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terça-feira, 31 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P2013: Questões politicamente (in)correctas (31): o racismo e a disciplina militar (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 52 > Natal de 1970 > Comentário do BS: A fotografia chegou-me a Lisboa depois do Natal de 1970. Tem escrito Recebe um abraço do Nelson Reis, Fá, Natal de 1970. Parti do Xime para Bissau a 4 de Agosto desse ano. O Nelson Wahnon Reis chegara meia dúzia de dias antes. Creio que se cometeu um erro tremendo com a sua nomeação para um pelotão de fulas e mandingas, felizmente que tudo acabou em bem. A seu tempo falarei desse período na Operação Macaréu à Vista. Agradeci as notícias, mas logo informei que estava a preparar exames, o que não era bem verdade. Estava tomada a decisão de cortar radicalmente o contacto, tinha aqui os estropiados, e chegaram mais, nos anos seguintes. O Nelson está ao centro, de pé. Tem a sua direita, já bem gordinho, o Cabo Queirós, o 81 ( ajudava-me no morteiro, nos dias de festa...), sentado à direita, de mão no queixo o meu inesquecível guarda-costas, Tcherno Suane. Comentário do L.G.: O Alf Mil Nelson Wahnon Reis, que foi substituir o Beja Santos, no comando do Pel Caç Na52 (entretanto transferido para Fá Mandinga, por troca com o Pel Caç Nat 63, do Jorge Cabral, que foi para Missirá) era natural de Cabo Verde.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Disparidade de Critérios: Cabo metropolitano ou cabo guineense?

por Beja Santos

Luís, tu questionaste-me se a minha reacção face ao comportamento repreensível do Cabo Benjamim Lopes da Costa (ver episódio "Mataste uma mulher, branco assassino!") (1) teria sido idêntica caso tivesse ocorrido com um Furriel ou Cabo metropolitano. Desculpa só hoje responder, foi só por pura falta de tempo.

Respondo sem hesitar: sim, teria sido a mesma. A minha relação com e Cabos não tinha distinção, orientei-me sempre pela dedicação, motivação e competência. Para falar só de Benjamim, meses mais tarde sobre esta triste ocorrência, ele foi louvado por "ter demonstrado excepcionais condições de trabalho, desembaraço e entusiasmo em todos os serviços de quem tem sido encarregado... Abnegado e competente, também nas actividades operacionais se revelou um elemento cumpridor e com quem se podia contar".

Em 1971, tinha já a guerra acabado para os dois, convidou-me para padrinho de casamento (assistiu e participou na boda do meu casamento, em Abril de 1970), não podia nem queria aceitar, enviei-lhe a prenda que ele me pediu, as alianças. Através do irmão, o Benicío Lopes da Costa (foi secretário-geral da Assembleia Nacional Popular e brilhante aluno de Filosofia da Cristina) fui sempre tendo notícias e estivemos juntos em 1991, por várias vezes. Veio a morrer num estúpido acidente de automóvel.

Tu, que conheces melhor que ninguém o volume publicado no blogue, não encontras discriminação nos tratamentos. Havia três Furriéis, aparece sempre o Casanova e o Pires, nunca escrevo sobre o Pina, que adoptou connosco um estranho comportamento de um desenfianço permanente (terá direito ao episódio "O dedo mindinho do Furriel Pina"). No entanto, ele será transferido para o [Pel Caç Nat] 63 e receberemos o Furriel Vitorino Ocante, um guineense, um homem afável, cumpridor e competente.

Não te esqueças igualmente que eu sempre tratei o Cabo Costa como o mais culto dos meus colaboradores. Era um papel de Bissau, frequentou o liceu e tinha uma preparação cultural muito acima da média. Na emboscada de Malandim (1), produto das circunstâncias, certamente por ser a primeira vez que via sangue, o Benjamim fraquejou. Ou eu cortava a direito ou o sentido de justiça que é crucial na comunicação com a tropa guineense estava definitivamente perdido e os meus créditos arruinados. Vi assim, sentia assim, se voltasse atrás teria procedido assim.

Beja Santos

________

Nota de L.G.

20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!
Comentário ao post:

Luís Graça disse...

Meu caro Mário e restantes camaradas da Guiné: Uma das regras de ouro do nosso blogue é: Ninguém condena ninguém!... Nenhum camarada que fez a guerra da Guiné diz para outro camarada de armas, a esta distância (de 33 a 44 anos): Foste herói, ou foste coberde, ou foste assassino, ou foste criminoso de guerra... Ninguém, nesta caserna, está em condições de dizer, olhos nos olhos, a outro camarada: Procedeste bem, procedeste mal...

Nenhum de nós quer ser ou pode ser juiz em causa própria: Mal ou bem, estivémos num lado da barricada; lutámos ou fingimos que lutámos; matámos (por muito que nos custe admiti-lo); destruímos aldeias, meios de vida, gado; envenenámos poços; regámos culturas de arroz com napalm... Como em todas as guerras, defendemos e atacámos. E, como muito bem nos lembra o Briote, fizémos escolas, abrimos centros médicos, mobilizámos milhares de jovens guineenses, criámos a ilusão da Guiné Melhor... Enfim, fomos capazes de fazer a paz, em condições dífíceis...

Há guineenses, hoje - não posso quantificar - que guardam boas recordações de nós; outros nem tanto... Na realidade, a guerra colonial foi também uma guerra civil, em que valia tudo (ou quase tudo), incluindo a demagogia...

Serve este preâmbulo para saudar o Mário Beja Santos pela sua coragem e honestidade intelectual. Toda a gente sabia, na Bambadinca do meu tempo, que ele montava emboscadas, à noite, às gentes de Madina (leia-se: às forças do PAIGC) que vinham abastecer-se nas aldeias ribeirinhas do Rio Geba, de etnia balanta, que por sua vez faziam as suas trocas comerciais com os comerciantes (brancos) de Bambadinca...

Alguns de nós, como eu, não apreciavam muito o comportamento (militar) do Tigre de Missirá que levava a sua missão até ao extremo limite das suas forças... Por isso, ele teve a sua cabeça a prémio... Mas na véspera de acabar a sua comissão, quando escapou por um triz de uma mina, os seus camaradas da CCAÇ 12 e da CCS do BCAÇ 2852, e de outras unidades, atravessaram a bolanha de Finete, de noite, para ir em seu socorro... Ele era nosso camarada. E eu também estive lá. Eu, o Humberto, o Carlão e tantos outros.

Hoje, ao ler os seus escritos, que temos vindo a publicar ao longo de um ano, eu entendo melhor os terríveis dilemas morais de um homem só, a quem foi confiada uma missão hercúlea, quase impossível...

Não vou julgá-lo, não tenho esse direito, a respeito do que se passou na emboscada de Malandin, no dia 3 de Agosto de 1969, às 19h...

Quero apenas acrescentar que também sou capaz de entender (compreender, o que não implica nenhum juízo de valor) o comportamento do 1º cabo Costa, papel, oriundo de Bissau...

Gostava de perguntar ao Mário, qual teria a sua reacção, se em vez do Costa, tivésse sido outro cabo, metropolitano, ou até um dos seus furriéis, o Pires ou o Casanova o autor das terríveis palavras "Assassino, mataste ua mulher"!... É uma mera hipótese teórica, mas a questão é interessante para suscitar uma reflexão (crítica) entre todos os camaradas que fizeram aquela guerra e que tinham, nas suas fileiras, militares guineenses, como foi o caso do Pel Caç Nat 52, do Beja Santos, do Pel Caç Nat 53, do Paulo Santiago, do Pel Caç Nat 63, do Jorge Cabral, da CCAÇ 13, do Carlos Fortunato ou da CCAÇ 12, do Luís Graça, do Humberto Reis, do Joaquim Fernandes, do Tony Levezinho, do Abel Rodrigues ...

Como é que eu ou qualquer um de nós teria reagido se houvesse, nas nossas fileiras, alguém, camarada, a gritar-nos na cara: "Assassino, mataste uma mulher!"...

Retomando as palavras de Jesus Cristo, quem de nós, hoje, está em condições de lançar a primeira pedra a um camarada que foi capaz de pôr o seu nome por baixo de um texto portentoso e ao mesmo tempo perturbante como este, que acaba de ser publicado no nosso blogue ?

Luís Graça

sábado, 7 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)


1. Mensagem do Luís Graça que raramente tem tempo e vagar para escrever as suas coisas pessoais neste blogue colectivo de que é editor. Hoje invoca outro estatuto, fazendo publicar um comentário, pessoalíssimo, sobre o conteúdo de um post do Tino Neves (1).

Quem terá sido o grafiteiro (avant la lettre...) que escreveu em 1968/70: "Em Mueda, os cordeiros que chegam, são lobos que saem" ? (1)

É um pensamento que é válido para todas as situações de guerra. Os jovens, quase imberbes, os meninos de sua mãe (como escreveu o grande Pessoa) (2), que chegam à frente de batalha, ainda são cordeiros, inocentes, virgens, imaculados... O horror, a violência da guerra, o matadouro, irão transformá-los em lobos, em duros, em violentos, em conspurcados... Não necessariamente predadores, assassinos, criminosos... (que é o estereótipo que o ser humano ainda guarda do pobre do lobo mau... do Capuchinho Vermelho!).

Mas há, seguramente, uma perda de inocência: nenhum de nós foi para a Guiné e veio de lá impunemente, igual... Os nossos amigos e familiares deram conta disso: já não éramos os mesmos, nunca mais fomos os mesmos...

Acho que é isto que o inspirado autor do mural quis dizer. É claro que há também aqui a dose habitual de bravata e de fanfarronice: é uma frase para intimidar os checas, os piras, os maçaricos, os novatos...

Também os militares, profissão de risco, têm a sua ideologia defensiva, as suas crenças, os seus talismãs, os seus mesinhos (usavam-nos os guerrilheiros na Guiné, em Angola, em Moçambique, não obstante a sua formação racionalista, marxista-leninista, dita revolucionária)... A bravata e a fanfarronice, além das praxes e do álcool, ajudavam-nos, a todos nós, a lidar com o medo, as situações-limite, a morte, o sofrimento, físico e moral, a impotência, o desespero…

Não há, nunca houve, super-homens, super-heróis: há apenas deuses, que inventámos, à nossa imagem e semelhança, e para quem transferimos qualidades e defeitos humanos... Que, aliás, inventamos todos os dias (no cinema, na internet, na televisão, nos jogos de vídeo) … Precisamos dos mitos, das lendas, da efabulação, do pensamento mágico, mesmo sob a roupagem (enganadora, falsamente securizante) da ciência e da tecnologia.

Daniel Roxo (1) deve funcionar, para os nostálgicos do paraíso perdido do apartheid (Moçambique, Rodésia, África do Sul...), como o Che Guevara que (ainda) funciona como um ícone, tanto para os jovens sem ideologia de hoje, como para os cotas, os seus pais e tios, os velhos revolucionários românticos que queriam, nos anos 60 e 70, incendiar o mundo, criando um, dois, três, muitos Vietnames!...

Há homens que são incapazes de deixar de combater...Mesmo, no limiar da decadência física, a adrenalina da guerra é mais forte que a razão... É um pulsão fortíssima. O que terá levado este e outros compatriotas nossos a alistar-se nas forças especiais do regime racista da África do Sul e a morrer em Angola por uma pátria que não era a sua ? Poderei perguntar o mesmo em relação aos cubanos que morreram, longe de casa, em Angola (mas também na Guiné).

Dir-me-ão que lutavam por um mundo em que acreditavam, por uma bandeira, por uma causa que era a sua razão de vida... Outros dirão ainda que eram simples mercenários... Sou céptico: o ser humano é motivacionalmente muito complexo e manipulável... Creio que a guerra também pode ser viciante, havendo homens que nela entram e dela nunca mais saem... A guerra pode até ser uma forma (heróica) de suicídio. E há estóorias de homens que, escapando vivos da guerra, não sobrevivem à paz...

__________

Nota de L.G.:

(1) Vds. post de 6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

(2) É, de facto, um dos mais belos poemas da poesia universal de todos os tempos:

O Menino da sua Mãe
por Fernando Pessoa (126)

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue,
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mãe. Está inteira,
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1479: Questões politicamente (in)correctas (23): O que podemos (ou não) fazer pelo povo guineense (Beja Santos)



Guiné-Bissau > Bijagós > 2007 > Poderá um país soberano viver (quase só) da caridade internacional ? Um pergunta (incómoda e dolorosa) de muitos dos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue e que não são propriamente um clube de saudosistas, antes pelo contrário gostariam de poder encontrar formas de serem activamenhte solidários para com um povo (irmão) que neste momento sofre, e sofre profundamente.

Fotos: © Jorge Rosmaninho (2007). (Com a devida vénia...). Extraído do seu blogue Africanidades (Vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África vista pelos olhos de um branco que, por sinal, é também um portuga do pós-império)

Mensagem de 11 de Janeiro de 2007, enviada pelo nosso camarada Beja Santos:


Caro Luís, caros tertulianos, vou procurar participar na conversação bloguístca face a esta etapa de agressividade e intolerância que se vive de novo na Guiné Bissau. Como somos um fórum, bom seria que apontássemos aonde o blogue pode ir mais longe, contribuindo para a paz e o desenvolvimento do país onde mudámos de mentalidade e aderimos aos ideais de Abril. Estou convencido que virá o dia em que podemos cooperar para a formação de quadros guineenses, ajudando-os nas suas competências e qualificações. Por ora, creio que será um esforço sério aprofundarmos entre todos nós os porquês de uma vida irreconciliável que pode augurar uma tragédia inominável : uma Guiné Bissau inviável, que só resiste ao sabor da caridade internacional. Vosso, Mário Beja Santos



O sofrimento profundo da Guiné-Bissaupor Beja Santos


Trabalhei na Guiné Bissau nos últimos cinco meses de 1991. Portugal subescrevera um protocolo na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor, já numa perspectiva de um trabalho conjunto a pensar na Cimeira da Terra, que se realizou no Rio, em 1992. A missão que eu recebi, em Lisboa, era a de apoiar as autoridades guineenses a promover a criação de uma legislação básica e de um serviço público orientado para o fomento de políticas do Estado e do associativismo livre e independente.

Tal missão , e na especificidade da Guiné, obrigou-me a contactar os departamentos governamentais da área económica, agricultura, pescas, saúde, educação e ambiente, pelo menos. Procurei igualmente conhecer os programas das agências das Nações Unidas, das fundações, decorrentes de tratados inter-estados conducentes à melhoria das condições de vida, bem como apurar o que faziam as Organizações Não Governamentais e grupos de interesse público.

Bastou-me um mês para constatar que a Administração Pública estava completamente paralisada, que as autarquias não funcionavam ou eram irrelevantes no que cabe à qualidade de vida, que não havia legislação nem vontade de a preparar, que nos mais altos cargos da Administração não se pretendia beliscar os interesses económicos instalados, claros ou obscuros.

A Bissau onde eu trabalhei desmoronava-se na coesão, na economia clandestina, na divisão entre os ricos do aparelho político e a multidão de sobreviventes. O que procurei fazer foi ouvir a opinião de quem representava o FMI, o Banco Mundial, o PNUD, a FAO, a OMS, os múltiplos programas no terreno, abarcando o saneamento básico, a criação de economia formal, os cuidados de saúde, a formação contínua, por exemplo.

De quase todos os que consultei e auscultei ouvi a mesma opinião: é um partido sem modelo económico, entregue aos altos e baixos do ajustamento estrutural proposto pelo FMI; os programas por mais generosos que sejam, nunca têm continuidade ou qualquer espécie de retorno. Prevalecem os expedientes, decididos e apoiados pela clique presidencial. Não há classe política, não há sentido dos interesses do Estado, os funcionários públicos e os professores não são pagos, enfim, nem na esfera produtiva nem na dos serviços nada funciona.

Este terrível diagnóstico levou-me a propor a criação de um serviço interministerial de defesa do consumidor com um corrdenador permanente, com reuniões mensais de todos os representantes, públicos e privados, com senhas de presença, e com a obrigatoriedade de apresentar um programa bianual de acção a favor de uma melhor cidadania no consumo e responder faseadamente pela sua execução. As autoridades portuguesas comprometiam-se a pagar inteiramente os custos deste funcionamento.

Estes documentos foram assinados pelas autoridades guineense e portuguesa e nunca levados à prática. A única experiência ditosa que trouxe foi na área da comunicação social onde a TV guineense produziu seis programas sobre a problemática do consumo numa óptica de satisfação das necessidades básicas. Depois disso nada mais aconteceu nos domínios do Ambiente e Defesa do Consumidor, continua-se sem leis nem vontade de as executar, os guineenses vivem muito pior depois da guerra e das peripécias político-militares subsequentes.

Serve este preâmbulo para vos dizer que antes de falarmos no posicionamento da Guiné-Bissau no actual espaço da CEDEAO e do franco CFA como nova moeda, e porque é totalmente inútil questionar se os povos da Guiné estão identificados com o Estado ou pôr novamente em tribunal todas as irresponsabilidades praticadas depois da independência, estou em crer que a Guiné tem severas limitações económicas, se deve reflectir como é que o quadro político, social, económico e cultural se devem reconciliar com o país.

A Guiné dos últimos 30 anos procurou desenvolver-se culpando o colonianismo, lançando-se em programas desmesurados e incompatíveis com o seu grau de riqueza, habituou-se à ajuda externa, trocou o modelo proteccionista rígido por uma liberalização que só satisfez alguns grupos de interesses, continua sem infraestruturas, sem sistema educativo, sem classe de funcionários comprometidos com o interesse público, sem saúde, sem potenciar as suas riquezas agrícolas e piscatórias.

Arrancar um país do marasmo não se faz por golpes de mágica. Tem que haver crença nas instituições, seriedade no seu funcionamento, respeito mútuo nos órgãos de soberania, sentir-se a autoridade responsável no saneamento básico, na protecção do ambiente, na desconcentração dos poderes junto de quem aceita o desafio da desconcentração e ousadia nas mudanças socioculturais travando o tribalismo e fomentando a identidade nacional. A Guiné-Bissau mostrará a confiança interna quando aderir a um Orçamento de Estado.

Arrancar um país do marasmo não se pode confinar à permanente negociação da dívida externa e dos auxílios dos doadores. Um programa de Governo (chame-se de unidade nacional ou não) tem que apostar em receber apoios para melhorar a sua produção nos bens onde está apto, desde o amendoim, passando pelo coconote, a extracção sustentável e exportação de madeiras e, sobretudo a colheita e a exportação do cajú. Os tratados económicos nas pescas deviam prever benefícios na formação dos pescadores e melhoria nos equipamentos da frota pesqueira nacional. Uma boa parte da ajuda externa devia estar afectada a planos de formação conjungando os departamentos da educação e formação profissional. A negociação da estabilização económica devia fazer-se à luz deste quadro de desenvolvimento e obter o consenso de credores e doadores.

Aliás, devia ser aq esta luz que Portugal devia restabelecer a sua cooperação, aprovado o modelo de desenvolvimento suportado pela generalidade dos partidos. Só invertendo o definhamento do Estado, só gerando a participação dos operadores económicos e dos agentes sociais, só negociando com garantias e probidade é que a comunidade internacional pode sentir que não se depende da arbitrariedade da fulanização política e vale a pena apostar numa ajuda e cooperação que esteja para lá da pressão a curto prazo e que perspective no longo prazo a coesão do Estado.

Ao nível da nossa modesta intervenção e pensando em tertulianos como o Paulo Salgado (1), devíamos reflectir para onde deve ir a cooperação portuguesa para além da língua e da formação universitária: a criar verdadeiros empresários e industriais, quadros públicos, pessoal de saúde, agricultores e pescadores. E enquanto blogue podíamos dar o exemplo: criando uma bolsa de estudo para alguém que possa contribuir para trazer mais paz à Guiné.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1470: Questões politicamente (in)correctas (22): O Império que fomos nós (Paulo Raposo)

Guiné > Região do Oio >Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Alf Mil Raposo com um milícia local.

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados.



Dois comentários recentes do Paulo Raposo a posts do nosso blogue, e que se enquadram - tratando-se de opiniões - na série Questões politicamente (in)correctas (1):


1. Comentário ao post de A. Marques Lopes (2):


Olha, Luís:

Há alguns assuntos no blogue que são muito sérios e têm sido tratados com ligeireza e também para branqueamento.

TODOS nós fizemos a guerra que nos foi imposta, não fomos a casa de ninguém para a roubar.

Foi o menino, filho de pai rico, chamado Kennedy , que começou a deselvolver o terrorismo em África contra nós e depois os russos foram atrás. Os mesmos americanos que estão a levar nos cornos no Iraque.

Isto da treta da independência e da resistência é como o Pai Natal. Estamos todos na miséria. A guerra foi feita por nós, os relatórios eram feitos por nós, a recolha de elementos era feita por nós, Sargentos, Alferes e Capitães.

Quantas mentiras lá colocámos, desde a carga da companhia, como o vagomestre e sargento a mamar à conta da comida que roubava da boca dos soldados, etc., etc. Acima daqueles postos só despachavam o que lhes punham à frente.

Atribuir culpas disto e daquilo ao Adamastor não tem pernas para andar. Temos de encarar estes assuntos com frontalidade.

Com mais independência ou com menos independência, se estivessemos todos unidos debaixo de uma mesma bandeira viviamos que nem uns nababos.

Assim cá e lá a miséria e total. Agora os militares vão ficar sem subsídios, é uma vergonha. Não podem ser mais humilhados pelos nossos políticos charlatões.

Mas Sócrates quando vai de férias para o Brasil, é à valente. O Comandante Alpoim teve tomates para ir buscar os nossos a Conakry. Este feito se fosse com americanos ou israelitas já tinha vários filmes.

Isto de menosprezar o que é nosso é próprio da mediocridade reinante. Onde está a nossa auto-estima?

O Império que somos nós, talvez em muito relatórios os mortos deveriam ser mencionados ou pelas unidades, ou pela 2ª Rep ou pelo hospital ou por outro caramelo qualquer. Se não constam é triste, pois é um Herói que ficou esquecido mas foi culpa do desleixo tipo à portuguesa.

Não havia intencionalidade, era à portuguesa. Agora quando os putos da GNR nos mandam saír do carrro, dizem logo Levante as mãos e abra as pernas. Isto é Hollywood, não é nosso.

Olha, é um desabafo. Estamos velhos e nos perguntamos qual o futuro de nossos netos. Vão pedir emprego aos chineses. Estes sim vão sugar em África, como nunca se viu.

Um abraço amigo do

Raposo


2. Mensagem de 13 de Janeiro de 2007, comentando um post do António Rosinha (3):

Olá, rapaz, li o teu texto e continuo a achar que a verdade ainda vai ser contada sobre a nossa guerra de África.

Quem nos fez guerra em África foi o menino, filho de pai rico, chamado Kennedy. Os russos foram atrás, ainda estou para saber porquê e para quê.

Depois faz-se um 25 de abril e, passados já vão 30 anos, ninguém está feliz e quem se vai banquetear com África vão ser os chineses.

Os heróis do 25 de abril bem podem limpar as mãos á parede. Nunca como agora os militares foram tão humilhados. De Badajoz até Lisboa é só auto estrada.

Todos os quartéis de Elvas, Extremoz e Vendas Novas para lá caminha, vai tudo fechar.

O apelo à virilidade acabou, por hoje aqui me fico.

Um abraço do

Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
B. Caç 2852
C. Caç 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo

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Notas de L.G.




quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1441: Questões politicamente (in)correctas (20): Sempe camaradas, nunca censores (João Tunes)

Comentário do João Tunes ao post do Carlos Vinhal (1):

Ora nem mais, camarada Carlos Vinhal.

Isto é mais simples que fazer a guerra. Estamos no blogue porque gostamos. A maioria de nós não se conhece. Temos em comum termos estado no mesmo sítio, no mesmo problema, uns ao mesmo tempo e outros em tempos diferentes. Fora isto, que é em si mesmo muito pouco para gerar empatia gregária, o que sobra? Pois, completar os ângulos e as vivências que preenchem a memória de uma fase marcante das nossas juventudes.

E como não sofremos de doença de pensamento único ou do reumático das regras de cartilha de espírito de corpo corporativo, seja ele castrense ou paisano, cada qual não abdica de olhar esta experiência colectiva, pelos caminhos da memória interrogada, segundo suas crenças, opiniões e visões. E, com a distância, sendo todos adultos a puxar para os velhotes que vamos sendo, além de democratas por condição, a diversidade dos olhares que existe em cada um só nos ajeita e enfeita os óculos que queremos usar para a realidade partilhada e esfumada no tempo. Sem estes condimentos, o blogue não seria blogue nem tertúlia, seria apenas uma enfadonha sessão de Ordem Unida para general passar revista.

Sei, desde que lá estive, na Guiné, que não estive na mesma guerra que qualquer outro camarada, os do meu tempo e minha companhia, mais os camaradas de tertúlia que estimo sem conhecer. Eu, como qualquer um, sou uma pessoa, único portanto. E na guerra da Guiné estiveram pessoas e não carneiros. E nenhum general consegue clonar os seus soldados. Vivi-a com outros. Apoei e apoiaram-me. Fiz o que pude e soube tentando não sujar a minha consciência de homem que ainda hoje não me pesa. Assisti ao melhor e ao pior nos homens, meus camaradas e meus inimigos, sabendo que a guerra leva os homens aos extremos de si mesmos e nem todas as lideranças são entregues a mentes limpas. Regressei com marcas da minha guerra, as sofridas na carne e espírito da pessoa que fui e sou, a pessoa que teve de se reconstruir para fazer uma vida familiar e profissional, habitando para sempre com a memória da guerra.

Já o disse, mas repito, que não acredito em memória colectiva. Porque não se pode encadear numa mesma percepção aqueles que fizeram a guerra e gostaram de a fazer com aqueles que a rejeitaram como sofrimento violento, inútil e injusto, os que tiveram boa sorte com os que sofreram de má sorte, os sobrevivos e os caídos, os saudáveis e os estropiados, os que tiveram a experência da morte ao lado ou da morte do inimigo com aqueles a quem o destino poupou da prova maior da guerra (a da morte).

Os que ainda recordam Spínola como Nosso General e os que o detestaram e só lhe dão direito ao trato de Caco Baldé. Cada um terá a sua memória que caldeou na pessoa total e única que é. No fundo, aqui, cruzamos memórias e, dessa forma, enriquecemos a memória de cada um. Leio com atenção e respeito a forma como cada um reconstrói a sua memória e a faz interagir com as dos otros camaradas. Pelas minhas posições expressas, saberão como já li tantas e tamanhas posições e depoimentos que se revelam nas antípodas daquilo que, à distância, penso daquela guerra. Algumas dessas, obrigando-me a ranger os dentes no limite da tolerância desportiva. Mas como não sou pastor de almas, consciências ou pensamentos, não há depoimento vosso, por muito antagónico que seja a perspectiva, que não me enriqueça e emocione na forma como vamos construindo memórias somadas que se vão iluminando.

Mas não perderia nem mais um minuto com o blogue se alguém, aqui, me impusesse (tentasse) uma forma única de olhar a guerra ou a pretensão de formatar-me o pensamento ou limitá-lo no seu direito de expressão. Ou invocasse qualquer princípio castrense ou patriótico ou regra grupal para tentar obrigar-me a gostar do que não gostei e a não usar o direito de o proclamar como entender. Até porque se fui guerreiro, não sou santo e, por isso, só respeito quem me respeita. Democraticamente, é assim. Tanto mais que neste blogue não há postos, nem comendas ao peito, nem feitos para a caderneta, ser-se camarada é que é o posto. O único.

Tiro o chapéu ao camarada Carlos Vinhal pela forma sensata como sintetizou o que pensa e apelou à tolerância plural. Assino por baixo a sua ordem de serviço. Cá continuaremos, sempre camaradas e nunca censores. E reitero o apreço e enorme gratidão pelo trabalho árduo e paciente do Comandante que mais estimei entre os que me calharam em sorte (falo, é claro, do nosso camarada Luís, arvorado em Blogo-Marechal). Se o batalhão do blogue assim o entender, este blogue vai continuar a enriquecer-se, enriquecendo-nos, sem parar. Transformando-se, talvez, na única guerra em que, todos nós, não desejamos tréguas nem cessar fogo. Estes são os meus sinceros votos.

Abraços de respeito e consideração para todos os estimados camaradas.

João Tunes
Ex- Alf Mil Trms,
CCS/ BCAÇ 2884
(Pelundo, 1969/7o; CCS/ B..., Catió, 1970/71)
Blogue: Água Lisa (6)
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1438: Questões politicamente (in)correctas (18): A derrota (mais política do que militar) afectou mais a tropa especial (Carlos Vinhal)

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1439: Questões politicamente (in)correctas (19): Os rambos só existem no cinema (Vitor Junqueira)

Mensagem do Vitor Junqueira. Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.


Caro Luís Graça e restantes camaradas ex-combatentes, tertulianos e não tertulianos, e em particular meu prezado amigo Amilcar Mendes (1), que não conheço pessoalmente e a quem me dirijo de forma especial, tratando-o por tu de acordo com as regras!

Através do Blogue e de alguns e-mail (poucos), chegaram-me judiciosos comentários sobre uma apreciação que fiz relativamente a um post do Pedro Lauret sob o lema "Na guerra não vale tudo, também há regras".

E a primeira questão que me ocorre é esta: Haverá por aí alguém que discorde da afirmação de princípios contida naquele título? Se essa pessoa existe, por favor ponha o dedo no ar porque eu preciso conhecê-la.

De contrário, posso presumir que estamos todos de acordo, e nessa altura ... vamos a banhos, que o mar está de senhoras, como dizem uns pescadores meus amigos da zona de Peniche.

Então camaradas, serenidade! Olhem que a maioria já deu perto de sessenta voltas ao Sol e os coraçõezitos, presos por arames, não estão para caturrices. E eu não quero ser o gato fechado no quarto, em que todos querem dar porrada. Conhecem esta? Não? Então experimentem e vejam como é que o filha-da-puta do gato se arreganha todo.

Bem, sempre terei que acrescentar algo mais para que isto não pareça um laudatório à madre Teresa de Calcutá.


Operações militares e barbárie

E aqui, ocorre-me uma segunda questão: Admitindo por absurdo que na guerra não há regras, porque é que a comunidade internacional se vinculou maioritária e voluntariamente a instituições como o Tribunal Penal Internacional? E porque é que pedimos a intervenção das Ligas de Defesa dos Direitos Humanos quando há suspeita de que num determinado conflito, esses direitos estão a ser desrespeitados?

E porque é que exigimos o acesso livre e incondicional da Cruz Vermelha Internacional aos teatros de operações, aos feridos e prisioneiros? Em última análise, como é que distinguiríamos os bandidos dos vilãos, os combatentes dos terroristas?

Meu caro Amílcar Mendes, tenho a certeza que concordas comigo. Tem de haver alguma forma de distinção entre operação militar e barbárie. E essa distinção, só pode ser feita através de REGRAS que devem ser gerais e universais, sagradas atrevo-me a acrescentar. Se quisermos ser Humanidade. E como acontece com qualquer regra, a sua violação implica necessariamente uma sanção, ou não é assim? Pronunciem-se os tertulianos juristas p. f.

Embora se trate de um assunto muito polémico, devo dizer-te e reafirmar perante a tertúlia, que, para este tipo de violações, admito a discussão da reintrodução da pena de morte. Os americanos, a quem neste campo não tiro o chapéu, têm neste momento vinte e quatro militares a aguardar sentença, que deverá oscilar entre a injecção reforçada de pentotal, na veia, e a prisão pepétua, por diabruras praticadas no Iraque.


A guerra como dever

Agora Amilcar, vou-te dizer uma coisa. Entre nós existem realmente diferenças, que nos tornaram combatentes diferentes embora a guerra fosse a mesma. E a principal diferença parece-me ser esta: Em primeiro lugar, eu fiz a guerra impelido por motivações políticas, hoje discutíveis. E em segundo, porque gostava e ainda hoje gosto da Guerra!

Para mim, Guerra, não é apenas aquela palavra a que os simplórios atribuem o significado de pegar em armas para matar gente. Ela representa, no meu entender, o direito supremo que uma sociedade organizada possui, de pegar em armas, matar e morrer se necessário, para defender valores que estão para além dos interesses individuais, como a segurança colectiva, a liberdade e a dignidade entre outros. Como tal, participar na guerra é também o supremo dos deveres. Acho eu.

A guerra e os psicopatas
Neste contexto, permite-me a franqueza amigo Amilcar, acho muito estranha a tua afirmação de que tiveste que matar para não morrer. É demasiado redutora, para mais vinda da boca de um comando. Então, mataste porque tiveste medo de morrer? Repara bem, medo, todos tivemos! Mas eu eliminei soldados do PAIGC deliberadamente, porque quis, porque eles eram um obstáculo às missões de que fui incumbido e não apenas porque tivesse medo de morrer. Topas a diferença?

Querido amigo Amilcar Mendes, todos sabemos que em matéria de santos e conforme aludiste no teu post, a coisa é mais ou menos como aquela questão das bruxas. Uns afirmam que as há, eu acho que não! Nem santos, nem meninos de coro nem coitadinhos, como bem referiste.

Aquilo de que tenho a certeza, é que sempre existiram psicopatas. Na sociedade em geral, nas antigas fileiras do PAIGC, como nas das nossas FA's. E esta gentinha, sentindo que por ter uma arma na mão, tinha poder de vida ou de morte sobre população desarmada, particularmente mulheres e crianças, prisioneiros, elementos do IN feridos ou desarmados não constituindo por isso qualquer perigo, fez merda. Da grossa. Não há desculpas que possam justificar estes comportamentos. Nem pode haver indulto. Para eles, manicómio ou tribunal.
Estes bandalhos envergonharam-me e eu isso não perdoo.


De Uzi na mão, um par de colhões e a cabeça no sítio


Estimado ex-camarada; interrogavas-te no teu post se o "Vitor Junqueira quando saía para o mato levava a arma numa mão e a Bíblia na outra". Estás quase lá! Na mão levava a arma, de facto, uma Uzi reluzente de que igual só havia outra na Guiné. Um dia destes vou contar-te a história dessa arma. Mas em vez da Bíblia, levava um par de colhões e o cérebro com que a mãe natureza me dotou.

A propósito de Bíblia, não sei se é lá que vem aquela máxima "não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti". Pois houve alguém que a transformou num regra de ouro com esta redacção " faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem ". Pois acredites ou não, eu consegui convencer o meu pessoal que este preceito era para cumprir à risca.

Olha meu, só te posso dizer que deu um resultadão! Enfrentava-se o perigo com outra alma, não se perderam noites de sono e fazer prisioneiros significava farra, em que eles também participavam. Aos cépticos, posso fornecer prova testemunhal.

Turras... ou antigos adversários, muito simplesmente

E agora, quase no fim e mais uma vez, a questão dos turras. Eu continuo a achar que eram soldados combatentes, ao serviço da sua Pátria que por sinal e naquele tempo era também a minha. Por isso, são-lhes devidos respeito e consideração, tal como exigimos para nós, por parte dos nossos concidadãos e esperamos da parte deles, nossos antigos adversários. Tendo em conta que alguns até se tornaram altos dignitários dessas novas pátrias, como chefes de estado e de governo com quem negociámos, rebaixá-los é o mesmo que rebaixar-nos a nós próprios. Ou estarei enganado?

Aqui como na diplomacia, tem que funcionar o princípio da reciprocidade, sem tergiversões. Já agora ó Amilcar e restante malta, se vos fosse dada a oportunidade, teriam tomates para um dia destes quando o General Nino Vieira vier a Portugal em visita oficial, lhe chamarem turra? Não? Porque é um turra General e Chefe de Estado? Então turras são só os soldados pé-descalço que ele comandou e que ficaram lá longe, a mais de quatro mil km de distância? A quem puder esclarecer-me, ficarei eternamente grato.

No seu post, o Amilcar diz que a História Política não é para ele, mas sim para letrados e iluminados. Mas a dada altura, não resiste à tentação de se intrometer um bocadinho em questões da política interna da Guiné. Diz ele: "Olhem o que está a acontecer na Guiné com a herança do PAIGC".

É claro para mim, que o direito de opinião não pode ser restrito e o Amilcar tem direito à sua. Porém, na qualidade de ex-combatente naquele território, eu pessoalmente acho que não devo pronunciar-me publicamente sobre assuntos internos do país. Por decoro e por prudência!


Wiriamu, meu amigo...

Amílcar, Wiriamu, "quem sabe o que se passou (lá)", perguntas tu. E eu, o que te posso dizer? Vai à Net. Lá encontrarás um número infindável de documentos elaborados por entidades nacionais e internacionais insuspeitas, que te fazem o filme todo daquele tristíssimo e vergonhoso acontecimento. E se quiseres falar com o autor da tragédia, também não será difícil. Bastará dirigires-te ao canal de televisão que há uns meses emitiu uma reportagem sobre o assunto e, estou convicto, que vos porão em contacto.

De homem para homem, não há força de boi

Relativamente a um e-mail que recebi, em que se fala mais uma vez de tropas de elite ou simplesmente especiais, dessas "autênticas máquinas treinadas para matar" em contraposição com a tropa macaca, arre-macho como prefiro chamar-lhes, ouçam o que tenho para vos dizer, se quiserem!

Dizia o meu velho pai, ex-polícia falecido em 2001, que "dois a um, enfiam-lhe uma agulha no cú". Também me ensinou que "de homem a homem, não há força de boi".

Os rambos do cinema americano

O pessoal anda a ver muitos filmes americanos, em que só o que mata que se farta é que tem valor como o dum-dum. Os rambos, criação estadunidense, só existem na tela, ou no dvd. Admito que por contágio deram origem às mais incríveis e ridículas "forças especiais" que por esse mundo proliferam.

Especializadas em quase tudo desde resgates disto e daquilo até intervenções para retirar gatos dos telhados. A juventude, empanturrada anteriormente com os filmes, agora com os jogos de guerra das play stations e quejandas, sente-se atraída e cai no logro. Através de programas de recrutamento astuciosamente elaborados e publicitados, eis que a armadilha se fecha. E ei-los aos milhares, enfiados dentro de body-bags. Será preciso falar deles? Sim, desses que vocês sabem? Que com a tal preparação do outro mundo e uma parafernália inimaginável já têm garantida e averbada, uma estrondosa derrota.

Vencidos por quem? Por gente simples, comum, com a alma a sangrar, um ódio desmedido e um desejo de vingança sem limites. Quanto a armamento, dispõem da astúcia, da velhinha ak 47, de umas engenhocas mais ou menos artesanais e de uns trícles do tamanho de umas meloas! Estes sim, são os rambos que sempre ganharam as guerras.

A todos envolvo num abraço fraterno desejando-vos a continuação de uma boa noite. Espero que tenham a pachorra de me ler dentro de dias, se o Luís quiser, pois espero postar sobre um tema bem mais a meu gosto: putas!!

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)

Guiné 63/74 - P1438: Questões politicamente (in)correctas (18): A derrota (mais política do que militar) afectou mais a tropa especial (Carlos Vinhal)


Guiné > Bissau > Voz da Guiné > Separata do nº 203, de 30 de Junho de 1973, dedicada ao Dia dos Comandos. Na quarta página vêem-se quatro fotos, da autoria do fotógrafo Álvaro Geraldo. Legenda:

(i) em cima , à esquerda: "O Alferes Marcelino da Mata, ostentando as suas numerosas condecorações, foi o digno Porta-Bandeira";

(ii) em cima, à direita: "O Alferes Carolino Barbosa, lendo o Código Comdanso" (diz-me o ranger Eduardo Ribeiro, que este alferes comando foi barbaramente assassinado em 1974 pelas tropas do PAIGC);

(iii) em baixo, à esquerda:"Os últimos minutos de Comando da Unidade [para o Major João de Almeida Bruno]";

(iv) em baixo, à direita: "Os primeiros minutos de Comando da Unidade [para o major Raul Miguel Socorro Folques]".


Foto: Eduardo Ribeiro (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Carlos Vinhal:

Camaradas:
Este assunto (1) dá pano para mangas. Muita coisa se poderá dizer e muito nos vamos repetir.

Já em tempos opinei sobre as diferenças entre as diversas forças militares actuantes e o modo de enfrentar e ver a guerra por quem lutou na nossa Guerra Colonial.

Conheci de perto uma companhia de comandos e pude verificar a diferença abismal que havia na sua preparação e comportamento militares. À partida eram seleccionadas entre voluntários, com características físicas e mentais especialmente dotadas para a luta. O seu treino era especialmente ministrado com exigência física e mental próximo dos limites humanos. Ganhavam uma mentalização e preparação militar que faziam deles tipos quase invencíveis, indestrutíveis e, porque não, quase uma máquina de matar, mesmo que fosse para não morrer, como muito bem diz o nosso camarada Mendes.

A matéria prima era muito fácil de moldar, jovens com 20 anos plenos de força e coragem a quem só faltava dar o incentivo e a arma. Iriam fazer as coisas mais complicadas em termos militares pois tinham sido treinados para não falhar. E quando falhavam? Não sei se há estatísticas quanto às sequelas psicológicas por tipo de Força.

Por outro lado, havia a tropa vulgar com uma impreparação tal que mais não era que carne para canhão. Por exemplo, os militares da minha Companhia fizeram toda a recruta e especialidade com arma Mauser e só tocou numa arma automática (G3) no IAO feito na Madeira.

Preparação diferente, logo visão e disposição diferentes. Tenho a impressão que a derrota (mais política que militar) que sofremos na Guerra, afectou mais a tropa especial que propriamente a dita tropa macaca.

Já confessei que fui para a guerra com o fim de voltar vivo e tentar não matar ninguém. Não fui para lá para acabar com o conflito, já que não fui culpado do seu início. Era inevitável cumprir as ordens operacionais que me eram impostas, mas isso fazia parte da minha condição militar que nunca rejeitei.

Sempre me achei um estrangeiro na Guiné e um ocupante. Nunca compreendi a nossa ocupação com a espada na mão direita e a cruz na mão esquerda. Foi este o nosso início em África. Invasores, julgando-nos superiores só por professarmos a Religião Cristã, impondo esta como salvação eterna. Impusemo-nos, não fomos aceites nem compreendidos. Mais tarde ou mais cedo havia de chegar a hora da desocupação e calhou à nossa geração o trabalho inglório de contrariar o inevitável.

Quem matou, devia tê-lo feito só para se defender. Quem massacrou ou atentou contra a dignidade do Inimigo, mesmo depois de morto, não foi digno da farda que envergou, fosse a de Portugal ou a do PAIGC.

Também já disse que os dois contendores têm coisas de que se devem envergonhar. Em ambos os lados houve erros, matando-se indiscriminadamente e massacrando-se sem motivo.

Na Guerra não vale tudo, mas a realidade, mesmo nos dias hoje, se encarrega de contrariar esta máxima.

Por muitas teorias que possamos desenvolver, temos de nos convencer de que:

(i) falamos do passado;

(ii) já temos mais uns anitos;

(iii) devemos expor as nossas opiniões sem ofender os camaradas que por terem outras ideias ou terem tido outras vivências, têm opiniões diferentes da nossa;

e, muito, mas muito importante, (iv) não deixemos o nosso Comandante Luís na difícil situação de ter de apagar fogos ou ter de filtrar os nossos escritos.

Paz e saúde para todos

Um abraço do camarada
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá 1970/72
Leça da Palmeira
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)


Guiné > Voz da Guiné > Folha de rosto da Separata do nº 203, de 30 de Junho de 1973, dedicada ao Dia dos Comandos. Na primeira página vêem-se duas fotos: à direita, do major João de Almeida Bruno, que cessava funções como comandante do Batalhão de Comandos da Guiné; e à esquerda, o novo comandante, o major Raul Miguel Socorro Folques.

Foto: Eduardo Ribeiro (2006). Direitos reservados.


1. Texto enviado, em 13 de Janeiro corrente, pelo Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74; hoje, taxista da praça de Lisboa):

A Guerra da Guiné e os Direitos Humanos
por A. Mendes

Vitor Junqueira, Luís Graça e demais membros da nossa tertúlia:

De há uns tempos a esta parte tenho sido mais leitor que interveniente, porque algumas coisas que vou lendo no Blogue, sobre o tempo da guerra da Guiné, me obrigam a estar calado. De facto, os comentários que vou lendo confundem-me ao ponto de não saber se falamos da mesma guerra e da mesma Guiné.

Primeiro que tudo estou no Blogue porque sou um ex-combatente da Guiné e é essa a razão deste Blogue. Trocarmos impressões sobre o que passámos é saudável. A razão por que é que passámos, isso é já história política. Para isso existem os letrados e iluminados que escrevem sobre as causas e consequências.

Vem isto a propósito dos comentários que aqui li sobre a Convenção de Genebra, Operação Mar Verde, Massacres, Direitos dos Combatentes e dos coitadinhos dos guerrilheiros do PAIGC! (1)

Por favor, não insultemos a memória dos que morreram em combate. Alguém que lá esteve pode achar que os turras eram meninos de coro? Será que o Vitor Junqueira e eu estivemos na mesma guerra ?

No ano de 1973, na estrada de Mansoa -Mansabá, numa emboscada a uma coluna junto ao chamado Carreiro da Morte, os senhores guerrilheiros do PAIGC apanharam à mão três agressores militares portugueses e, cagando para direitos ou convenções de guerra, cortaram-lhe o sexo e enfiaram-lho na boca depois de os matarem a sangue frio!

Se tal, como nós, cumpriam o direito defendendo a Pátria (não sei se a minha ou a deles), expliquem-me por favor quem é que era santo?

Fui combatente, como vocês, matei para não ser morto. A forma como, não tem a ver. Ou será que o Vitor ia para a mata com a Bíblia numa mão e a arma noutra ?

Enfim, relembremos Guidaje, Guileje, Canquelifá, Boruntuma, Gandamael, etc. porque o PAIGC não se limitou a defender a sua (deles) Pátria.

O Vitor fala em stresse de guerra, mas já tentou saber se tem a ver com a forma ou o conteúdo? Quem sabe o que se passou em Wiriamu ? Vamos condenar à pena de morte quem lá esteve? Para expiarmos todas nossas culpas, como combatentes, vamos ter que julgar toda a humanidade? Eu posso apresentar ex-comandos que lá estiveram, para o Vitor, o Luís e os demais tertulianos ouvirem a outra parte da história...

Já agora, e a propósito de direitos, olhemos para o que está a acontecer na Guiné e com a herança do PAIGC.

Vitor, Luís e restantes tertulianos, um abraço.

A. Mendes

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro Amílcar:

A gente ainda não se conhece pessoalmente mas já temos falado várias vezes ao telefone, e até lá temos apalavrada uma ida à sede dos Associação dos Deficientes das Forças Armadas, aqui mesmo ao lado da minha chafarrica, para dar um abraço a um amigo comum, o Patuleia...

Há muitas feridas de guerra, no corpo e na alma, que não saram e que vão morrer connosco. É o caso do Patuleia, que é uma figura conhecida, que dá a cara (e que cara!) pela ADFA, e por todos nós. É uma problemática dolorosa, essa, a do deve-e-haver da nossa guerra em África (sem esquecer a Índia, Timor, etc., como muito bem nos chamava ontem à atenção o António Rosinha) (2).

Como qualquer membro da nossa tertúlia, tu tens direito à palavra. Não preciso de te dizer que o teu testemunho, como homem e como operacional, me sensibilizou, e tem enriquecido o nosso esforço colectivo para reconstruir e divulgar a nossa memória da guerra na Guiné.

Como sabes, aqui - naquilo a que eu chamo a nossa caserma virtual - tratamo-nos por tu, o que não quer dizer menos respeito uns pelos outros, respeito pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (assumindo o que fomos ontem e o que somos hoje, sem culpa, sem complexos, sem acusações). Mas também sendo capazes de manifestar, de maneira franca e serena, os nossos pontos de vista, e sobretudo as discordâncias... Saudavelmente, como amigos, como camaradas... Na prática, como sabes, estas regras não fáceis de aplicar... Mas esforçamo-nos por consegui-lo...

Nunca escondemos uns dos outros que não pensamos todos pela mesma cabeça, nem sentimos todos pelo mesmo coração... A nossa riqueza está justamente no nosso pluralismo e na capacidade de gerir as nossas diferenças... É certo que nem sempre lemos o que outro escreve... Tu, por exemplo, se calhar não entendeste bem o que o Vitor quis dizer, ou então foi o Vitor que não comunicou bem... Compete a ele esclarecer-te, se for caso disso. Mas eu insisto: temos que aprender a ouvir os outros...

Para trás ficaram, entretanto, as velhas rivalidades entre infantaria, cavalaria e artilharia, entre a terra, o mar e o ar, entre a tropa-macaca e a elite da tropa, entre tropas africanas e metropolitanas, entre pessoal do quadro, do contigente geral e milicianos, entre operacionais e pessoal de apoio...

Aqui também não há bons nem maus, heróis ou cobardes, gente politicamente correcta ou incorrecta, letrados e iletrados... Somos camaradas, ponto final. A mim, compete-me dar igualdade de oportunidades a todos os que me escrevem, o que nem sempre seguramente consigo.

Não me compete tomar posição a favor de A ou B. Não sou juiz nem fiel da balança. Mas, confesso, que não gostaria que o nosso blogue fosse uma arena de combate. Não cultivo nem gosto de cultivar a polémica. Acho que podemos (e devemos) dizer olhos nos olhos (neste caso, no ecrã do computador) o que nos divide, o que nos separa... De preferência, com elegância, sem insultos, e com factos a fundamentar o que escrevemos... Esta pedagogia tem funcionado. E eu acho que podemos orgulhar-nos do nosso blogue, da nossa convivivência, e até da gente da nossa geração.

Não temos de estar acordo sobre questões dolorosas, dolorosíssimas (e ainda polémicas), do nosso passado recente (para não falar da nossa vasta e riquíssima história enquanto povo, estado e nação): os massacres de 1961 (em que morreram milhares de portugueses e angolanos, inocentes), os excessos (e crimes) que se cometem em todas as guerras, de um lado e de outro, Nambuangongo, Mar Verde, Wiriamu, Nó Górdio... Não estaremos de acordo seguramente sobre as razões por que fomos parar à Guiné, a Angola ou a Moçambique. Ou sobre a descolonização. Como a guerra foi conduzida pelos nossos chefes, políticos e militares.

Não podemos evitar falar de tudo isso, dessas e doutras questões ditas fracturantes. Podemos fazê-lo, mas de preferência evocando a nossa condição de protagonistas, testemunhas ou historiógrafos... Por exemplo, eu não estive em Wiriamu, nem estou suficientemente documentado para ter opinar sobre o que lá se passou... Eu nunca passei no Carreiro da Morte, na estrada de Mansoa-Mansabá e já não estava na Guiné, em 1973, mas gostava de saber quem (do lado do PAIGC e das NT) esteve envolvido nessa macabra cena que tu relatas...

Eu também não estive no chão manjaco mas quem lá esteve (o Afonso M.F.Sousa, o João Tunes) pode dar o seu testemunho (ou opinar) sobre o massacre do PAIGC que vitimou três dos nossos três melhores oficiais superiores do tempo do Spínola... Um historiador, como o Leopoldo Amado, também tem autoridade para falar sobre esse assunto, porque fez investigação de arquivo ou entrevistou dirigentes do PAIGC... Eu, confesso, que não tenho autoridade para o fazer, é uma questão de honestidade intelectual... (E a propósio, vamos abrir em breve um dossiê sobre este melindroso e doloroso tópico da guerra da Guiné, sob a direcção do Afonso M.F. Sousa)...

Por fim, queria só lembrar que também é nosso apanágio respeitar (ou tentar respeitar) o nosso inimigo de ontem... Eles, de facto, não eram meninos de coro. Mas não nós também não éramos turistas. Dito isto, concordo com o Pedro Lauret e o Vitor Junqueira: a guerra, todas as guerras, têm regras. E quanto ao Amílcar, queria só acrescentar: Todos matámos para não morrer... Afinal, todos fomos para a Guiné com "licença para matar e morrer"...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

13 de Janeiro de 2006 < Guiné 63/74 - P1425: Questões politicamente (in)correctas (16): na guerra, de facto, não vale tudo, também há regras (Vitor Junqueira)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)

(2) Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1432: Pensamento do dia (10): Honrar os que morreram no Ultramar (António Rosinha)

sábado, 13 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1425: Questões politicamente (in)correctas (16): na guerra, de facto, não vale tudo, também há regras (Vitor Junqueira)

Mensagem do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, comentando o último post do Pedro Lauret (1):

Caro Luís Graça,

Acabo de ler no Blogue um comentário do Pedro Lauret que de uma forma sucinta aborda a questão da ética na frente de combate, invocando preceitos que relevam do Direito Internacional e das Convenções, em particular a SOLAS 1974 ( Salvaguarda da Vida Humana no Mar), e as de Genebra que são quatro e não apenas uma como muitos supõem, e respectivos protocolos. Como exemplos, o Pedro Lauret apresenta o caso geral do combate marítimo entre forças embarcadas e concretiza uma situação de envolvimento terrestre com a Operação Mar Verde.

A minha reacção a quente a este comentário é a seguinte:

Em primeiro lugar e como ser humano, sinto-me feliz por constatar que, nesta caserna, alguém com autoridade e firmeza vem lembrar que, em qualquer guerra, passada ou presente, há barreiras que jamais podem ser ultrapassadas independentemente de ordens ou circunstancialismos. Isto é: não vale tudo, há regras.

E em segundo lugar, meus caros amigos, porque andando eu um pouco às aranhas, reencontrei-me finalmente! Sim, posso dizer que foi nesta guerra, a do Pedro, que eu participei. Porque foi esta conduta que me foi ensinada desde o berço até às salas de aula da EPI. Porque nunca recebi nenhuma ordem de operações em que o principal item fosse "matar" e menos ainda torturar ou seviciar.

Porque não faz parte da tradição das (modernas) forças armadas de Portugal atentar contra os direitos humanos de quem quer que seja, ainda que do IN se trate. Porque é na frente de batalha que a verdadeira estatura do homem se revela e sabemos (eu sei) que abnegação, magnanimidade e generosidade produzem altíssimos dividendos.

E finalmente porque todos temos uma consciência que, uma vez violentada, nunca mais nos deixa em paz. Será por isso que entre nós, como em outros povos (devidamente estudados), envolvidos em guerras recentes, há tantos inadaptados, psicopatas, suicidas, criminosos, stressados de guerra? Não se ofendam, porque a relação está provada!

E já agora, permitam-me um último desabafo. Eu não sou tão ingénuo como pareço. Tontos, sempre os houve na população em geral. Mais tonto ainda foi quem permitiu a sua incorporação e lhes entregou funções de comando. Casos como aquele de que Wiriamu é um terrível exemplo, não sendo porventura o pior, e muitos outros que a História silenciará, talvez pudessem ter sido prevenidos através de adequado filtro médico(?). Mas se não estão ou estavam doentes, estes indivíduos deveriam ser julgados, sendo o único caso em que admito a reintrodução da pena de morte. Não pode haver desculpas, estes casos não ficam resolvidos com peregrinações patéticas aos locais do crime por parte dos seu autores, com um batalhão de repórteres de TV atrás, como eu já vi. Um milhão de ex-combatentes sentem-se enxovalhados por estes indivíduos.

Às minhas mãos e às minhas ordens, com dignidade, muito respeito e uma profunda dor no meu coração, morreram seres humanos. MAS NUNCA NINGUÉM TEVE QUE MORRER. Nem foi maltratado ou humilhado.

E já agora, deixemo-nos de desvalorizar os direitos do adversário, chamando-lhes Turras. Eram soldados do PAIGC que tal, como nós, cumpriam o seu dever defendendo a Pátria. Tal como eu e outros.

Um abração e p. f. passa ao Pedro.

Vitor Junqueira

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)

Guiné > Regiãop do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > Um prisioneiro do PAIGC.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do Pedro Lauret (1), com data de 20 de Outubro de 2006, respondendo a um pedido do editor do blogue para opinar sobre algumas questões potencialmente fracturantes no seio dos antigos combatentes da guerra colonial (2):

A guerra tem regras. Existe direito internacional e convenções que a regulamentam. Cabe às Forças Armadas, em especial aos oficiais dos quadros permanentes fazer cumprir esses procedimentos, quer divulgando-os na formação dos que integram as fileiras, quer principalmente na acção.

A Marinha tem especial atenção a estas matérias, até porque o combate naval tem características diferentes do que é travado em terra. Um militar da Marinha é também um marinheiro, os marinheiros, por longa tradição naval, e por legislação, adoptam um conjunto de princípios que se designam por "salvaguarda da vida humana no mar". Este conjunto de princípios caros a quem anda no mar reflectem a consciência de alguma precariedade e impotência relativamente ao meio levando-os a abraçar aqueles princípios com convicção.

Num combate naval tradicional, o vencedor, ao afundar navios inimigos, vai provocar náufragos, que devem ser socorridos e tratados segundo as leis do mar. Cria-se assim uma dupla situação de prisioneiros náufragos.

Nunca os fuzileiros adoptaram lemas do tipo: "...nós não fazemos prisioneiros". Na guerra não vale tudo. O julgamento de Nuremberga vem claramente provar esta afirmação, retirando legitimidade àqueles que pensam que obedecer a ordens os absolve da responsabilidade de actos praticados.

Há individualidades em que é indiscutível a sua coragem e determinação, merecendo nalgumas circunstâncias a nossa admiração . No entanto o problema que se põe é a forma como alguns deles lutaram como quadros das Forças Armadas.

Para mim é intolerável, por exemplo, a Operação Mar Verde: As Forças Armadas prestaram-se a entrar em águas territoriais de uma potência vizinha, reconhecida internacionalmente e membro das Nações Unidas, com navios sem os símbolos nacionais, com os números de costado pintados; desembarcaram forças militares, com uniformes do PAIGC, armas soviéticas, sem qualquer identificação e com a informação que em caso de ficarem prisioneiros Portugal não os reconheceria. Em terra mataram indiscriminadamente civis, assaltaram o palácio do governo matando e pilhando-o, atacaram a casa de Amílcar Cabral, mataram familiares, pilharam lojas e cidadãos. A isto chama-se Terrorismo. Os actos praticados constituem, muito provavelmente, crimes contra a humanidade.

Muitas outras acções deste tipo tiveram lugar. Para mim são inaceitáveis e condeno-as firmemente. Estas acções poderiam ter sido levadas à prática pela PIDE, nunca pelas Forças Armadas.

Hoje, quando se fala de Conakri todos falam dos prisioneiros libertados, único objectivo atingido na operação. As Forças Armadas poderiam há muito tempo ter feito uma operação para os resgatar. Poderiam ter desembarcado um grupo de comandos, eventualmente embarcados num submarino, e de surpresa fariam um golpe de mão e libertariam os prisioneiros. Mesmo que a operação fracassasse e alguns militares fossem capturados mereceriam da comunidade internacional compreensão e protecção do direito internacional.

Não posso deixar, ao analisar certas personalidades [que se evidenciaram na guerra colonial], de as enquadrar nestas realidades. Penso que trazer estas matérias para o blogue é complicado, mas se o fizermos teremos que evidenciar toda a realidade. Será o blogue o espaço mais indicado para aprofundar estas matérias? Não poderemos nós com a nossa tertúlia debatermos estes temas doutra forma?

Um abraço
Pedro Lauret

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Nota de L.G.:

(1) Vd. alguns dos post do actual capitão de mar-e-guerra, na reforma, Pedro Lauret, que foi imediato da NRP Orion, na Guiné (1972/73):


29 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1393: Saudações tertulianas na chegada do novo ano de 2007 (1) : Luís Graça / Pedro Lauret

12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1362: Encontro: guerra colonial e descolonização (Pedro Lauret)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)


22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1202: Ganturé, Rio Cacheu, Maio de 1973 (Pedro Lauret)

1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)

(2) Vd. último post desta série: 4 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1400: Questões politicamente (in)correctas (14): Os Zés da Desordem deste País (Albano Costa / Torcato Mendonça)

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1400: Questões politicamente (in)correctas (14): Os Zés da Desordem deste País (Albano Costa / Torcato Mendonça)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > O regresso (do Albano Costa) e a descoberta (pelo Hugo Costa, seu filho). O Albano foi 1º cabo da CCAÇ 4150 (1973/74).

Foto: © Albano Costa (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem do Albano Costa:

Caro Jorge Cabral:

Obrigado, por teres trazido esta notícia para o nosso blogue, e ao Luís por a ter inserido (1). É bom que se chame atenção dessa guerra que, depois do 25 de Abril e ainda hoje passados 32 anos, a querem apagar da mente dos mais jovens, esquecendo-se que é preciso olhar para muitos Zés da desordem, os quais realmente é preciso morrerem para que a sua guerra acabe.

Esta tua chamada de atenção fez-me lembrar o que se passou em Guidage, em Maio de 73: quantos colegas ainda hoje têm dificuldade em esquecer o que se passou naquela altura!... Aiinda há bem pouco tempo estive a falar com um ex-combatente que esteve naquela guerra, e ainda hoje tem muita dificuldade em falar, só a muito custo foi contando alguma coisa do que lá se passou...

Obrigado mais uma vez, Jorge.

Um abraço Albano Costa

2. Mensagem do Torcato Mendonça:



Fundão: Torcato Mendonça (ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Fto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

Caro Luís: Depois das ditas Festas, voltas a aparecer. Bom Ano de 2007.

Senti a tua falta, do blogue, da leitura…mantive o hábito da abertura… da busca…finalmente aparece um post, dois, enfim o regresso.

Mas hoje, meu caro Luís, neste fim de tarde com o Sol já por detrás dos montes escondido, a geada a descer para os vales, o frio lentamente chega pé ante pé. É cedo ainda mas regresso a casa. Venho procurar um assunto na Net. Abro o Blogue, leio o escrito e poema do Jorge Cabral. Paro.

Os escritos dele são diferentes, direi desconcertantes. Releio devagar, a emoção ainda presente, o pensamento a ir-se, o Desassossego (não do Pessoa, o meu) a instalar-se, lentamente, tristemente a entender o Zé da Desordem… Tantos Zés que se afastam desta merda de ordem imposta... Porque regressaram, não regressando. Vivem na diferença e na indiferença que lhes foi é imposta, até um dia, meu caro Luís, até um fim adiado, igual ao do Zé ou mesmo em casa ou hotel de cinco estrelas, que interessa.

O Zé, os tantos Zés, terminam sós… Talvez se sintam noutro lugar, ou sintam o desejo ou o medo do regresso, não tendo nunca de lá partido totalmente…

Os Américas fazem a (s) bandeiras do nossos País. A nossa bandeira tem que ser diferente, urgente, tem que ser a bandeira para o(s) Zé (s) que ainda tantos existem, em desordem, em desassossego, nesta incompreensão de ordem que não é a deles (2)…

Nota: não tenho escrito. O tempo não é propício. Penso. Tomo alguma nota, em apontamento e guardo em reserva nas meninges. Mesmo para escrever isto, parei e não vou ler… Tenho cá um CD de fotos (50/60), não totalmente acabado, para enviar. Depois irá outro de outros tantos slides.


Um abraço,
Torcato Mendonça
Apartado 43
6230-909 Fundão

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1398: Poema de Natal: Só agora, camarada, te mataram (Jorge Cabral)

(2) Vd. último post desta série Questões politicamente (in)correctas:

12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 2930, com data de 15 de Novembro de 2006:

Luís Graça (permita-me que o trate assim):

Sou ex-Alf Mil Médico na Guiné, Dezembro de 1970/Outubro de 1972, Catió, Cacine, Guileje, Gadamael, Bedanda (11 meses), Tite e Jabadá, Bolama (20 dias para descacimbar).

Sigo com atenção ... e emoção, diariamente, este bolgue.

Hoje de manhã ao abrir o correio, foi o choque e a dúvida. A minha pergunta é: neste blogue os desertores (o termo é vosso) são considerados ex-combatentes por quem esteve na guerra? Este não é um local de ex-combatentes ? (1)

Respeito todas as opções e todas as pessoas. Mas penso que os grupos são distintos e não têm lugar no mesmo saco. Penso ainda que não deveria ser um lugar de branqueamento de posturas. Perdoe, mas é a minha opinão. E vale só isso.

Um abraço
amaral bernardo

P.S. - Claro que o Medeiros Ferreira não tem culpa nenhuma disto. Fez uma opção que eu respeito, repito.

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro Professor Doutor Amaral Bernardo: Não tenho o prazer de o conhecer pessoalmente, mas já descobri que temos várias coisas em comum, nomeadamente, o facto de sermos professores universitários, estarmos ligados à saúde e termos sido combatentes na Guiné, sensivelmente na mesma altura, você, entre 1970/72, e eu entre 1969/71...

O nome do Medeiros Ferreira apareceu no nosso blogue, evocado pelo Raul Albino, seu camarada da CCAÇ 2402. O Raul seguiu para a Guiné, o Medeiros Ferreira desertou na véspera do embarque (2)... O termo não é do Raul Albino, foi usado por mim em nota de pé de página... Objectiva e legalmente, a figura é a do desertor, sem qualquer juízo político, ideológico, moral ou ético.

O Raul Albino, que por razões de preparação logística seguiu em primeiro lugar para a Guiné duas ou três semanas antes, constatou apenas que à chegada da CCAÇ 2402 a Bissau, havia duas baixas de vulto no quadro de oficiais (sic): o Beja Santos e o Medeiros Ferreira (que hoje são, ambos, figuras públicas, sendo o primeiro membro da nossa tertúlia e colaborador activo do nosso blogue, tal como o Raul Albino).

Não há, por parte do Raul Albino ou do editor do blogue, nada que indicie ou sugira a condenação ou a glorificação da figura do desertor... Este blogue é de amigos e camaradas da Guiné... As regras de inclusão e de exclusão não estão definidas de uma vez por todas... Estamos abertos, por exemplo, a acolher, na nossa tertúlia, os homens e as mulheres que nos combateram, até 1974, sob a bandeira do PAIGC... Sem dúvida, que este é um blogue sobretudo dos ex-combatentes da guerra da Guiné, mas interessam-nos também os pontos de vista, as experiências, os testemunhos, de todos aqueles que directa ou indirectamente trilharam os caminhos da guerra e da paz...

Eu sei que a palavra desertor ainda hoje tem uma certa carga emocional para muitos de nós que fomos mobilizados para o ultramar... Eu sei que esta pode ser mais uma questão fracturante no nosso blogue, mas não devemos ter medo de a evocar e de a discutir...

Dito isto, registo, sem mais comentários, a opinião do Amaral Bernardo e aproveito o ensejo para o convidar a participar, mais regular e activamente, no nosso blogue. Espero, no minímo, que continue a seguir-nos diariamente, com a mesma atenção e emoção com que o tem feito até aqui.

Saudações do L.G.
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Notas de L.G.:

(1) José Maria Ferreira do Amaral Bernardo é Professor Catedrático Convidado no ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Responsável do Departamento de Ensino Pré Graduado do HGSA - Hospital Geral de Santo António, Porto.

(2) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1345: Questões politicamente (in)correctas (11): O Queta Baldé, a Associação de Comandos, o A. Mendes e eu (Beja Santos)

Resposta do Beja Santos a um comentário do nosso camarada A. Mendes, sobre o Queta Baldé, ex-soldado do Pel Caç Nat 52 e da 2ª Companhia de Comandos Africanos (1):

Clarificação
por Beja Santos

Meu caro Amílcar Mendes, meus caros tertulianos:

Visitei o Queta Baldé (2) ao tempo em que ele viveu em Chelas J, onde, aliás, viveu igualmente outro protagonista dos acontecimentos de Missirá e Bambadinca, Cherno Suane, meu guarda costas e também militar da 2ª Companhia de Comandos Africana.

A expressão alfurja pode parecer injusta para quem, como a Associação de Comandos, procurou desveladamente encontrar tecto para camaradas perseguidos e à busca de pátria. Contudo, a casa onde ele vivia, em cimento pintado de branco tinha de ser lavada todas as semanas com banho de água e líxivia, tal a quantidade de fungos instalados. O Queta tem um filho asmático cuja doença se agravou pela insalubridade das instalações.

Nada do meu texto leva a apontar qualquer responsabilidade à vossa gloriosa associação. Eu vi as instalações e ouvi os lamentos da mulher do Queta que seguramente tu conheces, a Cadi. Não há uma só referência no meu texto de qualquer negligência ou incúria praticada pelos comandos com os seus camaradas africanos.

O Queta vem cá trabalhar comigo na próxima quinta feira, dia 7. Se achares bem, telefonas-lhe (965666621) e vens dar-nos um abraço. O Queta exige ajudar-me a rememorar episódios que eu tinha atirado para o fundo do poço, desde a Operação Tigre Vadio (3) em que ele garante a pés juntos que entrei aos tiros no acampamento de Madina e só depois fui buscar água para os nossos feridos até operações onde ele participou comigo entre Janeiro e Março de 1969, e eu igualmente esqueci.

Feito o esclarecimento, ergamos um copo e brindemos à Associação de Comandos e à sua indefectível solidariedade entre camaradas.

Mário Beja Santos.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1339: Queta Baldé: um exemplo da solidariedade entre comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)

(2) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(3) Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1326: Questões politicamente (in)correctas (10): Mortos: os famosos e os anónimos (A. Mendes, 38ª CCmds)

Meus caros camaradas, mortos em combate, da 38ª Companhia de COMANDOS (e foram 13):

Esta carta já não vai para o SPM [Serviço Postal Militar]. Não valeria a pena enviá-la para lá, pois os comunicados de guerra deram a brutal notícia: vocês morreram em combate!

Recordo aqui, comovidamente, as horas que passámos juntos na Guiné, recordo todas as palavras que trocámos numa reconstrução dolorosa, olho as fotos que tirámos lado a lado. Tudo isto me é penoso nos dia de hoje, pois fiquei com amigos a menos na Terra. E o que é pior: amigos valorosos, amigos que não temiam o perigo, amigos que estavam no primeira linha, ali exactamente onde a guerra era mais dura, mais cruel, mais mal remunerada.

Vejo diante dos meus olhos turvados de saudade o vosso perfil com o rosto cheio de esperanças nos projectos a realizar na volta à terra natal.Vocês eram soldados que não temiam o perigo, que eram amados pelos vossos camaradas, superiores ou subalternos.Vocês tinham um fogo interior que arrastava montanhas; eram mais fortes que muitos fortes em peso de carne e ossatura.

Bebemos copos, fomos às bajudas , apanhámos bebedeiras, tirámos fotos que hoje olho com lágrimas nos olhos, até que recebi a estúpida e brutal notícia: senti então um grande vazio diante de mim; o meu mundo sentimental ficou mais reduzido, ficou mais pequeno e, imperceptívelmente, começei a rezar por esses amigos que derramaram o seu sangue generoso por uma terra onde combatiam por um ideal comum.

Esta carta, como disse, não vai para o SPM; escrevo-a e publico-a para que outros saibam que na Guiné se morria assim, numa luta impiedosa a que nós nunca voltámos a cara .Vocês foram um exemplo e são um exemplo.

Tenho os olhos embaciados. Tenho o coração amarfanhado.Tenho todo o meu íntimo em revolta . O dia de hoje veio triste. Há horas que me procuro, que faço por encontrar-me para poder responder ao vosso último adeus.

Que posso dizer-vos, a vocês, que repousam ao lado direito de Deus? Nada, mas mesmo nada. E, no entanto, estou amargurado. Apenas posso pedir-lhes que velem por nós, queridos amigos, Amanhã será um novo dia. Mas o meu mundo sentimental ficou mais reduzido. Em qualquer lado onde esteja, eu pensarei em vós, eu rezarei por vós.

Acreditem-me: na vossa morte eu senti a morte de amigos, de um exemplo de HOMENS. E até que nos possamos abraçar de novo, à mão direita de Deus, eu vos digo, com o coração esmagado pelo sofrimento: Esperem por mim!

Amilcar Mendes (19
Ex-1º Cabo Comando,
38ª CCmds,
Guiné (1972/74)

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post de A. Mendes > 18 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1291: Questões politicamente (in)correctas (9): Os Mortos Nunca Esquecidos (A. Mendes)

sábado, 18 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1291: Questões politicamente (in)correctas (9): Os Mortos Nunca Esquecidos (A. Mendes)

Mensagem de A. Mendes (38ª CCmds) (1):


Amigo Luis Graça, a questão que o amigo Luis Mário Lopes (2) põe, é pertinente e direi até um pouco intrigante. Eu tenho pensado nisso ao longo de mais de trinta anos e nunca cheguei a nenhuma conclusão. Acompanhei de muito perto alguns acontecimentos relacionados com corpos de camaradas mortos em combate. Uns ficaram, outros vieram.

Quem esteve em Binta [Região do Oio], lembra-se dos caixões empilhados no armazém junto ao porto do rio de Farim e que serviam para receber os mortos que chegavam [?] da zona de Bijene e Guidaje. Se nem todos os corpos vieram, alguns caixões estavam vazios.

Amigo Luis Mário Lopes: o que se disse às familias nesse tempo é irrelavante para os dias de hoje. Para reparar algum mal apenas era preciso que todos os corpos fossem recuperados [missão difícil] ou, pelos menos, os possíveis, pedindo-se desculpas públicas às familias ou herdeiros.

Muitos dos que tiveram responsabilidades directas já não estão entre nós. Portanto, muito desse conhecimento dos factos já se perdeu, apenas nos resta pensar que o Estado Português, sabendo agora o que se passou, possa intervir.

Luís, quando falo sobre estes acontecimentos sei do que falo, entendes? Para mim, amigo Luis Lopes, estes mortos podem-se chamar Os Mortos Nunca Esquecidos.

Um grande abraço a todos os tertulianos e não só.

A. Mendes


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Notas de L.G.:

(1) Vd. último post, de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1280: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (7): Um tiro de misericórdia em Caboiana

(2) Vd. post de 3 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1243: Questões politicamente (in)correctas (7): Desaparecido em campanha, morto em combate, retido pelo IN (Luís M. Lopes / Luís Graça)

Último post desta série: 4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1247: Questões politicamente (in)correctas (8): A nossa linguagem de caserna (David Guimarães / Luís Graça)

sábado, 4 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1247: Questões politicamente (in)correctas (8): A nossa linguagem de caserna (David Guimarães / Luís Graça)

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Montemor-o-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > 14 de Outubro de 2006 > O David Guimarães, ao centro, em amena cavaqueira com o Humberto Reis, à direita, e a esposa deste, a Teresa, à esquerda (ambos estão de costas.

Foto:© Manuel Lema Santos & esposa (2006) (com a devida vénia...) . Fonte: página pessoal do Manuel Lema Santos > Encontro na Ameira > 14 de Outubro de 2006 > Luís Graça & Camaradas da Guiné . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Texto do David Guimarães, com data de 24 de Outubro último:


Independentemente de tudo, também é verdade que, se certos termos [tuga, nharro, turra, etc. ] poderão parecer ser ofensivos, eles só o serão efectivamente segundo a carga emocional que se coloca atrás. Contudo poderá evitar-se, sim, uma vez que poderão ser mal interpretados (1)...

Vocês perdoem-me mas vamos ter cuidado em não cair em textos demasiadamente elaborados, senão entramos no capítulo do romance e, então, os textos começam a ganhar qualidades literárias em demasia e a perder a outra qualidade, que é falar-se sobre o que acontece... A linguagem simples e perceptível é documento para todos, a outra não o será... Falamos na caserna, que assim seja, mas linguagem de caserna menos descuidada...

Os cuidados do Luis são pertinentes, sim... Contudo sei que nada é ofensivo, mas enfim... Às vezes com a palavra mais bem dita - aparentemente - dá-se uma grande facada, sem querermos (...).

Sendo que a guerra foi a mesma, os episódios são bem diferenciados. O atropelamento deverá evitar-se e sempre, mas a correcção, essa sim, é necessária... Aconteceu isto e aquilo... e outros dirão: bem, não foi assim mas assim e assado... E isso é muito bom.

A guerra, toda ela é um drama mas não nos fixemos demasido numa ou noutra acção dramática, Contemos, sim, como estamos a fazer: a bebedeira de cerveja, a vez que eu e o Martis (Ranger da CART 2716) estavamos ambos na vala a conversar. Nem força tínhamos para subir aquele metro e meio, tinhamos misturado várias qualidades de bebidas alcoólicas na cerveja... É que a guerra foi tudo isso, e muito mais...

Vi hoje um comentário do Vinhal (2), partilho o ponto de vista dele e o que estou a dizer é senão um reforço ao que João Tunes diz (3)... em volta do General Luís, que não se cansa de enquadrar tudo lá nos sítios devidos...

Que difícil será aturar esta tropa!


Um abraço
David Guimarães

2. Comentário de L.G.:


E siga a marinha, a força aérea e o exército, coadjuvados pelas bajudas, os básicos, os capelões e as senhoras enfermeiras (que nunca mais aparecem, senhores enfermeiros Zé Teixeira, Baia, Rui Esteves, João Carvalho...).

Obrigado, David, pelas tuas reflexões, mas nunca te esqueças que és um homem do Norte, carago!

Obrigado, Carlos, pela tua confiança no timoneiro...

Obrigado também ao João Tunes que, como bom transmontano tresmalhado em terra de mouros, gosta de pensar pela sua cabeça, e por isso faz questão de acentuar: blogue colectivo, sim, mas não colectivista... Pluralíssimo, pois, claro... E onde todos são camaradas, e não há senhores camaradas, ou seja, camaradas mais camaradas do que outros...

João, andava a sentir, a tua falta... Gostei dessa: para o bem e para o mal, nós estivemos lá! O único problema é o teu descritor ultrapassar, em muito, os 500 caracteres que os gajos do Blogger.com nos autorizam (são caracteres, e não palavras, como eu escrevi ontem...). Tens 148 palavras, 743 caracteres (sem espaços), 891 caracteres (com espaços)... Mas o mais importante são as ideias: as palavras depois arrumam-se...

David: Só não gosto dessa do general... Um gajo como eu que um dia disse que limpava o c... às folhas do RDM, nunca poderia chegar a general... João: E tu, se promoves a comandante, eu corro o risco, um dia destes, de estar como o teu querido Coma... Andante...

O melhor, amigos e camaradas, é não me nobilitarem... Os meus avoengos eram do mar, nasciam no mar, viviam do mar, morriam no mar, ou à beira-mar: na época dos Descobrimentos, foram arrebanhados, à força, para servir nas naus, como parte da guarnição (e não tripulação, como me corrigiu o comandante, esse, sim, de jure et de facto, Pedro Lauret)... Eram Maçaricos, esses meus antepassados, e o nome ficou na família, lá para os lados de Ribamar da Lourinhã (4)...

Se me quiserem promover, estou lixado... Não esquecerei o aviso que, no tempo do Senhor Dom Carlos se fazia aos cães de Lisboa, a acreditar no Ramalho Ortigão: Foge cão, que te fazem barão... Mas para onde, se me fazem conde?...

Em resumo, estamos a precisar de ouvir mais umas estórias bem curtidas do Jorge Cabral ou do Rui Felício que são tão boas ou melhores do que a lebre com feijão que a gente não chegou a provar na Ameira... E a propósito, já abriram o último post, com o videoclipe (que palavrão!) do Zé Luís e o Fernando Calado no cante alentejano ?... Pois não percam (5)...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1225: Questões politicamente (in)correctas (1): Descrição do nosso blogue (Luís Graça)

(2) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1226: Questões politicamente (in)correctas (2): Tugas, nharros e turras (Carlos Vinhal)

(3) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1227: Questões politicamente (in)correctas (3): Blogue colectivo, mas não colectivista (João Tunes)
(4) V. post de 12 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIV: Cabo Verde (1941/43) (1): os mortos e os esquecidos do império

(...) "Uma saga que durou cinco séculos, e que atravessou a minha própria família do lado paterno: a minha bisavó [ Maria Augusta ] Maçarica, nascida em Ribamar em 1864, descendia justamente dos pobres diabos arrebanhados, à força, para os porões das caravelas e nas naus. Embarcados como pau para toda a obra, daí a alcunha (Maçaricos) e, possivelmente mais tarde, o apelido de família (Maçarico).

"O mar marcou-os de tal maneira que nunca conseguiram viver longe dele: foram (e continuam a ser) gente ribeirinha, concentrados maioritariamente em Ribamar da Lourinhã, mas também com um possível núcleo em Mira, sendo marinheiros, aventureiros, mercadores, pescadores, calafates, construtores de barcos, mestres de traineiras, pescadores de lagosta, pescadores do alto, cabos de mar, peixeiros, negociantes de peixe, donos de restaurantes, tascas e hotéis à beira mar, perdidos e achados nas setes partidas do mundo, junto aos cais" (...) .
Devo acrescentar que o meu concelho, o concelho da Lourinhã, também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Se nos reportarmos às três últimas décadas (ao período de 1968 a 2000), sabe-se que houve seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece). Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico.
Muito provavelmente também é descendente desta linhagem plebeia o Domingos Maçarico, ex-alferes miliciano da CART 1690, ferido no decurso da Op Jigajoga 2, em 31 de Agosto de 1967: vd. post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III

5) Vd. post de 3 de Junho de 2005> Guiné 63/74 - P1208: Eu ouvi o passarinho, às quatro da madrugada (J.L. Vacas de Carvalho / Fernando Calado)