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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18526: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 39 e 40: Atenção, inimigo, não se metem connosco!... "Embora tu não ligues nada à guerra, eu quero informar-te de uma coisa: nós aqui lutamos contra as forças do PAIGC e comandante desse partido, que era o Amílcar Cabral, foi morto esta manhã no Senegal... Não sabemos se a guerra vai piorar ou melhorar, esperemos uns dias e depois digo-te algo"


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > Um dos postais que o José Claudino da Silva passou a mandar à namorada (e futura esposa), todos os meses, depois da notícia da morte de Amílcar Cabral (que foi morto na Guiné-Conacri e não no Senegal, em 20 de janeiro de 1973).

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje);

(ii) foi criado pela avó materna;

(iii) trabalahou e viveu em Amaranete, residindo hoje naLixa, Felgueiras;

(iv) é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(v) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado;

(vi) completou o 12.º ano de escolaridade;

(vii) foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(viii) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste);

(xix) como responsável pelos reebastecimentos, a sua preocupção é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xx) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacaunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 39  e 40

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'...  Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


39º Capítulo   > AMÍLCAR CABRAL

Ena, pá! Que ousadia!

“Atenção inimigo! Não se metam connosco. Estamos de olho vivo. Sabes meu amorzinho? Estes negros nojentos não querem nada com “Os Serrotes” as nossas laminas estão bem afiadas e eles sabem que podem cortar-se.”

Dizia isto em mais uma noite de prevenção. Seria mais uma noite, mas não foi. Aquela noite foi de 20 para 21 de Janeiro de 1973. O meu comentário no dia 21:

“Embora tu não ligues nada à guerra eu quero informar-te uma coisa. Nós aqui na Guiné lutamos contra as forças do P.A.I.G.C. (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde) e o comandante desse partido que era o Amílcar Cabral foi morto esta manhã no Senegal, país que faz fronteira com a Guiné e de onde entram os terroristas, por isso nós não sabemos se a guerra vai piorar ou melhorar, esperemos uns dias e depois digo algo”

Um facto histórico tão relevante foi passado por nós duma forma completamente superficial. Até o comandante foi de férias, no dia 25.

Que guerra aquela!

No mesmo aerograma falo de Camilo Castelo Branco e digo uma frase que ainda hoje sei de cor. (A dor que proporcionamos às outras pessoas devia ser equivalente à que sentimos.) Nos dias seguintes, apenas falei de amor.

Era domingo, decidi começar a mandar um postal por mês.


40º Capítulo  > DEPOIS DAS MORTES.  O CINEMA

26 de Janeiro de 1973

Estive tentado, como em muitas outras vezes, a não falar de guerra, mas neste dia na última página da carta do mês não resisti.

“Como sabes pertenço a um batalhão que tem quatro companhias. C.C.S. 1ª; 2ª e 3ª que é a minha. A C.C.S. está em Tite e já sofreram um ataque sem feridos. A 1ª está em Jabadá, também sofreram um ataque sem feridos. A 2ª está em Nova Sintra, sofreram um ataque tiveram quatro feridos e dois mortos. Nós ao quartel ainda não tivemos nenhum e decerto não teremos, agora toda a companhia está de prevenção das seis horas da tarde às quatro da manhã e dormimos de dia.

Hoje 85 colegas estão para o mato em operação. Acho que as coisas estão a piorar. Para tornar tudo mais difícil o gerador avariou e a vigilância é muito menos eficaz. Estamos sujeitos a só detectar o inimigo quando estiverem mesmo em cima de nós. Neste momento lá fora a escuridão é total, estou a escrever-te à luz da vela”


Não me levem a mal por, nos dias seguintes, só escrever sobre bigamia e gravadores de cassetes, futebol e bebidas, sobre o Zé Leal que tinha ido a Bissau, as contas de Janeiro que bateram certas e o reabastecimento que seria dia dois. Correu tudo tão bem que até recebi dois cabelos que a namorada mandou. Eram grandes. Ela ia cortar o cabelo à moda.

Guerra? Grave foi ter-me magoado num pé a jogar voleibol.

“Na próxima semana vamos ter cinema em Fulacunda. Fixe há muitos meses que não vejo um filme.

Quero dizer-te que a nossa companhia agora faz parte operacionalmente de uma outra que é a C.O.P. 7 e está cá um capitão dessa C.O.P. 7 que é um tipo porreiro, até se come melhor”


Foi em Fevereiro que mandei uma encomenda para a minha namorada. A cantina, em miniatura, uma faca de mato, um livro com duas comédias. (“Monsieur de Pourceaugnac" e “O Avarento” de Moliére), uma garrafa de whisky e mais umas latas de Coca-Cola para misturar. Pesava 6,5Kg.

Uma parvoíce, não? Quem era tão parvo que mandasse essas coisas para a metrópole? Eu, é claro!
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quinta-feira, 29 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18467: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 37 e 38: "Já não tens dinheiro no banco, a tua mulher porta-se mal”... Nunca mais li uma carta de um camarada, sem primeiro a ler só para mim.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) > Nota de 50 escudos (pesos), verso. O banco emissor era o BNU - Banco Nacional Ultramarino. Uma nota destas, em 1973, em Fulacunda, dava para comprar, na cantina do Zé Soldado, 12 cervejas e meia de 0,33l.  Nesta altura, um soldado, no mato, podia gastar entre 1/3 e 1/5 do seu pré...

Foto: © Sousa de Castro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

  

  1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje);

(ii) foi criado pela avó materna;

(iii) reside na Lixa, Felgueiras;

(iv) é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(v) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado;

(vi) completou o 12.º ano de escolaridade;

(vii) foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(viii) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Hoje, 24 de março, ele e um grupo de avós e netos vão começar a replantar, às 10h00, a bela serra do Marão, criando assim o "Bosque dos Avós".

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste);

(xix) como responsável pelos reebastecimentos, a sua preocupção é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 37 e 38


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


37º Capítulo  > JÁ NÃO TENS DINHEIRO NO BANCO


Lembrava-me vagamente de ter sido acusado, por alguns colegas, de ter os artigos da cantina de graça, pelas funções que ocupava. Se assim fosse, nunca o diria, ou até, se calhar, gabava-me de lixar o exército. O caso é que, a partir daquele dia passei a ser o cantineiro. Afinal, confiavam em mim.

Falo nisto porque toda a gente dizia que no meu lugar, no fim da tropa, estaria rico.

Devido ao lugar onde nasci, tive sempre alguém que me acusou de ladrão. Na minha companhia, havia soldados naturais da minha própria aldeia e sei que tinham um pouco de inveja de mim. Sendo filho de quem era, e morando onde morava, o meu lugar devia ser andar no mato, como eles.

Provei que muitas vezes é nos pântanos mais nauseabundos que nascem belas flores. Orgulho-me de tudo que fiz na minha vida militar, mesmo as idiotices que tenho cometido. Vem isto a propósito do dinheiro que sempre foi a causa de muitos males e das informações que íamos recebendo de casa.

E comecei a ler cartas de colegas cujo dinheiro que mandavam para a Metrópole desaparecia.

O meu tio já me tinha escrito a dizer que a minha avó andava a emprestar o meu às minhas tias. Era chato mas a minha avó tinha-me criado e mantido 12 anos até eu ganhar o 1º salário, por isso, o dinheiro era mais dela do que meu.

Agora vocês experimentem ler uma carta dum pai para o filho, nesta situação.

O filho está num local rodeado de arame farpado com uma G3 na mão e granadas à cintura. Acabou de chegar duma missão, com as coxas e os pés em ferida, provocadas pelas micoses que o torturam.

Vá lá. Leiam-lhe as cartas. Ele não sabe ler e está à espera que lhe deem boas notícias depois daquela perigosa e longa operação. A água do cantil tinha acabado logo de manhã. A ração de combate foi diminuta. Até o leite achocolatado extra que levara se evaporara. Mas, em vez de comer ou beber, quando regressou ao quartel, o que deseja saber primeiro são notícias, pois ouvira, quando andava no mato, o barulho da avioneta.

O Zé Leal já lhe tinha separado o correio, uma única carta. Ele rasga o sobrescrito e passa-te a missiva para a mão. Depois das habituais saudações lês.

“Já não tens dinheiro no banco, a tua mulher porta-se mal”

Nunca alguém soube deste episódio. Continuei a ler e a escrever muitas cartas repletas de dramas. Esta nem foi das piores. Acompanhei durante algum tempo a vida civil deste amigo que, infelizmente, foi muito curta. (Faleceu no inicio dos anos 80.) Não infiro que este facto contribuísse para isso mas sei que sofreu muito.

Nunca mais li uma carta sem primeiro a ler só para mim.


38º Capítulo > MAR DE ROSAS 


Nem acredito que disse aquilo, quando fui trabalhar na cantina. Aqui vai o meu pedido de desculpas a todos os ex Serrotes de Fulacunda por no dia 13 de Janeiro ter escrito que eram uma cambada de 140 (Enharras) (estúpidos, parvos, camelos, em crioulo).

O nome Os Serrotes, como não podia deixar de ser, deu-se devido ao culto da personalidade do comandante. Capitão Serrote.

Comprei um rádio para melhor passar o tempo na cantina, que permanecia seis horas aberta e, embora só existisse uma emissora, dava muita música que muitos colegas passaram a vir escutar comigo, principalmente os discos pedidos. Foi muito divertido o 1º que me foi dedicado pela minha prima. Mar de Rosas dos The Fever. Em que rico Mar de Rosas vivíamos, prima Mila.

Este aparte serve um pouco para desanuviar. Não andarei longe da verdade se disser que foi ali, como cantineiro, que aprendi a viver como hoje vivo. Bem em metade do mês, e mal na outra metade. Que se lixe viver o mês todo mais ou menos.

Ter bebidas frescas foi a minha primeira prioridade. Os frigoríficos a petróleo não eram muito fiáveis. Pelo que li agora, quando recebíamos o pré (Ordenado), o consumo triplicava. Teria que ter, durante alguns dias, uma média de 250 embalagens de bebidas frescas diariamente.Com dois frigoríficos pequenos como eram aqueles, foi complicado.

Uma coisa lhes garanto: para os camaradas que estavam em serviço, ou que vinham de operações, as bebidas frescas nunca falharam. Leio aqui que, infelizmente, para outros tal não foi possível. O meu pior serviço era para os que queriam bazucas; ocupavam muito espaço, eram difíceis de refrescar e, por isso, havia sempre poucas. A bazuca era uma das nossas boas armas de guerra. Na gíria, referíamo-nos também a “bazuca”, designando uma cerveja de litro, devido à configuração da garrafa.

Infelizmente, o dinheiro acabava depressa e o consumo diminuía drasticamente.

Uma coisa é certa e estranha. No dia anterior houvera festa nas tabancas.

“Meu bem ontem houve aqui festa nas tabancas, pois iniciou-se o ano Muçulmano, portanto para aqueles que em vez de Deus, adoram Alá foi o primeiro dia do ano, isto porque a religião deles não é igual à nossa eles são muçulmanos e nós cristãos”

Escrevi mesmo isto? De facto está aqui bem explícito, o que só demonstra a minha ignorância, então.

Talvez não seja tanto assim, pois em muitos aspectos, acho que me reduzi intelectualmente. Por exemplo, só recentemente voltei a escrever e se não fosse o computador corrigir os meus erros, daria mais que há 45 anos atrás e nem um inútil acordo ortográfico me ajuda.

Que coincidência! No aerograma seguinte falo de Camões e de poesia lírica. Que lindo texto escrevi no dia 17/1/73. Vou reler mais um parágrafo.

“ Alma minha gentil que te partis-te… Estes pequenos versos que compõe o soneto que te envio, referem-se à sua amada, que morreu afogada quando ele vinha da Índia, e sofreu um naufrágio, tendo salvo as folhas dos Lusíadas”. “Eu sei que nem qualquer pessoa gosta de poesia. Eu gosto”
Voltando ao início e como a reforma não chega para um mês, tal como os nossos salários na Guiné, vivo metade do mês bem e a outra metade mal-

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18454: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 35 e 36: "Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”

sábado, 24 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18454: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 35 e 36: "Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) >  O pessoal a preparar-se para mais uma "saída para o mato"...

Foto: © Jorge Pinto  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Claudino da Silva, o pai da ideiado "Bosque
dos Avós".. Gere a respetiva página no Facebook.
A inauguração do bosque é hoje às 10h00,
na serra do Marão. Apoio da
União de Freguesias de Aboadela,
Várzes e Sanche, conceçlho de Amarante

1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje);

(ii) foi criado pela avó materna;

(iii) reside na Lixa, Felgueiras;

(iv) é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(v) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado;

(vi) completou o 12.º ano de escolaridade;

(vii) foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(viii) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Hoje, 24 de março, ele e um grupo de avós e netos vão começar a replantar, às 10h00,  a bela serra do Marão, criando assim o "Bosque dos Avós".

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste (**):


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 35 e 36


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


35º Capítulo  > A PASSAGEM DE ANO 72/73


Na passagem de ano de 72 para 73 estivemos de prevenção. Foi grave o que eu e mais quatro fizemos. Leiam:

“À meia-noite em ponto eu juntamente com três amigos e um furriel que é um tipo porreiro, viemos desenfiados ao meu quarto e bebemos champanhe, comemos bolos e bolachas. No posto onde estávamos a fazer serviço, ficaram apenas seis colegas, quando deviam estar dez e um furriel. Foi uma coisa rápida, à meia hora já estava outra vez de G3 na mão a olhar para o arame”

Reconheço que cometi muitos erros em toda a minha vida militar; este talvez fosse o pior e devo mencioná-lo pela leviandade, na maneira de proceder. Felizmente, nessa noite, nada aconteceu, mas tenho de admitir que estar de prevenção numa zona de guerra pressupõe que algo de grave possa acontecer o que se viria a verificar em posteriores ocasiões e eu abandonei o meu posto.
Aproveitei o momento para, às zero horas em ponto, escrever para a minha namorada e para as de mais cinco dos meus camaradas.

“1972
0 HORAS.
Nesta Guiné Portuguesa o ano que agora se inicia será vivido a pensar em ti. Amo-te
1973”


É exacta a mensagem como é exacto tudo quanto acentuo a negrito por muito ridículo que possa parecer.

A prevenção terminou às duas da madrugada. Mais tarde descobrimos que foi uma “diversão” do capitão para mostrar quem manda e nada como o demonstrar na primeira noite do ano.

Sendo longa, esta carta onde conto o que atrás descrevi, aproveito para lhes dizer mais duas ou três coisas, nela mencionadas.

Era impreterivelmente no dia 1 de cada mês que tinha de apresentar as contas dos artigos que estavam sob o meu controle, o que me ocupou parte do 1º dia do ano. Há, contudo, um acontecimento que registei e quero partilhar.

“Às 11H30 veio uma avioneta militar buscar um negro que se magoou não trouxe nada mas levou o ferido e correio”

Não sei que logística foi necessária para que esse transporte fosse efectuado. O que sei é que o nosso médico não se importou com a cor do ferido para accionar um meio aéreo de transporte em condições de guerra. Isso ainda hoje é motivo de regozijo para mim. Talvez, por ter vivido em criança com ciganos, nunca lidei muito bem com atitudes xenófobas.

“Fui receber a oferta do Movimento Nacional Feminino. Deram-me oito livros da colecção R.T.P. logo que acabe de os ler vou enviar-tos; embora me pareça que tu não gostas de literatura clássica. Servirão sempre para passares o tempo. Manda-me dizer se queres que os envie ou não.

Meu bem, após ter recebido os livros tocou para o jantar. Aqui jantamos às cinco horas e sabes uma coisa? Estou em Fulacunda há cinco meses e foi a primeira vez que comemos carne de vaca. A notícia tem pouco interesse mas é para saberes a miséria que às vezes aqui anda. Pois bem hoje comi batatas estufadas com carne de vaca. Até soube demais”. 


Mais adiante na mesma carta:

“Desde o dia 26 de Junho até 31 de Dezembro tenho 130 cartas e aerogramas teus, deves ter mais ou menos a mesma coisa. Olha meu amor estava muito bem na caminha a escrever-te mas o capitão mudou de ideias e pronto, lá vamos nós outra vez estar de prevenção. Parece que os “turras” estão a lançar Very Lights.

Que vida tão complicada a nossa, tenho de me levantar, por isso meu bem quando eu vier às duas horas dar-te-ei as últimas notícias por agora tenho de vestir o camuflado e preparar a minha G3. É assim a vida, aqui somos um simples número, por isso estamos sujeitos a tudo. Até mais logo querida.

São três horas da manhã talvez logo venha uma avioneta, e traga correio teu. Recebe o beijo mais apaixonado que eu possa dar-te.”

Foram noites e noites como estas que milhares de nós tiveram de passar. Fazem ideia do tormento que foi? Explicaria melhor se vos falasse dos very-lights: sempre que um verde era lançado, na meia hora seguinte ninguém se mexia e, quando já estávamos novamente despreocupados, lá vinha outro doutra cor. Por vezes passavam-se noites inteiras nisto até algum dos meus colegas enervado dar uma rajada com a G3.


36º Capítulo > UM ANO NA TROPA


No dia 3 de Janeiro de 1973 completei um ano de serviço militar. O aerograma desse dia tem 90 linhas, em cada linha cerca de sete palavras. Escrevi, então, mais ou menos 630 palavras. A Maioria dessas palavras é de amor, paixão, dor e saudade. Tentei sempre brincar com a guerra e até nos momentos mais críticos os meus comentários foram suaves e com um certo patriotismo. Neste dia, porém, está patente uma tremenda revolta, que espero não se venha a acentuar, quando continuar esta leitura a que me propus 45 anos depois.

Começo por me referir o meu amigo Zé Leal. Estava, neste dia 3, convocado por castigo, para participar numa perigosíssima operação no mato e que felizmente não aconteceu. Quero dizer-lhes: os militares adstritos à formação tinham muito pouca experiencia em combate como era o caso, por exemplo, dos condutores. E o Zé era um o que, em minha opinião, em caso de combate, até era um perigo para os outros soldados especialistas.

Escrevi:

“Para que tu vejas como é perigoso o sitio onde os meus camaradas hoje foram fazer uma operação de combate, basta que te diga que para os apoiar vieram, uma avioneta equipada com metralhadoras e bombas e um helicóptero com canhão. Andam por cima deles para os proteger, mesmo assim foram atacados mas não houve nenhum ferido. Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”

No mesmo aerograma:

“Talvez não fosse má ideia pegar na minha arma, e obrigar o piloto da avioneta a levar-me até ti. Fazia como aqueles que desviam os aviões para Cuba. O pior eram as consequências.”

Honestamente, não sei a que consequências me referia. Pior que os castigos que tínhamos eram difíceis de imaginar.

____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18433: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 32 e 33: E as besteiras que a gente fazia ?!

(**) Vd. poste de 24 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18338: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 28 (O Ramadão) e 29 (A PPSH de tambor)... Ou um "estúpido" na guerra...


Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro (ou elemento da milícia popular...) empunhando uma PPSH, de tambor (a irritante "costureirinha", uma arma temível sobretudo em emboscadas)... Foi muito usada na II Guerra Mundial, pelo exército soviético: era a Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev. com tambor de 81 munições...

Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI)  (2010) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) [Edição e legendagem complementar


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) > O 1º cabo condutor auto José Claudino da Silva, junto a um memorial de uma companhia que passou por ali em 1966/68, a  CCAÇ 1624 / BART 1896, que, segundo a ficha da unidade, esteve em Fulacunda, Catió, Fulacunda, Bolama, Mejo, Porto Gole, Fulacunda, entre novembro de 1966 e agosto de 1968.

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Claduino da Silva, mora na Lixa, Felgueiras
1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita]

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade.

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook: é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura).


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 28 e 29

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


28º Capítulo  > O RAMADÃO

O estúpido ignorante 1º cabo 158532/71 só conhecia um Deus. O eterno e todo-poderoso Deus do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis,  por isso ficou surpreendido quando soube que Alá também é um Deus e ficou a saber isso na festa do Ramadão.

Descrevia por carta, aquele estúpido imbecil de 22 anos (pelos vistos era eu), no dia 8/11/1972:

“Hoje há aqui uma festa que é feita pelos pretos e eu vou até às tabancas para me divertir um pouco. Vê-los dançar o batuque e ouvi-los cantar aquelas canções ininteligíveis a Alá. O Alá é o Deus deles. Andaram um mês a fazer jejum e agora que o jejum terminou fazem uma festa fora de série. É engraçada a maneira como se divertem. Têm uma “capela” que não tem nada lá dentro eles vão para lá e põem-se a beijar o chão mas só os homens, as mulheres ficam cá fora pois não tem direito de entrar onde os homens entram. Elas é que trabalham e eles só comem e dormem pois cada um tem quatro ou cinco mulheres e eles não trabalham precisamente porque em cada noite dormem com uma diferente e precisam de ter forças para… Parece que não é preciso explicar melhor. No entanto há muitos a quem as mulheres não são fiéis, eles não tem forças e elas arranjam outros, principalmente brancos. Há aqui mais de uma dezena de bebés mulatos filhos de alguns soldados que viemos render ou de outras companhias anteriores.” 

Não admito que me gozem. Fiquei a saber, naquela época, que estes rituais são seguidos por milhões de muçulmanos em quase todo o mundo. Usam várias religiões para atingirem a vida eterna como nós fazemos na religião católica, onde há várias, mas só um Deus. Com eles, passa-se o mesmo.

Nós, para nos salvarmos, recorríamos a todos os santos consagrados pela Santa Sé. Rezávamos o terço e ouvíamos o capelão, fazíamos promessas à Nossa Senhora de Fátima, rogávamos a Deus e agora até a Alá, que passara a ter a dupla obrigação de nos salvar a nós e ao inimigo que também a ele recorria.

Alguns de nós tínhamos ainda vários amuletos e outros feitiços que garantidamente nos protegiam de todos os males, mais uns quantos pós e algumas mezinhas que entretanto descobríramos em África. Não fazíamos jejum 30 dias como os pretos, a quem eu me referia quase pejorativamente. Jejum, só fazíamos na quaresma, e só à sexta-feira. Éramos muito diferentes; a nossa religião melhor, achava eu!

Desde já garanto: O nosso salvador foi outro. Penso que existiu um em cada companhia. Na minha, foi o ANIBAL. Falarei dele no tempo da fome e no local onde ele merece estar. No cimo de todos
nós.

29º Capítulo  > A PPSH DE TAMBOR




Com a minha estranha maneira de ver a guerra, só em Novembro me referi levemente a algo com ela relacionada e envolvendo directamente, apenas os nossos grupos de combate. Foi num domingo, depois de ouvir o relato que dava em cadeia com a Emissora Nacional.

“Mais um Domingo triste e monótono que passei a 4000 quilómetros de distância. Até te vou contar uma coisa só para hoje ser diferente.

Os nossos pelotões de combate detectaram um elemento inimigo, feriram-no e embora ele conseguisse fugir apanharam-lhe a arma. (Uma PPSH de tambor) Menciono este facto porque normalmente quando uma companhia apanha armamento ao inimigo como prémio só está 16 a 18 meses no mato, por isso nós com um pouco de compreensão do General Spínola que é o Comandante-chefe do Comando Territorial Independente da Guiné. Diz-se C.T.I.G. só estaremos aqui 18 mesitos e depois vamos para Bissau. Bem bom.”


Acreditam nisto? Vejam bem como este parvo escrevia, num cenário de guerra, onde morriam pessoas. Ouvia monotonamente o relato como se estivesse numa colónia de férias.

No alto dos meus medíocres privilégios, estava-me nas tintas para o que os meus camaradas passavam nas perigosas operações militares a que estavam sujeitos. Pelos vistos, pouco me importava, quando percorriam por entre árvores e capim, debaixo dum sol abrasador, as matas e bolanhas pantanosas, com a água a chegar-lhes, muitas vezes, à cintura, aumentando imenso a dificuldade de caminharem, para que eu pudesse estar seguro no quartel.

Apenas posso afirmar, a meu favor, que quando regressavam ao quartel, nunca lhes faltaram bebidas frescas. Mas o que me preocupava mesmo era ouvir o relato de futebol e arranjar um gravador de cassetes.

[Continua]
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18312: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 26 (O primeiro castigo no mato) e 27 (O paludismo)

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18280: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 23 e 24: A partir de outubro de 1972, aumentei a requisição (quinzenal) de cervejas: de 5 ml para 6 mil... Por outro lado, fiquei chocado quando pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) > " Foi com espanto que pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas e que o nosso governo era um governo fascista. Fiquei escandalizado com o que ouvia e jurei continuar a defender Portugal e as províncias ultramarinas."

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade.

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande .


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina,  que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 23 e 24


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]



23º Capítulo  > OS PASSATEMPOS E OS PRIMEIROS "TURRAS"

Também comecei a construir o barco de fósforos e afazer pulseiras de missangas.

Entre ler, escrever, ouvir música e tratar das tarefas que me tinham sido atribuídas, ainda me sobejava tempo. Usei algum para construir a caravela portuguesa com cartão e fósforos. Com o rádio a tocar na Emissora Regional da Guiné, até então a única que eu sabia captar, vários de nós íamos dando forma à célebre caravela. Normalmente, fazíamos isso à noite. Foi precisamente num desses serões que o soldado de transmissões me disse para escutar determinado comprimento de onda. Dizia ele que era rádio Voz da Liberdade [que emitia em português a partir da rádio Argel].

Foi com espanto que pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas e que o nosso governo era um governo fascista. Fiquei escandalizado com o que ouvia e jurei continuar a defender Portugal e as províncias ultramarinas. Nessa altura, até tínhamos connosco um grupo de comandos africanos que durante três dias lutaram ao nosso lado.
 –  Então se escravizávamos os negros, porque lutavam eles ao nosso lado? – perguntei. 

A resposta que me deu o soldado que pela primeira vez me tentou abrir os olhos para o que nós estávamos a fazer em África, foi escrita por mim no dia 8/10/1972. São tão ignorantes e burros como nós!

Fico estupefacto e ligeiramente envergonhado ao ler o que escrevi naquele tempo. Tanta ingenuidade só podia mesmo ser burrice. Eu sabia ler. Que raio! Pior, eu lia muito. Pois bem, posso considerar-me um autêntico atraso de vida, ignorante, como convinha e convém a todos os poderes que dominam o mundo, sejam eles económico, religioso ou político. A ignorância faz-nos parecer e, pior que isso, somos (!) uns completos idiotas.

Já dois dias depois, escrevi:

“Os comandos africanos terminaram a operação capturaram dois  "turras".  Estiveram aqui no quartel. Posso dizer que já vi "turras”. Confesso que tive muita pena deles. O nosso 2º comandante mandou dar-lhes de comer e eles pareciam dois lobos, tão esfomeados estavam. É assim, hoje eles, amanhã nós, e a guerra vai continuando, felizmente que connosco ainda não quiseram nada. O problema é que não foram só os comandos africanos para o mato. Também 50 camaradas meus e isso nem me deixou dormir. Esta noite já dormirei pois vieram todos sãos e salvos.”


24º Capítulo  > ADAPTADOS


De 5000 cervejas que requisitava, a partir de Outubro, aumentei a requisição para 6000. Quinzenalmente. Os “Serrotes de Fulacunda” podiam afogar as mágoas na bebida e eu comentava que era normal beber bastante. O problema é que alguns passavam a ostentar uma barriga que dava voz ao slogan “ Branco tem barriga grande” e éramos aconselhados a ter cuidado com o aspecto físico. 

Invariavelmente dizíamos que, se calhar, nem sairíamos dali vivos. Acho que mesmo eu tinha essa sensação, embora não o dissesse. O meu maior amigo tinha morrido em Mansoa; sabia de outros que também tinham morrido um pouco por toda a Guiné. Era uma questão de sorte ou azar, pois mais tarde ou mais cedo seríamos os atingidos portanto, se a responsabilidade das bebidas era minha, ao menos que não houvesse falta delas. 

Havia sempre o problema de os frigoríficos, que eram a petróleo, não terem capacidade para tanta cerveja, mas só o saber que havia cerveja no armazém era um bom lenitivo para a nossa sobrevivência. Que não se sequem as gargantas. Que a festa dure até às tantas. Logo a seguir, comecei a requisitar vinho [verde] Casal Garcia. Ou não fosse eu de Penafiel. 

Escusado será dizer que não demorou a começarmos a ter acidentes. Era naturalíssimo. Com a velocidade que os meus colegas conduziam as Berliets, Unimogs ou Jeeps pela picada, quando íamos ao rio buscar os reabastecimentos, algum acidente teria de acontecer. Felizmente, eu era bate-chapas e o primeiro a bater foi com uma Berliet. 

Gostei de, durante um período de tempo, trabalhar na minha profissão e pude perceber que, mesmo estando nós, reduzidos num pequeno espaço, cada um estava a trabalhar no seu ofício. Pintores, trolhas, pedreiros, carpinteiros, electricistas, mecânicos, padeiros, cozinheiros, agricultores, etc. etc. Estávamos a criar condições para o desenvolvimento das potencialidades que nos permitissem prosseguir, com sucesso, a vida civil se conseguíssemos regressar. “Estamos a ficar adaptados”.

Aos que pretendiam, por exemplo, emigrar, enveredar pelas forças de segurança, ou até outras profissões, também notava que se preparavam para isso. Gostei sobremaneira dum colega que queria ir para a CP. Sabia tudo sobre comboios.

Espero que todos eles tenham concretizado o sonho com o mesmo, ou mais sucesso, que eu tive na minha profissão, e que agora estejam a gozar uma merecida reforma.

(Continua)
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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18164: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 18: Os substitutos dos 'Capicuas' [CART 2772]


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > A estante do quarto (, de 3 x 2 m,) dos "Mórmones de Fulacunda":  o Dino, o Omar, o Meira e o Lee.
  

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:





Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972,no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda".


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 18: Os substitutos  


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve,  das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


18º Capítulo > OS SUBSTITUTOS


Apesar das muitas festas em honra dos soldados que iam deixar Fulacunda [, da CART 2772,], a população nativa andava triste. Os velhos iam partir.

Durante dois longos anos, os “Capicuas” tinham angariado imenso prestígio entre a população, evitando muitas vezes que corresse perigo e socorrendo, tanto com alimentação como medicamentos deles próprios algumas enfermidades que a apoquentasse. Agora que os “Capicuas” partiam, notava-se algum receio. Seria que nós, os novos, estaríamos à altura dos que fomos substituir?

Posso garantir que nos comportámos dignamente. Sendo nós os últimos militares naquela região, antes da independência da Guiné, garanto, e posso provar, que os soldados da 3ª Companhia, do Batalhão 6520 que cumpriram a sua missão entre 72/74 do século XX foram, dentro do que lhes foi humanamente possível, excedíveis no cumprimento da sua missão. Em todos os aspectos. Salvaguardando, naturalmente, e de forma patriótica, o nome de Portugal. Esse que actualmente nos repudia e desconsidera.

Falo nisto porque, inclusive na altura, escrevi que até os cães e os gatos deixaram de brincar, depois que aqueles heróis partiram.

Partiram uns, ficaram outros não menos heróicos.

A carta que escrevi em 27 de Agosto tem oito páginas, mas resumidamente digo o que eu e mais três colegas recebemos, na véspera da partida dos velhinhos, no seu regresso a casa.

Tenho lá tudo mencionado, nas folhas já amarelecidas pelo tempo.

Primeiro esclareço que os quatro fomos parar a esse local porque foi antes ocupado pelos soldados que substituímos. Um dos quatro foi, e continua a ser, um dos meus maiores amigos. Tem nome: José Leal.

Recebemos um quarto com quatro camas, estante, ventoinha e candeeiro eléctrico. Quase porta com porta, um sólido abrigo antibomba, que também servia de cozinha. Nele existia uma máquina a petróleo, um tacho, uma panela, duas cafeteiras, uma frigideira, cinco pratos e quatro copos, diversas latas e garrafas. Enfim, tudo de que necessitássemos para cozinhar, desde que conseguíssemos os ingredientes.

Os aposentos palacianos tinham as seguintes áreas: O quarto - três metros por dois; o abrigo - quatro por dois. Nunca percebi porque não dormíamos nos abrigos, como todos os meus colegas. Estes, os abrigos eram subterrâneos para a população e em cimento armado para os militares. As paredes e teto teriam cerca de um metro de grossura. Estavam colocados em pontos estratégicos ao redor da “Vila”. Pista 1. Pista do Meio. Pista 2. Buba. Brutus. Lagartos. Torre.

Cada um tinha um espaço muito reduzido. No seu interior, doze camas amontoadas. A maioria dos que lá viviam eram os soldados atiradores. Os especialistas, tal como hoje, tinham um pouquinho mais de conforto. O certo é que estávamos protegidos. Eu acreditava mesmo nisso.

O nosso “palácio” não tinha nome; baptizámo-lo com o sonante nome “Refúgio dos Mórmones”.

Os quatro "Mórmones de Fulacunda"  rapidamente, e através do Programa das Forças Armadas [PFA] da Emissora Regional da Guiné, seriam conhecidos por toda a província. Éramos o Omar, o Dino, o Meira e o Lee.

Os velhotes partiram no dia seguinte.
– Boa viagem, “Capicuas”.
– Obrigada,  3ª Companhia. Encontramo-nos na Metrópole daqui a dois anos.

(Continua) (**)

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Notas do editor:


(**) Fora da série foram já publicados dois capítulos (25º e 34º)  relativos à quadra natalícia de 1972:


22 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18122: O meu Natal no mato (43): as mensagens natalícias de 1972, gravadas pela RTP a 23 de outubro... E se a gente morresse, entretanto ?...Como não tinha pai nem vivia com a minha mãe ou com os meus irmãos, tive de dizer “querida avó” e mais umas balelas obrigatórias... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

sábado, 9 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18066: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 13 (Não quero morrer( e 14 (As praxes dos 'Capicuas', CART 2772)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  O autor, ao volante de um Unimog 411 (o famoso "burrinho"), à entrada da vila de Fulacunda




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  O autor, no seu  quarto, n acama, a ler "O Século Ilustrado"...

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772.

2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 13 (Não quero morrer)  e 14 (Os  'capicuas')

[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]



13º Capítulo > NÃO QUERO MORRER


Pouco a pouco, estava a adaptar-me ao clima tropical, mas também ao clima emocional. Exactamente um mês após aterrar em Bissau, parti para Bolama, onde fui juntar-me aos meus camaradas da 3ª Companhia. Como calculara, tinha imensa correspondência. Passei algumas horas a ler e responder a todos os que me tinham escrito.

Quero desde já dizer-vos o seguinte: A distância, por incrível que possa parecer, tem o condão de aproximar as pessoas que se amam, e afastar aquelas cujos sentimentos não são tão genuínos. Todos os que, como eu, estiveram, ou estão ausentes, se o amor ou a amizade não tem raízes profundas, num curto espaço de tempo acabam por ser engolidos pelo esquecimento. No que eu escrevia era notório que a minha sensibilidade estava a mudar. Talvez eu estivesse a transformar-me.

No dia 29 de Julho escrevia:

“Estou neste momento a bordo duma lancha LDM, com destino a Fulacunda, local aonde vou cumprir a comissão, estivemos a ouvir o discurso do filho da puta do comandante e em seguida recebemos o armamento que é o seguinte. Uma espingarda G3, uma faca de mato, 100 munições (5 carregadores), um cinto, um cantil, um bornal, uma marmita. Depois tive de vestir a farda camuflada, foi a primeira vez que o fiz. Vou tirar fotografias com ela.”


Já sei em que me estava a transformar, numa Máquina de Guerra... mas também ainda tinha um pouco a sensação de estar num filme. Uma coisa afirmava na mesma carta. “Não quero morrer!”

Perdi algo de mim, em cada dia que passei naquele pedaço do continente africano. Não foram precisos muitos dias para começar a perceber que alguma coisa estava errada, mas ainda não sabia o que era.

Viajámos durante quatro horas pelo canal ou rio Fulacunda, fortemente armados, em duas lanchas com cerca de 70 soldados em cada e ainda hoje sinto um aperto enorme no peito ao lembrar a minha chegada ao local onde iria permanecer dois anos. Nós fôramos condenados a viver num campo de concentração.

Não sei se para impedir a entrada ou a saída, a vila de Fulacunda estava rodeada de arame farpado.

Neste capítulo, quero dizer-lhes que só relatarei o que na época escrevi. Não vou consultar absolutamente nada sobre Fulacunda ou a Guiné-Bissau, na internet, ou outro dispositivo de informação actual. Sensações ou emoções serão as que senti. Não me preocupa a geografia ou até se errar em discrições que faço de locais. Nos meus escritos, acredito ter alguns erros objectivos, mas, no fundo, o que pretendo é que sintam o que eu senti, se para tal tiver capacidade de o traduzir em palavras. A minha guerra, com certeza absoluta, é diferente de todos no íntimo e igual no tempo. A descrição que fiz sobre a vila de Fulacunda perdeu-se algures, apenas possuo as fotos.



14º Capítulo > OS CAPICUAS


A alegria estampada em cada rosto dos soldados que fomos render era tal que creio nunca mais na minha vida vi semblantes tão felizes.

Na sua recepção aos novos, cada elemento, de cada especialidade, transmitiu ao seu substituto todos os pequenos bens que foi usando durante a sua própria comissão e que não podiam, ou não queriam trazer consigo. De mecânico para mecânico, condutor para condutor, enfermeiro para enfermeiro, atirador para atirador, e por aí adiante, desde pequenas hortas, a ventoinhas ou rádios, livros ou discos. Informando-nos quais as mulheres locais que melhor lavavam a roupa e até às funções que desempenhavam dentro do quartel, dando-nos inclusive alguns conselhos, de como devíamos proceder em caso de ataques do inimigo.

Aqueles homens tostados pelo calor dos trópicos e endurecidos pelo sofrimento de estarem numa guerra longe de quem mais amavam,  fizeram-nos a melhor praxe que alguma vez algum caloiro teve, ou terá. Com a solidariedade de quem sobreviveu, fomos praxados para melhor enfrentar a morte.

A companhia que substituímos também foi um número, o 2772. Ficaram conhecidos como “Os Capicuas” [, CART 2772]. Em meu nome e em nome de todos os elementos da 3ª Companhia do BART 6520, a eterna gratidão. Após 45 anos, ainda me lembro de vocês. Se o cabo condutor que substituí ler este texto, a foto que junto é da sua cama. Peço desculpa por colocar a imagem da santa debaixo da mezinha de cabeceira. Embora, naquela altura, ainda possuísse alguma fé no divino, penso que era mais importante ter a G3 mais à mão do que os santos.

E comecei a deixar crescer o bigode. Estava a ficar um homenzinho. Penso que, na realidade e até hoje, nunca consegui. Também nunca fui verdadeiramente uma criança.

Quando foram distribuídas as tarefas, fiquei com a missão de zelar pelo depósito da cantina do bar de sargentos e bar de oficiais. A partir de agora, tudo que os meus camaradas precisassem, desde tabaco a bebidas, eu era o responsável para que nada lhes faltasse. Comecei a beber cerveja. Em breve, seria vinho, whisky, gin e por aí adiante. O menino da avó tinha ficado na Metrópole. O Claudino desaparecera mesmo, e ali, para simplificar, passei a ser o 118.



Guião do BART 2924 (Tite, 19670/72) a que pertencia a CART 2773, que foi substituída pela 3ª CART / BART 6220/72. Por este batalhãio também o nosso grã-tabanqueiro, o médico Amaral Bernardo, entre janeiro e julho de 1972.


Foto  (e legenda): © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]inua)

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