terça-feira, 18 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P968: Memórias de Mansabá (4): A morte do Alf Couto da CART 2732, dia 6 Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 > A temida mina antipessoal PDM-6 (vd caixa aberta), reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guimarães da CART 2716. "Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!...".

Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA CART2732, Mansabá (1970/72)


Os fatídicos dias 5 e 6 de Outubro de 1970

O Aquartelamento [de Mansabá] tinha sido atacado na noite de 5 de Outubro. Deste ataque resultou a morte imediata de um soldado milícia e ferimentos ligeiros em alguns militares da nossa CART (1).

Na manhã seguinte havia que fazer o reconhecimento da zona envolvente, pois o IN esteve muito próximo e normalmente deixava pistas que, de alguma forma, serviam para recolher ensinamentos para futuros ataques. Além de tudo, por vezes, antes de retirar, o IN deixava armadilhas nos itinerários utilizados por nós e pela população. A acção de reconhecimento competia ao Pelotão de Piquete.

No dia 6 estava de Piquete o 4.º pelotão, cujo Comandante era o alferes Couto que tinha, como eu, o curso de Minas e Armadilhas. Do mesmo pelotão fazia ainda parte o Furriel Sousa, também com o curso de minas.

Por motivos óbvios toda a malta se tinha deitado muito tarde e descansado pouco, mas manhã cedo lá saiu o 4º pelotão para o mato, reforçado pelo meu, o 3.º, para proceder ao dito reconhecimento.

Decorrido algum tempo após a saída dos pelotões, ouviu-se no aquartelamento um estrondo e quase de seguida, pelo rádio, ouviram-se pedidos de socorro para evacuar um morto e um ferido, vítimas do rebentamento de uma mina antipessoal num carreiro no designado Alto de Bissorã. Saíram imediatamente algumas viaturas para trazerem os sinistrados.

Quando regressaram, traziam o cadáver do Alferes Couto. O ferido era o Alferes Bento, comandante do meu pelotão, que também tinha sido atingido ao tentar socorrer o seu camarada e amigo.

O Alferes Couto era um homem com cerca de trinta anos que tinha sido incorporado com aquela idade, quando era tripulante dum navio da Marinha Mercante. Não sabemos a razão de tão tardia ida para a tropa, nem vem ao caso. Sabíamos sim que ele era casado e pai de dois filhotes. Muito comunicativo, pouco adaptado aos cerimoniais militares, apreciava mais o convívio dos soldados do seu pelotão em detrimento dos seus colegas oficiais. Lembro-me de, durante o Curso de Minas na EPE, Casal do Pote, ele passar horas a jogar matraquilhos connosco no Bar dos Praças daquela Unidade. Era um homem simples e superior ao seu estatuto de oficial.

Como operacional na Guiné, julgo que o Alf Couto já tinha neutralizado e/ou levantado algumas minas antipessoais até que chegou o fatídico dia 6 de Outubro de 1970.

As minas PMD6 utilizadas na Guiné eram traiçoeiras e por vezes difíceis de manusear. Algumas com a humidade do solo, e porque eram de madeira, inchavam de tal modo que retirar a espoleta era uma autêntica lotaria. Não se sabe exactamente o que ele pretendia fazer, só se sabe que a determinada altura chamou o Alf Bento para lhe dar ajuda naquela mina. Quando este se dirigia para ele, deu-se a explosão que ainda o atingiu.


Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (1970/72) > Vista aérea do aquartelamento.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)

Eu, que na altura não era operacional, estava na secretaria onde colaborava, no momento em que tudo aconteceu. Pude assim acompanhar junto do rádio o desenrolar dos acontecimentos.

Depois de removido o cadáver do Alf Couto e de o Alf Bento ter recolhido à enfermaria para posteriormnete ser transferido para o HM 241 [Hospital Militar de Bissau], havia que voltar ao local do incidente para continuar a neutralizar as outras minas detectadas.

Recebi então ordem do Comandante da Companhia para avançar e dar continuidade ao trabalho que ficou por acabar. Chegado ao local fatídico, estavam assinaladas duas minas antipessoais guardadas por alguns militares completamente consternados. Ao verem-me, desejaram-me as maiores felicidades.

Como se sabe, ao tempo as minas detectadas davam prémio pecuniário a quem as detectasse e a quem as levantasse, mas como o dinheiro não valia o risco de vida, eu tinha prometido a mim mesmo, durante o Curso, que jamais tentaria levantar alguma mina antipessoal, a menos que fosse impossível rebentá-la no local. Depois da morte do meu camarada Couto mais convencido fiquei de que tinha a razão pelo meu lado.

Assim, comecei por juntar às minas detectadas uns pedaços de TNT, que iriam ser accionados por detonadores pirotécnicos alimentados por cordão lento. Na altura ainda não dispunha de disparador eléctrico. Claro que isto exigiu que eu andasse por ali às voltas. Examinei tanto quanto pude o terreno por onde iria correr enquanto o cordão ardesse e um local para me proteger quando aquilo tudo explodisse. Pus o pessoal em bom recato, peguei fogo ao rastilho, corri e abriguei-me, esperando pelas explosões. Quando estas aconteceram, fui ao local ver o resultado e reparei que, em vez de duas crateras correspondentes às duas minas detectadas, tinha três. Na realidade não havia duas, mas sim três minas, sendo que a terceira não tinha sido detectada e eu não a pisei por mero acaso e sorte. Esta rebentou com as outras por simpatia.

Missão cumprida e retorno ao quartel onde o constrangimento era geral. Ainda estava fresco o cadáver dum camarada, que não veria crescer os dois flhos deixados em casa aos cuidados da mãe, há seis meses apenas. Tinha acontecido a nossa primeira baixa.

A partir deste dia passei a ser operacional quase a 100%, sem no entanto deixar de continuar a colaborar na Secretaria e mantendo a gerência dos bares como anteriormente.

Além disto fiquei com a responsabilidade das actividades relacionadas com as Minas na Companhia, porque o alferes substituto do camarada Couto não tinha o Curso de Minas e Armadilhas. Fiz muitas patrulhas em que o meu Pelotão não tomava parte, porque desde que o 1º ou o 2º Pelotões fossem passar em zonas minadas ou armadilhadas por nós, era exigida a minha presença.

O 4º Pelotão não precisava que eu os acompanhasse pois tinha o meu camarada Sousa numa das suas Secções. Embora houvesse relatórios de implantação das zonas armadilhadas, exigiam sempre a presença de um de nós para assegurar que ninguém da Companhia accionava as nossas armadilhas. Diga-se em abono da verdade que quando o meu pelotão saía e a minha presença era dispensável, eu era poupado. Chamada lei das compensações.

PS - Com especial dedicatória ao nosso camarada bloguista David Guimarães, meu contemporâneo no CTIG e companheiro mineiro.

Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > O David Guimarães, na viagem de regresso à Guiné e ao seu Xitole onde foi furriel miliciano atirador, da CART 2716 (1970/1972), com a especialidade de minas e armadilhas (2)

Foto: © David J. Guimarães (2005)
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "É minha obrigação lembrar a memória daqueles que partiram do Funchal e que, por morrerem, não regressaram connosco. São eles:
- Alf. Mil.º Art.ª MA Couto que em 6 de Outubro de 1970 foi vítima do rebentamento de 1 mina A/P;
- Soldado Malcata que em 16 de Maio de 1971 faleceu por motivo de doença;
- Soldado Silvestre que em 17 de Maio de 1971 faleceu por motivo de acidente;
- Soldado Vieira que em 6 de Dezembro de 1971 foi morto numa emboscada;
- e, por fim, Soldado Barbosa que foi ferido na mesma emboscada, acabando por morrer no HM 241 em 17 de Dezembro de 1971" (...)

(2) Vd. posts de
23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David Guimarães)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLI: A região do Xitole, por onde andou o Nino... (David Guimarães)

(...) Tocou-me a mim num belo dia. Eu é que ia a comandar o grupo (o Alferes estava de férias). E lá já bem perto de Jacarajá:

- Mina, mina, porra!... E agora!?

Tocou-me a mim: afinal eu é que era o artista. Em Tancos tinham-me ensinado a trabalhar com aquilo: "manga de cu piquinino", protecção feita, suores frios ao sol quente... Bem, lá consegui operar... Tínhamos que comer... Lá ficou o buraco feito e do chão extraí isso que envio em fotografia... Um Mina PMD-6, espoleta MUV, duas barras de trotil de 4 kg, mais aqueles dois calcinhos do mesmo material a 200 gr cada cada um, sendo que dentro da mina lá estavam os 400 gr habituais da carga base onde actuaria o detonador depois de accionada a espoleta...

- Ufa, que merda!... Já está! - e daqui a pouco lá vinha a coluna, o barulho daqueles motores e, à frente, a Daimler do [Alferes] Vacas de Carvalho....

Pronto, e lá ficamos o dia inteiro até que lá a coluna volta a passar, mas de regresso a Bambadinca. Nós, por nossa vez, lá regressamos ao quartel no Xitole.

Mais tarde lá me deram os 300 escudos (prémio por levantamento de material explosivo):

- Pronto, mais um dinheirinho para beber umas bazucas [cervejas] ...

Foi um dia de rotina, um pouco diferente - uma mina sempre é uma mina.....
(...)

Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)


1. No dia 11 de Julho de 2006, mandei a seguinte mensagem para a nossa tertúlia:

Gostaria que comentassem este depoimento de um médico cubano que esteve na guerrilha, em 1966/67... Está em espanhol, lê-se bem... Há um resumo, em português, no post anterior. 

Esta informação chegou-me através do incansável camarada fuzo que é o Jorge Santos... O artigo original cacei-o eu, na Net... Vou pedir a um antigo aluno meu, médico, cubano, que vive em Portugal e que fez a guerra de Angola e da Eritreia, para me pôr em contacto o seu colega Domingo Diaz.

É outro ponto de vista, polémico mas muito interessante, sobre a guerra da Guiné... Sabemos pouco sobre o papel dos cubanos... Só se fala do Capitão Peralta... Sabemos pouco sobre as misérias e grandezas da guerrilha... Enfim, vejam lá se me ajudam a identificar o resto das bases do PAIGC...

Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingos Diaz, 1966/67)

Guiné 63/74 - P950: Antologia (46): Depoimento de médico cubano na guerrilha do PAIGC (1966/67)



2. Respondeu-me, logo a seguir, o Carlos Fortunato, meu velho camarada da CCAÇ 2591, mais tarde CCAÇ 13. Embarcámos juntos no velho Niassa, com destino à Guiné, em finais de Maio de 1969.

Luís:

Os cubanos desempenharam sem dúvida um papel importante na guerra da Guiné. Para além do apoio médico e do fornecimento de especialistas para os foguetões de 122 mm, houve sempre a suspeita de que estavam por trás do planeamento de muitas das operações realizadas na Guiné.

Queria chamar-te a atenção para outro artigo que considero bastante interessante, e que é da autoria do coronel aposentado Victor Dreke, que foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra.

Seria excelente se conseguissemos estabelecer contacto com o comandante Victor Dreke, pois este poderia, se quisesse e pudesse, esclarecer muitas das lacunas existentes [sobre o conhecimento da] guerra da Guiné. Podes tentar um contacto, através desse teu antigo aluno?

Junto em anexo o texto do coronel Victor Dreke, mas aqui vai o a página da Net onde o consultei:

http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

Podes encontrar algumas fotos de cubanos na Guiné, num outro artigo, sobre os cubanos em África, que também tem várias referências ao seu papel na Guiné. A página da Net é:

http://www.tricontinental.cubaweb.cu/REVISTA/texto20ingl.html (*)

Um abraço

Carlos Fortunato

(*) Nota de L.G.: Texto em inglês > A History Worthy of Pride, by Dr. Piero Gleijeses, Professor of US Foreign Policy, Johns Hopkins University. Photos: Ediciones Verde Olivo.
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3. Então aqui vai, para efeitos de divulgação mais alargada, o texto de Victor Dreke, publicado no jornal diário Granma, o órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, na sua versão internacional e digital, na edição de 12 de Março de 2003. 

Esta versão, em português do Brasil, contém alguns erros, que corrigi, nomeadamente nos nomes das localidades da Guiné-Bissau. A ortografia é brasileira (LG).

Fotos: A History Worthy of Pride (com a devida vénia)


Nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes

por Victor Dreke (*)

Amílcar Cabral, um dos dirigentes africanos mais brilhantes, revelou que o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), valorizava intensamente o apoio dado pelo povo cubano. Assim informou-o num discurso histórico, em 30 de Agosto de 1966, de visita [a] Brazzaville com outros dirigentes das colônias portuguesas em luta.

Manifestou que não acreditava na imortalidade da alma. «Mas, se assim fosse» - acrescentou - «poderíamos dizer que as almas dos nossos antepassados levados [para a] América como escravos, estão contentes ao verem nesta hora seus filhos reunidos, contribuindo para a libertação e a independência verdadeiras».

Noutro momento desse discurso, Amílcar expressou: «Não são os rios nem as montanhas que fazem a história. A história é feita pelos homens e agradeço aos povos e aos homens que foram capazes de provar antes de nós essa realidade histórica, principalmente ao povo cubano e a Fidel Castro, que o fizeram através de seu exemplo».

Três meses antes, em 29 de abril de 1966, Cabral tinha-se reunido com os seis primeiros cubanos que chegaram à Guiné-Bissau, três deles médicos, Labarrere, Rómulo e Domingo (1), e [os outros] três artilheiros, Aldo, Verdecia e Salabarria, mais conhecido por Horácio, «o homenzarrão». Estes companheiros participaram do seu primeiro combate, [no] 1º de Maio desse ano. Posteriormente nos meses seguintes chegaram outros grupos.

Amílcar não queria que os cubanos se arriscassem e era oposto a que participaram [opunha-se a que participassem em combate] como soldados da infantaria. A morte do primeiro cubano, Félix Barriento Laporte, em 2 de Julho de 1967, no ataque ao quartel [de Beli, a nordeste de Madina do Boé, e não de Melle, como vem no original], foi para Amílcar uma grande preocupação e uma profunda dor, pois era do critério [de opinião] de que a guerra devia ser travada pelos guineenses e pelos cabo-verdianos. O apreço e admiração de Amílcar pelos cubanos foi expresso em cada momento.

A data de 2 de Março de 2003 virou data histórica e inesquecível para os povos de Cuba, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, com a inauguração, no Parque dos Próceres Africanos, nas ruas 13 e 64, Miramar, [em Havana, Cuba,] do busto desse grande lutador pela liberdade de seus dois povos, da África e da humanidade: Amílcar Cabral.

Este homem nasceu em 12 de Setembro de 1924, em Bafatá. Em 1932, a família mudou-se para Cabo Verde, onde continuou seus estudos até 1945, ano em que lhe foi outorgada uma bolsa de estudos para Lisboa.

Na etapa de estudante destacou-se na luta contra a colônia, realizando várias atividades como membro do comitê antifascista.

Em 1950, retornou a Bissau formado como engenheiro agrônomo, mas em 1955, devido a suas ideias e atividades anticoloniais, foi expulso pelo governador, motivo pelo qual viajou a Angola e aderiu ao movimento de libertação desse país (MPLA).

Em 19 de Setembro de 1956, foi constituído em Bissau o PAI (Partido Africano da Independência), adotando posteriormente o nome de PAIGC.

Amílcar preparou as condições para iniciar a guerra necessária e em 23 de Janeiro de 1962 começou a luta armada com o ataque ao quartel de [Tite e não de Titi, como vem no original], no sul do país. O dirigente africano traçou a estratégia da luta política, militar e econômica do país em guerra.

Em 1964, editou os primeiros livros escolares para a alfabetização, inaugurou uma escola para os filhos dos combatentes e crianças da zona libertadas e organizou a agricultura nas zonas dominadas pela guerrilha.

Em Novembro de 1964, constitui a primeira unidade do exército popular, organizou as milícias, abriu o front [a frente] leste e organizou, com os recursos existentes, as unidades de saúde.


África Ocidental > Congo (Zaire) > Possivelmente Abril de 1965. Da esquerda para a direita, Victor Dreke (Moja), o médico Rafael Zerquera (Kumi) e Che Guevara. Fonte: El Comandante Che Guevara (com a devida vénia)


De 13 a 17 de Fevereiro de 1964, celebrou-se o primeiro congresso do PAIGC em armas, no sul do país em [ Cassacá e não Casacá, como se lê no original], constituindo o bureau político e o comitê central.

No início de 1965, reuniu-se com o comandante Ernesto Che Guevara, na República da Guiné[-Conacri], de cujo encontro o Che fez uma avaliação muito positiva que expressou na sua Mensagem à Tricontinental (2).

Em 1966, por ocasião da primeira reunião da Tricontinental, Amílcar fez pronunciamentos sobre a unidade necessária na luta dos povos contra o colonialismo, os quais foram gravados para a humanidade toda. Visitou com nosso comandante-em-chefe Fidel Castro o Escambray e a partir desse momento Amílcar e seu povo uniram-se a Cuba na batalha por uma pátria livre do colonialismo.

[Nós,] os cubanos lembramos aquele grupo de companheiros cabo-verdianos que, sob as ordens do atual presidente Pedro Pires e com a participação direta do capitão Toledo, Coqui e outros cubanos, prepararam-se física e militarmente.

Posteriormente, os vimos nos campos da Guiné combatendo pela liberdade da [Guiné-] Bissau e Cabo Verde; presentes também na emissora Radio Liberação [Libertação], criada para cumprir a missão de fazer chegar a verdade ao povo, e que começou as transmissões em 16 de julho de 1967, na República da Guiné-[Conacri].

Amílcar Cabral foi um lutador incansável pela unidade e a paz de seus povos, pela cultura e o desenvolvimento de ambos os países, assinalando a esse respeito: «De Portugal só precisamos da língua para poder sair ao mundo».

Não podemos esquecer aquela noite triste do mês de Outubro de 1967, quando na embaixada de Cuba na República da Guiné-[Conacri] reun[iu-se] o bureau político do PAIGC, liderado por Amílcar e Aristides Pereira, para prestar tributo ao Comandante Che Guevara ao ser confirmada a notícia de sua morte na Bolívia (3).

[Em] resumo, Amílcar deu a palavra de ordem: atacar todos os quartéis durante 15 dias na operação que nomeou «o Che não morreu».

É por isso que estamos certos que Amílcar neste momento estaria junto a Fidel na luta pela unidade dos povos em defesa da liberdade e o retorno dos nossos Cinco heróis prisioneiros do Império (4). Com certeza, nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes.

Prestamos homenagem aos combatentes cabo-verdianos e guineenses mortos e como tributo também lembramos os cubanos que morreram na Guiné-Bissau: tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González (5).
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(*) O coronel aposentado Victor Dreke foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra de libertação desse povo

Fonte: http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

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Notas de L. G.:

(1) Vd post de 1 de Jukho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)

(...) "A principios del año 66, respondiendo a esa solicitud, lo designan como miembro del primer grupo (muy reducido), de médicos y combatientes que participarían en la liberación de Guinea Bissau, cuya metrópoli era Portugal (...).

"En ese momento yo era jefe de los servicios médicos de la división 1270 en el Mariel. Fuimos nueve médicos (tres viajaron por avión) junto a los instructores, en total 24 hombres. Tenía bastante experiencia en cirugía porque en esa época, desde que uno estaba estudiando podías participar en determinado equipo quirúrgico. Dos meses después de mi incorporación a este contingente, integrado por artilleros, morteristas, cañoneros y médicos, salimos hacia Guinea Bissau, en la motonave Lidia Doce de 2 000 toneladas. El viaje duró casi 20 días, hasta llegar al puerto de Conakry. La nave estaba deteriorada y fue un trayecto difícil, pues se rompió por lo menos tres veces. En una ocasión hubo un inicio de fuego en las máquinas y por poco tenemos que abandonar el barco" (...).

(2) Tal significa que o Che Guevara nunca esteve na antiga colónia portuguesa, como às vezes consta. O texto de Piero Gleijeses, Professor de Política Externa Norte-Americana, na prestigiada Universidade de Johns Hopkins, também não coloca a Guiné-Bissau na missão secreta que levou Guevara à África, de Dezembro de 1964 a Fevereiro de 1965:

In December 1964, Che Guevara went to Africa on a three-month trip that evidenced the increased interest of Havana in the region. In February 1965, in Dar es Salaam, Tanzania, Che came to an agreement with the rebellious Zairians that Cuba would send a group of instructors to help them in their struggle. In April, a Cuban column of about 120 men under Che´s orders entered eastern Zaire through Tanzania. (...). Fonte: A History Worthy of Pride

Em contrapartida, foi a Guiné-Bissau o país de África, em luta pela independência, que beneficiou mais, nessa época, do apoio político-militar de Cuba:

The end of the 1960’s was a period of growing maturation in the relationship between Cuba and Africa. In those years – until 1974 – Cuba’s focus in the continent was centered on Guinea-Bissau, where PAIGC guerilla fighters were fighting to liberate their country from the yoke of Portuguese colonialism.

At the request of the PAIGC, Cuban military instructors came to Guinea-Bissau in 1966 and stayed until the end of the war in 1974. This was the longest Cuban operation in Africa until the dispatching of troops to Angola in 1975; and it was also the most successful.

According to the words of the first president of Guinea-Bissau, “we knew that we could fight and triumph because other countries and people supported us... with weapons, with medicines, with supplies... But there is a country that, besides material, political and diplomatic support sent their sons and daughters to fight on our side, to spill their blood in our earth alongside that of the best children of our homeland. This great people, this heroic people, we all know is the heroic people of Cuba, the Cuba of Fidel Castro, the Cuba of the Sierra Maestra, the Cuba of Moncada... Cuba sent its best youth here to help us in the technical aspects of our war, to help us carry out this great struggle... against Portuguese colonialism.


Mais diz o autor que únicos estrangeiros que combateram ao lado do PAIGC nas bolanhas da Guiné, de 1966 a 1974, foram os cubanos. Cubanos (com uma única excepção, pontual, ao que parece) eram também os médicos que davam assistência à guerrilha, na frente de combate e nos hospitais de campanha. Até 1968 o PAIGC não dispunha de médicos guineenses:


"The only foreigners who fought with the PAIGC in Guinea-Bissau were the Cubans. Likewise, throughout the duration of this long war, the only foreign doctors in the guerilla areas were Cuban (with a single and fleeting exception), and there were no Guinean doctors up until 1968. “The Cuban doctors really made a miracle”, said Francisca Pereira, a health worker of the PAIGC. She observed, “I am eternally grateful to them. Not only did they save lives, but also they risked their own. They were truly selfless.”


Os jovens combatentes cubanos - ao que parece, todos voluntários - seriam apenas motivados pela "mística da guerrilha", no dizer de Piero Gleijeses, cujo artigo tenho vindo a citar. A sua missão era secreta. Em caso algum, poderiam esperar o reconhecimento público pelos seus feitos, ou queixar-se da má sorte da guerra... Eram jovens, sentiam-se "filhos de uma revolução" e tinham sido criados no seio da ideologia castrista e do culto do exemplo romântico de Che Guevara...O próprio Victor Dreke era apontado como o nº 2 da hierarquia dos combantentes cubanos em África, a seguir ao Che Guevara...

The Cubans who went to Africa did so voluntarily. The mystic of the guerrilla war motivated them. “We dreamed about revolution” one meditated. “We wanted to be part of it, to feel that we fought for it. We were young and the children of a revolution.” The volunteers didn’t receive public praise in Cuba. They left “knowing that their history would remain secret.” They didn’t win medals or receive material rewards. Upon their return they could not boast about their feats because what they had done was secret.


(3) Guevara foi capturado, ainda vivo, pelos rangers do Exército boliviano, treinados pelos Estados Unidos, em 8 de outubro de 1967; passou a noite numa escola da aldeia de La Higuera, a 50 quilómetros de Vallegrande, no centro-sul da Bolívia, para depois ser excutado, a sangue frio, com nove tiros, no dia seguinte, 9 de Outubro de 1967, por ordem do presidente da Bolívia, general René Barrientos.

(4) Referência a 5 cubanos, na altura (Março de 2003) presos nos Estados Unidos da América, sob a acusação de terrorismo.

(5) Vd. post de 14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes > Foto dos seguintes elementos da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, que se conseguiram encontrar, entre as 11 e as 12h: na primeira fila, eu, próprio, Luís Graça (CCAÇ 12, 1969/71), à esquerda, e a meu lado o Carlos Fortunato (CCAÇ 13, 1969/71); na segunda fila, a contar da esquerda para a direita: o Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1969/71), o António Duarte (CART 3493 e CCAÇ 12, 1972/74), o Mário Dias (Comandos, 1963/66), o José Martins (CCAÇ 5, 1968/70), o Francisco Baldé (1ª, 2ª e 3ª Companhia de Comandos Africanos, 1969/74) e o João Parreira (CART 730 e Comandos, 1964/66).


Caro Luís Graça,

Quero dar as boas vindas ao Mexia Alves (1). Lembro-me que ele, à época, estava completamente apanhado. Era boa praça.

Recordo-me dele muito bem e de um incidente no início de 1973, numa farra em Bambadinca, em que estava o major de operações do batalhão [BART 3873], os alferes e furriéis da CCAÇ 12 e o Mexia Alves [, Alf Mil Op Especiais, comandante do PEL CAÇ NAT 52].

Armou-se uma bronca a propósito de uns versos de uma canção, adaptada ao comandante do batalhão (Ten Cor António Tiago, já falecido), em que ele era tratado por Manel Ceguinho, o que levou o major a dizer ao Mexia Alves que "não estávamos ali para armar em cobardes".

Ficou um ambiente de cortar à faca, que se ultrapassou com uma tirada do Mexia Alves, na qual dizia:
- Cobarde, eu, meu major ?!... Eu que pico a estrada com os pés... que avanço à frente do pelotão quando não há picadores ?!...

O major colocou um sorriso amarelo e recolheu aos seus aposentos e nós lá ficámos a beber e a cantar as canções habituais. Umas bem sérias e outras de baixo nível, bem ordinárias como a da famosa Maria Bardajona...

Um abraço a todos,
António Duarte (2)

PS - Só mais uma nota: pela quantidade de material já disponível nos dois blogues e sobretudo pela qualidade de alguns conteúdos, já não se justificava editar um livro com textos aqui publicados ? Vamos pensar nisso depois das férias ?

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Notas de L.G.

(1) Vd. postS de:

11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

16 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)

(2) Vd. posts de:

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

(...) "Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril" (...).

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)

(...) "De facto estive na CCAÇ 12 desde Janeiro de 1973, primeiro em Bambadinca e a partir de Abril no Xime, após as rotações das companhias, geradas pela transferência para Cobumba da Cart 3493 (minha unidade inicial). Regressei à metrópole em Janeiro de 1974 (...)

"Quanto ao ano de 1973 na CCAÇ 12 a acção foi mais animada. Instalados em Bambadinca, naquilo que se classificava de hotel, fazia-se operações sobretudo na zona do Xime. Assim em 3 de Fevereiro tive a primeira emboscada na Ponta Varela em que participaram três grupos de combate da CCAÇ 12 em conjunto com 2 pelotões da Cart 3494 (à época aquartelada no Xime). As NT não registaram feridos mas segundo se apurou em informações recolhidas no Enxalé, o PAIGC teria tido baixas" (...).


11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLV: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

(...) "Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12. Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal)" (...).

Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras...


Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > Elementos do Pel Caç Nat 63... Quem não era cacimbado, que atire a primeira pedra, podia ser a legenda...

Foto: © Jorge Cabral (2005)

1. Gostaria que continuássemos a falar do cacimbo, dos cacimbados, dos apanhados do clima, dos nossos comportamentos de risco, das nossas loucuras, diabruras, bravatas... Todos nós fizemos coisas de que hoje temos algum pudor em falar... Imputamo-las ao clima, à situação de guerra, mas também aos verdes anos, ao sangue na guelra ou até ao stresse pós-traumático de guerra...

Cacimbo, por exemplo, é o título do blogue do Manuel Basto, de Coimbra, e que tem curiosamente como subtítulo Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra... É um dos mais antigos e pessoalíssimos blogues dedicados à guerra colonial, remontando a sua origem a Novembro de 2003. No primeiro post, Prefácio, o autor dá a sua definição do conceito de cacimbo e explicita a natureza do seu blogue:

Chamavam (es)gaseados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África. O povo sempre soube o que os peritos e as autoridades teimaram em ignorar durante tanto tempo: alguns ex-combatentes sofrem do Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra. Para eles a guerra não acaba nunca no armistício.

Aqui compilarei os artigos publicados no jornal Elo da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Respeitarei o texto original mas acrescentarei algumas fotos que aqui ganham outra dimensão.

Confesso a pretensão literária destes textos, pelo que deve ser tomada em conta a intenção de transmitir sensações em vez de veicular informações, isto é, a verdade que transmito não é tanto a dos factos, como a dos sentimentos.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cacimbado, em Portugal, em sentido figurado e na linguagem informal é sinónimo de "um tanto maluco".
O termo cacimbo é de origem angolana. No blogue do Jorge Santos, operador cripto no leste de Angola, pode ler-se:
O termo 'cacimbado' era, para os militares, a forma simpática de dizer que o indivíduo estava mesmo 'marado da tola' ou de forma mais clara e entendível, que estava a ficar doido pela pressão do dia a dia.

2. Escreveu o Joaquim Mexia Alves, que foi em tempos Alf Mil de Operações Especiais lá para as bandas da Guiné por onde eu também tinha andado dois anos (e que é hoje um conhecido empresário ligado ao turismo), o seguinte (1):

"Quando estava no Pel Caç Nat 52, junto a Bambadinca, tinha uma forte ligação à CCAÇ 12, não só operacional mas de amizade com todos eles, especialmente o Capitão Bordalo e os seus Alferes (...).

"Para além das operações e outras actividades que iamos fazendo,sobrava-nos tempo para algumas loucuras, resultantes de algum cacimbo e do cansaço provocado pelo stress permanente, e por alguma incompetência, de quem deveria ser competente.

"Entre algumas de que lembro, fomos uma vez à noite, o Capitão Bordalo, os seus Alferes e eu, armados até aos dentes, de Unimog, jantar ao Xime, pela estrada de todos conhecida e que naquela altura só se fazia em coluna protegida, mercê das emboscadas que nela tinham acontecido.

"Quando regressávamos, num alarde a roçar a loucura, talvez também ajudados por uns uísques, parávamos na estrada, no sítio das emboscadas, e voltados para a mata, aliviámos as bexigas (2).(Itálicos de L.G.)

"Foi um momento hilariante, mas muito intenso, que nos uniu ainda mais na amizade e companheirismo. (Itálicos de L.G.)

"Escusado será dizer que o caso foi conhecido e muito comentado, tendo recebido, como é lógico, olhares de reprovação de quem de direito, mas não mais que isso, porque os gajos das tropas africanas são doidos e isto bem o prova.

"Claro que não foi nada de muito importante ou heróico, mas apenas um modo de aliviar a tensão, com uma tensão ainda maior" (...)(Itálicos de L.G.).

3. Conheci bem aquela estrada, Bambadinca-Xime ou Xime-Bambadinca. Tratava-se de um troço que toda a malta da zona leste conhecia: era a via estreita, obrigatória, para se chegar a qualquer ponto da região de Bafat ou do Gabu (Nova Lamego)!), vindo de Bissau, de LDG, pelo Rio Geba acima, até ao Xime...

No meu tempo, já no final da minha comissão, a estrada, com um novo traçado construído pela Tecnil, estava praticamente pronta para ser alcatroada... Julgo que o Joaquim Mexia Alves só já conheceu o troço alcatroado...

No meu tempo, o único troço alcatroado que existia era o de Bambadinca-Bafatá, uma autêntica autoestrada onde não foram poucos os acidentes, com viaturas militares, e pesadas baixas, devidas apenas ao excesso de velocidade...

Nunca houve qualquer emboscada nesse troço, na época em que lá estive (Junho de 1969/Março de 1971)... O mesmo não acontecia no troço Xime-Bambadinca ou Bambadinca-Xime... A Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, era um dos sítios fatídicos.

O que é interessante é que eu, num gesto quase automático de cumplicidade e solidariedade, fui logo evocar uma loucura que eu também fiz, pelo menos uma vez, e que poderia ter tido graves ou até trágicas consequências... Eis o meu comentário:

"Obrigado, camarada... Andámos pelos mesmos sítios, fizemos as mesmas loucuras, como essa de ir de Bambadinca ao Xime, beber um copo... Fi-lo de Daimler, sozinho, eu e o condutor, em finais de 1970, quando a Tecnil ainda estava a abrir a estrada, mais tarde alcatroada...

Devo acrescentar que não fui sozinho, com o condutor da autometradalhadora Daimler (e ainda por cima sem a competência autorização ou o simples conhecimento do Alf Mil Cav, o J.L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano!)... Fui ao Xime beber um copo, desenfiado, cacimbado... E, o mais grave, levei comigo a mascote da messe de sargentos de Bambadinca, que era um puto africano, órfão, gordinho, de alcunha o Tchombé... Um puto de quatro ou cinco...

4. Evoco aqui esta minha loucura (hoje nunca o faria!!!), apenas para corroborar a ideia de que os operacionais (metropolitanos) das unidades de recrutamento local - a nova força africana tão acarinhada por Spínola - eram tão (ou mais) cacimbados dos que viviam em estado de sítio, bunkerizados, confinados ao perímetro do seu aquartelamento, rodeados de arame farpado e de minas... Exemplos não faltam destas unidades de quadrícula onde o pessoal vivia debaixo do chão como toupeiras: Mansambo, Gandembel, Guileje ou Banjara são apenas alguns dos sítios bunkerizados, já aqui evocados no nosso blogue...

Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei, arrepiado:
- Isto aqui era o nosso Vietname (2).

5. Acho que é um exercício inútil, idiota mesmo, esse de tentar avaliar quem eram os mais cacimbados, os mais doidos, os mais irresponsáveis, os mais cobardes ou os mais corajosos... Já aqui, em tempos, referi os nossos comportamentos de bravata, as nossas praxes, os nossos rituais de guerra, as nossas formas de lidar com o medo, o risco, o perigo, a morte...

O Magalhães Ribeiro tem um notável texto que é revelador do estado de insanidade mental das NT, a que chegaram as NT, mesmo já depois do 25 de Abri e da descompressão que foi o fim da guerra anunciado... Aqui fica o relato da recepção, perfeitamente surreal, da sua companhia, de periquitos, pelos velhinhos de Mansoa... em Agosto de 1974 (2):

"Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:

"- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
"- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
"- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.

"Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.

"Os efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas (Itálicos de L.G.). Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.

"A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…

"Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!" (...).

6. O álcool!!!... Era a droga mais barata, ao alcance do soldado do contingente geral e do miliciano, praticamente os únicos a quem, a par dos nharros, competia combater, de armas na mão... Tirando honrosas excepções, os oficiais (superiors) e os sargentos do quadro não pegavam na G-3, não saíam para o mato, dormiam - uns melhor, outros pior - na sua cama... Era humanamente compreensível: a meio da guerra, em finais da década de 1960, muitos deles já estavam a caminho da terceira comissão no Ultramar (Índia, Moçambique, Angola, Guiné...)três comissões em cima do corpo!!!


7. Tive a ocasião de comentar estes estranhos comportamentos dos nossos camaradas, já depois do fim da guerra, com o seguinte texto:

"Este testemunho do nosso ranger [, o Magalhães Ribeiro,] é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...

"São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura pelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...

"Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...

"São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício, desprezo pelo perigo, audácia, inconsciência, bravata... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de Alcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...

Como diz o Joaquim Mexia Alves, no seu blogue, apresentando-se ele próprio à comunidade bloguista: (...) "Pai e Avô. Português sem dúvidas. Serviço militar cumprido e comprido"....

8. Sobre a violência, mais ou menos ritualizada no quotidiano das nossas casernas, há já vários posts no nosso blogue, cuja releitura sugiro (3)... Retenho aqui uma expressão usado pelo João Parreira: "brincadeiras de mau gosto, diabruras ou disparates, tanto faz". 

Todos nós temos estórias destas... Seria uma pena perdê-las... Por seu turno, as estórias cabralianas, da autoria do Jorge Cabral, têm de ser inseridas no registo do exorcismo do medo, através do humor castrense, da efabulação do insólito e do grotesco no quotdiaino da guerra da Guiné (3)...

Luís Graça
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

(2) Vd. post de 15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

(3) Vd por exemplo os seguintes posts (lista exemplificativa, não exaustiva):

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P868: Diabruras dos comandos (João Parreira)

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

Guiné 63/74 - P964: O Nosso Livro de Visitas: Obrigado, camaradas (José Bastos, 1º Cabo Trms, Bafatá e Bula, 1973/74)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > Vista aérea da sede de concelho de Bafatá, elevada a cidade em Março de 1970. Vista da bela mesquita local.
Foto, tirada de héli, do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Caro Luis Graça,

Chamo-me José Bastos, estive na Guiné em serviço militar desde Janeiro de 1973 a Agosto 1974, fui 1º cabo de transmissões (STM), estive todo o ano de 1973 em Bafatá, tendo vindo a Portugal de férias no início de 1974 e voltado à Guiné, desta vez para Bula, onde estava quando se deu o 25 de Abril.

Quando vejo qualquer notícia ou outro tipo de escrita que fala em Guiné-Bissau, sinto como que alguma coisa de mim esteja nessa pequena palavra e não resisto a ler, reler e voltar a ler... Daí que tudo o que se encontra neste e noutros sítios , como o da Guiné-Bissau > Contributo [o sítio do Didinho], eu consulto, leio, releio e muitas vezes me comovo com aquilo que os camaradas contam e que muito me toca.

Voltei à Guiné em 1976 e daí para cá tem sido uma corrida quase constante: este ano ainda só lá estive em Março, mas no ano de 2005 fui lá 5 vezes, 2004 igual, 2003 idem, etc.

A minha vinda a este blogue é simplesmente para agradecer aos camaradas que vão deixando aqui as suas histórias, agradecer-lhes, agradecer ao Luís Graça e a todos quantos fazem com que, um dia, quando a nossa geração desaparecer, os nossos filhos, os nossos netos, quer brancos, quer pretos, saibam tirar a lição que já todos nós tirámos, concerteza, sobre a guerra colonial: tanto nós como o PAIGC lutámos por objectivos que, no meu ponto de vista, só o do PAIGC era um objectivo válido, consistente, assente na determinação nobre de serem independentes.

Nós fomos defender um património que não nos pertencia, mas ficou uma grande lição de humanismo e respeito entre dois povos que falam a mesma língua e que choram ambos os seus mortos. Tenho que respeitar e respeito as decisões de um Estado soberano como a Guiné-Bissau, mas não deixo de lamentar e sentir uma grande tristeza pelos fuzilamentos do pós-guerra, exercidos sobre os comandos africanos que estiveram do nosso lado. Está será sempre uma grande mágoa que me acompanhará até à morte.

Da última vez que fui à Guiné estive na Residencial Coimbra e encontrei 2 militares da Liga dos Combatentes, o vice presidente e outro da marinha. Andavam a fazer o levantamento dos militares que ficaram sepultados na Guiné, achei um trabalho muito interessante.

Bom, já vai chegando por hoje, voltarei ao contacto e estou também inteiraqmente disponível para ser contactado para:

E-mail > j.s.bastos@netvisao.pt e j.s.bastos@vodafone.pt
Telemóvel > 965 392 507
Telefone > 256 422 006
Fax > 256 188 801

Um abraço
José Bastos
__________________

Comentário de L.G.:

Meu caro Zé Bastos:

(i) Pelo indicativo do teu número de telefone e fax és capaz de ser de Ovar ou de São João da Madeira, terras de gente laboriosa e boa, não desfazendo nas restantes...

(ii) De Ovar já temos dois camaradas, curiosamente ambos de transmissões: o Afonso Sousa e o Hernâni Acácio Figueiredo, como poderás ver na nossa tertúlia;

(iii) As transmissões são, de resto, umas das armas que mais membros, voluntariosos e activos, tem dado à nossa tertúlia, a qual, como sabes, vive sobretudo das estórias que vamos contando uns aos outros;

(iv) Presumo que queiras ficar connosco, na nossa tertúlia, na nossa caserna virtual onde cabe sempre mais um (ainda não formamos uma companhia mas para lá caminhamos);

(v) Que sejas, pois, bem-vindo ao nosso convívio e que este seja mutuamente enriquecedor;

(vi) Vejo que és um fã da Guiné, um profundo conhecedor do país, pelo que deduzo que tenhas contigo muita documentação, incluindo fotográfica; o que puderes e quiseres partilhar connosco, será apreciado e acarinhado... Tens negócios na Guiné, para lá ires assim, praticamente de dois em dois meses ? (Não precisas de responder, já que a pergunta é demasiado pessoal);

(vii) Muito em particular, gostaria de saber duas coisas: como viveste aí, em Bula (que já pertence à região do Cacheu), o 25 de Abril; e como foi feita a passagem de testemunho entre as NT e o PAIGC... Tens fotos dessa época ?

(viii) Fala-nos, já agora, dos meses de 1973/74, que passaste em Bafatá... Como estava a situação político-militar na 2ª maior cidade da Guiné, até à data da tua ida de férias ?

(ix) Vê o post de 2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (4): Elevação de Bafatá a Cidade , com várias fotos de Bafatá, da época em que foi elevada a cidade (!) (Março de 1970)

domingo, 16 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P963: Antologia (50): Português, língua africana, com muitas (ciber)dúvidas (Luís Graça)

O português, a língua portuguesa, pode (e deve) ser uma janela de oportunidades para todos os seus falantes e para todos os povos cujos Estados o(a) têm como língua oficial... Não confundir este recurso (essencial) - a língua como elemento estruturador da identidade e da cultura de um ou mais povos que a história pôs em contacto, aproximou, modelou - com um instrumento de dominação e exploração... Se um guineense, angolano ou moçambicano já não vê a língua portuguesa como a língua oficial de uma potência colonial ou até um instrumento de dominação de uma dada cultura, é bom que os portugueses, alguns portugueses, tomem consciência de que o português já não lhes pertence, tem uma dinâmica própria, uma dinâmica universal, é também património de outros povos... Falar bem e escrever melhor o português são duas coisas essenciais para todos nós, para o futuro dos nossos povos... Adicionalmente, é um ponto de honra da nossa tertúlia e dos seus membros...

Foto: Parede exterior de uma casa, pintada com os símbolos e as cores da bandeira portuguesa... por ocasião do Campeonato Mundial de Futebo dee 2006. Local: Lourinhã, Bairro de Santa Catarina; data: Julho de 2006.

Fotógrafo: © Luís Graça (2006)


Agora que acabou (felizmente!) o Campeonato Mundial de Futebol de 2006 e o nosso coração pôde finalmente repusar em paz, no sítio do costume, deixámos de falar futebolês e voltámos a preocupar-nos com as mil e umas outras coisas de que também é feita a vida... A começar pela língua (materna e/ou oficial) de cada um de nós...

Selecionei e vou aqui reproduzir - com a devida vénia aos respectivos autores e fontes -, dois textos, a propósito da importância estratégica do português, num mundo global, permitindo a comunicação, por exemplo neste blogue, entre guineenses e portugueses que passaram por uma experiência comum que foi a guerra de 1963/74, conduzindo à independência da República da Guiné-Bissau... Mas também sobre as dúvidas (incluindo as ciberdúvidas) sobre o que se tem feito no domínio das políticas da língua por parte da CPLP, em geral, e de cada um dos membros da CPLP, em particular...

Justamente, amanhã, em Bissau começa mais um encontro oficial da CPLP, dos oito países da CPLP, numa organização que teve o apoio (político, logístico e financeiro) de parceiros tão inesperados como a China e a Líbia... Do português se ouvirá falar, de certo, nestes próximos dias e em português se entenderão, em Bissau, os representantes dos países da lusofonia...

Embora modestamente, o nosso blogue pretende, também ele, ser em português um traço de união entre os nossos povos...

1. CPL QuÊ?
editorial Nuno Pacheco
Público 16 de Julho de 2006

Por estes dias, reúnem-se em São Petersburgo os mais ricos, vulgo G8; e em Bissau reúnem-se noutra cimeira alguns pobres (uns mais que outros, evidentemente) sob a sigla CPLP. São também oito e, ao longo de uma década de voluntária união, alinhada em quatro consoantes de difícil pronúncia, pouco mais conseguiram do que a fama, simpática, de bons mediadores em conflitos. Nos seus conflitos, diga-se. No mundo, as tais letras pouco pesam. Falta-lhes "visibilidade", lamentam-se os seus líderes. Na verdade faltam-lhe outras coisas: mais empenhamento colectivo nos objectivos há muito traçados, mais capacidade de execução prática, mais acção e menos retórica.

Amanhã, em Bissau, a tal cimeira que reúne chefes de Estado e outros governantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, decorre num cenário de algum "luxo" visual: como relatava ontem a agência Lusa, "as ruas foram limpas, as paredes pintadas, os buracos nas estradas tapados e até um hotel de cinco estrelas foi construído em tempo recorde para acolher os cerca de 400 participantes, entre delegações e jornalistas". Num país que tem vivido mergulhado em permanentes conflitos políticos e militares e apresenta ainda hoje um dos piores índices de pobreza do mundo, vão circular também doze limusinas de luxo com "chauffeur" e 18 motorizadas, emprestadas pela Líbia a fim de servirem de transporte aos participantes na cimeira. Sob este artificial e fugaz fausto, a CPLP bem pode encontrar meios eficazes de sair da sua semi-sonolência e rumar a territórios onde pode, de facto, ser útil. Assim o queiram os seus membros. Pode dizer-se que, na VI cimeira da sua primeira década de vida (haverá outras? Deixarão algum lastro na história?), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa só pode aspirar a um balanço magramente satisfatório. Montou uma máquina burocrática que se aprimorou em diplomacias e salamaleques de ocasião mas se mostrou fraca ou quase inútil para levar a bom termo dois dos objectivos primordiais a que propôs na sua génese: a projecção da língua portuguesa e a cooperação no desenvolvimento.

Num comentário colocado no site Ciberdúvidas, a propósito do futuro da língua portuguesa no mundo, há uma síntese exemplar assinada por José Manuel Matias: "A expansão do Português no mundo surgirá naturalmente, quanto mais ciência se fizer em língua portuguesa, quanto mais cultura for criada em língua portuguesa, quanto mais arte for criada em língua portuguesa e quando os países integrantes da CPLP se afirmarem nas relações económicas internacionais. Estes factores serão essenciais para que falantes de outras línguas necessitem e queiram aprender a falar Português." Se a nível da projecção económica as dificuldades se avizinham maiores, já em termos da criação ou investigação há um caminho que pode e deve ser incentivado. Isto cuidando, sempre, de respeitar as outras línguas ou dialectos no espaço onde também (embora não exclusivamente, é bom não esquecer) se fala o português. Quanto à cooperação no desenvolvimento, só os mais ricos de entre os tais oito pobres poderão acentuar incentivos e práticas recomendáveis e úteis. Pode ser que as tais consoantes de difícil pronúncia passem, até, a soar melodiosas com o tempo.


2. Português, língua africana *
José Manuel Matias**
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa

Os países de língua oficial portuguesa constituem uma base da maior importância para a expansão do português em África. A opção pela língua de Camões foi tomada pelos movimentos independentistas ainda no decurso da luta de libertação e resultou do reconhecimento de que a sua utilização concorreria eficazmente para consolidar as fronteiras políticas e culturais dos futuros Estados, contribuindo também para fortalecer a independência e unidade nacional.

Naturalmente que nessa decisão pesaram os exemplos dos processos de descolonização no continente africano, mas, igualmente, a contribuição da língua na construção da unidade do Brasil. O fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, sintetizou a relevância da língua portuguesa, ao afirmar que «o português é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram».

O potencial da nossa língua em África é extremamente significativo, sobretudo no hemisfério sul. Além dos PALOP, cuja população crescerá, segundo as estimativas da ONU, para 58 milhões em 2025 e para 83 milhões em 2050, regista-se uma crescente procura da aprendizagem do português nos diversos sistemas de ensino de países que integram a SADC, com particular destaque para a África do Sul, Namíbia e Zimbábue. Idêntico movimento se verifica em vários Estados da UEMOA e CEDEAO, assumindo especial relevância os casos do Senegal, da Costa do Marfim e do Gabão.

Procurarei, de seguida, sintetizar algumas reflexões que permitam deduzir a importância do português para os países africanos de língua oficial portuguesa, no limiar do séc. XXI:

A Língua Portuguesa como elemento estruturante das identidades nacionais

O Estado africano foi criado durante a implantação do colonialismo europeu que, na sua génese, não teve em consideração as identidades africanas. Assim, o clássico modelo de nação, ambicionada pelas soberanias ocidentais, foi adoptado pelos povos africanos que se tornaram independentes no processo de descolonização da última metade do século XX.

Surgiram, assim, Estados formados pela integração de grupos com identidades culturais e linguísticas muito diferenciadas. Neste contexto histórico, político e cultural, pela sua capacidade de endogenizar povos linguisticamente vários, a língua portuguesa é um elemento substancial da construção das identidades nacionais.

Por outro lado, a afirmação e assimilação do português em espaços africanos com fronteiras estatais que separaram uma mesma identidade linguística – fa(c)to muito comum em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique – opera um processo de diferenciação de comunicação linguística em relação à do outro Estado que é, em si, um factor de identidade nacional. Muitos intelectuais africanos dos países da CPLP afirmam que o português «exprime a construção das nacionalidades.

Neste contexto de contingência histórica, a língua portuguesa em África (principalmente em Angola e Moçambique, onde a geografia não forjou nenhum crioulo) não é um instrumento neutro, um contigente meio de comunicação entre os africanos, mas a expressão da sua afirmação nacional. Em suma é um factor de apaziguamento político e social.

A Língua Portuguesa e o desenvolvimento econó[ô]mico

Nas sociedades contemporâneas o desenvolvimento económico dos Estados está intimamente associado aos avanços da ciência e da tecnologia. O Produto Interno Bruto depende muito dos índices de investigação científica. Nos países africanos membros da CPLP a forma mais imediata de acesso ao conhecimento é através da língua portuguesa, língua do sistema educativo.

Por outro lado, nestes países, o domínio da língua portuguesa é fundamental como elemento estruturante do próprio Estado, pois o português é a língua da administração, e uma administração pública eficaz é outro fa(c)tor essencial do desenvolvimento econó[ô]mico, tanto mais que, nestes países, o seu tecido empresarial ainda se encontra em processo de formação histórica. O escasso domínio da língua da administração provoca, em certas circunstâncias, uma certa impotência do Estado para solucionar problemas quotidianos.

A Língua Portuguesa como afirmação de cidadania
O domínio da língua portuguesa é igualmente uma afirmação de cidadania e de democratização das sociedades africanas. O fraco domínio da língua da administração dificulta a comunicação entre estas populações e o Estado e com as elites políticas, marginalizando-as do desenvolvimento econó[ô]mico e da participação política e cívica.

O domínio da língua portuguesa é, assim, fa(c)tor imprescindível de resgate dos diversos espaços e linguagens, para que toda a população se afirme como cidadãos sujeitos responsáveis pela sua posição nas sociedades.

O espaço do português em África
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma expansão exponencial do português nos países africanos de língua oficial portuguesa com a possível excepção da Guiné-Bissau, embora seja difícil estabelecer quantitativos exa(c)tos de falantes de português.

Dados do Recenseamento Geral da População de 1997 de Moçambique (Ministério da Educação) indicam que, numa população de doze milhões de habitantes (população com mais de cinco anos de idade), cerca de 6,4 por cento fala o português como língua materna, em zonas urbanas, e 1,2 por cento em zonas rurais. Assim, possivelmente mais de quatro por cento dos moçambicanos terão o português como língua materna. Ainda segundo este mesmo recenseamento, cerca de 40 por cento da população fala o português como segunda língua, havendo uma taxa de cerca de 59,9 por cento de analfabetismo. Poderemos admitir que alguns milhões de moçambicanos não conseguem comunicar em português.

Em relação a Angola, o sítio www.ethnologue.com estima que a percentagem de população que tem o português como língua materna seja muito superior à de Moçambique, possivelmente o dobro. Este fenó[ô]meno resulta de décadas de guerra civil que transformaram a cidade de Luanda numa megametrópole constituída pelas muitas nações angolanas que, para comunicar entre si, tiveram de se socorrer do português. Este país com uma taxa de 55,2 por cento de analfabetismo, tal como Moçambique, terá alguns milhões de habitantes que não conseguem comunicar em português.

Segundo o mesmo sítio na Internet, somente 11 por cento da população da Guiné-Bissau fala o português; e sobre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe apontam para percentagens de cerca de 70 por cento de populações bilingues (têm o crioulo como língua materna e o português como segunda língua).

Dizem que um pessimista é um optimista bem informado. Eu não queria carregar excessivamente na nota negativa, quero apenas sublinhar que, com estes dados, torna-se necessário maior investimento na difusão do português em África, designadamente na Guiné-Bissau. Estes dados evidenciam uma realidade: a língua portuguesa em África ainda não ultrapassou as fronteiras da cidade; é um meio de comunicação essencialmente urbano; não conquistou as comunidades rurais.

Já em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, para as comunidades do interior a língua portuguesa é-lhes estranha, pois os seus processos históricos foram outros. Contudo, para a constituição do Estado-Nação formado, como diz o sociólogo catalão Manuel Castells, por «nós de uma rede de Poder mais abrangente», para um Estado-Nação, dentro do qual as comunidades rurais se possam afirmar plenas da sua identidade, é necessário o domínio do português. A língua portuguesa ajudará estes países a caminhar para um tempo exclusivamente seu, num processo de reconstrução da sua própria identidade

A expansão do português para o mundo rural destes países, porém, não poderá corresponder à extinção das línguas africanas. Com a morte de uma língua, morre uma criação humana, uma forma particular de exprimir uma concepção do mundo, um modo de expressar uma relação com a natureza, uma tradição oral, uma poesia.

Para que este fenó[ô]meno não ocorra é necessário a adopção de Didácticas que assumam uma relação de diálogo autêntica entre as diferentes línguas, de tal modo que se pressuponha a não existência de uma língua com estatuto privilegiado. As sociedades africanas estão assim perante o desafio de desenhar e construir relações de igualdade entre as suas línguas incluindo a portuguesa como componentes essenciais do seu património cultural.

Trata-se de um desafio não somente linguístico, mas sobretudo cultural. Assim se exprimiu recentemente Mia Couto:

«A língua portuguesa tem de romper com o estatuto de oficialidade para se tornar uma língua de expressão plena, de tradução da intimidade. Os que pensam que isso só é possível se se agride a africanidade estão cativos de uma atitude estética. Afinal é preciso acreditar que os africanos, ao adoptarem um língua europeia, não ficam em posição de inferioridade, a sua cultura originária fica até mais forte.»

(comunicação lida no Congresso Bienal da Língua Portuguesa na CPLP, em Viseu, dias 19, 20 e 21 de Abril do corrente ano de 2004)

* Organização do Instituto Piaget de Portugal

** Vice-presidente da Sociedade da Língua Portuguesa e co-coordenador editoral do Ciberdúvidas.

2004-04-23

Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)

Como diz o Joaquim Mexia Alves, no seu blogue, apresentando-se ele próprio à comunidade bloguista: (...) "Pai e Avô. Português sem dúvidas. Serviço militar cumprido e comprido".

Recorde-se que ele deambulou pela Guiné entre Dezembro de 1971 e Dezembro de 1973, tendo passado pela CART 3492 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) e CCAÇ 15 (Mansoa), como Alf Mil Op Especiais (1)... E que é hoje um conhecido empresário do sector do turismo (e do termalismo)...

________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de

13 de Juho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)


11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

sábado, 15 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P961: No dia em que fui ferido pelos homens de Pansau Na Ina (João Parreira, Gr Cmds Fantasmas, Catungo, Maio de 1965)

Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de Junho de 1965 > O Almirante Américo Tomás a condecorar o Ten Saraiva, comandante do Grupo de Comandos Fantasmas, com a Medalha de Valor Militar com Palma.

Guiné > Brá > 1965 > Guião do Grupo de Comandos Fantasmas.



Guiné > 1965 > Tita Sambo (Camjambari) > O Grupo Fantasmas. Final da operação Ebro, em 26 de Março. Para completar os intervenientes da Ciao, falta apenas a presença
do Cap Nuno Rubim que acompanhou o Grupo. Em pé: Cmdt Grupo Ten Saraiva, 5º da esq. e eu o 9º. O Fur Mil Morais está em frente do Saraiva e o Soldado Amadú à minha frente
(JP)


Guiné > Bissau > 1965 > Foto tirada no dia 11 de Junho, em frente ao Hotel Portugal, e por várias razões: Era o dia dos meus anos; fui a Bissau buscar o 2º Sgt. José Cabedo e Lencastre que vinha para o Centro de Instrução de Comandos; foi um dia depois da condecoração e promoção do Saraiva; os sapatos de pala castanhos que calçava atravessaram algumas bolanhas; de tarde saímos para instrução e à noite fui ai cinema UDIB ver o filme “Noites de Casablanca”, com a Sara Montiel (JP)

Texto e fotos: © João Parreira (2006) (ex-Furriel Miliciano Comando, Brá, 1964/66) (1)

Julgo que vale a pena deixar escrito alguns eventos, durante o período de 6 de Maio a 11 de Junho 1965, alguns deles relacionados com a operação Ciao na mata de Catungo, em Maio de 1965.

Na carreira de tiro dos paraquedistas, alguns dias antes tinha perdido uma aposta com o Morais, pelo que me competia em qualquer altura pagar-lhe um almoço no Grande Hotel.

Como alvo, daquela vez, foram escolhidas 3 garrafas distanciadas umas das outras (também havia quem preferisse latas e até granadas). A aposta consistia em, virados de costas para cada uma delas, e por 3 vezes consecutivas, dar um salto, enfrentá-las e, instintivamente com a
G-3 em patilha automática, dar apenas uma rajada de 3 tiros e, por sequência, acertar nas que ainda se encontrassem intactas.

Como não me foi dito que havia saída para o mato nesse dia, resolvi então convidá-lo para ir almoçar uma vez que faltavam poucos dias para ele regressar à Metróple.

Depois do almoço num ambiente calmo e agradável encontravámo-nos a beber whisky, a observar o que nos rodeava e a falar de coisas triviais, quando vimos o Tenente Saraiva dirigir-se para nós pelo que pensámos que se ia sentar connosco.

Desde o meu primeiro dia que senti que iria ter boas relações com o Ten Saraiva e assim aconteceu quer em Brá quer nas nossas deambulações por Bissau ou em operações. No mato admirava o seu empenhamento, a sua descontração e o seu à-vontade.


Guiné > Brá > O 1º Guião dos comandos em 1965 cujo lema, retirado da Eneida, de Virgílio, é Audaces Fortuna Juvat (2)
Afinal tinha acabado de chegar do Gabinete do Governador e Comandante-Chefe, onde tinha ido receber informações sobre uma operação e sabendo por alguém que me encontrava com o Morais no Grande Hotel, foi ter connosco e disse-me para regressar a Brá o mais depressa possível a fim de me equipar para dentro de poucas horas partir para uma operação no Sul da Província, tendo o Morais, que já tinha acabado a comissão de serviço, dito que também ia.

Então, foi-nos comunicado nessa altura que, dado o pouco tempo disponível, nos daria pormenores durante o trajecto.

Já em Brá vários camaradas dos outros dois grupos, ao saberem que o nosso grupo ía sair, insistiram com o Morais para não ir mas ele foi peremptório e disse:
- Já fiz tantas operações com o grupo que uma a mais não me faz qualquer diferença.

Progredindo silenciosamente por aqueles trilhos do mato naquela noite, escura como breu, em que à distância de um braço já não se via o camarada da frente, G-3 na mão e dedo no gatilho, 4 carregadores à cintura e nenhuma granada... (Aqui abro um parêntesis, para confessar que fiquei com uma certa aversão ao lançamento de granadas, que aliás todos nós as sabemos lançar, alguns porém só em teoria, desde que durante um tiroteio, numa das operação da CART 730 em que, para não largar a arma, resolvi utilizar só uma mão, pegando assim na granada com a mão esquerda e, sem pensar, uma vez que quer em treinos no CIOE, quer num dos combates já as tinha utilizado, daquela vez não sei o que é que me passou pela cabeça, o certo é que tentei imitar, talvez em desespero, o que via fazer em filmes de guerra, pelo que tentei puxar a argola com os dentes e o resultado foi óbvio, não só não consegui como fiquei com a ponta de um dente partido, tendo depois, como é natural, achado prudente ficar caladinho).


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > O João Parreira, antes de ingressar nos comandos, era furriel miliciano da CART 730... Ei-lo aqui com o Furriel enfermeiro Zaupa da Silva junto à tabuleta Olossato-Farim. Distâncias: Olossato: 11 km; Farim: 43 km.

Continuando a progressão, e com todos os sentidos em alerta para aquela operação que se afigurava espinhosa e tentando não perder o camarada da frente, dois pensamentos iam-me constantemente martelando a cabeça:
- o que é que eu ando para aqui a fazer no meio do mato nesta noite tão escura, sujeito a perder-me, levar com um balázio que me pode deixar incapacitado para toda a vida ou matar-me, quando ainda não há muito tempo me encontrava bem instalado e livre de perigo ?

E o outro:
- Anda para aqui um gajo a dar o corpo ao manifesto enquanto muita malta nova na Metrópole anda neste momento a divertir-se em bares e em boites, e outros mais expeditos piraram-se do país, quando...

Já estávamos tão perto do acampamento que quase de repente esbarrámos com um sentinela que foi mais lesto a detectar-nos, pelo que começou a fazer fogo, seguindo-se logo fogo cerrado dos seus camaradas.

Reagimos ao fogo até conseguirmos calar as armas do IN tendo depois entrado no acampamento que, segundo as informações que nos tinham sido dadas, era ocupado por cerca de 80 homens comandados por Pansau Na Ina.

Excitados com o êxito do golpe de mão em que não sofremos feridos e em que foram causadas baixas que não foi possível estimar, depois da debandada e a subsquente destruição do acampamento, seguimos carregados com todo o material abandonado pelo IN para junto de 1 Pelotão que nos aguardava a alguns quilóemtros de distância.

Ao alvorecer foi possível olharmos com mais atenção para esse material, que a seguir descrevo:

Pist Met PPSH >3 ;
Carregadores p/ Met PPSH > 10;
Bolsas lona p/ carregadores PPSH > 8;
Espingarda semiautomática M-52 > 1;
Esp Mosin-Nagant > 1;
Pistola CESKA > 2;
Carregador p/Pist. Ceska > 1;
Aparelho pontaria p/Mort. 60 > 1;
Granada Mort. 60 > 4 ;
Capas lona p/Mort. > 3;
Mina A/P PMD-7 > 3;
Granada de mão defensiva DEF F-1 > 7;
Granada de mão ofebsiva RG-4 > 4;
Cunhetos p/Gr Mão Of RG-4 > 1;
Sabre p/esp. Mauser > 1;
Carr. p/ ML RPD > 4;
Carr. p/PM 25 > 2;
Cunhetos metálicos p/mun. > 2;
Lâminas carregadores p/esp. Simonov > 23;
Estojo limpeza p/esp. Simonov > 1;
Cartuchos cal. 7,62 > 1.262;
Cartuchos cal. 7,65 > 39;
Cartuchos cal. 7,9 > 773;
Cartucheiras diversas > 13;
Detonadores pirotécnicos > 27;
Disparadores para minas > 11;
Disparadores tipo MUV > 10;
Petardos > 4;
Cordão neutro > 4 mts.;
Bornais lona > 15;
Suspensórios lona > 23;
Bolsas lona p/carr. Degtyarev > 3;
Bolsas lona p/acessórios > 3;
Almotolias > 3;
Capecetes aço > 1;
Calças caqui > 8;
Camisas caqui > 7

Outro material: Vários livros e documentos. Material sanitário diverso: pensos individuais; ligaduras; algodão; comprimidos de sulfamidas; embalagens de penicilina; frascos de Sanergina; pinças; tesouras; tesouras de laquear; seringas; agulhas para injecções e ligaduras elásticas.

Pela razão já anteriormente descrita, foi dito ao Morais e ao Amadú para, a título voluntário, regressarem ao acampamento juntamente com outros que os quizessem acompanhar.

Andávamos descontraídos dentro do acampamento à procura de mais material, tendo por isso substimado a estratégia do IN, pelo que passado não muito tempo fomos todos nós (eramos 10) repentinamente atingidos por aquela bem orientada e por isso maldita granada de LGFog, ao que se seguiram durante algum tempo rajadas de várias armas.

(Em suma: O grupo que devido às circunstâncias foi muito sacrificado, era composto no início por 30 homens. Em 28 de Novembro de 1964 uma explosão no regresso de uma operação causou 8 mortos e 2 feridos que foram evacuados para o HMP, em Lisboa. Tendo sido interveniente em mais operações, só no início de Fevereiro de 1965 foi recompletado com um Furriel (!!!). Em 20 de Abril de 1965, na região do Inscassol ficámos 4 feridos com estilhaços de granada.)

Não sei como, mas o certo é que apesar de feridos em Catungo ripostámos e aguentámo-nos como pudémos até que com alívio vimos a chegada dos restantes elementos do Grupo que, ouvindo o tiroteio e pensando que estávamos em apuros, foram em nosso socorro e assim afastaram o perigo.

Depois de se certificarem que o IN tinha desaparecido ajudaram-nos a chegar até junto do Pelotão que nos aguardava, onde foram então feitos tratamentos sumários aos feridos, tendo o Grupo regressado a Cacine e daí para Bissau, com excepção de dois que de Cacine foram directamente de heli para o Hospital (3).

No Hospital durante uma visita da D. Beatriz Sá Carneiro, ela perguntou-me o que é que eu precisava e lembrei-me então de lhe pedir um Monopólio para a caserna dos nossos praças, tendo ela satisfeito o solicitado.

Por ironia do destino, em 22 do mesmo mês de Maio o Ten Maurício Saraiva, deslocou-se a Lisboa a fim de no dia 10 de Junho, no Terreiro do Paço, ser promovido a Capitão por distinção e condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma.

No dia em que o Ten Saraiva estava a ser agraciado fomos para terrenos perto da Base Aérea fazer treinos de saltos de helicópteros e um dos instruendos que ia no meu atrapalhou-se de tal maneira que ao saltar bateu com toda a força com a G-3 num dos vidros que o partiu.

Passados vários meses, o Alf Rainha (4) para se vingar dos danos infligidos aos seus camaradas do Grupo extinto, foi, estòicamente, com o seu recém-formado grupo Centuriões, no qual tinham sido integrados dois ou três dos feridos da Op Ciao atacar o mesmo acampamento.

No jornal Os Centuriões, oferecido em 21 de Agosto de 1965 pela Centuria em Brá
ao Centro de Instrução de Comandos cuja abertura foi dedicada aos velhos Fantasmas pode ler-se.

"Nós os Centuriões, sucessores dos famosos Fantasmas, dedicamos-lhes este terceiro número do jornal como prova de admiração pelos seus feitos e faremos o possível para os igualar e superar se a isso, como diz Camões, “não nos faltar engenho e arte” (ser comando é uma arte).

"Queremos aqui deixar também a nossa homenagem aos nobres soldados de Os Fantasmas, caídos no campo da luta em defesa do torrão Pátria e garantir aos vivos que faremos todo o possível para vingar as suas mortes" (...)


E a seguir, do Jornal dos Comandos do Grupo Fantasmas no Asilo em Brá, de 19 de Outubro de 1964:

HERÓIS DA NOSSA HISTÓRIA

Relato da estória passada com o 2º. Cabo indígena BARO BALDÉ em 1935-1936 nas operações militares que se realizavam nessa altura nos Bijagós:
Nas operações militares de Canhabaque (Guiné) em 1935-1936, foi louvado pelo Governador, Major CARVALHO VIEGAS, que as dirigiu, o 2º cabo africano BARO BALDÉ, do Corpo de Polícia, “pela forma disciplinada e corajosa como se portou durante as operações, principalmente no combate de Inhoda, onde, vendo cair ferido, inanimado, o 1º. Cabo europeu FARIA VENTURA, cobriu-o com o seu corpo, tomando conta da metralhadora que este manejava, e não deixando o inimigo aproximar-se, quando tentou apoderar-se do referido cabo europeu para o levar como troféu, segundo o costume gentílico”.
A Cruz de Guerra, cuja concessão o mesmo Governador propôs para BARO BALDÉ, teria assentado bem no peito deste bravo e dedicado Soldado da Guiné, cujas virtudes militares fariam inveja a muitos soldados europeus.
____________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts anteriores do autor (ou a ele referentes):

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)

13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXI: Comandos: a equipa dos Fantasmas (1964)

20 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLIII: Com a CART 730 em Bissorã e Olossato (1965) (João Parreira)

06 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: O Justo foi fuzilado (Leopoldo Amado / João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P868: Diabruras dos comandos (João Parreira)

13 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P872: A minitertúlia do 10 de Junho de 2006

19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P929: Felizmente falharam os tiros no heli (João Parreira)
(2) Expressão latina que quer dizer: A sorte (fortuna) protege (juvat) os audazes (audaces)

(3) Vd também o blogue do nosso camarada Virgínio Briote > Tantas Vidas > post de 18 de Fevereiro de 2006 > Nino ? Sentido > 14. Capitão Manilha

(4) O Rainha já uma vez nos contactou mas agora reparo que o seu nome não consta na lista dos membros da nossa tertúlia... Reproduzo aqui o post de 4 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXVII: Com imensas saudades daquela terra maravilhosa (Luis Rainha)

1. Recebi um e-mail de mais outro camarada dos velhos comandos de 1964/66: trata-se do Luis Manuel Nobreza D'Almeida Rainha, hoje com sessenta e quatro anos:"Serve esta para vos dar a conhecer um ex-comando da Guiné e que foi comandante do Grupo de Comandos Centuriões. Fui camarada de Virginio Briote que já é vosso conhecido. Tenho imensas saudades daquela Terra maravilhosa onde passei bons e maus momentos, mas nos quais sobressaem os bons.

"A minha presença naquelas paragens foi um amealhar de recordações, e hoje tenho uma saudade enorme dos meus antigos Camaradas (...).

"A minha actual direcção vai aqui:

Luís Rainha
3ª Travessa da Rua Quinta do Grou, 4 - r/c Esq. Casal da ROBALA
3080-398 FIGUEIRA DA FOZ

2. Comentário do Virgínio Briote:O Luís Rainha foi o comandante dos "Centuriões", um grupo que deu que fazer ao Pansau Na Ina, um dos adjuntos do Nino. Um dia, ou uma madrugada não sei, entrou-lhe tão sorrateiro no acampamento que teve tempo de apanhar o boné que o Pansau tinha trazido de Pequim. E a pistola também, uma bela arma, nacarada, que, pelo que sei, muitos anos depois lhe veio a trazer problemas. Nem a cruz de guerra o salvou!

Um abraço,
vb

Comentário de L.G.:

Virgínio e João:
Não conseguem trazer o Raínho à nossa tertúlia para ele nos contar esta estória do boné do Pansau Na Ina que deve ser de antologia ? E, já agora, também a estória dos dissabadores que a pistola do famoso guerrilheiro lhe trouxe, mais tarde, em Portugal...

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

Luís:

Segundo este artigo que anexo, e pelas afirmações de Filipe Perez Roque - Ministro das Relações Exteriores de Cuba, de visita a Cabo Verde, morreram 17 cubanos na Luta pela Independência da Guiné e Cabo Verde.

Saúde
Jorge Santos



Cuba manifesta desejo de intensificar cooperação com Cabo Verde
(26-06-2006)

Autor: Isabel C. Bordalo

Fonte: Inforpress, agência noticiosa de Cabo Verde

[Cabo Verde], Praia, 26 de Junho de 2006 (Inforpress)

O ministro das Relações Exteriores de Cuba, Filipe Pérez Roque, defendeu, hoje, o aprofundar das relações de cooperação entre Cabo Verde e o seu país, nas áreas já acordadas e de “acordo com as prioridades estabelecidas pelo governo cabo-verdiano”, após uma reunião de trabalho com o seu homólogo, Victor Borges.

Referindo-se às relações bilaterais, a nível político, diplomático e de cooperação, como sendo "exemplares" e gozando de uma "saúde excelente", Filipe Pérez Roque, lembrou a colaboração existente, nos domínios da saúde e educação, e também na agricultura, uma área que deverá ser retomada, no quadro dos programas de cooperação da FAO.

“A cooperação entre os dois países é histórica” e baseada num diálogo respeitoso e em ampla coincidência sobre muitos temas da agenda internacional”, afirmou o ministro cubano recordando que “mais de 600 jovens cabo-verdianos” foram formados em Cuba, encontrando-se actualmente mais de 60, nas universidades cubanas, e estudar para regressarem e incorporarem-se no “desenvolvimento da sua pátria”.

Nas áreas da saúde e educação, Filipe Pérez Roque lembrou que se encontram “40 médicos e especialistas” cubanos em Cabo Verde, bem como vários professores universitários e de ensino técnico profissional. 

O ministro das Relações Exteriores fez ainda questão de evocar os “17 cubanos que caíram combatendo pela independência da Guiné e Cabo Verde”, para recordar que Cuba sempre “se bateu pela independência dos povos africanos”.

Também o ministro dos Negócios Estrangeiros, Cooperação e Comunidades de Cabo Verde, Victor Borges, se referiu as boas relações “políticas e diplomáticas” que os dois países têm mantido, sobretudo na área da qualificação dos quadros cabo-verdianos que “foram formados em Cuba e regressaram para participar activamente no desenvolvimento” do arquipélago.

Esta cooperação assume, segundo Victor Borges, “importância acrescida quando mais de três dezenas de médicos cubanos contribuem de forma significativa, com assistência técnica, para a melhoria do sistema de saúde cabo-verdiano”. A cooperação tem sido “igualmente profícua”, nos domínios da educação e formação, destacando-se aqui o “envio de especialistas para o ensino técnico e a concessão de bolsas de estudo”, como refere o Ministério dos Negócios Estrangeiros acrescentando que se encontram actualmente em Cuba 147 estudantes cabo-verdianos.

Guiné 63/74 - P959: O exemplo do Dr. Domingo Diaz (Zé Teixeira)


Guiné > Região do Cacheu > Ingoré (junto à fronteira com o Senegal) > CCAÇ 2381 > 1968 > O 1º cabo Teixeira, ainda no início da sua comissão, com duas crianças vestidas com a farda da Mocidade Portuguesa. "Eu, que tanto pensei em fugir, para não participar nesta guerra que conscientemente não queria e que, se não o fiz, foi por causa do sentido de patriotismo que cresceu em mim deste o banco da escola, - éramos um grandioso império que urgia defender de inimigos ambiciosos"....

Foto: © José Teixeira (2006)

Texto do José Teixeira, ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70.
Que motivação a do Domingo Diaz! (1)...
O texto/testemunho do médico cubano Domingo Diaz deu-me que pensar. Como é que um médico especialista, chefe de serviços de cirurgia algures em Cuba - que, apesar de se tratar de um cubano em Cuba, em plena revolução castrista, devia estar com a vida minimamente estabilizada -, [como é que um médico se mete numa coisa destas ?]

Lá como cá e em todo o mundo, um médico é um médico. Eu, sendo apenas um aprendiz de enfermeiro senti bem pela positiva quanto vale ter-se no mínimo um título de enfermeiro, para ser tratado com todo o cuidado, carinho e respeito, tanto pelos colegas e pelos superiores (militares) como pela população. Era o possível (embora pobre) salva-vidas de cada um deles.

Dispõe-se um homem destes a oferecer-se como voluntário, para entrar numa guerra, num país de pessoas, hábitos e culturas estranhas em que o clima era extremamente agressivo. Logo do lado do mais fraco em termos de logística, conhecimentos técnico/tácticos e de material de guerra, falta de apoio de rectaguarda, nas mais diversas áreas como: a alimentação, a segurança, a assistência medicamentosa e hospitalar (Equipamento mínimo exigível, a sanidade, enfermarias, hospitais, etc.).

Não é que nós tivéssemos muita coisa, mas creio que sempre tínhamos algo mais.
Com certeza tinha consciência de que se fosse apanhado pelo Tuga, dificilmente escaparia com vida e podia inclusive criar um conflito diplomático ao seu país, embora o Fidel se estivesse nas tintas para tal coisa.

Sabia, naturalmente, pela experiência vivida pelo povo cubano na Sierra Maestra, na luta encabeçada pelo Fidel Castro para libertar Cuba do ditador Fulgêncio Baptista e da influência nefasta dos americanos, que a força de um povo é tremenda, quando se trata de conquistar a liberdade. Não há barreiras ou limites inultrapassáveis- antes a morte.

Os resultados finais, projectados no tempo, é que poderão não ser os que alimentam o sonho que fez mover tão grandiosa e heróica máquina. Que pena, tantas vidas perdidas!

Teria consciência que apesar das diferenças, em termos de capacidades de luta, estas eram facilmente ultrapassadas pelos nacionalistas, graças ao conhecimento no terreno, pela capacidade de resistência natural às agruras do clima, pelas traições dos autóctenes que se encontravam do outro lado da barreira e sobretudo pela vontade, coragem e força anímica que fazia mover o povo da Guiné.

Mas que coragem! "Que força é essa que te faz estar de mal contigo e de bem com os outros!"...

Pelo texto, ficou claro, para mim, que se ofereceu e partiu como voluntário. A figura épica e espírito internacionalista do médico e guerrilheiro, lutador pelas liberdades, Che Guevara, marcara-o profundamente, ao ponto de deixar tudo e partir para a luta.

O testemunho fala por ele próprio quanto às barreiras, dificuldades e sofrimento que passou para entrar na Guiné, integrar-se e caminhar pelo seu interior, estranho agressivo, sem bases de apoio. Foge aqui, esconde acolá, acode além a um ferido, alimentando-se do que havia, quando havia, matando a sede com a água a que o seu organismo não estava habituado e sem reservas para combater as bactérias ingeridas.

Permite-nos também, a nós, perceber um pouco melhor as dificuldades e barreiras que os nacionalistas da Guiné, os turras tinham de ultrapassar para chegarem até nós, nas emboscadas e ataques aos aquartelamentos. Não tinham vida fácil, apesar de estarem como peixes na água, na sua terra.

Pensando nos missionários, sobretudo os católicos que ainda hoje partem para lugares inóspitos e estranhos, e aos quais o mundo tanto deve, salvaguardando as excepções em que, manipulados pelos sistemas (num passado recente), serviam mais esses sistemas do que o espírito de missão que os animava à partida... Esses, os missionários, têm sempre em vista a salvação da sua alma para um dia chegarem ao céu. Há algo de místico, sobrenatural por trás que os faz movimentar-se; a salvação eterna de si próprio e das pessoas com quem vão contactar e promover sócio e culturalmente. O risco de vida, embora real, é reduzido, pelo menos na actualidade. Mas... partir voluntário para uma guerra nestas condições !

Eu, que tanto pensei em fugir, para não participar nesta guerra que conscientemente não queria e que, se não o fiz, foi por causa do sentido de patriotismo que cresceu em mim deste o banco da escola, - éramos um grandioso império que urgia defender de inimigos ambiciosos.... Eu não o fiz pelo receio de ser apanhado na fuga, preso e tornado voluntário à força para os sítios mais agrestes da guerra, o medo do desconhecido na fuga ao assalto para França...

Aceitei, enfim, o desafio de caminhar pacificamente como o carneiro para o matadouro, pondo a mim próprio a condição de não dar um tiro. Esta ideia tomou força em mim, quando tive a sorte de ser escolhido para ser enfermeiro militar.

O Dr. Diaz apresenta-nos um testemunho rico em todas as dimensões. Confesso que na altura chamar-lhe-ia terrorista como ao Pedro Peralta, mas hoje com a cura que o tempo me facultou, foi um homem corajoso.

O Blogue e seu maestro estão de parabéns.

Creio que seriam de grande interesse continuar a explorar esta oportunidade de conhecermos o lado de lá com o apoio de alguém independente, isto é, alguém que apenas queria ajudar na luta pela emancipação de um povo, sem interesses pessoais e apenas motivado pela solidariedade internacional.

Assim se faz história.

Zé Teixeira
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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de 11 de Junho de 2006:

Guiné 63/74 - P950: Antologia (46): Depoimento de médico cubano na guerrilha do PAIGC (1966/67)

Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)