa a Bissau "não estava prevista" e a coluna por ser de quase cem quilómetros, até Bissau, debaixo de chuva intensa. Já tinham passado bastantes horas e o sofrimento físico e psicológico somavam-se, numa aritmética de revolta sem fim, que só terá tido uma paragem pelas seis e meia da tarde à entrada do Hospital Militar de Bissau. Tinham decorrido cinco horas.

Ouvi a descrição do Monteiro e, não podendo ou não sabendo, dizer mais, respondi-lhe que agora "era necessário reagir". No segundo imediato apercebi-me da agressão que tinha cometido. Há coisas que, mesmo que se pensem, não se dizem e o Monteiro fez-mo sentir respondendo-me.
- Reagir? Reagir, reages tu que tens duas pernas. Agora eu só tenho uma...

Fiquei sem palavras. Uns instantes de silêncio depois, despedi-me e deixei o quarto. Além do monte de gaze que marcava agora o fim da perna fiquei impressionado com a cor das gengivas que o ferido apresentava. Brancas. Disseram-me que era do soro que lhe fora ministrado, durante muito tempo. Por mim, penso que era um indício de anemia pela perda de sangue.

Poucos dias depois, voltei com o major Gaspar, nosso amigo e meu segundo-comandante. Ainda estou para saber o que o terá levado a aparecer, naquele dia, com as fitas das condecorações e com o brasão do Regimento de Artilharia n.º 3 (de Évora) sua unidade habitual. Era à tarde e os feridos e doentes tinham sido postos na varanda do hospital, talvez numa tentativa de lhes melhorar a disposição, se tal fosse possível...

A conversa foi curta e eu8 procurei ficar calado. O nosso amigo, talvez por ser mais velho, parecia ter maior capacidade de diálogo, mas, ao fim de alguns minutos, o silêncio acabou por surgir. O Monteiro disse, de repente e num tom que parecia subtil, mas que comportava uma crítica muito amarga e contundente:

- O meu major está muito bonito, com as condecorações!

Com o sol já baixo, ficou-me a imagem do major Gaspar com os olhos marejados, a dizer, como se se justificass:

- Calhou. Isto não é nada. Já estavam postas nesta camisa quando a vesti hoje.

Não arranjo melhor expressão para descrever a nossa saída da varanda: "Fugimos"

E chegou a véspera da evacuação para Lisboa.

De novo, o major e eu fomos ao hospital. O jantar já fora distribuído há muito e os corredores estavam desertos e escuros. Eu tinha para mim que seríamos recebidos com frieza, se não mesmo com agressividade. Porém, ao entrarmos no quarto, fomos saudados com alegria e boa disposição. Era a saída da Guiné, o retorno à "Metrópole" e à família. Era o fugir dali, um lugar onde não pertencia, para um sítio onde poderia reencontrar os seus, aqueles que havia deixado pouco mais de dois meses antes.

Fiquei surpreendido por falarmos com certo à-vontade e eu, já não me lembro a propósito de quê, disse qualquer coisa como:

- Pois é, a vida está má!

O Monteiro tratou-me pela alcunha e comentou:

- Boa piada PK! Boa piada! Olha, que até o meu coto se ri!... - e, agarrado à perna, abanava-a com as mãos.

Foi então que concluí que uns produtos daqueles que tiram as dores e dão boa disposição, talvez euforia, deveriam ter andado por ali, misturados na sopa ou mesmo em todo o resto do jantar.

O Gaspar, por seu turno, aproximou a orelha do coto entrapadíssimo e, pedindo-lhe que ligasse o transmissor, comentou a qualidade da música que estaria a ouvir.

Mais uma vez fiquei sem saber o que dizer. Não me lembro se saí por minha iniciativa, por não poder suportar o surrealismo daquela cena, ou se fui levado pelo final da visita, decretado pelo meu segundo-comandante, para meu alívio, confesso.

A partir daqui e ao longo da minha vida, fui recordando duas situações que desenterrei na memória e que envolviam pernas, as pernas do Monteiro. Uma ainda na Academia e outra já quando éramos oficiais.

Nunca tive grande jeito para um qualquer desporto em especial. Contudo, um dia descobri o basquetebol. Achei-o curioso, mas cedo concluí que deve ser dos jogos de bola mais difíceis de praticar. Ou seria "o árbitro" que me perseguia? Certo é que, sempre que eu tocava na bola fazia falta, "por passos". E não havia maneira de aprender a técnica. E aquela regra é tão apertada, convenhamos!...

Apesar disto, não desisti e resolvi aprender com o Monteiro. E uma das coisas que ele me ensinou foi que, ao receber a bola com ambas as mãos, eu deveria escolher um "pé-eixo" que, a partir daí não poderia mexer. Era como se estivesse soldado ao chão. Pelo menos, foi o que entendi. Acabei por desistir da aprendizagem, mas mantive o gosto pela modalidade, graças às indicações do meu improvisado mestre.

Recordei também a cena na Sala de Oficiais da Escola Prática de Artilharia para onde o nosso curso de tenentes tinha sido enviado para o Curso de Promoção a Capitão, que, depois, não valeu. Mas isso já são questões laterais. Uma manhã, no rádio da sala passava "Les Champs-Elysées", na voz de Joe Dassin. Bela melodia e letra curiosa e bem construída Andávamos pelos nossos vinte e dois a vinte e cinco anos e fôramos musicalmente educados na música europeia. Tínhamos cinco anos de francês, no ensino secundário, e numa música como aquela era fácil encontrar encanto. Imediatamente constituimos uma libha de seis ou sete bailadores com as mãos apoiadas no ombros do que nos ficava ao lado. Depois, em sincronismo, atirávamos alternadamente a perna direita para a esquerda e a perna esquerda para a direita, ao rítmo da música, uma gajice própria dos jovens que éramos, apesar de já todos termos um ano de África, em Angola, em Moçambique ou na Guiné para onde partíramos três e só dois haviam voltado. Naquela idade, ainda tínhamos uma certa garridice que permitia enfrentar o futuro com certo ânimo e confiança, mesmo tendo já adquirido uma certa (má) experiência da vida e sabendo que os tempos que se avizinhavam tinham tudo para ser de provação. A dada altura alguém comentou:
- Olhem só para isto! Os futuros comandantes das companhias de Artilharia que irão para o Ultramar!...

O grupo desfez-se, de imediato. Caíramos em nós. No fundo, éramos oficiais respeitáveis e conscientes dos nossos deveres e não podíamos permitir-nos a brincadeiras como aquela...

Depois da evacuação para Lisboa, tive notícias dispersas do Monteiro, até nos encontrarmos na AM na celebração dos trinta anos do nosso curso. Nessa altura, disse-me que era professor. "Professor", mas com P Grande. Por mim pensei:

- Ainda bem! Nem outra coisa era de esperar de um Homem da minha geração!

Mem-Martins, 10 de Agosto de 2018

____________

Notas do autor:

[2) - Esta é a maneira de referir nas comunicações militares ou em documentos escritos, algo que sucedeu cerca das 13 horas e 30 minutos do dia 28 de Agosto de 1971. Fica assim constituído o chamado "grupo data-hora".

[3] - Naquele tempo, nas unidades tipo Regimento da Metrópole, havia um "electricista de dia" nomeado por escala.

Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1Jan73 a 150ut74, citado por CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pág. 497.


1.   A propósitos das minas e outros engenhos explosivos usados na guerra do ultramar / guerra colonial (*), escrevemos:

(...) "As minas (A/C e A/P) e armadilhas (fornilhos, etc.) foram um dos "ossos mais duros de roer" na guerra que tivemos de enfrentar no TO da Guiné... Não sabemos quantas foram montadas, identificadas e levantadas... De um lado e do outro... Impossível haver estatísticas. Mas foram dezenas e dezenas, senão centenas, de milhares, ao longo dos anos, as minas que montámos, de um lado e do outro, para provocar baixas no campo do inimigo e desmoralizá-lo... Uma "arma suja", nesta e noutras guerras...

Pior ainda, não sabemos quantas foram accionadas pelas nossas viaturas, ou pelos nossos pés... Nem o número de mortos, feridos e incapacitados, provocados por estes engenhos mortíferos... Falamos de minas terrestres, mas também as havia aquáticas" (...)

Pedro Marquês de Sousa (em comentário de ontem, no Facebook da Tabanca Grande Luís Graça), escreveu:

(...) Durante o ano de 1973 foram detectadas 750 minas implantadas pelo PAIGC. Em Moçambique esta ameaça (minas) era ainda maior do que na Guiné, pois no mesmo ano (1973) temos o registo de mais de 2000 colocadas pela FRELIMO das quais 665 foram detonadas pelas nossas tropas (uma média de 55 minas detonadas por mês)" (...). (Ver livro do autor, ten cor na reserva, "Os números da Guerra de África", Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp.174 , 184 e 185.

2. Veja-se o nosso poste P23450 (**):

Pedro Marquês de Sousa, no seu livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.), dá-nos algumas "dicas" sobre o consumo de minas A/C e A/P por parte das NT em Moçambique:

(i) para o ano de 1972, aqui vai um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (adaptado por nós, op cit, pág. 301):

Munições 7,62 mm > 2152,3
Granadas de mão defensivas > 4,2
Granadas de mão ofensivas > 41,8
Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
Granada de morteiro 81 mm > 5,7
Minas A/P (antipessoais) > 43,2

(ii) estranhamente, os consumos de minas nos anos de 1970 e 1971, em milhares, são muito díspares:

Minas A/C: 0,5 (1970) | (-) (1971)
Minas A/P:1,3 (1970) | 50,7 (1971)


Obviamente, as NT usavam muito mais das minas A/P do que as minas A/C...

Quanto aos prémios, na década de 1970, os valores já eram outros. Diz o Luís Dias [ex-alf mil Inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento]:

(...) Segundo corria no meu tempo, o que rendia eram as minas A/P a 1000 pesos, a mina A/C a 3000 pesos e as rampas de foguetões ou os foguetões 120 mm a 5000 pesos.(...) (**).


3. Ainda relativamente ao TO da Guiné, temos alguns dados referentes aos últimos anos da guerra, e às minas implantadas (pelo IN) e neutralizadas (pela NT) (vd. quadro acima).

Nos anos de 1972, 1973 e 1974 (até 30 de abril), o PAIGC implantou  1570 minas e engenhos explosivos, com destaque para as minhas A/P (sete em cada dez):

  • minas A/P: 1132 (72,1% do total); neutralizadas: 80,2% (quatro em cada cinco);
  • minas A/C: 381 (24,3% do total); neutralizadas: 74,8 % (um em cada quatro);
  • outros engenhos explosivos: 57 (3,6% do total); neutralizadas: 35,1% (um em cada três).
Total (minas e outros engenhos explosivos )minas aquáticas, armadilhas e outros): 1570 (100,0%); neutralizados: 77,6% do total (quase quatro em cada cinco).

De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos foram neutralizadas, pelas NT, 1218  (77,6%), o que é um "score" notável.

Houve, por certo, muito mais minas e armadilhas que ficaram por detetar,  e que provavelmente fizeram ainda vítimas (nomeadamente entre civis e animais) muito depois da guerra ter acabado.  

De qualquer modo, estes números  (***)tem de ser lidos no contexto do agravamento da situação político-militar no CTIG. Segundo o relatório da 2ª Rep/CCFAG, acima citado:

(...)  "O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné.

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português, especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA.

(...) As forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superfície para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço. (...) (Negritos nossos).
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24063: Roncos que davam prémios (em dinheiro)... mas podiam custar a vida: a deteção e levantamento de minas...

(**) Vd. poste de 22 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

(***) Último poste da série > 8 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24063: Roncos que davam prémios (em dinheiro)... mas podiam custar a vida: a deteção e levantamento de minas...

Guiné > Região do Cacheu > Chão felupe > 1974 > BART 6522/72 (1972/74) > Deteção e levantamento de minas A/P. António Inverno, (*)

Foto (e legenda):  © António Inverno (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região do Cacheu > Pel Caç Nat 60 > Estrada São Domingos - Susana > 13 de novembro de 1969 > A primeira mina A/C detetada e levantada: na imagem o alf mil Nelson Gonçalves e o 1º cabo Manuel Seleiro.

Foto (e legenda): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC colocando uma mina", Fundação Mário Soares / DAC – Documentos Amílcar Cabral, disponível HTTP:http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43786 (com a devida vénia)

Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  O rebenta-minas com rodado duplo à frente e sacos de areia na cabine, sem tejadilho... Uma GMC, adaptada, com 12 rodas...

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. As minas (A/C e A/P) e armadilhas (fornilhos, etc.) foram um dos "ossos mais duros de roer" na guerra que tivemos de enfrentar no TO da Guiné... Não sabemos quantas foram montadas, identificadas e levantadas... De um lado e do outro... Impossível haver estatísticas. Mas foram dezenas e dezenas, senão centenas, de milhares, ao longo dos anos, as minas que montámos, de um lado e do outro, para provocar baixas no campo do inimigo e desmoralizá-lo... Uma "arma suja", nesta e noutras guerras...

Pior ainda, não sabemos quantas foram accionadas pelas nossas viaturas, ou pelos nossos pés... Nem o número de mortos, feridos e incapacitados, provocados por estes engenhos mortíferos... Falamos de minas terrestres, mas também as havia aquáticas... 

As minas eram o terror de quem fazia colunas logísticas, de quem tinha que se deslocar por picadas (intransitáveis no tempo das chuvas...), de quem fazia operações no mato e tinha que se aproximar de alvos do inimigo... Era o terror de guias e picadores, dos condutores dos "rebenta-minas" (que seguiam à frente das colunas logísticas)... Mas também da população: muitas tabancas, em autodefesa, bem como destacamentos e aquartelamentos das NT, eram cercadas  por campos de minas... 

Enfim, toda a gente tem histórias de minas e armadilhas, teve camaradas que morreram ou ficaram feridos com o accionamento de minas, A/C ou A/P, mas também conheceu camaradas que foram heróis, sobretudo a leventar minas: sapadores ou graduados (alferes e furriéis) com o curso de minas e armadilhas que se tirava em Tancos, se não erro...

O tema está bem documentado no nosso nosso blogue. Temos cerca de 220 referências sobre minas e armadilhas (**)... 

O que toda a gente também sabe é que as minas também davam... "patacão", desde que fossem identificadas e levantadas, ou só identificadas e destruídas... A partir de 22/9/1967, uma mina anticarro (desde que detectada e levantada/capturada com todos os seus componentes) valia tanto como um canhão s/r, um LGFog (RPG 2 ou 7), morteiro pesado ou médio, ou seja, 2 contos (o que equivaleria, a preços  de hoje,  a 771 euros). A mina ou "fornilho, antipessoal, só valia metade, mil escudos... (Afinal, uma GMC, um Unimog ou uma Berliet sempre valia mais do que um homem.)

_____________

Capitulo IV - Ano de 1964 

Anexo n° 1 - Normas para a atribuição de prémios pela captura de material ao inimigo

(CIRCULAR N° 2219/B DE 25 DE Abril da 2ª- Rep/QG/CTIG)

1. Pela captura ao lN de pistolas, espingardas, pistolas metralhadoras e morteiros serão atribuídos prémios, desde que a sua apreensão se verifique nas seguintes condições:

a. Em acções de combate (sob o fogo do lN);

b. Como consequência directa de acções de combate.

Não é atribuído qualquer prémio ao material dos tipos indicados que seja simplesmente encontrado (inclui-se aquele que tenha sido abandonado pelo lN devido ao funcionamento de armadilhas montadas pelas NT).

2. Serão também atribuídos prémios pela captura de minas ou armadilhas  apess [antipessoal, A/P]  e minas ou fornilhos acar [anticarro, A/C].

A designação "fornilho", além do seu significado clássico, engloba também as cargas explosivas convenientemente preparadas e prontas a serem accionadas.

Terão a designação de fornilho acar [A/C]  ou armadilha apess [A/P] consoante a respectiva quantidade de explosivos e o fim a que se destinam.

A estes materiais serão atribuídos prémios nas seguintes condições:

a. Detectado e capturado com todos os seus componentes;

b. Detectado e destruído.

3. Os prémios a atribuir são os seguintes:










4. A atribuição de prémios individuais é dificil, além de se considerar passível de afectar a disciplina e a eficiência operacional das unidades, pelo que se considera excepcional.

Aos Comandos de Batalhão competirá definir, para cada caso, se o prémio deverá ser atribuído individual ou colectivamente.

5. Os Comandos de Batalhão, para os fins de atribuição de prémios, informam o QG das condições em que se verificou a apreensão de material (1.a. ou 1.b. e 2.a. ou 2.b.).

6. Os Comandos de Batalhão devem enviar ao QG, mensalmente, a relação do material apreendido.

7. Modelos para a relação a que se refere o número anterior.







8. A presente Circular substitui a de referência, n° 1843/B de 02Dez63.


Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, 2014), pp. 288/289.


Capítulo I - Ano de 1967 (...): Directivas do Comandante-Chefe

Directiva para "Atribuição de prémos a militares e CIVIS por apreensão de material de guerra ao inimigo" do Comandante-Chefe de 22 de Setembro (referência ao oficio n° 1042/B, do SGDN, 2.ª Rep, de 31 Mar67). Esta directiva substituiu a distribuída com o n° 1980 em 101200Jul67.

" 1. Com vista a conseguir um procedimento uniforme nas Províncias Ultramarinas da Guiné, Angola e Moçambique quanto aos prémios a atribuir a militares e civis por apreensão de material de guerra ao inimigo, Sua Ex". o Ministro da Defesa Nacional, por seu despacho de 07Mar67, determinou o seguinte:

a - Os prémios devem ser iguais nas diferentes Províncias Ultramarinas e para os três Ramos das Forças Armadas;

b - Os prémios por captura de material inimigo devem ser atribuídos quaisquer que sejam as circunstâncias em que esta se efectue;

c - O montante dos prémios deve ser igual para militares e civis;

d - Deve ser também recompensado quem fornecer elementos que conduzam à captura de material do inimigo. O montante para cada caso deve ser fixado pelo Comando-Chefe;

e - No caso de apreensão do material levada a efeito por um grupo de civis ou unidade militar, a repartição do prémio pelos seus componentes ficará ao critério do Comando-Chefe;

f - Os prémios a atribuir deverão ser os constantes da tabela que a seguir se indica:


 [Tabela e negritos: editor LG ]


2. Os comandos dos três Ramos das Forças Armadas da Guiné, o Comando da Polícia de Segurança Pública da Guiné, a Organização Provincial de Voluntários, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado e os Serviços de Administração Civil da Província, devem fazer entrar em vigor, em 22/9/67 a tabela de prémios estabelecida pelo despacho de Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional referido no número anterior. [...]"

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 47-48

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7480: Estórias avulsas (46): Desminagem entre S. Domingos e Susana (António Inverno)

(**) Ver uma pequena amostra de postes:

4 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)

8 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4304: (Ex)citações (27): Lembrando a memória de meu tio Manuel Sobreiro, morto por uma mina (Nelson Domingues)

4 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

4 de janeiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12540: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (5): Sou do famigerado XX Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 de Agosto e terminado a 17 de Setembro de 1966, na Escola Prática de Engenharia (EPE), em Tancos


11 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): De 19 a 22 de Junho de 1973


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24060: Notas de leitura (1553): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte XI: Cobumba, manga de minas?!... Vamos lá levantá-las e noutro dia arrasar aquela... brincadeira!


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956)  > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda,  Cobumba, Cufar e rio Cumbijã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da leitura do livro de Manuel Andrezo, pseudónimo literário de Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref,  que foi cap inf no CTIG, o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6. Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de 1965 e julho de 1967. (*)

Com mais três comissões, primeiro na Índia, depois em Moçambique, como capitão (1962/64) e outra em Angola, já como major (1971/73), é um militar condecorado com Medalha de Prata de Valor Militar com Palma, Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, Cruz de Guerra de 2.ª Classe, Ordem Militar de Avis, Grau Cavaleiro, Medalha de Mérito Militar de 3.ª Classe e ainda Prémio Governador da Guiné.

Participou no 25 de Abril, como major, tinha então 41 anos e estava colocado na EPI, Mafra. 

À frente da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67), o cap inf Trindade revelou-se um excecional comandante operacional, como testemunha o episódio autobiográfico, um pouco extenso mas revelador das qualidades de um grande milatar de infantaria que a seguir se transcreve (no original, "Alerta Minas!, pp, 57-65).

 A narrativa. em que o autor privilegia os diálogos (entre o "capitão Cristo" e os seus subordinados, os alferes e o seu guarda-costa, Lassen), é também reveladora das duras condições em se travava a guerra contra o PAIGC. 

Na época (1965/67), o IN já recorria em larga escala a um das mais sujas e temíveis armas, que eram as minas A/C e A/P, além das armadilhas ou fornilhos. Provocaram muitas vítimas, entre mortos e estropiados. 

Numa companhia, de praças africanas e quadros metropolitanos, como a 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, em que não havia um sargento sapador, o capitão determinado e destemido,  pega na sua  faca de mato e em 10 metros de cordão,  e faz, ele mesmo,  esse trabalho, meticuloso e perigoso, que era levantar as minas, identificadas pelos picadores, no percurso entre o porto exterior de Bedanda e as imediações da tabanca de Cobumba... Ou seja, nas barbas da guerrilha e da população IN. Com 3 Gr Com e dois morteiros 81.  Em seis horas, das 10h00 às 16h00, levantou quatro minas, que deram direito ao prémio então instituído por apreensão de material ao IN em combate. Com o dinheiro recebido, os participamtes da operação fizeram uma farra, beberam uns bons  copos de cerveja.

Percebe-se melhor, com episódios como este, porque é que houve, no TO da Guiné, grandes combatentes, grandes comandantes operacionais
que sabiam mandar e ser obedecidos, não porque puxavam dos galões, mas porque  davam o exemplo como líderes  (etimologicamente falando, os que vão à frente mostrando o caminho). O cap inf Trindade foi seguramente um deles.

Imagem à direita: Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército. Na foto da capa, podemos ver o "capitão Cristo"("alter ego" do autor), sentado ao centro, com a mão direita no rosto, visivelmente bem disposto, em agradável convívio na casa do Zé Saldatnha [
antigo militar,   e depois encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia]. Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o dono da casa, o Zé Saldanha.


Cobumba, manga de minas ?!... Vamos lá levantá-las 
e noutro dia arrasar aquela... brincadeira! 
(pp. 57-65)

por Manuel Andrezo / Aurélio Manuel Trindade

Cobumba, logo do outro lado do [rio ] Cumbijã [a oeste de Bedanda] era uma área controlada pelos guerrilheiros e constituía um perigo para a navegação no rio e também para o pessoal
dos barcos quando ancorados no porto exterior de Bedanda

A tabanca ficava a 2 km do porto e todos os homens estavam armados constituindo uma milícia do inimigo.

Nas proximidades havia um acampamento de guerrilheiros que tinha por missão estabelecer a ligação a Chugué e a Cabolol, ao mesmo tempo que controlava a tabanca e flagelava o porto. 

Cobumba está localizada na área da companhia de Cufar, mas o que lá se passa interessa mais a Bedanda porque é pelo rio e pelo porto que a Companhia, uma vez por mês, recebe os géneros para a alimentação, as munições e todos os demais reabastecimentos, incluindo medicamentos. É portanto uma área sensível para os militares de Bedanda

É raro a companhia de Cufar subir 
frequente a de Bedanda, com ou saté Cobumba, mas éem autorização do Comando do Batalhão, penetrar na área, atravessando o rio de noite no porto exterior. 

Por isso e porque a livre descarga dos barcos sempre preocupou o capitão Cristo em termos de segurança, resolveu atravessar o rio, penetrar em Cobumba e fazer uma batida para localizar o acampamento inimigo. Era preciso ir lá urgentemente, até para poder combater o mal-estar causado por aquela outra operação em que nem o rio foi atravessado.

─ Lassen 
 [1] ─ chamou o capitão Cristo, ─ vai chamar os nossos alferes.

─ Sim, nosso capitão. Também vou chamar o nosso alferes Ribeiro?

─ Sim, Lassen, quero aqui no gabinete todos os nossos alferes.

Meia hora depois os alferes batiam à porta do gabinete do capitão e entravam.

─ Bom dia, meu capitão, há guerra?

─ Guerra há sempre porque estamos em zona de combate e cercados por todos os lados. Agora, no entanto, quero tratar duma guerra especial. Falem-me de Cobumba, começamos pelo Oliveira.

─ Meu capitão, eu nunca fui a Cobumba pois estou na companhia há pouco tempo. Dizem que é perigoso ir lá sem apoio aéreo. Os guerrilheiros estão no meio da população e todos os homens estão armados. Dizem que o caminho entre o porto e a tabanca está minado.

─ Carvalho, sou todo ouvidos.

─ Meu capitão, o Oliveira tem razão. É uma zona má. É impossível chegar lá de surpresa, o rio é muito largo. Peço ao meu capitão para pensar um pouco antes de decidir ir lá sem outra companhia.

─ Muito bem, é a sua vez, Cordeiro.

─ Meu capitão, aquilo em Cobumba é duro, mas quem vai à guerra dá e leva. É verdade o que já foi dito. Penso, no entanto, que ou vamos sozinhos ou não vamos, porque o batalhão não vai pôr uma companhia à nossa disposição.

─ Se quiser ir a Cobumba, ─ diz o Ribeiro ─ conte comigo que eu gosto de festa. 
Tudo o que foi dito sobre Cobumba é verdade. Já lá fui e fiquei à porta, não nos deixaram entrar na povoação. É uma tabanca grande, com as casas espalhadas e estendidas de ambos os lados da estrada. O terreno favorece quem defende. Quando lá fui apenas chegámos até às primeiras casas. Depois, bem depois foi o inferno e tivemos que retirar. Todos os homens estão armados. Um grupo mais aguerrido está num acampamento que fica próximo, quase, quase agarrado à povoação. Além disso, Cobumba pode ser facilmente reforçada por indivíduos vindos do Chugué e de Cabolol. Penso que é possível lá ir, mas teremos dissabores. Além disso, o porto exterior, do lado de lá, costuma estar minado e a estrada para Cobumba também. Para mim, no entanto, o mais perigoso é atravessar o rio que é largo naquele ponto e tem de ser atravessado de noite. Para aniquilar a 1ª secção, basta um homem do lado de lá, à espera, pronto para lançar uma granada de mão para dentro do barco. Se tal acontecer, perdemos uma secção e não atravessamos o rio. É possível irmos lá mas com muito cuidado.

─ Muito bem, estou elucidado. Em resumo, riscos elevados na travessia, um percurso por estrada minada, baixas se uma mina for accionada e guerrilheiros postos em alerta. Na povoação, quando lá chegarmos, encontraremos um grupo aguerrido que nos vai impedir a entrada e que pode ser rapidamente reforçado. No final, temos que retirar e regressar ao rio para o atravessar de novo com a hipótese de, nessa altura, sermos acossados pelos guerrilheiros. É este o resumo de tudo o que me disseram. Eu acrescentaria que não temos apoio aéreo e que se tivermos mortos ou feridos teremos que os trazer para casa às costas. Correcto, este resumo?

─ Está sim, meu capitão ─ disseram os alferes.

─ Muito bem 
 disse o capitão Cristo. ─ Vamos a Cobumba por fases. Na 1ª fase levantamos as minas no porto exterior e limpamos a estrada. Vamos fazer isto amanhã. Quem na companhia já levantou minas?

─ Ninguém, disse o Ribeiro. ─ Tínhamos um sargento que fazia isso mas já foi transferido. Eu posso levantar.

Como ninguém sabe levantar minas vou fazer eu o serviço. Saímos amanhã de manhã, às 9 horas. Vou eu com o Ribeiro, o Cordeiro e o Carvalho. O Oliveira toma conta do aquartelamento e providencia para que, às 10 horas da manhã, estejam três barcos de borracha com motor no porto exterior. Vai lá uma camioneta levá-los para não cansar os homens. Vamos a pé e quando chegarmos, o pelotão do Carvalho entra nos barcos e passa para a outra margem ficando instalado a sul da estrada. Os barcos regressam e passam o pelotão do Cordeiro que vai ficar do lado norte da estrada. O Ribeiro monta segurança no porto, do lado de Badanda, impedindo envolvimentos. Leva dois morteiros 81 e monta uma base de fogos no mesmo local. Nomeia um sargento e três soldados para picarem o porto e a estrada. Sinalizam as minas e eu levanto-as. Não regressamos a casa enquanto não picarmos a estrada e as minas não forem levantadas. Eu não posso levantar as minas e comandar a tropa ao mesmo tempo. O Cordeiro substitui-me no comando da tropa que está na margem do lado de Cobumba enquanto eu estiver a levantar as minas. Tem de resolver todos os problemas porque eu não venho embora sem levantar as minas e não deixo o meu trabalho por mais tiroteio que haja. A vossa missão é dar-me segurança, a mim e aos homens que picam a estrada. Entendido?

─ Sim, meu capitão.

─ Só mais uma coisa. Formem os homens meia hora antes de sairmos e expliquem-lhes o que vamos fazer e qual o nosso objectivo. Quero que seja bem frisado que não pretendemos ir a Cobumba mas apenas levantar as minas para termos o porto e a estrada desimpedidos. Quando regressarmos, quero que os homens possam comparar o que fizemos com o objectivo que tínhamos e deduzam se cumprimos ou não a missão. Podem sair. Às 9 horas estamos todos na povoação comercial para sairmos.

─ Até logo, meu capitão ─ disseram os alferes.

─ Até logo.

À saída do gabinete os alferes traziam cara de preocupados. O caso não era para menos. Iam levantar minas e só o capitão as sabia levantar. Uma mina podia rebentar e perdiam logo o capitão. Podiam ter que pagar um preço muito elevado pelas minas.

O capitão tinha razão. As minas tinham que ser levantadas para demonstrar aos guerrilheiros que não valeria a pena voltarem a colocá-las porque não seria isso que impediria o avanço da tropa de Bedanda quando esta quisesse passar. 

Por outro lado, ia haver tiroteio de certeza. Os guerrilheiros ouviriam as camionetas e os motores dos barcos, e instalar-se-iam na orla da tabanca à espera da tropa. É certo que se tudo resultasse, esta acção iria ter um efeito positivo no moral dos soldados, enquanto os guerrilheiros ficariam preocupados e com o moral em baixo.

Os pensamentos do capitão e dos seus alferes, quais seriam? Apreensão? Receio? Todos tinham que saber o que fazer no caso de a operação dar para o torto. Todos tinham que estar preocupados em providenciar todo o material necessário para o trabalho que iam executar. O capitão Cristo transmitiu as ordens ao seu guarda-costas.

─ Lassen, quero a minha arma bem limpa aqui no gabinete. Quero todos os carregadores com munições e quatro granadas de mão, duas ofensivas e duas defensivas. Quero a minha faca de mato preparada e quero um cordão com dez metros de comprimento. Não quero o cordão muito grosso. Dizes ao nosso sargento do material de guerra que se não tiver cordão bom na arrecadação que vá à povoação comercial comprá-lo. Quero ver tudo isso antes da noite. Vamos sair, prepara-te para saíres comigo.

─ Sim senhor, nosso capitão. O Joãozinho 
 [1] também vai?

─ Vai, mas só lhe dizes amanhã de manhã ao café.

─ Onde vamos?

─ Não sei, e a ti não te deve interessar muito o local onde vamos.

No dia seguinte, às 9 horas da manhã, o capitão chegou à povoação com os pelotões do Carvalho e do Cordeiro. O Ribeiro já estava à sua espera com o seu pelotão pronto para integrar a coluna. O capitão mandou o Ribeiro seguir à frente pois a segurança no porto era a primeira acção a executar. A seguir ia o Carvalho e por fim o Cordeiro.

Seguiam pela ordem em que tinham de actuar. Praticamente não houve conversas. Os oficiais tinham confiança uns nos outros e sabiam que todos se tinham preparado muito bem para cumprirem a sua parte da missão. Às 10 horas chegaram ao porto exterior ao mesmo tempo que chegavam as viaturas com os barcos que, rapidamente, foram preparados para a travessia. O Carvalho atravessou com o seu pelotão e desapareceu no tarrafo  [2] 

Os barcos regressam e só um deles iniciou nova viagem para transportar o capitão, os seus guarda-costas e a equipa que ia picar a estrada. O capitão desembarcou e esperou na outra margem enquanto a equipa de picagem começava picar o porto e a estrada. O barco regressou à outra margem, por segurança. Estava tudo silencioso. 

Os homens do Carvalho e do Cordeiro estavam já à frente, a cerca de 1 km da margem. Foram mandados parar e abrigar nos ouriques da bolanha. No porto não foi localizada nenhuma mina. Começaram a picar a estrada e de imediato localizaram e sinalizaram uma mina. Foram também mandados parar e abrigar-se nos ouriques  [3]  . O capitão Cristo avançou.

─ Cordeiro, aqui Cristo. Foi localizada a primeira mina, vou começar o levantamento. Como vai isso por aí? Está tudo demasiado silencioso. Tanto tu como o Carvalho devem ter cuidado com os fulanos. O pior que nos podia acontecer era os gajos meterem-se entre nós e o rio em vez de nos atacarem do lado de Cobumba, escuto.

─ Cristo, aqui Cordeiro. Vejo alguns elementos a vigiarem-nos do lado da povoação. Julgo que eles ainda não perceberam qual é a nossa ideia, escuto.

─ Cordeiro, aqui Cristo, aguenta o barco e não me chateies mais.

─ Ribeiro, aqui Cristo. Morteiros apontados a Cobumba. Fogo apenas à ordem do Cordeiro. Aguenta-me essa retaguarda e cuidado com envolvimentos por indivíduos que atravessem o rio, mais acima ou mais abaixo. Sem ti e sem os teus barcos estamos perdidos.

─ Cristo, aqui Ribeiro. Esteja descansado. Se eles quiserem vir que venham pois saberão que estamos muito bem preparados para uma boa recepção. Sorte no levantamento das minas.

─ Cordeiro, Carvalho e Ribeiro, aqui Cristo. Vou iniciar agora o trabalho. Terminado.

O capitão, com a sua faca de mato, começou a picar a estrada a toda a volta da mina. Identificou esta mina e transmitiu a identificação ao Lassen para que a transmitisse aos pelotões. O Lassen transmitiu a indicação.

─ Cordeiro, Carvalho, Ribeiro, mina identificada. É de madeira e de pressão. Cristo continua a picar a terra em volta para a desenterrar completamente porque receia que esteja armadilhada. Terminado.

O capitão, indiferente a tudo o que se passava à sua volta, continuava a picar a terra, tentando fazer um buraco debaixo da mina. O suor escorria-lhe pela testa. Era grande a tensão pois sabia que um pequeno erro podia ser a sua morte ou, no mínimo, a sua incapacidade física. Os seus guarda-costas estavam a 5 metros de distância com os ouvidos atentos à voz do capitão. 

Eles sabiam, como veteranos de guerra que eram, que o seu capitão corria perigo e que eles nada podiam fazer para o ajudar. Conseguiu furar a terra por baixo da mina sem a molestar e começou a passar o cordão por baixo. O cordão passou, a mina foi amarrada e o capitão disse ao Lassen para informar os alferes.

─ Carvalho, Cordeiro, Ribeiro. Mina presa pelo cordão, capitão vai puxar a mina depois de se abrigar. Se rebentar, é porque está armadilhada e não há problema. Terminado.

A mina foi puxada e não rebentou. O capitão retirou e guardou o cordão, tendo de imediato retirado o detonador da mina. Entregou a mina ao Joãozinho para que a fosse levar ao porto, tendo recomendado para que o detonador e a mina ficassem separados, e seguiu para o local onde outra mina já tinha sido localizada. Já havia três minas localizadas e os picadores ainda só tinham andado 300 metros.

Agora, junto da segunda mina, o capitão começou a repetir as operações de levantamento. O terreno desta vez era mais duro. A mina foi identificada e era igual à anterior. Mais uma vez o Lassen informou os alferes e perguntou se havia novidades por Cobumba.

─ Cristo, aqui Cordeiro, há movimentos em Cobumba. Deve estar próximo um arraial de porrada, escuto.

─ Cordeiro, Cristo diz para aguentares. Mas se necessário, avancem mais um bocadinho. Continua a não querer entrar em Cobumba, a missão principal é protegêlo enquanto levanta as minas. Diga se entendeu, escuto.

─ Lassen, aqui Cordeiro, ─ diz ao Cristo que o festival vai ser grande, mas nós aguentamos. Terminado.

O capitão continuava a levantar a mina. Já estava toda a descoberto, faltava apenas fazer o buraco por baixo para meter o cordão quando o tiroteio rebentou. O barulho dos tiros dos guerrilheiros e a resposta dos soldados tornavam aquela área um inferno. Calmamente, o capitão continuava a levantar a mina.

─ Cristo, aqui Cordeiro, isto está um inferno. A orla da povoação está cheia de homens e de armas. Estou a ser atacado e o Carvalho também. É difícil aguentar o barco, acabe com as minas senão ainda cá ficamos todos.

─ Cordeiro, aqui Cristo, não exagere. Eles não querem que a gente levante as minas, mas eu vou levantá-las, é a nossa missão principal. Aguenta-te e não me chateies que eu tenho que me concentrar no que estou a fazer. Pede ao Ribeiro fogo de morteiro sobre Cobumba, vê com a Companhia para apoio de fogo de artilharia. Assim que terminar o trabalho eu digo-te e vamos embora. A segunda mina está pronta a ser puxada e só tenho mais duas para levantar. Terminado.

─ Nosso capitão, ─ disse o Lassen ─ há uma metralhadora enfiar-nos, os tiros batem aqui perto de nós. Deixe isso porque parado e desabrigado é um bom alvo.

─ Lassen, vai chatear a tua tia. Quem manda aqui és tu ou sou eu? Se tens medo vai-te embora que isto aqui é para machos.

Se nosso capitão fica eu fico, mas isto está muito perigoso. Eu e o Joãozinho vamos tomar posições.

─ Afasta-te. Não quero ninguém a menos de 5 metros de mim. Agora deixa-me trabalhar.

Já tinham ido duas minas e a terceira estava quase. Serenamente o capitão Cristo levantou a terceira e ainda uma quarta. Nem ouvia o tiroteio à sua volta. Os alferes estavam preocupados, mas a pressão dos guerrilheiros abrandou com as granadas de morteiro e da artilharia sobre Cobumba. O tiroteio foi diminuindo e terminou com tiros esporádicos, mais para mostrar presença do que para vencer a batalha. O capitão tinha vencido. Bedanda tinha cumprido a missão e os soldados aperceberam-se de que massa era feito o seu capitão.

─ Cordeiro, Carvalho e Ribeiro, levantei as quatro minas. Não foi localizada mais nenhuma. Cumprida a missão, vamos regressar a Bedanda. O Ribeiro manda avançar os barcos para a margem de cá. O Carvalho e o Cordeiro mandam retirar metade dos pelotões e tomam posição junto do tarrafo do porto e aguardam. Logo que estejam instalados, os restantes avançam para os barcos. Na segunda viagem vai o resto do pessoal. O Ribeiro fica atento. Se recomeçar o tiroteio vindo de Cobumba, devemos nós recomeçar o fogo sobre a povoação. Assim que chegarmos à outra banda regressamos à Companhia. Os barcos vão nas viaturas que já devem estar voltadas para Bedanda. Escuto.

─ Cristo, aqui Cordeiro. Entendido, escuto.

─ Aqui Cristo, vou dirigir-me para o porto.
 
Apenas com tiros esporádicos dos guerrilheiros fez-se a travessia do Cumbijã. O regresso a Bedanda foi o prémio apetecido. Tinham começado a acção às 10 horas da manhã e só foi dada como terminada às 4 horas da tarde. Tinha valido a pena o sacrifício e toda a tensão vivida porque a missão foi cumprida e provaram aos guerrilheiros e à própria companhia que eram capazes de ir a Cobumba, sempre que quisessem, as minas não seriam obstáculo. 

Todo o dinheiro das minas ─ o material capturado dava origem a uma gratificação ─ foi transformado em cerveja. Beberam oficiais, sargentos e praças, todos os que tinham tomado parte na operação. A alegria era grande entre todos. Antes de ir descansar, o capitão falou com os alferes.

─ Tudo correu bem e a vossa tropa portou-se maravilhosamente. Fizemos o que tínhamos planeado e isso é importante. É preciso mostrar ao inimigo e aos nossos soldados que vamos onde quisermos e quando quisermos. Por isso, nunca podemos deixar de cumprir as missões que planearmos. Obrigado ao Antunes, o nosso artilheiro-mor, pelo apoio de fogo que nos prestou. Estamos todos de parabéns. Digam isso aos homens. Depois de amanhã, voltamos a Cobumba para arrasar aquela brincadeira. Falaremos disso amanhã. Agora vão descansar, que bem precisam.

─ Lassen.

─ Pronto, nosso capitão.

─ Pega na arma e nas granadas. Quero tudo bem limpo e arrumado. Vou-me deitar. Que ninguém me acorde. Enquanto eu não sair do gabinete não estou para ninguém a não ser que o sangue comece a correr no quartel. Diz isso aos nossos alferes. Se eu não aparecer à hora de jantar, jantam sem mim.

─ Sim senhor, nosso capitão

E assim começou o repouso e o descanso dos guerreiros.
______

Notas:

 [1 ] Larsen e Joãozinho: guarda-costas do capitão.

 [2] Tarrafo: terreno junto dum rio com arborização ligeira por oposição a mata cerrada.

[3] Ouriques: diques, numa bolanha, geralmente feito de lama e paus, para controlar a entrada e saída de água nos arrozais.

[Seleção / revisão e fixação de texto / parênteses retos / título / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________


Último poste da série "Notas de leitura" > 10 de fevereiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24055: Notas de leitura (1552): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (2) (Mário Beja Santos)