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sábado, 20 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras


A representação do nu na arte ocidental > Detalhe > "The Expulsion of Adam and Eve from the Garden of Paradise (Paradise Lost)" (c. 1867), de Alexandre Cabanet (1823- 889). Pintura a óleo. Coleção Musée d'Orsay, Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado,  uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades quando, sendo maios novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos  agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão,dependerá das "leituras" e dos "leitores"...

São textos que  com mais de 20 anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacència (sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores,  esperamos, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que çhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos  três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


Curiosamente, não há provérbios na língua portuguesa que tenham como objecto explícito a parteira ou a comadre, uma figura que durante séculos foi rival do padre e do médico, e cujo poder assentava na proibição, imposta aos homens, de assistir aos partos.

Os que chegaram até nós, vindos dos tempos medievos, têm mais a ver com o parto e têm a conotação bíblica da maldição divina, lançada sobre a mulher que se deixou seduzir pela serpente, comendo a maçã da árvore do paraíso e dando-a a seguir a comer ao homem: "Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores" (Géneses, 3:16). Talvez por que este é um campo cheio de interditos ao homem ou por que os construtores de provérbios sejam misóginos e sexistas (Quadro XIII).

Gomes (1974. 10) chama, aliás, a atenção para "as correlações e assimilações tantas vezes existentes entre a mulher e o animal - a mulher, base da pirâmide na sociedade sacra-feudal, o animal enquanto utensílio rural e objecto agrícola".

Por outro lado, e como muito bem sublinha Joaquim (1983. 84), no seu ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal, "o saber médico, científico, não pode perceber (...) a função que do ponto de vista individual, social, essas mulheres [ as parteiras ou aparadeiras ] tinham - elas rodeavam, permitiam o grito das mulheres como uma das maneiras da mulher poder ‘viajar’ no seu imaginário, nesse corpo-a-corpo, como momento de renascimento que é [ para ela ] deitar ao mundo, dar à luz".

Na sua História do pudor, Bologne (1996. 94) interroga-se sobre a aparentemente estranha razão de ser da ocultação do corpo, a qual irá abrir, na Idade Média, "um parêntesis de mil anos" (sic) na evolução do conhecimento e das técnicas terapêuticas.

Contrariando o provérbio Naturalia non turpa ("O que é natural não envergonha"), há um pudor médico que atravessa todo este período até ao Século XIX, o século burguês por excelência. De facto, entre as classes altas oitocentistas não só não é de bom tom como é socialmente reprovável uma mulher ir sozinha à consulta médica, devendo para tal fazer-se acompanhar do marido, promovido à condição de zeloso guardião das virtudes domésticas e intrépido defensor da moral pública e dos bons costumes.

Ironicamente, o mesmo século que interdita às mulheres o exercício da medicina ("não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"), é também aquele que se deleita com o nu artístico romântico de um Delacroix ou a sensualidade requintada de um Ingrès mas não tolera o realismo de um Courbet (As banhistas, 1853) ou o impressionismo de um Manet (O almoço na relva, 1863, Olímpia, 1865).

A história das mentalidades ajuda-nos, por isso, a perceber melhor a divisão sexual (e sobretudo social) que ainda hoje atravessa o campo da prestação de cuidados médicos.

Reportando-nos à Idade Média, sabe-se que muitos dos primeiros físicos e cirurgiões estavam ligados ao clero regular. O ensino e a prática médicas, no Ocidente cristão medieval, é inseparável do desenvolvimento do monaquismo, tal como o hospital.

Mas o advento da universidade irá criar uma clivagem entre médicos e cirurgiões e, no caso destes últimos, entre cirurgiões religiosos e laicos. O próprio vestuário serve para acentuar as diferenças de estatuto, ontem como hoje: enquanto o cirurgião já trajava fato comprido, o barbeiro vestia um simples fato curto; ambos eram, todavia, a par do físico e dos restantes praticantes da arte médica classificados como oficiais mecânicos.

Muitos dos físicos e cirurgiões, na Península Ibérica, são judeus, e o seu número tende a aumentar à medida que a Igreja, através dos Concílios de Clermont (1130) e de Latrão (1179), interdita ao clero o direito de derramar sangue, o mesmo é dizer:

 (i) participar em actividades bélicas:
 (ii) praticar a cirurgia;
(iii) exercer a medicina;
(iv) em última análise, ver e tocar o corpo.

A cirurgia laiciza-se, ao mesmo tempo o cirurgião que se vê confinada a um estatuto social inferior ao do médico. 

"Tocar o corpo humano será até ao Renascimento um domínio reservado ao cirurgião, que lhe deve o nome. Só no Século XVI os professores de anatomia porão a mão no cadáver nos anfiteatros universitários: até aí, comentavam de cátedra as dissecações praticadas por um auxiliar..." (Bologne, 1996.94. Itálicos meus).

A medicina continuará a ser, por mais uns séculos, uma profissão sábia (savante, como dirão os franceses): historicamente, até finais do Século XIX. Mas já nos finais do Século XVII e princípios do Século XVIII, as coisas começam a mudar. A pouco e pouco, torna-se também uma profissão consultante.

A partir de Boherhaven (mestre do nosso Ribeiro Sanches) e da sua abordagem clínica do corpo, em Leiden, na Holanda (veja-se o seu fabuloso museu da ciência e da medicina), começamos a ver o médico sentado à cabeceira do (ou debruçado sobre o) doente. Por outro lado, o hospital continuará a ser até tarde (até à II Guerra Mundial, pelo menos) um lugar de passagem para o médico.

Já na antiguidade clássica, o estatuto social do médico não era elevado; entre os cidadãos romanos, a arte de curar estava longe de ser considerada uma profissão digna, sendo muitas vezes exercida por escravos ou por pessoal doméstico;

Só por volta do Século II a. C. é que os médicos, sobretudo os de origem grega (os asclepíades), se tornam populares, famosos e até ricos: foi o caso do já citado Galeno (200-130 a.C.), natural da Ásia Menor, que obteve a cidadania romana e foi médico da corte imperial, constituindo com Hipócrates a grande referência médica da Antiguidade Clássica ("Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não");

O estatuto do cirurgião, esse, continuará a ser ainda mais baixo do que o do médico, mesmo entre os árabes. O único árabe que, de resto, deixou um volumoso tratado sobre cirurgia foi Albucassis (936-1013), do califado de Córdova.

A proibição da dissecação de cadáveres, tanto entre os judeus como entre os cristãos e os muçulmanos (os crentes das três principais religiões monoteístas), não permitiu o desenvolvimento dos conhecimentos e técnicas cirúrgicas que, durante muitos séculos, se circunscreveram aos ensinamentos greco-romanos.

Com os romanos, a cirurgia militar tinha feito alguns notáveis progressos, que serão depois retomados no Renascimento. No Séc. XVI, o francês A. Paré (1510-1590) vem melhorar os bárbaros métodos de amputação até então utilizados, ao inventar o penso e idealizar a laqueação vascular, em substituição da cauterização das feridas com óleo a ferver ou ferro em brasa em caso de amputação (Sournia, 1995. 164-167).

Mas a própria cirurgia ressentia-se da proibição, mais acentuada depois do Século XIV, de dissecar cadáveres, "uma outra forma de pudor", segundo Bologne (1996. 95), o qual, no entanto, relativiza essa proibição, dizendo que se trataria mais de um respeito (primordialmente cristão) pela dignidade do ser humano do que uma interdição, propriamente dita, imposta por Roma, apesar da força que tinha então um édito papal (o de Bonifácio I).

Como sucedâneo dos estudos de anatomia humana, passa-se a recorrer à autópsia, ao embalsamamento e à vivissecção de animais ou até mesmo à dissecação de cadáveres, furtivamente exumados e roubados nos cemitérios ou simplesmente descidos do cadafalso.

Será preciso, todavia, esperar pelo Renascimento para que a paixão pelo estudo anatómico do corpo humano se sobreponha ao pudor imposto pela religião. A medicina alia-se então à arte. Cite-se o exemplo, por demais conhecido, da intensa colaboração entre Leornardo Da Vinci e o anatomista Marco Antonio della Torre. Outros grandes artistas, como Miguel Ângelo, Dürer ou até Veronese dedicaram-se ao estudo da anatomia. A arte acaba por influenciar o próprio nu médico.



Página 178 do livro de Andres Vesalius (1514-1564), completado em 1543, "De Humani Corporis Fabrica" (em português, Sobre a Organização do Corpo Humano), um verdadeiro atlas da anatomia do corpo humano, dividido em sete capítulos, baseado no conhecimento da dissecação de cadáveres e fabulosamente ilustrado. (Não parece ter hoje fundamento a sua alegada condenação à morte pela Santa Inquisição.) Imagem do domíniuo público. Cortesia de Wilimeda Commons.


Em jeito de síntese, pode dizer-se no Século XVI assistiu-se a uma verdadeira explosão do nu representado, logo seguida de reacções de pudor na época da Contra-Reforma:

  • Sinal dos tempos, na segunda edição (1555) da magnífica obra de Vesálio De humani corporis fabrica [ Tratado sobre o funcionamento do corpo humano], o seu célebre frontispício foi censurado;
  • No espaço de doze anos (a primeira edição é de 1543), o pudor voltou a ditar as regras: era intolerável que num livro de medicina aparecesse um jovem efebo despido;
  • Em suma, "o anatomista deu ao pintor a sua visão dessexualizada da nudez" mas a sociedade apressou-se a dizer ao médico "que o nu não era inocente", contrariando o provérbio Naturalia non turpa (Bologne, 1966. 97).

O pudor vai então entrar nos livros de medicina, a partir do Século XVII. Para ilustrar a anatomia do homem e da mulher, escolhe-se o Adão, com a sua parra, e a Eva com a sua delicada mão sobre o púbis. Em muitas gravuras de anatomia, o véu volta a cobrir o sexo do cadáver em cima da mesa de dissecação. Noutros casos, ainda mais ridículos, o cadáver está de ceroulas ou crescem-lhe flores à volta do sexo!

É uma situação tanto mais paradoxal - comenta Bologne (1996. 99), "quanto a época clássica, que voltou a vestir as pranchas anatómicas, vulgarizou o estudo da anatomia, multiplicando as aulas públicas". A anatomia torna-se um assunto mundano: "Nos salões, é de bom tom apadrinhar sociedades eruditas em que as damas seguem cursos de anatomia. Mas é altura de lhe vigiar a linguagem e a matéria".

Este paradoxo terá o seu triunfo no Século XIX: 

"O século que admite - com um sorriso cúmplice - que uma mulher pose nua para um pintor tolera mal que ela se dispa perante o seu médico". 

É também o século que, como já o dissemos, interdita às mulheres a prática da medicina.

Ao longo da Idade Média e, depois no Antigo Regime, a prática da medicina não estava teoricamente interdita às mulheres. Mas a partir do momento em que o diploma universitário passou a ser obrigatório para o exercício da profissão, o número de mulheres médicas (que nunca fora grande) tenderá a diminuir.

Quanto à cirurgia, há um decreto de Luís XV, de 19 de Abril de 1755, que em nome do pudor masculino vem proibir às mulheres "a qualidade de endireitas ou dentistas e de qualquer outra parte da cirurgia, excepto a relativa aos partos" (cit. por Bologne, 1966. 100. Itálico meu).

É também a partir do Século XVII que o médico se começa a intrometer na esfera da moral e dos costumes, tendência mais generalizada no Séc. XVIII, tanto antes como depois da Revolução Francesa. Em nome das Luzes, ele acaba por dar caução aos discursos moralizadores da sua época ou por impor um discurso normativo, seja a propósito da histeria feminina, do onanismo, das doenças venéreas, das relações sexuais durante a gravidez, dos caprichos da moda como o uso do espartilho de barbas de baleia, da limpeza do corpo e da casa, da alimentação, do crime e da loucura, ou simplesmente da querela entre parteiros e parteiras (Barbaut, 1991).

O poder societal do médico vai-se alargando, e curiosamente a partir duma questão-tabu que era então a indissolubilidade do casamento

Para os teólogos da Igreja, nada podia separar um homem e uma mulher que Deus unira para sempre. Havia apenas uma excepção: a partir do Século XII, a impotência e a frigidez passam a ser reconhecida como "impedimento dirimente do casamento". Mas a obtenção da prova não era fácil...

No Séc. XVI surge a famosa "prova do congresso" (Belogne, 1996. 103): O Parlamento de Paris irá considerá-la "inútil e infamante" em 1677:

  • O termo designava "as juntas públicas, em que um marido suspeito de impotência tem de provar perante médicos e comadres que a acusação é caluniosa";
  • A "prova do congresso" é então abolida em nome dos bons costumes, da religião e da natureza, e sobretudo devido aos abusos a que até então se prestava;
  • Acabou por ser substituída por outras provas, não menos arbitrárias e humilhantes, como a da "erecção", da "tensão elástica", da "ejaculação", etc.

O que importa sublinhar é o papel que as comadres e os médicos desempenham na "prova do congresso":

  • a pedido da justiça, o médico limitava-se a um exame pericial dos órgãos genitais do marido da queixosa;
  • cabia depois à comadre ("sage-femme") preparar as condições e o clima propício para a consumação do acto sexual, em geral na alcova conjugal ou num estabelecimento de banhos;
  • a comadre funcionava sobretudo como testemunha presencial; por respeito ao pudor feminino, o médico ficava à porta da alcova ou por detrás de um biombo; no fim, a comadre relatava ao médico as suas observações;
  • com base no seu exame pericial prévio e sobretudo do testemunho presencial da comadre, o médico fazia o seu relatório e entregava-o depois aos tribunais; 
  • é possível que comece aqui a história da medicina forense ou, pelo menos, do recurso à autoridade do médico como perito legal;
  • e julgamos que é também a patir daqui que se grafa a palavra "congresso" (por exemplo, médico) para designar uma reunião de peritos numa dada matéria (por exmplo, "congresso médeico")...

A partir de 1677, as parteiras deixam de ser admitidas em peritagens exclusivamente masculinas, desta vez em nome do pudor masculino mas sobretudo porque o seu papel passava então a ser completamente inútil. O médico acabava assim de liquidar um dos seus mais poderosos adversários: a comadre, parteira ou sage femme (Barbaut, 1991).

Em que é que se fundava o poder da comadre ?

  • "A meio caminho entre a mulher ‘modesta’ e o homem sem pudor, aquela a quem a Idade Média chama eloquentemente ventrire parece um ser assexuado, dispensado do pudor natural do seu sexo;
  • "Nem o médico nem o cirurgião nem o padre sonham contestar-lhe um poder que muitas vezes invade as suas atribuições; com efeito, se a ventrire testemunha nos congressos, tem também uma palavra a dizer em casos de violação, de ruptura dos votos monásticos, assiste aos partos, baptiza as crianças em risco de morrerem à nascença, etc.". (Bologne, 1996. 107).

Médicos e cirurgiões começam a retirar clientela à sage femme que, por outro lado, se vê ameaçada com o aparecimento dos primeiros parteiros no reinado de Luís XIV. O povo, galhofeiro, chamava-os então "as comadres de ceroulas".

O greco-romano Sorano (98 a.C.-77) é considerado o "pai da obstetrícia e da ginecologia", com o seu tratado sobre as Doenças das Mulheres. É preciso esperar, no entanto, pelo Séc. XVII, para que estes dois domínios especializados da medicina conheçam alguns progressos assinaláveis (Lyons e Petrucelli, 1991):

  • O francês F. Mauriceau (1637-1704) escreve em 1668 o Tratado das doenças das mulheres grávidas; será com o holandês H. van Deveter (1651-1724) o fundador da moderna ginecologia, graças ao seu estudo da anatomia pélvica feminina;
  • Outro holandês R. de Graaf (1641-1673) descobre em 1673 o folículo do ovário; até então supunha-se, de acordo com Aristóteles, que o óvulo se formava no útero;
  • No campo da obstetrícia, há uma importante descoberta na última parte do Séc. XVI: o fórceps, utilizado pela família inglesa Chamberlain que o mantém, no entanto, em segredo durante gerações até ser objecto de vulgarização médica; a descoberta deve-se a P. Chamberlain, o Velho (1560-1631);
  • Entretanto, em 1752 o inglês W. Smellie (1697-1763) funda a obstetrícia moderna com Treatise on midwifery, descrevendo o trabalho de parto e de assistência ao parto.

Até ao Séc. XVII, era relativamente raro (e sobretudo perigoso) um homem assistir a um parto. Cita-se o caso de um cirurgião de Hamburgo, o Dr. Wert, que foi condenado à morte por satanismo (!) e executado em 1522 por ter tido a ousadia de assistir a um parto, disfarçado de parteira (Barbaut, 1991. 142). Mas os tempos vão mudar: eram frequentes os acidentes em partos difíceis, o que inquietava os médicos, já desde os tempos dos greco-romanos e, depois, dos árabes.

Até então a experiência da sage femme era mais relevante do que os conhecimentos na matéria, para além dos preconceitos morais e religiosos que afastavam o homem do leito da parturiente. Mas, no caso dos partos difíceis, era importante a força muscular. A solução deste velho problema irá ser um trunfo para o médico e o cirurgião, independentemente do estado da arte no domínio da ginecologia e da obstetrícia.

A morte, em consequência de parto, da duquesa de Orleães, em 1627, irá pôr em causa a reputação das parteiras da corte e alimentar durante mais de um século uma querela com os cirurgiões. Em 1633, é já um parteiro (o primeiro que se conhece em França) a assistir ao parto de um dos filhos bastardos de Luís XIV. 

Será, pois, pela "via uterina", a das amantes reais, que os cirurgiões passam a ter acesso à corte.

  • Mas nesta querela os médico irão, curiosamente, tomar o partido das parteiras contra os cirurgiões, por razões que estão longe de ser inocentes:

  • Em 1708, Philipe Hecquet publica um tratado que irá provocar celeuma: De l’indécence aux hommes d’accoucher les femmes;

O seu argumento linear contra os cirurgiões pode ser resumido nesta frase lapidar do preâmbulo do seu livro: "Esta profissão repugna à própria natureza, pois é contrária ao pudor que é natural nas mulheres " (cit. por Bologne, 1996. 111).

Parece então haver um recuo táctico. Ao parteiro ensina-se-lhe a tocar sem olhar. surgem os tratados obstétricos a recomendar o lençol estendido entre o pescoço do parteiro e a cintura da parturiente (1681) ou os tratados de ginecologia a ensinar como se deve proceder a uma exame completo debaixo do vestido da mulher (1822).

Dos maléficos ou estranhos poderes das mulher prenhada ainda chegarão ecos até ao nosso Séc. XX, obrigando o médico a relembrar o velho ditado latino Naturalia non turpia e a refrasear o velho juramento de Hipócrates que interditava ao praticante da arte de curar a sedução ou outras formas de envolvimento pessoal com os doentes, de ambos os sexos. 

Neste caso, efebos aparte (aa pederastia era aceite ou tolerada na antiguidade clássica, e nomeadamemte entre os gregos), "as mulheres que não julguem decente mostrar um pudor temeroso... Para um médico, por mais bem parecido que ele seja, a cliente é apenas uma ficha e uma ocasião de fazer bem. Ela que não espere outra coisa", escrevia em 1930 um ilustre médico francês (cit. por Bologne, 1996. 111).

Em conclusão: se, até ao Século XIX, repugnava à mulher confiar-se à mão do macho (o que para o sociobiólogo será devido a um qualquer determinismo genético), "o desaparecimento das comadres e a raridade das médicas acabou por impor a regra inversa: o obstétrico continua a ser o domínio onde [ ainda hoje ] a mulher é mais dificilmente aceite" (Bologne, 1996. 111).

Mas não terá sido tanto o pudor feminino como sobretudo a religião que impôs à medicina a ocultação do corpo. Só na época de Luís XIV é que o médico marca pontos em matéria de liberdade face ao corpo. É a época em que aparecem os parteiros mas também aquela que viu nascer o "pudor masculino" e em que as doenças venéreas se tornam "vergonhosas".

Por outro lado, a unificação da profissão médica ainda está muito longe de se realizar. Oficiais do mesmo ofício, médicos e cirurgiões vão continuar a digladiar-se até praticamente ao Séc. XX.

Quando comparados com os médicos, os cirurgiões no Antigo Regime continuam, todavia, a ser em menor número, com menos instrução, com menos rendimentos e sobretduo "menos apreciados pela sociedade", mas mesmo assim indispensáveis, tanto mais quanto os homens da arte (os médicos) detêm o savoir mas não o savoir-faire;

De facto, o médico do Século das Luzes continua a "não saber colocar uma ligadura, reduzir uma luxação, fazer a incisão de um abcesso, imobilizar uma fractura ou extirpar um tumor" (Sournia, 1995. 217), tarefas menos nobres da arte de curar que são relegadas para o barbeiro e o cirurgião.


Quadro XIII - Provérbios e outros lugares comuns 
da língua portuguesa sobre a gravidez e o parto

    Objecto

    Provérbio

    Gravidez Maternidade Parto Puerpério

     

    • "A dor ensina a parir"
    • "À mulher parida e à teia urdida não lhe falta guarida"
    • "À mulher prenha só lhe vem doença e manha"
    • "As cadelas apressadas parem cães tortos"
    • "Casei, matei, pari, pulei"
    • "Em casa de paridas ou doentes, o assento não esquentes"
    • "Filho do meirinho com parteira"
    • "Filho sem dor, mãe sem amor"
    • "Mal casada é a mulher que não pare"
    • "Mau parto, filho ao cabo"
    • "Mulher parida, nem farta nem limpa"
    • "Mulher que se casa em dia de Sant'Ana morre de parto"
    • "Não há madre como a que pare"
    • "Não há parto sem dor"
    • "Não me pesa de meu filho enfermar senão pelo costume que lhe há-de ficar"
    • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"
    • "Parir é dor e criar é amor"
    • "Parir sem dor, criar sem amor"
    • "Pariu aqui a galega ?"
    • "Parto inchado, parto abençoado"
    • "Parto ruim, filha no fim"
    • "Pesar de quem me pariu" (Séc. XVI)
    • "Quinze dias na cama e quinze no lar - depois, mulher, vai trabalhar"

Em termos de estatuto, os médicos continuam a estar, apesar de tudo, abaixo dos juristas e do alto funcionalismo do Estado absolutista ou da sociedade senhorial do Ancien Régime, embora já pertençam ao mesmo grupo social em ascensão (que são os letrados, os clercs, em francês):

  • Contudo, em França, os cirurgiões irão dar um passo importante no sentido do seu reconhecimento, ao ser criada a Academia Real de Cirurgia (em 1737);
  • E, não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778;
  • Aliás, já em 1723, por decreto real de 23 de Abril, era reconhecida em França a profissão de cirurgia.

Na Grã-Bretanha, o escocês J. Hunter (1728-1793) funda a anatomia comparada; em Observations on certain parts of the animal oeconomy (1786) estudou a anatomia do corpo humano, comparando-a com a de outras espécies animais;
  • Além disso, coleccionou ao longo da vida mais de 10 mil espécies anatómicas, muitas delas tecidos macios conservados em álcool;
  • Deu igualmente um importante contributo para a cirurgia militar com Treatise on the blood: Inflammation and gunshot wounds (1794);
  • No último quartel do Séc. XVII tinham, entretanto, surgido os primeiros jornais médicos, em França (1679) e na Inglaterra (1684).

No nosso caso, sabe-se que às parteiras já lhes também exigido carta ou registo de actividade (pelo menos no caso da cidade de Lisboa). Todavia, o exame obrigatório perante o cirurgião-mor só será exigido às parteiras no Século XVII, de acordo com o estipulado no respectivo Regimento de 12 de Dezembro de 1631 (Lemos, 1881, cit. por Joaquim, 1983. 84-85).

Esse exame passaria a ser extensiva também aos sangradores, algebristas e dentistas, em como a outros indivíduos com conhecimentos particulares (endireitas, etc.). "É evidente que estas parteiras tinham um papel diminuto e actuavam somente nas cidades; nos campos continuavam a assistir aos partos as aparadeiras" (Joaquim, 1983. 85).

É também nesta época que aparecem os primeiros esboços de tratados ginecológicos, obstétricos e pediátricos, entre nós, geralmente sob a forma de capítulos de livros dedicados à vulgarização da medicina:

  • "Tratado único das doenças particulares das mulheres"; "Do regimento que devem guardar as prenhadas para bem parir", in Luz da Medicina Pratica, Racional e Methodica, Guia de Enfermeiros Dividia em Tres Partes (...) de F. Morato Roma (Lisboa, 1664);
  • "Tratado da feliz parida", in Arte com Vida, ou Vida com Arte, Muy Curiosa e Proveitosa não só a Medicos, e Cirugioens, mas ainda a Toda a Pessoa de Qualquer Estado, ou Condição, Que Seja, principalmente dos Casados (...), de Manuel da Silva Leitão (Lisboa, 1738);
  • Atalaya da Vida contra as Hostilidades da Morte, de João Curvo Semedo (Lisboa, 1720).

Segundo Joaquim (1983. 85), o aparecimento destas obras seria um sintoma de "uma preocupação que começa a existir [ no Antigo Regime ] pelo modo como o parto se desenrola e pelas práticas que são utilizadas". Mas, ao mesmo tempo, este interesse seria também revelador da preocupação e intenção de as "submeter a um certo controlo médico":

O autor do Tratado da Feliz Parida é explícito na sua intenção de levar as luzes do conhecimento médico à população rural: 
  • "Não he mais que acodir [...] aos desamparados dos Médicos, aos quais vivem fora das povoações para que possam acodir à sua necessiade, & não morrerem à míngoa, não sabendo o que devem fazer, nem terem ordem para o consultar" (Roma, 1664. 317, cit. por Joaquim, 1983. 85);
  • De F. Mourato Roma (1588-1668), sabe-se que foi médico da câmara de D.João IV e de D.Afonso VI;
  • Da sua Luz da Medicina diz Lemos (1991, Vol. II. 35-36) que "se destinava a indivíduos de poucos conhecimentos médicos", que se limitava a "um resumo das doutrinas de Hipócrates, Galeno, etc., sobre os diversos capítulos da patologia", e que continha "raríssimas notas pessoais", de interesse clínico;
  • Por sua vez, M. Silva Leitão (1682-1757), médico do Hospital Real de Todos os Santos, também não se afastaria muito da vulgata galénica; o seu livro não passa de "um tratado de Higiene, aplicável sobretudo às mulheres paridas", que não contem "novidades dignas de apreço", para além de "alguns preceitos aproveitáveis" (Lemos (1991, Vol. II. 145).

Por fim, o terceiro autor referido por Joaquim (1983), J. Curvo Semedo (1635-1719), não passaria hoje de um simples caso de charlatanismo; na conceituada opinião de Lemos (1991, Vol. II. 129): o seu Atalaya da Vida seria "um livro deplorável", onde se apregoam a cada passo "medicamentos asquerosos", verdadeiras panaceias que eram vendidos pelo autor "por bom dinheiro"; curiosamente, Semedo era um dos médicos mais reputados do seu tempo, tendo sido médico da Casa Real.

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)
____________

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de  2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

 3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"



quinta-feira, 4 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico


O barbeiro-sangrador,   c. 1805 > Ilustração de James Gillray (1757-1815)  (London, Victoria and Albert Museum). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades esses tempos quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos, entre 1961 e 1974.

São textos, com vinte e tal anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência ou até a cumplicidade dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a  leitura desses textos, agora revistos, possa ter algum proveito e dar algum prazer. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


5. Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva 
e do Encarniçamento Terapêutico


(Continuação)

No pós-25 de Abril, numa leitura algo imediatista e datada, recusava-se a ideia de que a grande maioria destes provérbios fosse de origem popular, dada a sua "função de ocultação ideológica" (Gomes, 1974). Na melhor tradição jacobina e anticlerical, via-se aí a língua viperina da "padralhada", dos frades, dos jesuítas, etc. já que o povo não podia ser intrinsecamente... "reaccionário".

Populares ou nem tanto, os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa não deixam de refletir uma experiência amarga da população, vítima não só de um ciclo infernal de epidemias que durou mais de 400 anos ("Da peste, da fome, da guerra - e do bispo da nossa terra, Libera nos, Domine!") como do uso e abuso, por parte dos praticantes de artes médicas até à alvorada do Séc. XX, de técnicas terapêuticas agressivas, invasivas e de duvidosa eficácia como era o caso da purga e da sangria.

Nesta perspectiva, alguns provérbios podem ser vistos como formas de contestação avant la lettre do encarniçamento terapêutico de que é hoje acusada a medicina defensiva: "Se não morre do mal, morre da cura" (Quadro XIV, em anexo).

Em meados do Séc. XVII, o uso da sangria (ou flebotomia), praticada por cirurgiões e barbeiros-sangradores (uma profissão só extinta entre nós em 1875) tal como a purga ou o clister (ministrada pelos cristaleiros e cristaleiros), generalizara-se de tal modo que dera motivo ao adágio popular: "Em Lisboa não há sangria má nem purga boa"

De facto, havia médicos que num mesmo episódio de doença mandavam sangrar "trinta e quarenta vezes" (Lemos, 1991, vol. II. 37). Sangravam-se 0s ricos e os pobres, os reis e os súbditos, os doentes e os sãos...

Outros provérbios terão uma origem semelhante (Quadro XIV):
  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue";
  • "Como é o braço assim é a sangria";
  • "Dia de purga, dia de amargura";
  • "O que faz mal ao corpo é o sangue";
  • "Sangrai-o e purgai-o e, se morrer, enterrai-o";
  • "Sangrar de saúde".

Além da prática da sangria, o barbeiro também era chamado para tratar dos dentes: "A quem dói o dente vai à casa do barbeiro". E em quase todas as vilas e aldeias deste país, até aos anos 60, ele era para todos os efeitos um verdadeiro praticante da arte médica a quem se recorria para tratar de um abcesso, dar uma injecção, fazer um penso ou receber um conselho. De resto, "é na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"...

No regulamento do Hospital Real de Todos os Santos, inaugurado em 1504, estava prevista a figura do barbeiro-sangrador. Competia ao enfermeiro-mor (chefe de uma enfermaria) estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937.21-22). 

No entanto, a sangria ainda se praticava em Lisboa nos finais da Monarquia!

(Continua) (**)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

_____________________

Quadro XIV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o barbeiro, a purga e a sangria

Objecto

Provérbio

Barbeiro Barbeiro- Sangrador Dentista

 

  • " A quem dói o dente vai à casa do barbeiro"

  • "A quem dói o dente vai a dentuça" (Séc. XVI)

  • "Da vida alheia é mestre o barbeiro"

  • "Dente fora cangalhão na cova"

  • "É na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"

  • "Guarde-nos Deus de oficial novo e de barbeiro velho"

  • "Quando Deus tira os dentes, alargar a goela"

  • "Quando Deus tira os dentes, endurece as gengivas"

  • "Quando dói o dente é que se vai ao dentista"

Purga       Sangria

  • "Como é o braço assim é a sangria"

  • "Dia de purga, dia de amargura"

  • "Dia de tosquia, dia de sangria"

  • "Em Lisboa não há sangria má, nem purga boa"

  • "Mais vale suar que enfermar"

  • "Não é sangria desatada"

  • "Quando se está esmagado não se chora, sangra-se"

  • "Sangrai-o e purgai-o, e, se morrer, enterraio-o"

  • "Sangrar de saúde"

  • "Sangria que no princípio da manhã é salutífera, por ventura sucede ser mortal na declinação do dia"

  • "Um ar purgado, morte ao cabo"

Sangue

  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue"

  • "Bebe vinho branco de manhã e à tarde tinto para teres sangue"

  • "Dar o sangue das veias" (Séc. XVII)

  • "Ficar sem pinga de sangue"

  • "Mais vale onça de sangue que libra de amizade"

  • "Não quero escudela de ouro em que cuspa sangue"

  • "O bom vinho faz o bom sangue"

  • "O que faz mal ao corpo é o sangue"

  • "O sangue se herda e o vício se pega"

  • "Sangue pela boca nem das gengivas"

  • "Sangue quer sangue, sangue quer vida"

  • "Todo o sangue é vermelho"

____________ 

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:




20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

(**)  Último poste da série > 10 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

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