domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4881: Memória dos lugares (37): Exposição de armamento capturado ao PAIGC, Bissau 1968 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)


1. O nosso Camarada José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15JAN68 a 15JAN70, enviou-nos mais oito fotografias históricas, de uma exposição em Bissau, no ano de 1968:

Camaradas,

Aqui vos apresento uma reportagem fotográfica da exposição de armamento capturado ao PAIGC, pelas nossas tropas, que esteve patente no Forte da Amura durante a visita à ex-Província Ultramarina Portuguesa - Guiné -, do então Chefe de Estado - Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1894 – 1987).

Conforme o “material” me for aparecendo, vou enviando para o nosso arquivo bloguista.


PPSh-41 (As célebres "Costureirinhas")

Segundo a Wikipédia a pistola metralhadora PPSh-41, que era conhecida na gíria entre a tropa portuguesa por “Costureirinha”, dada a sua rapidíssima cadência de tiro:

A Pistolet-pulemet Shpagin 41 (PPSh-41) (em russo: Пистоле́т-пулемёт Шпагин 41) é uma variante da Pistolet-pulemet, concebida por Georgii Shpagin, sendo uma das pistolas-metralhadoras mais produzidas em massa na Segunda Guerra Mundial. Utilizada pela União Soviética durante a guerra.

Esta variante veio substituir a PPD, cujo fabrico era cara e demorosa. A PPSh-41 foi concebida para ser uma alternativa mais barata. O seu baixo custo baseava-se em não ter parafusos e todas as partes metálicas serem estampadas.

A PPSh não era somente melhor de ponto de vista de fabrico, a sua superioridade também se alargava a outras áreas. Tinha uma taxa fenomenal de tiro, por volta de 900 TPM (tiros por minuto), tal como uma reputação pela sua durabilidade e necessidade de pouca manutenção. Também se pensava que era mais certeira do que muitas armas de outros países, mais caras e complexas.

Cerca de 6 milhões de exemplares desta arma foram produzidos até ao fim da guerra. A sua reputação e disponibilidade fizeram com que divisões inteiras fossem equipadas com ela.

Os próprios Alemães estavam bastante impressionados com a arma, e usavam-na sempre que a capturavam. Devido às dimensões semelhantes do cartucho, 7.62 x 25 mm e 9 mm, somente era necessário um bom adaptador de munições para converter a PPSh-41 para disparar munição de MP38/40. A Wehrmacht oficialmente adaptou a PPSh-41 convertida como a MP717(r).

A PPSh, sobreviveu à guerra, e quer a sua facilidade de construção quer a grande quantidade de unidades disponíveis serviram para apoiar muitos movimentos guerrilheiros apoiados pela URSS.

No entanto, a PPS, apresentava alguns problemas. Ela encravava bastante, especialmente na sua versão de tambor, e a sua alta cadência de tiro, e facilidade de disparo faziam com que rapidamente se gastassem as munições disponíveis, o que provocava inevitavelmente problemas logísticos aos movimentos guerrilheiros. Além disso, em florestas densas, a sua relativa fraca potência tornava-a uma arma relativamente ineficiente.

Identificação
Tipo: Pistola-metralhadora
País: União Soviética
Inventor: Georgii Shpagin
Data de projecto: 1941
Período de produção: 1941
Número de unidades fabricadas: 6.000.000
Tempo em serviço: 1941

Características:
Calibre: 7,62 x 25 mm TT
Operação: Blowback, culatra aberta
Cadência do Tiro: 900 t.p.m.
Velocidade de saída do projéctil: 488 m/s
Alcance eficaz: 200 m
Peso: 3,63 kg
Comprimento total: 843 mm
Comprimento do cano: 269 mm
Alimentação: carregador curvo de 35 munições ou tambor de 71

(in Wikipédia, enciclopédia livre)

Lança granadas RPGs e respectivas granadas

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé e canhão sem recúo

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin

Morteiro82 e Metralhadoras ligeiras

Canhão s/ recuo

Um Abraço de Amizade,
José Nunes 1º Cabo do BENG 447

Fotos: © José Nunes (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

sábado, 29 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 25 de Agosto de 2009:

Carlos,
Anexo mais um pedaço da lenga-lenga que reporta algumas passagens da 2679 por terras do leste da Guiné. Já assentámos em Bajocunda, onde os dias tranquilos só esporadicamente serão interrompidos por acções do IN, na forma de flagelações aos aquartelamentos, na colocação de minas, e fazendo emboscadas. Das eventuais emboscadas só uma foi concretizada, e foi a CCA que teve o privilégio de a apanhar. Das restantes duas conhecidas, ambas dedicadas ao Foxtrot, a seu tempo darei notícia do que aconteceu.

História da CCAÇ 2679 - 24

Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda


A Companhia de Comandos Africanos ainda permanecia em Bajocunda, dando, naturalmente, apoio operacional. Por esta altura a 2679 estava mais vocacionada para as tarefas da quadrícula e todas as noites enviava um Gr Comb para Tabassi, onde a autodefesa era uma miragem. Por outro lado, mantinha outro destacado em Copá. Os patrulhamentos e emboscadas nocturnas competiam, maioritariamente, aos Comandos. No que respeitava às deslocações em colunas, a 2679 garantia a maior parte delas.

No entanto, uma ocasião calhou a um Gr Comb da CCA fazer uma coluna a Nova Lamego. Tratava-se de uma escolta a uma coluna de reabastecimento, que também incorporava viaturas civis carregadas de mercadoria para Bajocunda, prevenindo o eventual corte da estrada por efeito do crescimento das linhas de água.

Não me recordo qual dos Gr Comb teve esse incumbência, mas lembro que o Teixeira, o sagento careca que usava uma mosca proeminente, participou na viagem.

No regresso, na zona encharcada do pequeno pontão, entre Pirada e Tabassi, onde se abrandava porque o nível da água cobria a estrada e o pontão, ocorreu uma emboscada.
Não estava lá, pelo que não sei com rigor o que aconteceu. Mas ficámos a saber que as NT reagiram pronta e eficazmente, repelindo o IN que retirou em direcção ao Senegal.

Na tropa não houve baixas a registar, mas uma viatura civil Bedford, carregada de mercadoria, deve ter sido atingida por um rocket que a afectou no rodado traseiro do lado esquerdo, destruindo-o, e impedindo a continuação da marcha. Na cabine, o condutor, um guinéu, não teve oportunidade de se proteger e morreu vítima de alguns tiros disparados para a porta, perfurando-a. Obras de alguns bons atiradores do IN, que estariam a pouca distância. Nada mais foi molestado. A mercadoria foi transferida para viaturas militares e a chagada a Bajocunda aconteceu com o cair da noite.

Não houve notícia de outras baixas e, nessa noite, foi necessário montar segurança no local para salvar o destroço, encaminhando-o no dia seguinte para o aquartelamento, onde se mantinha na data do meu regresso. No auto de abate e destruição, suponho, aquela viatura estaria carregada com muito mais mercadoria do que efectivamente transportava.


As mazelas

Referi anteriormenteque o Foxtrot andava com um deficit de pessoal, em resultado de situações de incapacidade temporária, ou, mais raramente, por gozo de férias. Na verdade foram poucos os que gozaram férias durante a comissão, porque sendo o pré uma minguada importância que se esgotava numas cervejolas, poucos podiam contar com o auxílio familiar para se deslocarem à Madeira, ao Continente, ou mesmo na Guiné. Abdicando do direito às férias, o seu contributo à Pátria era maior do que seria exigido, aumentando o castigo dos mais desfavorecidos.

Entretanto, a doença alastrava. O paludismo, frequentemente, atacava um ou outro. Em Piche tive essa experiência, com febres altas e o corpo quebrado, incapaz e apático para o que fosse. Mas as injecções de Resochina (pronuncia-se resoquina) que o Vitor ministrava, retornava-nos à vida em 4/5 dias. Reincidirei em Bajocunda com novo paludismo, apesar da grande redução de mosquitos relativamente à região do Corubal, e à maior exposição consequente.

Ainda em Piche, uma ocasião, seriam 15h00, tinha regressado de uma coluna ao Gabú e estava a comer uma sopa liofilizada e restos que sobraram na messe, quando me chamaram ao Major de Operações, que tinha notícia de movimentos do IN próximo do Corubal, a SW, e era imperativo que arrancasse nessa direcção.

Foi um frete e uma correria, parecia que aumentava o peso das armas, caregadores e cantis, toc-toc, cantis que se esgotaram de água num esfregar de olho. Na passagem pela bolanha, corria o suor em bica e ressentiam-se as pernas, cavei com as mãos até encontrar lama, de que enchi o cantil e chupei através do lenço, em função de filtro, para, a seguir, voltar a enchê-lo numa água parada, sem quaisquer condições, e saciar-me da sede a que sucumbia. Estas atitudes aconteciam com a consequente ingestão de micro-organismos que nos devassavam por dentro, com o mesmo ímpeto com que os turras queriam limpar-nos o sarampo do corpinho.

Também por isto, viria a passar uma temporada no Hospital, vitima de uma amibíase, cujas amibas me beberam os glóbulos vermelhos.

Por influência de uma qualquer bactéria, apareceram alguns casos de testículos inchados, imponentes, que não só constituíam grande sucesso fotográfico, como presenteavam as vítimas com a necessária deslocação à consulta externa.

A par destas maleitas, também abundava a micose, doença típica da nossa inadaptação ao território e ao clima. As micoses são provocadas por fungos, e era nas virilhas que mais se revelavam. De facto, os nativos usavam o chamado saco de merda, que consistia nuns calções largos, fechados na cintura e nas pernas, provocando uma caixa de ar envolvente às partes genitais que garantiam alguma frescura e ligeireza. Ao contrário, nós, produtos da civilização, usávamos cuecas apertadas, que roçavam e danificavam as transpiradas virilhas, abrindo caminho aos fungos inimigos e à micose, com o prurido castigador. Disso fui grande vítima sem ganhar juízo. Nem pomadas, nem o iodo, nada me valia, só o clima seco da Europa veio tranquilizar-me.

Inesperada foi a morte do soldado Aguiar, um madeirense atinado, que teve o azar de, no remoto quartel de Bajocunda, sem médico nem meios de diagnóstico, ter sido medicamentado para paludismo, face à elevada febre e à falta de forças que apresentava, de que levou dois tratamentos sem os resultados pretendidos. Evacuado de urgência, entrou no avião combalido. Terá saído em Bissau vítima de meningite.

Esta narrativa não esgota o rol de mazelas que afectavam a tropa. As do foro psicológico também eram frequantes, com manifestações inopinadas, mas, felizmente, no Foxtrot não ocorreram para além das divertidas maluqueiras do quotidiano.

Por fim, não se tem falado muito nisso, mas alguns militares deram tratamentos desajustados às figadeiras, alguns, provavelmente, com reflexos na vida futura.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4793: História da CCAÇ 2679 (23): Questão bicéfala (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada

1. Neste episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, assiste-se à chegada da 676 a Pirada.


Guiné-Bissau, Out64
A CART 676 chega a Pirada


Após os primeiros 5 meses de permanência em Bissau, onde a CART 676 se desdobrou nas mais variadas missões: patrulhamentos de rotina nos arredores da capital, serviço de manutenção do aquartelamento do Batalhão 600, e principalmente ter desempenhado papel importante (extenuante e perigoso) em cinco grandes operações mandadas executar pelos altos comandos militares, a norte e a sul de Bissau, nas primeiras tentativas para combater uma ameaça que já se adivinhava muito séria, finalmente a Companhia foi enviada para uma missão de quadrícula, isto é, foi ocupar uma determinada zona a nordeste do território, junto à fronteira com o Senegal, para reforçar o policiamento de uma área que se temia passar a ser, a breve trecho, campo de acção privilegiada do inimigo.
Felizmente isso não se veio logo a confirmar e, pode-se dizer que a CART 676 passou aí umas boas e merecidas férias.

Até à nossa chegada, Pirada, Bajocunda e Paúnca, estavam entregues a pelotões de soldados nativos, comandados por alferes e furriéis brancos que coitados pareciam mais uns pobres náufragos famintos quando nos vieram receber de braços abertos, felizes por verem de novo gente igual a eles. Entregues a uma inércia embrutecedora, estavam à beira, com certeza, de um qualquer colapso físico ou psíquico a avaliar pelas suas caras onde se espelhava uma desmesurada e incontida alegria por verem acabado aquele calvário.

A Companhia não se deslocou toda de uma vez. Primeiro foi o 1.º e o 2.º Grupos de Combate, e mais a secção de Comando e Serviços da própria Companhia. Seguia connosco também o alferes médico para verificar e estabelecer as condições sanitárias do aquartelamento. Enquanto o 1.º Grupo e a secção de Comando e Serviços se dirigia directamente para Pirada, o 2.º Grupo ficou logo em Paúnca onde já tinha instalações mais ou menos adequadas.

Quando entrámos em Pirada tivemos logo uma recepção entusiasta por parte da população que nunca tinham visto tanta tropa junta. Foi uma festa que os soldados quiseram logo aproveitar, abraçando as mais desprevenidas bajudas que lhes caíam nas mãos, de mistura com os restantes elementos da população, para disfarçar…

Um dos comerciantes locais, apareceu logo com um criado que sobraçava um enorme cesto de pão acabado de cozer no forno privativo do seu estabelecimento e, começou a distribuí-lo pelos soldados que o fitavam boquiabertos com a surpresa.

Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo.
Para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas.
Para a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. Em cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha. Eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau. Seguindo sempre em frente chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros. A meio caminho erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário, ao lado, um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena. Era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30…

O 1.º sargento Machado, velho militar transmontano, já muito batido naquelas andanças de trocas e baldrocas de aquartelamentos, depressa se pôs em campo para avaliar a situação.

Depressa vieram as más notícias. As instalações eram piores do que imaginávamos. As camas existentes estavam impróprias para continuarem a ser utilizadas. As enxergas, se àquilo lhes poderíamos chamar assim, eram autênticos viveiros de percevejos e bicharada. Claro que dei logo ordens para juntar tudo num monte à porta da caserna e chegar-lhe fogo, para nos livrar de tal peste.
(Para meu espanto, passados meses, recebíamos mensagens da Sargentada da Manutenção de Bissau, a exigir a devolução daquelas enxergas! Foi um caso sério para os convencer que não tinha havido outra alternativa senão queimá-las)

Instalações sanitárias não havia, nem cozinha, digna desse nome. Era tudo improvisado, à preto que, coitados lá se amanhavam com o pouquíssimo que lhes davam. Nem conseguíamos imaginar como tinham conseguido aguentar até ali. O alferes e o furriel que lá fomos encontrar com a farda em farrapos, responsáveis por aquela tropa fandanga, embaraçados, coçavam a cabeça. O que quiseram foi entregar-nos, o mais depressa possível, os pobres pertences que possuíam e, rapidamente desapareceram da nossa vista, estrada fora a caminho do Gabú.

Desanimados, mas ao mesmo tempo alegres por terem chegado até ali, sãos e salvos e, esperançados de que o amanhã seria melhor, os soldados deitaram mãos ao trabalho e, embora tivessem que dormir no chão, naquelas primeiras noites, a caserna ficou com melhores condições de conforto e higiene.
Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas, também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa.

Ao fim da tarde do dia da chegada, tudo tinha ficado mais ou menos tratado.
Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável.

Passados mais de quarenta anos recordo ainda como se fosse ontem.
Viana do Castelo, Agosto de 2009
Carlos Geraldes

Pirada > Cozinha improvisada

Pirada > Os primeiros chuveiros dos Soldados

Pirada, 01DEZ64 > Eu, Cap Seco, Alf Correia e o professor António Óscar Baldé

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e eu
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro

Guiné 63/74 - P4878: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (12): O nosso Alferes Médico na vida civil...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos mais uma estória, com pormenores "deliciosos", que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", com data de 25 de Agosto de 2009, que mais uma vez muito agradecemos:


Camaradas,

Quarenta e tal anos depois... os setenta!


O nosso Alferes Médico na vida civil...


O tempo passa e... há poucos meses atrás (em 12 de Abril de 2008) estive na festa de aniversário dos 70 anos do meu Médico.

Setenta anos!!!


Noutros tempos... 70 anos eram uma idade complicada, associada à ideia de um velhinho caquéctico, trôpego, que já não dizia coisa com coisa.

Nada mais errado quando o septuagenário em causa é o Dr.Alfredo Roque Gameiro Martins Barata.

Tirando algumas rugas, os cabelos grisalhos e umas gramas a mais continua na mesma: corpo de “alferes”, mexendo-se com desembaraço, tranquilo, afável e bem disposto.

Na família tem a fama de... distraído. Na vida militar essa”fama” não colheu e se algumas dificuldades teve... terá tido mais a ver com o facto de ser uma pessoa muito bem-educada.

E, como se sabe, na vida militar encontra-se filhos de... muitas mães com quem, muitas vezes, não resulta, um tratamento do tipo “português suave”! Mas... adiante.

Como não podia deixar de ser na festa dos seus 70 anos recordámos a viagem acidentada do Rio Cacheu dos anos 65!«Ah sim, lembro-me. Foi do género da estória "da ida à guerra do Raul Solnado”».

Os filhos a seu lado olhavam-no espantados pois não conheciam essa aventura de seu Pai.

Dei-lhes a ler a “estória” do Diário da C.Caç. 675.

De espantados passaram a... pasmados.

Além de excelente Médico foi, mais tarde, “Anjo da Guarda”de muita gente – desde os tempos da Guiné até aos dias de hoje ajudou inúmeros ex-militares da sua Companhia – .

Sempre compreensivo e de extrema bondade, “apagando” propositadamente a sua importância nas ajudas que concedeu a quem o procurou.

Os “suplementos” biográficos que se seguem são da responsabilidade do seu irmão mais velho, José Pedro. «História do meu irmão mais novo, contada pelo irmão mais velho…

Ao irmão mais novo, sentado nos degraus do pátio, contava eu histórias inventadas ali.

Já nessa altura era muito distraído e perdia coisas. Gostava de guardar as caixinhas e os “jornalinhos” dos remédios, o que já apontava para uma vocação diversa da familiar, virada para os bonecos e as pinturas. Não viria a arrepender-se!

Já crescidote, observava com muita atenção uma menina loura que descia a Rua ao vir da Missa, acompanhada pelo irmão (dela, claro).

Mais tarde, distraído, mas esperto, tratou de casar com a menina loura.

Foi depois para a escola dos médicos, como era de esperar...

E saiu enfim Médico, o que significa que foi logo direitinho para África, pois!...

Iniciou a sua carreira hospitalar em África, assegurando o funcionamento do Hospital de Binta.

Nesta parte poderemos dar uma “ajuda” porque tivemos por perto...

Além dos militares que frequentavam o “Posto de Socorros" (no “Largo da Tomada da Pastilha”), havia também grande número de nativos, que apresentavam o mais variado tipo de enfermidades.

Tivemos casos de lepra (uma doença que era suposto já estar então erradicada...), elefantíase e um terrível surto de sarampo, que causou a morte a mais de seis dezenas de crianças da tabanca de Binta.

No que respeita aos nossos militares havia uma doença muito comum antes das idas para “o mato”, com sintomas muito habituais tanto ao nível de praças, como sargentos e oficiais...

Vómitos, diarreias e repentinas dores de cabeça que tinham muito a ver com uma coisa chamada "cagaço", medo e/ou receio.

Com o tempo aperfeiçoámos uma “mezinha” que atenuava a “doença”: o comprimido nº 8 do L.M.(aspirina), fornecido em diferentes embalagens, conforme a graduação do “paciente”, que ia resolvendo quase todos os problemas.

Tivemos também momentos bem dramáticos aquando da morte dos nossos militares.

Lembro-me particularmente de ter chorado abraçado ao meu Alferes Médico a morte do soldado Nascimento, quando soubemos no dia seguinte “via rádio”, que já tinha chegado cadáver ao Hospital de Bissau.

No que respeita a Binta não chegámos a ter um Hospital mas quase...


Uma das histórias clínicas mais espantosa passou-se com uma nativa que um dia se apresentou à consulta queixando-se de ter engolido uma cobra enquanto dormia!

O Dr. Barata já falava umas coisas dos dialectos locais e rapidamente percebeu que a sua doente devia padecer de lombrigas que, durante o sono, lhe teriam chegado à boca(?!).

Pensou num vomitório e na apresentação de um pequeno réptil à doente após a medicação, “cena” que ficou marcada para o dia seguinte.

Entretanto encomendou-se a captura de uma pequena cobra, o que não foi difícil de conseguir.

Tudo preparado chega-se ao dia seguinte e, conforme o plano estabelecido, é administrado à paciente o vomitório, tendo por perto a pequena cobra (já morta), para no “pós–vómito”convencer a nativa que... estava curada.

O pior foi mesmo o que se seguiu. O vomitório, durante alguns longos minutos, provocou vómitos sim mas a todo o pessoal do Serviço de Saúde menos à doente que... nunca mais vomitava.

Finalmente lá aconteceu e a cena da cobra resultou inteiramente.

Também um parto feito na tabanca, com a parturiente de joelhos, virada para Meca teve alguns contornos de surrealismo...

Na semi-obscuridade da morança (cabana), onde corriam galinhas e cabras, estavam vários familiares expectantes e uma velha parteira-feiticeira, que veio a cortar com um facalhão de “cozinha” o cordão umbilical...

Ainda me lembro do extraordinário sentido de humor do Dr. Barata referindo-se à sua “colega” parteira quando perguntou pelo bisturi para cortar o cordão umbilical!

Voltando aos “suplementos” biográficos do seu irmão mais velho, José Pedro.


Ainda em Binta... «Imagino que, absorto nas suas responsabilidades, distraído como é, não se tenha apercebido bem de certos inconvenientes e certos incómodos do momento, a ponto de ter convidado a senhora loura a passar umas férias, alojando-se no luxuoso Resort & SPA “The Derelict Madeiro’s House”, (de estilo colonial) – aproveitando a época baixa do turismo da Guiné, na região do Cacheu.

A senhora branca e loura causou grande sensação em Binta, tornando-se mesmo uma «atracção turística».

Mais uma achega da nossa parte: A chegada a Binta de Manuela Martins Barata foi, além de uma “atracção turística”, uma prova de afecto e coragem que não está ao alcance de qualquer pessoa.

Esteve ao alcance de uma jovem Senhora, que deixou Lisboa para ir ter com ao seu marido aos confins do mundo!!!


Além do desconforto das instalações do “Resort” é preciso uma coragem que, na altura, nos espantou a todos. E que teve efeitos benéficos na vida da Companhia, que rapidamente se habituou à senhora branca e loura, que nos trouxe de novo a possibilidade de ter, por perto, uma “procuradora” das nossas mães e noivas que tínhamos deixado na Metrópole.

E a senhora branca e loura esteve em Binta sete meses, o que é uma proeza extraordinária.

Voltando aos “dados” do irmão mais velho, José Pedro.

«... Mas ele não se distraiu, não se esquecendo de a trazer de volta... (da Guiné)... e providenciou depois para me dar dois magníficos sobrinhos (Passei a ter oito! Nada mau!...)

Começou a entrar depois na Sociedade Internacional de Gentes de Artes e Saberes fora do alcance comum, que se encontra em reuniões obscuras e limitadas a iniciados (Simpósios, Congressos e coisas dessas, para disfarçar...); gente dedicada a práticas esotéricas e misteriosas, reservadas e ocultas.


É uma gente que se reúne frequentemente em cavernas fechadas, longe das vistas do comum onde, sob luzes cruas e intensas e trocando em voz baixa palavras crípticas, todas de cara tapada e vestindo burkas verdes, se dedica a rituais secretos ominosos.

Pelo menos é o que parece, aos não iniciados, que não em acessos àquelas celebrações inquietantes! (“Al-Quaeda”? Seitas tenebrosas?).

O meu irmão diz que não: que é apenas “cirurgia”, e como ele é seriozinho eu, enfim, acredito...

Entretanto, nos intervalos dedica-se a ouvir música ou a visitar países distantes nos 5 continentes, paraísos exóticos e longínquos, e até indo mesmo ao Algarve.

Com isto tudo, agora que ele faz 70 anos, acho que chegou a altura de ser ele a contar histórias ao irmão mais velho!

Nota – Este documento deverá ser actualizado logo que ele fizer 80 anos.»

Subscrevemos e... morra quem se negue!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675



Gravuras: José Pedro Roque Gameiro Martins Barata (2009). Direitos reservados.
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4877: Estórias do Fernando Chapouto (FERNANDO SILVÉRIO CHAPOUTO) (1): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – O embarque no Niassa

1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, publicamos neste poste a primeira parte das suas memórias, referente ao embarque da sua Companhia no navio Niassa e à sua tranquila 1ª patrulha:

Camaradas,

Embarquei no dia 18 de Agosto de 1965, junto com a minha Companhia, com destino à Guine no navio Niassa, em Lisboa.

Foto no Cais da Rocha Conde de Óbidos, onde se pode ver, ao fundo, a ponte sobre o Rio Tejo, então ainda em fase de construção.

Nesta foto lá ia eu, em pleno mar alto, a jogar ténis de mesa

Chegamos a Bissau no dia 24 do mesmo mês, de madrugada ainda a dormir.

Quando acordei, levantei-me e fui espreitar pela janela.

O barco estava parado, em frente ao cais de Pidjiguiti, e apenas vi nativos.

Fixei-os bem (só negros) e, de repente, pareceu-me que a “alma” me caiu aos pés, mas logo pensei na missão a cumprir e que nada tinha a temer já que acreditava, com a minha fé, que o meu destino só a Deus pertence.

Durante a manhã desembarcamos e fomos para o quartel de Santa Luzia, junto ao Quartel-General.

No primeiro dia no quartel de Santa Luzia andei com o camuflado

Mais tarde mudei de farda e estreei a de piriquito (a minha Companhia foi uma das primeiras a usá-la na Guiné)

Permanecemos naquele aquartelamento até meados de Outubro, como companhia de intervenção.

Durante este período efectuamos vários patrulhamentos e operações.

PRIMEIRA PATRULHA DE RECONHECIMENTO

Ao quarto ou quinto dia, o comandante de pelotão chamou-me e disse-me que, no dia seguinte, ia fazer um patrulhamento a uma tabanca para os lados do aeroporto, com a minha secção.

Um patrulhamento por um piriquito que tão mal conhecia a zona!?

Perguntei: - Uma secção?

- Não há problemas, aqui em volta não há nada e a viatura já está tratada.

Fui dormir. De manhã, a seguir ao pequeno-almoço, chamei os meus soldados para se equiparem transmitindo-lhes que íamos sair.

Eu já estava pronto e como me disseram que não havia nada a temer, fui equipado com a máquina fotográfica. Arranjamos um guia e lá fomos visitar as tabancas referenciadas na carta.

Felizmente correu tudo bem. Falou-se com os chefes das tabancas e tiraram-se umas fotografias com as bajudas, após o que regressamos ao quartel.

Ali tive de fazer um relatório do que se passou. Como não era escritor, nem possuidor do dom de fácil e boa prosa, pedi ajuda ao Fur Mil Vaqueiro.

O relatório lá acabou por sair, seguindo o caminho habitual.

Conclui que, para começar as minhas actividades operacionais, não estava nada mau.

Foto da minha secção na 1ª patrulha nos arredores de Bissau. Da esquerda para direita: Soldados Matos e Guerreiro, Eu, 1º Cabo Alfredo, um soldado nativo (que nos serviu de guia) e o Soldado Leonel (fins de Agosto de 1965)

Foto das bajudas mexendo o milho (1ª patrulha nos arredores de Bissau)

Aqui as vêm-se as bajudas pilando o arroz numa Tabanca (1ª patrulha nos arredores de Bissau)

Mal eu adivinhava que o pior ainda estava para surgir.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCaç 1426

Fotos e legendas: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
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Notas de MR:

Este é o primeiro poste desta série.

Vd. último poste do autor em:

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VIII)

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966

Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, so­freu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem par­tido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ou­viram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o es­trado da carroça­ria. Ti­nham morrido ali como tordos, de­pois de os guerrilheiros te­rem lan­çado algumas gra­na­das defensivas para o interior da GMC. Fiquei encar­regado de transportar aquela carne humana para Fa­jon­quito, sede de uma compa­nhia tam­bém pertencente ao nosso bata­lhão.


Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966

Enquanto o capelão procedia às exéquias fú­nebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, re­voltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E pe­guei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:

O VISIONÁRIO

Rasguem-se as corti­nas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Cal­vário
Pregado num madeiro, ensanguentado...

Era Sua Pala­vra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravi­lhado
Que O elegeu seu re­volucionário...

Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...

Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...


Bissau, 17 de Janeiro de 1966

Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da mi­nha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, an­tes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bis­sau, que só tem grandeza no nome.


Contuboel, 19 de Janeiro de 1966

Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiano-nos a petro­max. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de pas­sos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de en­trada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha. Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa ma­deira africana. Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma ca­bana.


Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966

A Otília está grávida, pelo menos tem to­dos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo ver­dade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgo­vernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!


Contuboel, 16 de Março de 1966

Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Ca­çado­res. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.


Contuboel, 7 de Abril de 1966

Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Ad­ministra­tivo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Or­monde lhe recei­tou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.


Contuboel, 23 de Abril de 1966

Faz hoje um ano que desembarcámos em Bis­sau. Não me esqueci de des­carregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricen­tésima, sexagésima sexta, se me não engano. Esta­mos já a dobrar o cabo tormentó­rio. A partir de agora, começa o tempo a de­s­cer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembra­das.


Sonaco, 30 de Julho de 1966

O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha con­dução no jipe que per­tence ao destacamento.


Sonaco, 9 de Agosto de 1966

A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho me­lhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fa­zem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acor­dado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e dis­parei, uma, duas vezes. Matei um gato e os ou­tros desape­garam-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a ra­zão para o fazer. Virou-se para o ou­tro lado e principiou logo a dormir.
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Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)