quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2010:

Queridos amigos,

Aqui estou, dentro de uma tempestade açoriana, é um anti-ciclone que me irá devastar durante mais tempo. Aliás, a seguir ao Cristóvão de Aguiar vem o Álamo Oliveira. Renovo os meus votos de uma Páscoa renovada no ânimo de cada um.

Se me quiserem ouvir, volto a suplicar que vejam nas nossas estantes quaisquer outros autores que me possam ajudar a compreender quem mais escreveu nos anos 80, sobre a nossa guerra.

Há alguém que me possa emprestar o livro do Rui de Azevedo Teixeira?

Um abraço do
Mário


Mafra, Pico da Pedra, Contuboel, Dunane, Coimbra

Beja Santos

“Relação de Bordo” é o diário de Cristóvão de Aguiar entre 1964 e 1988 (Campo das Letras, 1999). Nascido em 1940, Cristóvão de Aguiar frequentou o curso de oficiais milicianos em Mafra, em 1964. Está na Guiné entre 1965 e 1967. A sua experiência de guerra fornece-lhe material para “Ciclone de Setembro”, que aparecerá autonomizado com o título “O Braço Tatuado”, em 1990. Cristóvão de Aguiar é detentor de importantes prémios literários e Comentador da Ordem Infante Dom Henrique.

Chega a Mafra em 26 de Janeiro de 1964 e escreve: “O casarão do Convento é tão frio e tão feio que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado. Fiquei na caserna número 15, no terceiro piso, a maior de todas. Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro”. Habitua-se ao toque da alvorada, faz a cama, pertence ao quarto pelotão da terceira companhia. O comandante da companhia, diz ele, é muito aparatoso nas continências, parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. A formatura é sagrada: ali ninguém fala, mexe, ri ou pensa. Na instrução, aprende-se o conceito de pátria e fala-se em D. Duarte de Almeida, o decepado, uma verdadeira lição de patriótico amor. Estuda-se a espingarda Mauser, nessa altura a G-3 ainda não é popular. Uma boa parte da existência de um soldado-cadete passasse no corredor La Couture, o tal por onde podem andar jipes e outras viaturas. Anseia-se pelo fim-de-semana, para se sair é indispensável botas luzidias, cabelo e barba irrepreensivelmente cortados. A semana começa com um cross, na instrução da tapada a malta rasteja e dá cambalhotas na lama. Escreve em Março: “Há dois meses com uma farda e uma espingarda que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo... Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha. Aos e sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias. Hoje, sábado, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por viga com não mais do que trinta centímetros de largura. O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos”. Em Maio, o quartel anda numa polvorosa, apareceram panfletos anti-guerra. A seguir, um major arengou sobre os inimigos da pátria, pediu a todos vigilância sobre o inimigo. Surgiram mais panfletos comentando os comentários do major. Chegou Junho, e com a semana de campo andaram todos a brincar à guerra. Promovido a aspirante, é colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar. Aqui é chamado ao comandante, fora visto a acamaradar com um cabo miliciano, não se comove com o argumento de que é gente da terra e colega do liceu, um oficial não acamarada com um cabo miliciano em circunstância alguma. Seguem-se as férias de mobilização, no Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, são horas de mágoa, recordações de namoros infelizes, relações familiares difíceis. Em Abril de 1965, em Sábado Aleluia, a companhia parte no Ana Mafalda. Chegado a Bissau, vão todos para a carreira de tiro, agora a espingarda é a G-3, e escreve no final do mês: “Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustrada rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões operacionais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não bélicas, oito horas seguidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida. Para que não houvesse quebra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes dessem, à vez e na ordem inversa da sua antiguidade, duas horas de instrução cada um. Ainda se acredita piamente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtudes militares, sobretudo da disciplina”. Como se escreveu na recensão de “Ciclone de Setembro” o capitão fica ferido numa operação-treino em Nhacra. Cristovão de Aguiar fica a comandar a companhia. Em Maio estão a viajar para Bambadinca, seguem Contuboel: “Fui cumprimentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-seminarista, e dois comerciantes – um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e respectiva consorte, e um libanês, cujo estabelecimento fica em frente da messe”. Em Junho vai com o pelotão para Fajonquito e seguem para uma operação no mato do Caresse. Em Outubro, chegou a hora de ir para o destacamento de Dunane, não há população. Escreve: “Eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga situada não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrar o silêncio da noite”. Depois, em Janeiro de 1966: “Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, se ouviram grandes rebentamentos. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sob o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois dos guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC”. A comissão continua em Contuboel e no Sonaco. Em Setembro, os nervos vão-se abaixo, segue para Bissau: “Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiros de Walter e de G-3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G-3. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria, com cavalo-marinho, que dei num furriel.” Em Outubro está de regresso a Contuboel. Em Dezembro, visto que era obrigatório que os soldados analfabetos saíssem da tropa a saber ler e escrever, aldrabou com uma professora cabo-verdiana os exames dos ditos: “Encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes”. E depois é o regresso. Em Fevereiro de 1967, recomeçam os estudos. Aqui e acolá, o diário vai falando na escrita, sobretudo das diferentes reacções ao “Ciclone de Setembro”. Aparentemente, este escritor nascido no Pico da Pedra irá andar por outras errâncias, até que, em Julho de 2003 escreve “Trasfega”, uma colectânea de contos, onde em “A Noite e a Sombra” vamos ser reconduzidos à Guiné. Os escritores combatentes podem adormecer, vacilar, iludir, mas a memória e certas solidariedades cumprem inexoravelmente o seu caminho.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6123: Agenda cultural (69): Apresentação da biografia Spínola, de Luís Nuno Rodrigues, amanhã, 18h30, Fundação Mário Soares, Lisboa





1. Amável convite que nos foi enviado pela Margarida Damião, da editora Esfera dos Livros:

Caro Luís Graça,



Espero que posso divilgar este convite junto dos visitantes do seu blog e que possa estar presente amanhã no lançamento.
Gostava muito de lhe enviar um exemplar da obra para sua análise e posterir publicação no blog, será que me pode enviar a sua morada?


Muito obrigada,

Margarida Damião
Rua Barata Salgueiro, n.º 30- 1º Esq.
1269-056 Lisboa
Tel. 21 340 40 64
Telm.963441979
www.esferadoslivros.pt

2. Comentário de L.G.:

Espero que os nossos amigos e camaradas da Guiné, nomeadamente os da área da Grande Lisboa, possam  estar presentes neste evento.  Spínola foi o comandante-chefe de muitos nós. No nosso blogue, temos cerca de uma centena de referências a Spínola (incluindo o descritor Marechal António Spínola).

De Spínola conhecemos apenas o anedótico, a pequena história, o fait-divers... Falta-nos, de facto, a grande biografia do homem, do português, do militar, do político. O seu papel como militar e como político não pode ser ignorado, esquecido, escamoteado. Simpatize-se ou não com o personagem, nuinguém lhe pode tirar o protagonismo que teve na nossa história contemporânea, antes do 25 do Abril (e nomeadamente no TO da Guiné) bem como no imediato pós-25 de Abril.

É altura de olharmos, desapaixonadamente, para aquele que foi um dos mais importantes actores da cena político-militar do nosso tempo de juventude... Connheci-o, pessoalmente, ao fim de vinte meses, na ponte do Rio Udunduma, a 3 de Fevereiro de 1971, em estado menos recomendável em termos de aprumo militar: a barba de muitos dias por fazer, o cabelo comprido... Sempre tive dele uma "opinião pré-concebida", que já levava da Metrópole (*)... Hoje não gosto de fazer juízos sumários sobre ninguém...

Já folheei o livro, mas não tenho uma ideia formada sobre a resposta à pergunta: É esta a grande biografia de Spínola ? Primeiro é preciso ler o livro para avaliar e julgar... E, muito provavelmente, ainda nos falta a distância efectiva e efectiva para compreender e explicar o que fez correr o autor de Portugal e o Futuro.

Quem é o autor da obra ? Sobre ele, diz a editora:

Luís Nuno Rodrigues é doutor em História Americana pela Universidade do Wisconsin (EUA) e em História Moderna e Contemporânea pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Actualmente é professor auxiliar com agregação no Departamento de História do ISCTE.

Tem publicado vários livros e dezenas de artigos sobre os temas da sua especialidade. A sua obra Kennedy-Salazar: a crise de uma aliança. As relações luso-americanas entre 1961 e 1963, publicada em 2002, foram galardoadas com os Prémios Fundação Mário Soares e Aristides Sousa Mendes.

Nota de L.G.: O autor é também investigador do IPRI - Instituto Português de Relações Internacionais, da Universidade Nova de Lisboa.

Ficha técnica do livro:

Título: Spínola
Colecção:  História Biográfica
Nr de páginas: 744 + 28 extratextos
PVP /c Iva: 28 €
ISBN: 978-989-626-208-2
Formato: 16 X 23,5
Encadernação: Cartonado
Data de edição: Março de 2010

Sinopse:

Em 1961 tomou uma decisão que mudaria para sempre a sua vida: ofereceu-se como voluntário para a guerra em Angola. Começava assim a construção do mito em torno de António de Spínola. Uma imagem que se fortaleceu na Guiné, onde desempenhou os cargos de governador-geral e de comandante-chefe.

O homem que uns meses antes agitou o país com a publicação de Portugal e o Futuro, onde defendia que o problema colonial português não teria uma solução militar. A sua passagem pela vida política revestiu-se de aspectos dramáticos e foi uma decepção, quer para os seus opositores, quer para alguns dos seus apoiantes e seguidores, que nele depositaram fortes esperanças num momento-chave da História portuguesa.

O certo é que, entre 25 de Abril de 1974 e 11 de Março de 1975, a «glória» cedeu lugar ao «drama» na vida de António de Spínola. Uma série de passos em falso levaram o «general do monóculo» da Presidência da República ao exílio no Brasil, de símbolo da esperança nascida em Abril de 1974, a líder de um movimento clandestino que, a partir do estrangeiro, visava alterar pela força o regime político vigente.

Regressou a Portugal em Agosto de 1976, recebendo ordem de prisão ainda no aeroporto. Reintegrado posteriormente nas Forças Armadas, António de Spínola foi nomeado marechal e, mais tarde, recebeu a Grã Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito.

Quando morreu em 1996, com 86 anos, Spínola era um homem que ainda não se tinha reconciliado com o seu pais, nem esquecido ou perdoado erros cometidos no passado.

_________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

(...) Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971:



De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de Cães Grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi.


Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ...


Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.

Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…


A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.


Fonte: 30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça) (...)

Guiné 63/74 - P6122: (Ex)citações (64): Guerras feitas, amores desfeitos (José Corceiro)


1. Comentário, de 6 de Abril de 2010, do José Corceiro, ao poste de P6115:


Estimados Tertulianos:  Na resenha que o Beja Santos faz do livro Ciclone em Setembro, de Cristovão de Aguiar, refere o drama do Niza (**).

Em Canjadude, na CCAÇ 5, houve um caso, real, do qual fui testemunha, que eu considero bem mais grave.

Um militar, metropolitano e já casado, faltavam-lhe cerca de três meses para terminar a comissão na Guiné, quando recebeu uma carta dos pais, a comunicar-lhe que a esposa tinha ido a entregar os dois filhos do casal, ainda bebés, aos pais dele, ela abandonou o lar, ausentando-se para parte incerta, na companhia de outro homem.

Também ele tinha uma tatuagem no peito, onde estava rabiscado um coração a ser penetrado por uma seta e dentro deste, as palavras,"amor de esposa", seguido do nome desta. No abrigo onde dormia, improvisado numa prateleira junto da cabeceira da cama, tinha sempre a fotografia da esposa e dos filhos.

Passou um mau momento, muito perturbado, e ameaçava que ia cometer triplo homicídio. Acabou a comissão, nada mais soube [dele].

Um abraço

José Corceiro

_______________

Nota de L.G.:



(...)  E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda,  a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. 

Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. 

Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999. (...)

Guiné 63/74 - P6121: Parabéns a você (100): O meu coração cresceu mais um pouco para conter toda a amizade demonstrada (Joaquim Mexia Alves)

O nosso camarada Joaquim Mexia Alves enviou-nos esta mensagem com pedido de publicação:

Meus camarigos Luís, Carlos, Virgínio e Eduardo
A vós, que pela vossa dedicação e trabalho, permitis que nenhum de nós seja esquecido no dia do seu aniversário e que leva a manifestações de amizade como a que ontem senti de todos os camarigos: OBRIGADO!

Peço-vos, abusando da vossa paciência que publiqueis então o meu profundo agradecimento a todos os camarigos, para que assim não me esqueça de ninguém.

Um abraço forte e amigo do
Joaquim


Meus queridos Camarigos

E agora?!


Agora como se agradecem todas estas manifestações de amizade que quase me convencem que eu sou aquilo que os meus camarigos escreveram sobre mim.

Vanitas, vanitas!

Ontem fui almoçar a Alcobaça, com a minha mulher e os meus filhos mais novos, e todos vós meus camarigos estiveram comigo!

Admirados?
Não se admirem, porque o Jero, um modelo de “camarigagem” e amizade, foi ter connosco a meio do almoço, distribuindo simpatia e presentes pela família toda.
Ora isto quer dizer, que todos vós, representados no Jero, estiveram comigo, estiveram connosco, no dia dos meus 61 anos.

Falámos então, que conhecendo-nos há poucos meses, já éramos velhos amigos!

Ora sendo Alcobaça, pelo menos dantes assim era, terra de antiguidades, lembrei-me agora, que tal como as coisas antigas, as antigas amizades têm um valor precioso.
Ora a amizade que nos une a todos é já antiga, e foi forjada na dificuldade, na provação, no risco de vida, e por isso mesmo é amizade forte e para durar, e consegue ultrapassar todas as diferenças que haja entre nós e por isso me orgulho de ter tantos amigos como vós.

Acreditamos e dizemos na Fé Cristã que eu vivo, que Deus, mesmo das coisas más consegue retirar o bem.
E ao pensar nisto, tenho que ver um paralelo com a guerra que vivemos, e a “camarigagem” que temos.
A guerra não presta para nada, é coisa ruim que a nada leva, a não ser destruição e tristeza, mas no meio de tudo o que é mau, forja amizades para toda a vida, que vencem os tempos e as provações, e unem homens tão diferentes como somos todos nós.

Ontem o meu coração cresceu mais um pouco, para conter toda a amizade que vós meus camarigos me quiseram demonstrar.

E agora?!

Agora digo-vos obrigado, do mais íntimo de mim mesmo, agora digo-vos bem hajam, que é uma expressão bem portuguesa que o meu pai sempre utilizava quando estava emocionado, e eu estou emocionado, não tenham dúvidas.

Agradeço-vos da melhor maneira que sei, e que é colocar-vos a todos e às vossas famílias nas minhas orações.

Num abraço a todos, forte, sentido, camarigo, (não esquecendo a camariga Filomena), deixo-vos uma parte de mim, escrita há já alguns anos


O meu hino à liberdade

Deixa-me escrever-te um poema,
Que tenha por tema
A liberdade.
Porque sabes,
Eu sou livre e sou alegre,
Sou teimoso, obstinado,
Corajoso, apaixonado,
Defeituoso e sem jeito,
Mas trago dentro do peito
Esta minha liberdade.
Que é cantar, como os cantores,
Sem jamais saber cantar,
Escrever como os escritores,
Sem nunca saber escrever,
Ensinar como os Doutores,
Sem nunca ter de aprender,
Fugir e ser soldado,
Apenas porque se quer,
Olhar e ser olhado,
Sempre que a gente quiser,
Ser homem e ser mulher,
Sem nunca estar acabado,
Partir pelo mundo fora,
Sem nunca daqui ter saído,
Ter saudades de partir,
Sem nunca aqui ter chegado,
Passar uma vida a rir,
Sem ter razões para ter rido,
Olhar para o mundo
E dizer:
Esta é a minha vontade,
O meu voto mais profundo,
O meu hino
À liberdade...

Monte Real, 7 de Abril de 2010
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6112: Parabéns a você (99): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil OP Esp (Os editores)

Guiné 63/74 - P6120: Convívios (213): 27.º Encontro Nacional de ex-militares do BENG 447 - Brá - Bissau, dia 8 de Maio de 2010 em Martingança

Pede-nos o nosso camarada Lima Ferreira, ex-Fur Mil, para divulgarmos o 27.º Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá - Guiné, que se realiza no próximo dia 8 de Maio de 2010 em Martingança.



Clicar na imagem para ampliar
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6113: Convívios (126): Pessoal da CART 2412 - "Sempre Diferentes", no dia 15 de Maio de 2010, em Fátima (Jorge Teixeira)

Guiné 63/74 - P6119: Agenda cultural (68): Toque de Caixa, jogando em casa: próximo concerto a 9 de Abril, na FNAC, Norteshopping, Porto, às 22h





Lisboa, FNAC, Colombo, 12 de Março de 2010 > Grupo musical Toque de Caixa. Apresentação do novo CD do grupo, Cruzes Canhoto. Edição: Ocarina. Porta-voz (e um dos pais-fundadores) do grupo: Abílio Machado,  (que esteve connosco em Bambadinca, entre Maio de 1970 e Março de 1971; ex-Alf Mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72; fizemos lá uma bela amizade: ele, um periquito, um alferes de secretaria da CCS, e nós, operacionais, pretos de 1ª classe, da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá; nós, eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Zé da Ilha, o GG - Gabriel Gonçalves e outros, noctívagos, que gostávamos de cantar, beber, conviver, de preferência, pelas altas horas da noite...

Fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados.

1. Mensagem do Abílio Machado, com data de 30 de Março último:

Assunto - Concertos do Toque de Caixa...

Caros amigos :

Para os interessados, aí vai a agenda de concertos do Toque de Caixa nos tempos mais próximos :


9 de Abril, 6ª feira  - Porto, FNAC ( Norteshopping) - 22 h.

9 de Maio, domingo  - Porto,  FNAC (Via Catarina ) -18 h.

23 de Maio, domingo - Porto, CASA da MÚSICA : APRESENTAÇÃO DO CD [, Cruzes, Canhoto] - hora a determinar

2 ou 9 de Julho, sexta-feira  - Casa da Cultura de Bragança - 21,30 h.

24 de Julho, sábado  - Tavira - 21,30 h.


Um abraço

Abilio Machado


2. Comentário de L.G.:

Santos da casa não fazem milagres ? Não é o caso... O Toque de Caixa está vivo e recomenda-se. É conhecido,  reconhecido e apreciado na sua terra natal, ou melhor, região natal, uma vez que o grupo reúne músicos (todos eles excelentes, multifacetados) da Maia, de Matosinhos e do Porto (cito de cor, já que o grupo nasceu na Maia em finais de 1985, fundindo-se mais tarde com outro grupo; entretanto, houve gente que entrou e saiu).  Um dos pais-fundadores foi o Abílio Machado, nosso camarada e amigo de Bambadinca (CCS / BART 2917, 1970/72).

Depois do sucesso do lançamento do seu segundo CD (Cruzes, Canhoto), em Lisboa, na FNAC Colombo, em 12 de Março último (*),  os seus admiradores da região Norte poderão ouvi-los, ao vivo, já no próximo dia 9 de Abril, na FNAC Norteshopping, Porto

As  sonoridades do Toque de Caixa mergulham nas raízes da música tradicional portuguesa, abrindo uma nova fileira que, oxalá, continue a ser cultivada, explorada e desenvolvida pela nova geração de músicos portugueses.

 Depois do primeiro disco, as Histórias do Som (1993), saiu este ano o seu segundo trabalho, Cruzes, Canhoto.  A qualidade das (re)criações musicais e o profissionalismo dos executantes são uma garantia do sucesso que, acreditamos, se vai repetir no Porto. Faço apelo aos nossos camaradas da Tabanca de Matosinhos para  darem um pulinho,  no dia 9, ao concerto dos Toque de Caixa na FNAC Norteshopping.

___________

terça-feira, 6 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6118: História da CCAÇ 2679 (34): Situação geral em Novembro de 1970 (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Abril de 2010:

Carlos, meu amigo,
Folgo por estar resolvida a questão do V Encontro da Tabanca, obrigando-te a comparecer para ajustes de contas diversos. É verdade: nesta vida não podemos andar sempre a fugir à seringa. E por isso, deixa-me seringar-te com mais este texto, maioritariamente extraído da História da Unidade, é que tenho andado com uma ausência de inspiramento... agravada pela preguiça da primaVera.
Abraços
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (34)

1 - Situação geral em Novembro/70 (integral da H.Unidade)


Durante o mês de Novembro, o IN manifestou-se por três vezes no sub-sector da Companhia, através de 02 flagelações ao Destacamento de Copá e de outra ao Aquartelamento de Bajocunda.

A actividade operacional das NT também se manteve bastante intensa, efectuando várias operações e acções, constando de patrulhamentos conjugados com emboscadas nocturnas e realizando frequentes contactos com as populações da área simultaneamente com a sua assistência sanitária.

Pelos revezes sofridos nas suas flagelações e pela intensa actividade operacional desenvolvida pelas NT, o IN não parece ter criado adeptos entre a população que se mostrou positivamente colaborante com as NT.

Prosseguiram as obras em curso dos reordenamentos (Escola de Amedalai e auto defesas de Amedalai e Tabassi), sendo porém de assinalar o desinteresse e falta de colaboração da população de Tabassi neste aspecto.

O PEL MIL 269 continua sediado em Amedaçai onde exerca a protecção àquela tabanca.

Quanto à protecção a Tabassi continua a ser feita alternadamente por 01 GCOMB da Companhia e outro da CCAV 2747.
Aquelas duas tabancas continuam a ser reforçadas diariamente à noite por duas secções de Atiradores.

É ainda de assinalar neste período a apresentação de 08 elementos da população de Copá que se achavam refugiados na República do Senegal.


Minhas observações à actividade mensal:

Durante o período são referidos 11 patrulhamentos de combate realizados por Bajocunda; 6 realizados por Copá e 1 realizado por Amedalai. Ainda se referem 3 patrulhamentos de assistência às populações, bem como duas operações a nível de bi-Grupo, incluindo emboscadas nocturnas, e uma saída para emboscada nocturna.

É de salientar que no dia 06NOV70 foram flageladas as povoações de Copá, Bajocunda e Pirada. Nenhuma das acções constituíu perigo real, pois os disparos foram mal regulados. No entanto, durante o ataque a Bajocunda, registou-se um "morto por acidente, causado pelo rebentamento de um dilagrama", que vitimou um militar da CCAV 2747, pertencente a um pelotão que reforçava Bajocunda. O acidente consubstanciou-se pela utilização de bala real no lançamento de dilagrama, operação efectuada por um Furriel daquela Companhia que tinha bebido excessivamente. Apenas registo o facto, sem qualquer pretensão de fazer julgamento. Acidentes assim decorriam da guerra e das circunstâncias de vida locais que condicionavam o dia-a-dia dos militares. Não se pode pretender que durante a permanência na Guiné o pessoal não cometesse excessos. Cometeram-se, e muitos, alguns, infelizmente, com resultados frustrantes, ou condenáveis. Este foi um acidente absolutamente imprevisto.


2 - Breve abordagem política daquela época:

Em Fevereiro de 1970 aconteceu uma primeira remodelação governamental no governo de Marcelo Caetano. Foram afastados os críticos Franco Nogueira, um dos herdeiros do espírito salazarista, e Correia de Oliveira, um delfim do Botas, fazendo entrar Rui Patricio (Negócios Estrangeiros), José Veiga Simão (Educação), e Baltasar Rebelo de Sousa (Corporações), qual tentativa de refrescamento da imagem de Portugal, quer para o interior, quer para o exterior, como que a reacender a esperança na busca de soluções para o ultramar e o desenvolvimento económico e social.

Os "tecnocratas" Xavier Pintado, João Salgueiro e Rogério Martins, dão sinal de aproximação à Europa, contra o afrocentrismo, ou seja, a preocupação ideológica de manter as possessões, a todo o custo, como parte integrante na continuidade do modelo político anterior. Porque poderia imaginar-se alguma solução diferente para o relacionamento entre todas as partes. No entanto, passados alguns meses, face ao acumular de hesitações do primeiro-ministro, verificou-se que Marcelo continuava refém dos velhos e duros defensores do regime, partidários de posições intransigentes no campo da defesa, da ordem interna (em sentido político) e da continuação da guerra colonial.

Spínola concitava admiração, embora nem sempre bem estribada. Passava por manter elevado o moral das tropas, formou uma élite de peso, e evidenciava-se pelo destemor pessoal. Também passou a ser o mais beneficiado pela máquina de propaganda.

Pedro Theotónio Pereira fez-se eco: "Ouço que o Spínola, governador da Guiné, mandou em certos postos avançados colocar o dispositivo de segurança à frente do arame farpado", e "prossegue a revolução social e explora as rivalidades étnicas".

O que eu sei, é que no primeiro semestre do ano, mandou retirar o arame de protecção e tapar as valas em Pirada, com o argumento de que sendo um posto fronteiriço, devia apresentar condições de plena abertura ao exterior e tranquilidade interna, do que resultou a invasão da localidade, enquanto a tropa assistia a uma projecção de cinema (Exército e Páras), que não redundou num massacre, porque o pessoal IN perdeu a cabeça na tentativa de saquear as lojas de comércio local, e bateu em retirada, quando de surpreendedores, passaram a surpreendidos. Foi um momento de grande sorte para o velho cabo de guerra que, assim, saíu imaculado daquela infeliz decisão.

Em Abril, três majores do Exército foram atraídos a uma emboscada, e mortos pelo PAIGC. Foi o mais trágico da Operação Chão Manjaco, lançada por Spínola como meio de paz, e que previa a integração da guerrilha nas Forças Armadas Portuguesas. Outra medida de grande ingenuidade.

Entretanto, cento e quarenta e sete figuras de perfil "liberal", entre as quais Xavier Pintado e Rogério Martins, secretários de estado, pedem a legalização da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), que é pensada como um instrumento de apoio ao governo e um polo agregador do "centro político", mas tornou-se depois um grupo crítico e distanciado.

Por esta altura Marcelo Caetano autorizou a Operação Mar Verde (imaginada por Alpoim Calvão, que a fez interessar a Spínola, e envolvia oposicionistas do regime da Guiné-Conakry), provavelmente convencido de uma vitória retumbante sobre o PAIGC e o governo de Conakry que lhe dava apoio, e tinha como principais objectivos, a destituição do presidente Sekou Touré, o desmembramento do PAIGC e a eventual eliminação de Cabral, para o que contava com um desembarque surpresa, a que se seguiria o controle da área portuária, a tomada da rádio, como condição necessária para surpreender o país e anunciar o novo governo de revoltosos, a tomada da base aérea e destruição dos aviões MIG, para além dos assaltos às residências de Touré e Cabral. A estes objectivos iniciais veio juntar-se a libertação dos prisioneiros de guerra portugueses, a única parte que correu bem. No final da operação ainda foram afundados vários barcos que se encontravam no porto.

Em S. Bento, entretanto, distinguia-se um grupo de deputados da nação, que fazia oposição interna, e ficou conhecido pela designação de Ala Liberal, onde se distinguiam Pinto Leite, Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Miller Guerra e Magalhães Mota.

Destas evidências, resulta que o regime apresentava fragilidades que, cada vez mais, se acentuavam e dificultavam a prossecução da política do governo (tanto interna como externamente) e a estabilidade social. Nas "Conversas em Família", Caetano difundia contra grupos de católicos inquietos, e referia: "... que bom é ser moralista, que bom poder resolver os problemas de consciência com algumas sentenças ambiguas no remanso do lar... Mas os governantes também têm problemas de consciência... Pelo lugar que ocupo, enquanto o país quiser, cumpre-me avisar para os perigos que o país corre... Sobre os ombros de quem governa pesa a responsabilidade do ultramar português... Eu, por mim, não aconselharei a renúncia..."

Estrebuchava sem dar sinais de competência ou inovadores.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6026: Convívios (120): Próximo convívio da Tabanca da Linha, dia 8 de Abril de 2010, no Talho do Diamantino - Quinta do Cortador (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de1 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5818: História da CCAÇ 2679 (33): Vesti toalha de praia para ir falar com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P6117: José Corceiro na CCAÇ 5 (8): Primeiro rebentamento de mina entre Canjadude e Nova Lamego

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 3 de Abril de 2010: Caros amigos Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães Desejo-vos uma Páscoa Feliz na companhia dos vossos familiares. Mais uma vez venho relatar um pouco da actividade operacional da CCAÇ 5, em Canjude, Guiné. Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, da mesma, assim como a inclusão das fotos. Um Abraço José Corceiro José Corceiro na CCAÇ 5 (8) PRIMEIRO REBENTAMENTO DE MINA ENTRE CANJADUDE E NOVA LAMEGO Estamos no dia 31 de Agosto 1969. Na CCAÇ 5, as saídas para o mato, têm sido quase diárias e continuamos submetidos a muita tensão, pois são constantes as informações a dizer que vamos ser flagelados. A vinda de correio ultimamente tem sido inconstante, os intervalos de tempo sem receber cartas são muito espaçados. Eu, a última vez que recebi correspondência, entre aerogramas e cartas, recebi 19 unidades, foi normal, é que fiz 22 anos o dia 28 de Agosto. A falta de correio, que aparentemente pode não parecer um facto muito importante, deixa-nos a todos com os nervos em franja. Aqui, para o nosso equilíbrio emocional, é demasiado importante receber notícias da namorada, dos pais, amigos, pessoas que nos são queridas. Estamos no dia 3 de Setembro e mais uma vez já passaram oito dias sem correio. Até há frescos (comer mais mimoso) em Nova Lamego, para a CCAÇ 5, e não há coluna nem vem a DO trazer os mesmos e o correio! Dia 5 de Setembro, veio a DO trazer o correio e alguns dos frescos que estavam em Nova Lamego, eu recebi mais um montão de correspondência, o pessoal estava todo impaciente e ansioso à espera de notícias. Dia 6 de Setembro, Sábado, recebi o meu primeiro pré na Guiné, recebi 3.978$00 deve rondar 1.200$00 mensais. Se não fossem os meus queridos Pais a mandarem-me dinheiro todos os meses, só com esta quantia, seria bem mais complicado viver aqui. Eu vejo o que acontece com os meus camaradas, que são obrigados a impor muitas restrições nas suas despesas. Houve alguns que fizeram anos há dias e ocultaram a data, porque não tinham dinheiro para pagar uma cerveja, fiquei sensibilizado com esta conduta de honestidade e humildade, foi um comportamento que revela dignidade e apreço. Agora que receberam o pré, é que se abriram e propuseram que amanhã se fizesse um “petiscozinho”, porque já há dinheiro fresco para cervejas, são logo três nestas circunstâncias. Embora eu tivesse pago umas cervejas ao pessoal quando fiz anos, quero-me associar aos gastos deste elegantíssimo gesto, pois eu teria muita dificuldade em estar sem dinheiro e por isso mais valorizo e compreendo a atitude sincera e disponibilidade que manifestaram. Aqui em Canjadude, está-se a disputar um campeonato de futebol entre as equipas formadas pelos: 1.º, 2.º, 3.º, 4.º pelotão, a Formação, os graduados e as Transmissões, hoje Domingo jogaram o 1.º pelotão e a Formação. Foto 1 > Equipa de Transmissões > Frente lado direito: Fur Mil José Martins, José Carlos Freitas (jogador V. Guimarães), Alex, José Corceiro e Enfermeiro Soares (massagista). De pé lado direito: Nora, Rogério, Costa, Silva e Loupa Foto 2 > Equipas em campo: Transmissões e Formação > Da esquerda para a direita: Loupa, Soares (massagista), José Corceiro, Silva, Costa, José Carlos, Alex, Nora, Rogério, José Martins, Fur Mil Carvalho (árbitro), Fur Mil Gil (Delgado do Campeonato), João Monteiro (Formação), Martins (Formação), e ? (Formação) Dia 8 às 6.00h, saí para mais uma operação no mato, durante dois dias, de Transmissões fui eu e o Rogério. Foi sair do Aquartelamento e entrámos logo feitos patos dentro água, tivemos que atravessar rios em que a água nos dava pelo peito, este tipo de progressão é muito desgastante. A operação no mato foi rotineira, grande parte do tempo a caminhar com água até aos joelhos, acampar para comer a ração de combate, descansar um pouco, mandar mensagem a relatar estado e definir localização, progredir novamente, acampar para passar a noite. Foto 3 > José Corceiro em Operação no mato a repor rnergias para ir para os braços de Morfeu. A noite, tudo indica que vamos ter um manto de nuvens cinzentas a cobrir-nos, pois não terei oportunidade de observar constelações e, apressa-se a hora de escolher o poiso para entregar o corpo nos braços de Morfeu. Só que neste estado de alma e com este desconforto físico com a roupa toda ensopada, agora e, aqui neste lugar, a sonolência não vai chegar, para as minhas pestanas poderem fechar. Nada adiantaria que o leito fosse feito de ébano, com colchão macio engendrado com penas de pato, que a cama fosse feita com lençóis aveludados de cetim encarnado, que o cenário fosse dentro duma gruta toda decorada com flores e salpicada de pétalas de todas as matizes, que a iluminação fosse prismática dispersada por raios de luz cintilantes, em feixes de luminescência deslumbrante, de cromáticos arco-íris, nada, nem ninguém, consegue prender o meu espírito e a minha imaginação, que vagueiam por outras paragens, por outros aléns e não vão ser com certeza, as forças hipnóticas e sugestivas, ou as suas farsas “fantasiantes”, dos filhos de Hipnos, os Oniros (Oneiroi), nem a capacidade e ilusão das suas “morfinices” terão a inspiração e capacidade, para me transportar para mundos oníricos, ou sonhos demenciais, porque o momento não é de aconchego, o tempo promete tempestade, a brisa trará os endiabrados mosquitos que não me vão dar sossego, nem deixar descansar. Vai ser mais uma noite de vigia, tão propícia a divagações com projecções angustiantes de imagens fantasmagóricas, com devaneios assombrosos de sonhos irreais. Praticamente toda a noite choveu. Ao raiar da luz matinal, levantamo-nos do chão enlamaçado e, moldado pelos nossos corpos, que estavam encharcados, encolhidos e entorpecidos com a inactividade e, fresquidão que se sentiu durante a noite. Preparámo-nos para enfrentar mais uma jornada de progressão nas Bolanhas alagadas, a caminhar até Canjadude, onde chegámos por volta das 11.00h. Dia 10 de Setembro, houve informação que hoje o inimigo nos vai flagelar. Na parte de tarde choveu torrencialmente. Mudámos as frequências dos equipamentos de emissão recepção, no Posto de Rádio. O IN não nos flagelou, isto já começa a ser desmensurado, a continuar assim entra-se no foro do patológico, degenera em neurose, cria tensão e ao mesmo tempo, esta exacerbada emoção inibe o discernimento, alimenta o descrédito que nos pode levar a ser menos previdentes, quando nós precisamos de estar bem precavidos. Foto 4 > José Corceiro no abrigo do Posto de Rádio da CCAÇ 5 > Lado direito na vertical vê-se o AN-PRC-10 - Frente vê-se AN-GRC-9 com amplificador acoplado. - Lado esquerdo vê-se a Central Telefónica - Tinha extensões distribuídas que sinalizavam, accionando o Magneto por manivela, nos abrigos: Capitão, Morteiros 81 e Postos de Sentinela. Foto 5 > Posto de Rádio de Nova Lamego. O Mota, a ajustar os cabos de ligação, ele estagiou, como periquito, em Canjadude e a primeira vez que saiu para o mato, em Canjadude, foi comigo. Dia 12 de Setembro de 1969, há coluna de abastecimento a Nova Lamego, não era a minha vez de acompanhar a coluna, mas troquei por minha conveniência, para poder comprar com o dinheiro que me mandaram como prenda de anos, uma máquina fotográfica, pois preciso ter duas, uma para fotos a cores e diapositivos e outra para foto a preto e branco, para poder optar em função do momento a fotografar. Na última coluna que fiz, já andei a namorar uma máquina “reflex” na casa Caeiro, a rondar os 4.000$00, é uma óptima máquina da marca Canon. A filha do Sr. Caeiro bem me provocou para que eu a comprasse, mas não vim preparado com dinheiro suficiente, embora eles dissessem que isso não tinha importância nenhuma e pagaria o resto depois, mas esse facilitismo comportamental não se coaduna com a minha postura tranquila e harmoniosa de estar em paz com vida. Nas colunas que tenho acompanhado, cerca de uma dezena, nem sempre é habitual montar flancos e fazer picagem ao trilho, para passarem as viaturas, em algumas que fui, montámos em Canjadude e apeámos em Nova Lamego. Não foi o que aconteceu hoje, logo após termos saído de Canjadude a cerca de 4 quilómetros, apeámos, montaram-se flancos laterais e iniciou-se a picagem. Progrediu-se em picagem mais de uma hora. Ainda não eram 8.30h, subimos para as viaturas para avançar. Eu estava a estabelecer contacto via rádio com Canjadude. A viatura da frente arrancou, eu ia na segunda viatura, a última da coluna ainda não estava em movimento de progressão. Neste intervalo de tempo ouviu-se um violento rebentamento, tudo à minha frente voou pelos ares, envolto em cortina de fumo e terra, devido ao rebentamento de mina anticarro accionada pela primeira viatura. Não sei como saltei do transporte onde eu ia, só ganho consciência que estou no chão de pé e com uma G3 na mão, que não era minha, pois não tinha arma distribuída. Olho em frente e vejo a escassos metros uma viatura atravessada na picada, com a parte frontal toda destruída e, o chão assolado com corpos humanos, pensei o pior, aproximei-me ajudei alguns a levantarem-se, mas deparei-me logo com um ferido que me inspirou muito cuidado e preocupação, caso que nunca esqueci e me marcou. Estava caído no chão, inerte, desconsolado, a gemer desfalecido com muito padecimento, não havia mobilidade e a visão daquela fácies hipocrática com a sua fisionomia de músculos contraídos, atestavam bem o sofrimento e dor porque estava a passar aquele ser humano, imagem que já mais apaguei da minha mente. Verifiquei que não tinha contracções musculares nem sensibilidade nos membros inferiores, ajudei-o a apoiar a cabeça e pedi para que não o movimentassem, continuava a gemer desesperadamente e acabou por desmaiar. Nunca mais tive notícias deste militar nativo, presumo que tenha sido mais uma vítima da guerra que ficou paraplégica. Fui para a viatura de Transmissões para enviar mensagem a Canjadude, a pedir evacuações urgentes e apoio de enfermagem, pois havia muitos feridos deitados no solo e, em sequência, pediu-se a Nova Lamego que enviasse um grupo de protecção e um pronto-socorro para levar a viatura acidentada. (Do local do acidente a Nova Lamego eram aproximadamente 15km) O Comandante da CCAÇ 5, Capitão Pacífico dos Reis, também ficou ferido, mas aparentemente parece ser sem gravidade. Como enfermeiro acompanhava a coluna o meu estimado amigo António Manuel. Cerca das 9.30h, chegou ao local, vindo de Canjadude, numa viatura com uma secção de combate o Sarg Enfermeiro Cipriano, com o material auxiliar de enfermagem. Passadas quase 3 horas, após o rebentamento, chegaram reforços de viaturas e pessoal de Nova Lamego assim como pronto-socorro para levar a viatura acidentada. Passaram mais de 3 horas e meia após o rebentamento quando, chegou o primeiro heli para dar inicio às evacuações dos feridos. Feridos houve um total de quinze, ainda que outros viessem a sentir mazelas posteriores, evacuados foram nove, alguns com gravidade. Após concretizar as evacuações, o pessoal que veio de Nova Lamego ficou emboscado no local do acidente e a coluna de Canjadude seguiu o percurso normal, onde se reabasteceu. Regressámos e juntámo-nos com o pelotão que estava emboscado que nos acompanhou para Canjadude onde chegámos próximo das 17.30h. (Ver neste blogue P5987) Foto 6 > Heli a aterrar numa clareira, com sinalização com tela, para dar início às evacuações dos feridos da mina anticarro. Foto 7 > Heli quando aterrou na clareira. Foto 8 > Heli a efectivar as evacuações. O metropolitano que está com óculos escuros era o Enfermeiro meu amigo António Manuel, desde que veio da Guiné, há 40 anos, perdi-lhe o rasto. Foto 9 > José Corceiro, em primeiro plano, durante as evacuações dos feridos. A mina foi colocada debaixo de uma árvore, cujos ramos atravessavam a picada, quando rebentou e projectou o pessoal para o espaço, muitos deles feriram-se ao bater nos ramos da árvore, ainda que o impacto de compressão e descompressão no organismo, causado pela força aplicada que projectou a massa do corpo para o vazio, fosse causa mais que suficiente para ocasionar distensões musculares, provocar roturas de tecidos, ou fracturas ósseas. Após o rebentamento alguém se lembrou e, teve a ideia luminosa, de picar até mais à frente do local do rebentamento, 30 ou 40 metros, e, detectou-se e foi levantada mais uma mina, colocada com o mesmo engenho e manha da que rebentou, também debaixo de uma árvore. Dia 13 de Setembro, mais uma operação em que saíram para o mato os quatro grupos de combate da CCAÇ 5, por três dias. Ficou o pelotão de outra companhia, que ontem nos acompanhou, a proteger o Aquartelamento. Logo às 6.00h, as viaturas foram-nos levar a cerca de 4 quilómetros na direcção da picada do Cheche, apeamos e começamos a progredir para a esquerda obliquamente, orientação Siai, a caminhar como habitual em terreno pantanoso, algumas vezes com água até à cintura. Acampamos para comer a ração de combate e descansar cerca de duas horas. Na parte de tarde progredimos constantemente dentro de lodaçais e por duas ou três vezes tivemos que fazer paragens, para repor energias, pois há pessoal estoirado visto ser muito desgastante caminhar em zonas alagadas. Acampamos para passar a noite que felizmente pouco choveu. O pessoal de Transmissões juntamente com Enfermagem, ficámos próximo do Capitão, como é normal. O Capitão, provavelmente ainda resquícios dos ferimentos da mina de ontem, passou a noite com dores e lamentações, possivelmente mialgia muscular. Ainda estava o alvorar envergonhado, já toda a companhia caminhava dentro de lamaçal, em direcção a Ganguiró, com os corpos amarfanhados e friorentos devido à noitada agreste. O pessoal chegou exausto a Ganguiró e tivemos que pedir meia dúzia de evacuações, entre as quais a do nosso Comandante Capitão Pacífico dos Reis. Depois das evacuações, progredimos durante 2 horas, sempre em terreno hostil e a circundar na zona, fomos acampar junto da margem do rio Bauro, (deve ser afluente do rio Corubal) onde passámos a noite, não muito longe de Ganguiró. A passagem da noite não foi muito agradável, pois ainda choveu. Ausente ainda, o alvorecer, pois vinha a aurora a subir a encosta de Madina de Boé, já nós estávamos todos a pé, um pouco encharcados, enlameados e conformados a palmilhar terrenos alagados em direcção ao objectivo, Siai. Chegámos a este sem nada digno de registo, nada de vestígios. A partir daqui tomámos o rumo de Canjadude, onde chegámos por volta das 16,30h, com todo o pessoal extenuado. Está-se a tornar impossível a mobilidade das viaturas para nos ir levar ou buscar ao mato, porque ficam atoladas nos trilhos e só o guincho, com corda amarrada ao tronco de árvores, as consegue libertar para avançar. Dia 16, houve coluna a Nova Lamego a levar o pelotão que estava aqui a manter segurança, mas algo de estranho aconteceu, porque só regressou a coluna dia 17, nunca aconteceu regressar no dia seguinte. Veio um capelão para Canjadude. Dia 19, logo de manhã, foram dois pelotões para o mato. Ao meio da tarde recebeu-se uma mensagem Zulu, a pedir que fosse imediatamente um pelotão da CCAÇ 5, para Nova Lamego. Foi enviado o pelotão e mandaram-se regressar as forças que estavam no mato, que chegaram ao Aquartelamento por volta das 23.00h. A vinda inesperada dos dois pelotões, que estavam no mato, sem se ter dado conhecimento ao resto do pessoal que estava no aquartelamento, provocou uma enorme confusão e celeuma, pois os ausentes não estava previsto regressarem neste dia e, quando chegaram às suas casas encontraram algumas das suas mulheres envolvidas com outros homens, na sua própria habitação. Dia 20, está tudo de prevenção, mais uma informação a dizer que o IN está na zona e que vai flagelar hoje Canjadude. Dia 21, o pelotão continua em Nova Lamego, tivemos missa de manhã e, na parte de tarde continuação do campeonato, jogo entre Formação e 3.º pelotão. Dia 23, também reflexos do acontecido no dia 19, e não só, hoje para irmos para o refeitório comer as refeições, tivemos que ir devidamente fardados o que não é habitual. Como já atrás referi, a má qualidade alimentar, não tem sido apelativa para o exercício das nossas pupilas gustativas e como tal protestámos, porque o comer que nos têm servido mais parece ser confeccionado com géneros deteriorados. Foto 10 > Arranchados descontentes com o comer. Estão de pé dois cozinheiros e o Cabo de Dia, Dias. Sentados à mesa – lado direito – Silva, José Corceiro, Saldanha (nativo), Malhada e Alex (com óculos). Lado esquerdo - Rogério. Foto 11 > Depois de se ter acordado, outro suplemento alimentício com o Oficial de Dia, foi indicado o José Corceiro para distribuir a refeição. Foto 12 > Tudo com cara de poucos amigos. Primeiro plano – Camilo, Silva (atirador), José Carlos Freitas. Dia 24, saí para o mato com dois pelotões, para os lados de Cantocoré a caminhar, como é uso, por Bolanhas alagadas que aqui começa a ser rotina. Progredimos com muita precaução pois havia informação que o IN estava na zona. Durante a noite foi tanta a chuva e o vento, que ameaçava sermos todos arrastados pelo vendaval, ninguém se lembra de ter passado uma noitada, no mato, tão atemorizante quanto esta, mesmo assim durante a noite ouvimos os intensos e nítidos rebentamentos, da flagelação que sofreu Cabuca, que esteve embrulhada, debaixo de fogo, mais de meia hora. Por volta das 6.00h, começamos a caminhar em direcção ao Destacamento, onde chegámos às 8.30h. Fomos atacados no regresso por abelhas, às quais o pessoal reage com muita desorientação e medo, a mim não me mordeu nenhuma. Dia 26, fomos meia dúzia de militares para o rio, junto à ponte, para experimentar a minha nova máquina fotográfica, a malta arrisca-se. Em Canjadude têm convergido um conjunto de acontecimentos que aglutinados têm contribuído para um stress generalizado: A actividade operacional tem sido excessiva e, efectivada em condições atmosféricas muito adversas, em terreno alagado e avesso, que requer esforço físico e muita exigência para a progressão, que causa muito desgaste somático, deixando-nos exaustos; as informações constantes a dizer que vamos ser atacados, já virou psicose, psicologicamente ficamos mais inseguros; a vinda do correio tem sido tão espaçado, que não era habitual, deixa-nos ansiosos; a alimentação grande parte dos dias não se pode tragar e, nós que somos tão poucos arranchados, podíamos ter alimentação mais condigna e melhor confeccionada. É muito raro o dia em que não haja vozes descontentes devido à alimentação. Ainda que eu seja um caso à parte na problemática alimentar, eu já não me queixo, por mais justas e pertinentes que sejam as minhas razões para reclamar ninguém me ouve a desacatar. Além disto foi ainda a flagelação ao Aquartelamento, o rebentamento da mina, avistou-se por duas vezes o inimigo e as supra-renais têm actuado!... Dia 30 de Setembro de 1969, veio o Capitão Manuel Ferreira de Oliveira, para render, que acabou a comissão, o Capitão José Manuel Marques Pacífico dos Reis. Hoje também regressou o Furriel de Transmissões, que chefia a minha secção, José da Silva Marcelino Martins. Para todos um abraço. José Corceiro __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6078: Convívios (122): Encontro do pessoal da CCAÇ 5 - Gatos Pretos, dia 24 de Abril em Porto de Mós (José Corceiro) Vd. último poste da série de 22 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6036: José Corceiro na CCAÇ 5 (7): Canjadude debaixo de ameaça

Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)




Guiné-Bissau > Região do Oio (Mansoa) > Jugudul > Abril de 2006 > O antigo aquartalemento das NT, em Jugudul, cujas instalações foram cedidas, a seguir à independência, ao Sr. Manuel Simões, guineense branco de Bolama, para a sua fábrica de aguardente de cana (*). Também no Enxalé havia, até 1962, uma destilaria de aguardente de cana, pertencente ao sr. Pereira, pai da Maria Helena Carvalho. Segundo a filha, o Pereira do Enxalé era um colono branco, ntural de Seia, conceituado,  respeitado pela população da região.

Foto : © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados


1. Texto do editor Luís Graça:

Na sequência do encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67) , em Coruche (**), contactou-me, por telefone,  a Maria Helena Carvalho, nascida no Enxalé, e actualmente casada, residente nas Caldas da Rainha, onde tem um um estabelecimento comercial  (Telef. 262 842 990).

Seu pai, Amadeu Abrantes Pereira, natural de Seia, era um conhecido comerciante, o Pereira do Enxalé. Era dono de uma importante destilaria de aguardente de cana, bem como de outras instalações e casas, que ainda hoje estão de pé. A família era muito estimada pela população local. 

A Maria Helena nasceu no Enxalé em 1950, se não erro. Saiu cedo de lá, creio que com sete ou oito anos, por volta de 1958, para ir estudar em Bissau e depois na Metrópole. Mas regressava nas férias grandes. As suas memórias de infância (e os seus amigos de infância) estão indelevelmente ligados a esse tempo e a esse lugar. 


Os pais acabaram por sair do Enxalé, fixando-se em Bissau, em 1962. Já havia nuvens negras que prenunciavam a chegada da borrasca da guerra. A matéria-prima (a cana de açúcar) que abastecia a destilaria começou a escassear. Os caminhos tornavam-se perigosos. O PAIGC fazia o seu trabalho de sapa. Entretanto, a mãe morreu e a Maria Helena ficou definitivamente entregue aos cuidados dos padrinhos, das Caldas da Rainha.

O património da família ainda lá está, no Enxalé, arruinado. Também tinham prédios em Bissau. Em 1989, a Maria Helena voltou aos lugares da sua infância. Ainda encontrou, no Enxalé, gente que trabalhara para o seu pai bem como amigos de infância.

Ela ainda fala do Enxalé e da Guiné com emoção. Em Coruche teve ocasião de falar, por uns breves instantes, com o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) que nos seus livros tem bastantes referências ao Enxalé. Também ouviu falar do nosso blogue, mas ainda não o conhece, não se sentindo muito à vontade na Internet. Através dos serviços da Junta de Freguesia da Lourinhã, donde sou natural, acabou por localizar-me e telefonar-me.

Aqui fica o apelo, aos nossos camaradas que passaram pelo Enxalé (incluindo o Abel de Jesus Rei, autor de Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/69), para nos fazerem chegar mais informações sobre a família Pereira e, se possível, fotos das instalações civis do Enxalé, ocupadas pelo Exército.


Outro camarada nosso que conheceu bem o Enxalé é o Henrique Matos, primeiro comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68) . Aqui ficam os contactos do nosso camarada, já tornados públicos no blogue, para a eventualidade de a Maria Helena querer falar com ele:

Residência actual: Rua dos Lavadouros, n.º 46, 2.º Esq.
Edifício República
8700-442 Olhão
Telef. 289 714 748
Telem. 963 334 811
e-mail: henrique.matos10@sapo.p

Infelizmente não temos muitas imagens nem histórias passadas no Enxalé (teremos cerca de 30 referências)… No final dos anos 60 e princípios de 70, o Enxalé, na margem direita do Rio Geba, em frente ao Xime, tinha um heliporto e um cais acostável (só utilizado na época seca).  A própria Maria Helena tem poucas fotos desse tempo.

Do ponto de vista do dispositivo militar, o Enxalé passou a  pertencer ao Sector L1 (com sede em Bambadinca, Zona Leste), a partir do último trimestre  de 1969, se não me engano: nessa época, só havia duas destilarias de cana de açúcar no sector, uma em Bambadinca e outra em Ponta Brandão ( a escassos 5 quilómetros de Bambadinca, à esquerda da estrada para Bafatá).  Por outro lado, a sua extensa e rica bolanha continuava a ser cultivada. A localidade pertencia ao regulado do Enxalé, onde a população recenseada, sob controlo das NT , era de 400 balantas e 350 mandingas e beafadas. Na localidade do Enxalé, onde existia uma loja comercial,  a população residente (cerca de 300) era considerada "colaborante na defesa".

O Enxalé era frequentemente alvo de ataques e flagelações do PAIGC.  O destacamento era apoiado pelo fogo de artilharia do Xime, aquartelamento que ficava na outra margem do rio Geba.

Em Junho de 1970, quando o BART 2917 substitui o BCAÇ 2852 no Sector L1, no destacamento do Enxalé havia um Grupo de Combate da CART 2715 (a unidade de quadrícula do Xime) bem como um esquadrão do Pelotão de Morteiros 2106. A partir de Outubro de 1971, passou a ter o GEMIL 309 e, em Dezembro de 1971, o GEMIL 310 (ambos pertencentes à Companhia de Milícias de Porto Gole). 



Fizemos (nós, a CCAÇ 12 e outras forças que integravam o dispositivo militar do Sector L1) várias operações na região compreendida pelos regulados do Enxalé e do Cuor, algumas bem duras e dramáticas, com terminus no Enxalé,como a Op Tigre Vadio (Março de 1970).

_______________

Notas de L.G.:


(**) Vd. postes de:

Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai o segundo episódio do Cristóvão de Aguiar, um escritor de tamanhão. Ainda há muita Guiné na sua obra. Como terão oportunidade de ver.
Renovo os meus pedidos, não me canso de bradar no deserto. Quanto aos anos 60, fico grato a quem se lembrar de outros autores para além de Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e Armor Pires Mota. Confio na bondade de alguém que conheça outro alguém que me possa emprestar “O Capitão Nemo e Eu” para se concluir a viagem à volta da obra do Álvaro Guerra.
Estamos já nos anos 80, o Zé Grave anunciou que anda à procura de outros açorianos, para além do Álamo de Oliveira, que o Cristóvão de Aguiar me emprestou.
Aceitam-se sugestões. Não há nenhum bairrismo nesta série de escritores açorianos: é bem possível que haja um cocktail explosivo entre ser ilhéu e ter combatido na Guiné.
Não me compete decifrar o mistério.

Um abraço do
Mário


Companhia Independente de Caçadores 666:

Nomes da miséria, a miséria dos nomes


Beja Santos

Continuamos na boa companhia do Cristóvão de Aguiar e do seu “Ciclone de Setembro”, a obra em que ele, em 1985, regressa à Guiné. A 666, o número da Besta, anda há onze meses na nomadização, um grupo de combate acode aqui, outro além. O aquartelamento está a norte de Bafatá, a Companhia Independente está integrada num batalhão de infantaria. Proceda-se ao primeiro inventário das desgraças, ao tempo: três evacuados, o mais grave com duas pernas amputadas e um falecido de todo. Tudo aconteceu três semanas após o desembarque, era uma simples operação de rotina, um treino em simulacro da realidade, ali para os lados de Nhacra, uma bricalhotice. É durante a comédia que irrompe o drama: “O guarda-costas do capitão, o soldado Barrancos, respirando valentia, despoleta uma granada ofensiva. Segura-a na mão para o que der e vier. Não é precisa. Não há inimigo à vista. Respiramos de alívio. O Barrancos também. Só que, com a atrapalhação, enfia a granada no bolso do dólman. Nunca mais se lembra que lhe havia tirado a cavilha de segurança e que, sem a mão fechada fazendo as suas vezes, ela rebenta. Demora-se no bolso apenas uns segundos, depois explode e, por simpatia, as restantes que leva ao dependuro no cinturão. Os que estão próximos levitam e voam com a deslocação do ar. O Barrancos é projectado para a bolanha ainda seca, a uns 30 – 40 metros de distância... Chego junto do Barrancos. Ele ri, ri às gargalhadas. Ao princípio ainda cuido ser choro convulsivo por causa das dores. Mas não. São gargalhadas perfurantes, acusativas lâminas... Continua rindo, bóiam-lhe nos olhos transtornados ondas de um revolto mar de loucura: Meta-me esta merda para dentro, meu furriel... Refere-se às tripas caídas por terra, dela besuntadas, esguichadas da escancarada buraqueira do baixo-ventre. Só pára de rir após a injecção de morfina, dose reforçada: Oxalá não escape, meu alferes caso contrário nunca será homem que preste”.

As críticas ao oficialato em Bissau não são poucas e a outro mais ou menos na periferia, e mesmo a norte de Bafatá. Cristóvão de Aguiar não é peco no arranjo das imagens e na descrição das misérias temporais, como se segue: “A encenação psicológica dos oficiais da repartição número não sei quantos, nem interessa, descambou no que se acabou de relatar (episódio do soldado Barrancos). Podem todos limpar as mãos à parede esburacada da consciência. Do mesmo modo, pode também o capitão de Buruntuma as mandar limpar ou cortar, como na sentença bíblica. Pertencia ele ao Batalhão Ás de Ouros, nome de guerra do Bat. Inf. 557. Valente Infante com o curso do Estado-Maior, resolveu um dia integrar-se numa operação realizada nos matos circundantes de Canquelifá. O nosso capitão Farias, como responsável pelo gabinete de operações do Batalhão, não tinha qualquer obrigação de acompanhar as tropas em acções no mato. Mas quis dar o exemplo. E deu-o como só um capitão altamente qualificado o pode dar”. No itinerário, rebenta uma mina anti-pessoal debaixo do jipão do oficial de operações do Ás de Ouros. Não houve estragos, apenas estoirou um pneu. Galhardo, o oficial escreveu em letras de imprensa e deixou no buraco: Turras, arranjai minas mais fortes; o Ás de Ouros pode com esta e muitas mais; cabrões de merda. A viagem prossegue, a operação prevista, por razões espúrias, será cancelada. Há viaturas que regressam a Buruntuma, uma delas vai a reboque da outra, avariada, lá seguem vinte homens na escolta, metade em cada uma, regressam com grande alívio, sempre é menos um combate a averbar no calendário da guerra. De súbito, um estrondo, lá na direcção em que seguiram as duas viaturas. O capitão do Estado-Maior enviou o narrador para saber o que se passou, caso tenha sido coisa séria que mande uns tiros para o ar. Avistam-se as duas viaturas imobilizadas. Alguém trás a má notícia: estão todos mortos na primeira viatura, na segunda não há ninguém e com isto atroam os céus e a terra com o sofrimento de quem assiste ao espectáculo daquela carroçaria abarrotando de carne ensanguentada. Não é possível qualquer identificação, tal o número de corpos em minúsculos destroços. Aqui, um pormenor: “O papelinho do nosso capitão do Ás de Ouros ainda se encontra, enfiado no pau, a meia haste, no fundinho da cratera causada pela mina anti-pessoal. A viatura transformada em açougue ficou imobilizada mesmo à sua ilharga”. O capitão do Estado-Maior quer os cadáveres alinhados, assim se cumpre. Os que tinham desaparecido foram encontrados em Piche: “Fizeram cerca de 20 quilómetros em pouco mais de hora de meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura”. O capitão Farias do Ás de Ouros estava prostrado: com tal desastre, lá se ia ao galheiro a promoção a major.

Muito há a contar desse tempo de nomadização: tiros em Pirada, o alferes Leite estraçalhado por um crocodilo quando anda à pesca, um soldado que passou o que era possível passar em Madina do Boé e que caiu à água a bordo do Niassa, chegamos assim ao destacamento de Dunane, situado num mamelão entre Piche e Canquelifá, meio hectare de terra rodeada de arame farpado. O que era preocupação transforma-se no tédio do isolamento. Apareceram lá as senhoras do Movimento Nacional Feminino, o nosso alferes atreveu-se, numa brejeirice, a pedir a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, para sua surpresa foi-lhe enviada pouco tempo depois. Felizmente que os cães dão companhia e ajudam a reconstituir a normalidade: a Andorinha desbarrigou, deu à luz lindos cachorros, é o grande acontecimento em Dunane. E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6114: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (5): As colunas auto de Aldeia Formosa- Gandembel

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 25 de Março de 2010:

Dando o meu testemunho de “Estorias” das colunas auto de Aldeia Formosa – Gandembel e vice-versa, em que participei e/ou tive conhecimento de algo de realce.


As minhas memórias da guerra - V

Guiné - As colunas auto de Aldeia Formosa-Gandembel

Ponto 1
- A coluna-auto que se realizara de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, em 20 de Agosto de 1968 e na qual fui incorporado, em que é extraída da História da Unidade a descrição que se segue:

Durante a escolta à coluna de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foram detectados 02 fornilhos e 05 minas A/P, tendo-se procedido ao seu rebentamento por não darem condições de segurança no seu levantamento. Uma das armadilhas foi accionada provocando um ferido às N/T.

Das lembranças tenho, que desde o início da marcha da coluna até Chamarra, fomos instalados “comodamente” nas viaturas e a partir desse lugar apeamo-nos para prosseguir, sendo organizado o sistema defensivo inerente a cada situação (foto 1). Quando da formação da escolta apercebi-me que tropas de elite Pára-quedistas que iam integradas, ainda não estavam elucidados no seu todo e nomeadamente nas precauções a tomar numa coluna-auto deste tipo. Assim, um elemento dessa Unidade de elite perguntara-me como proceder, disse-lhe que ele estava a experimentar os meus conhecimentos para me dar algumas dicas, ao que me retorquiu que era a sério, porque tratava-se da primeira coluna que se incorporava e necessitava de informação.

Foto 1 > Guiné > Região de Tombali > Subsector de Aldeia Formosa > 1968 > Eu e o meu grupo, levando a arma de forma nada ortodoxa e ia tomar posição.

Dizendo-lhe que deveria seguir afastado cerca de dez metros dos camaradas e na mesma linha, e nunca fazendo ajuntamentos porque seria um alvo apetecível para o In, levaria a arma apontada para o lado oposto à forma como levasse aquele que lhe ia na vanguarda e marchando sempre pelo trilho do rodado das viaturas. Quanto ao resto seria com ele, porque estava treinado e como um dos melhores do mundo, não tenho lembrança do seu nome, mas a sua naturalidade é de uma cidade conhece bem.

Iniciou-se a marcha, indo eu com a minha fé na folhinha com a oração da Nossa Senhora de Monserrate e quanto às ocorrências havidas já foram antes mencionadas.

Chegados a Ponte Balana, o Comandante da Coluna deu a permissão para que vários elementos da CCaç 2381, não se deslocassem a Gandembel a fim de evitar que neste Aquartelamento houvesse grande concentração de pessoal e por sua vez os que ficavam montavam segurança.

Tendo eu ficado e dando uma olhadela pelo reduto de Ponte Balana, as lembranças que me ficaram são de que situava-se em lugar isolado, no lado esquerdo da estrada, junto à ponte e na margem direita do rio que lhe davam o nome, era bunker/fortim com sistema defensivo e cercado por duas fiadas de arame farpado que estavam armadilhadas.


Ponto 2 - Da História da Unidade também foi extraída a actividade, relativa à coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel e que no regresso se deu uma emboscada entre Chamarra e Mampatá, no dia 22 de Agosto de 1968:

Assim, no decorrer da Coluna Auto Aldeia Formosa - Gandembel, foram detectadas 27 minas A/P e das quais 15 foram rebentadas por não oferecerem condições de segurança. Tropa Pára-quedista coadjuvava as nossas forças de segurança à coluna, detectaram e levantaram no mesmo local mais 37 minas A/P. No regresso entre Chamarra e Mampatá, grupo In estimado em 70 elementos emboscou as NT com fogo de RPG-2, metralhadoras pesadas e armas automáticas, causando 05 feridos graves (01 Caçador Natuvo) e 02 ligeiros, e estragos ligeiros numa viatura. Efectuada batida foi encontrado um elemento In morto, variadíssimos rastos de sangue e material diverso.

Que subjacente à mesma presenciei situações de forma pertinente e que foram fundamentais para contrariar a intenção do In e tendo-lhes causado baixas:

Por conseguinte a coluna auto marchara de Aldeia Formosa para Gandembel e logo apareceram os Bombardeiros T-6, os quais foram estacionar na pista e aguardando para que em caso fosse necessário dar-lhe a devido apoio.

Foto 2 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Pista de Aviação > 1968 > Parque de estacionamento das aeronaves que demandavam esta Pista.

Só que o T-6 com dois ninhos de foguetes (dois tambores Lança Rockets) avariou-se e foi preciso vir uma DO 27, transportando um Sargento Mecânico e equipamento, para efectuar a devida reparação (tendo presenciado e oferecido os meus préstimos).
Concluída que fora a reparação e após, porque a coluna estava de regresso e a chegar a Chamarra, por isso a DO e o T-6 com as bombas, levantaram voo seguindo para a Base Aérea 12 – Bissalanca. Contudo outro T-6 ainda ficara estacionado no parque, talvez porque o Piloto tivesse que aquecer o motor e/ou tratar de algumas anotações.

Assim, o In provavelmente foi informado que as aeronaves para apoiar a coluna tinham partido, suponho que foi só aguardar no intuito da surpresa, em zona considerada segura para as NT e que agora seguiam montados nas viaturas, mas a Avioneta “DO 27” é que fez confundir o In.

Conquanto a coluna fora emboscada, ouvia as explosões das granadas, o matraquear das metralhadoras pesadas e tendo eu conhecimento que há pouco saíram de Chamarra. Como um T-6 ainda estava na pista e estando eu com o jipe dirigi-me para lá e entrei em diálogo com o Piloto (que estava dentro do cockpit) e informando-o da situação, ao que me disse que por via rádio também estava a ser informado do mesmo e que de imediato iria levantar voo e dirigir-se para aquele local. Solicitara-me para que me posicionasse junto da Tabanca e do Quartel (onde havia acessos transversais), de forma a evitar a entrada na Pista, de pessoas e/ou animais (foto 3).

Foto 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) 1968 > Panorâmica da Pista de Aviação, estando eu no jipe, vimos um bidão pintado marcando o limite da pista e assim como lateralmente a estrada que ligava a Mampatá.

E em poucos minutos, por contraste com o aproximar do pôr-do-sol, era visível o T-6 estar em acção na zona de intervenção e efectuando por várias vezes voos picados, lançando de rajada os Rockets, apanhando o In de surpresa e pondo-o em debandada.

Caberá ao Piloto Aviador do T-6, que teve esta intervenção, se houver mais algum facto a mencionar e ainda com mais a propósito das situações havidas.


Ponto 3 - Noutra coluna para Gandembel em que fui incorporado, o qual deu-se por rotatividade de serviço e realizada no dia 08 de Outubro 1968, e consta na História da Unidade da CCaç 2381 o seguinte:

Durante a escolta à coluna - auto de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foi detectada e levantada por forças desta CCaç 2381, 01 mina A/P. Foram encontrados vestígios In, assim como rastos de sangue deixado por elementos In, que ao aproximarem-se do Destacamento de Chamarra caíram numa armadilha montada pelas NT e accionando-a. A coluna realizou-se sem consequências.

Para eu entender o que era o Aquartelamento de Gandembel, foi necessário lá entrar e houve uma grande tensão, indaguei se havia algum conterrâneo e/ou a ver o seu sistema defensivo. Não identifiquei ninguém e relativamente às instalações e aos abrigos eram de uma forma geral de tipo de construção meia enterrada (diferente de outras que conheci), somente as frestas e as coberturas com duas camadas de cibos sob terra e chapa de bidão é que pouco mais se elevavam do solo, havia as normais fiadas de arame farpado em toda a volta do Aquartelamento e claro está entre as mesmas estavam as armadilhas.

Pelo que me disseram no local, a artilharia de defesa, em muitos dos ataques In só eram accionadas no início, tal era a profusão e concentração de fogo In.


Ponto 4 - Pela última vez a 28 de Novembro de l968, incorporei uma coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel – Aldeia Formosa, na História da Unidade somente consta, sem consequências (foto 4).

Foto 4 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > Estrada de Gandembel > 1968 > Eu, algures entre Chamarra e Ponte Balana, quando a actividade In já tinha amainado.

Nesta data, fui pela segunda vez ao mítico Aquartelamento de Gandembel, houve tempo para conversas e ai tive conhecimento de várias situações sendo algumas adversas para “Os mártires de Gandembel”: - Que aquando de um ataque In, com baterias de morteiros e canhões s/r, instalados nas proximidades da vedação de arame farpado e tendo havido elementos do In que chegaram à vedação no lado esquerdo de quem entrava na porta de armas, pretendiam o assalto e ai morreram (não era só café e/ou a bala do branco que não matava..!).

Também nesse ataque, um dos abrigos sofrera três impactos na mesma zona, por granadas de canhão s/r e perfurando-o, ocasionando vários feridos e a morte de um Alferes;

- De quando alguns camaradas da CCaç 2317, efectuavam apoio logístico a uma coluna de Aldeia Formosa – Gandembel, no pontão de Changue Laia, caíram num campo de minas, ocasionando 4 mortos e 2 feridos. A minha Unidade CCaç 2381 “os Maiorais” ia integrada nas forças de segurança dessa coluna. Foi encontrado posteriormente um morto (Furriel Miliciano) e levantado por camaradas da minha companhia, as ossadas foram colocadas em campa, no cemitério de Bissau.

À margem das colunas é de salientar o que me ficou na memória, aquando eu estava em Aldeia Formosa, penso que foi no mês de Setembro de 1968, e que supostamente era mês de aniversário do PAIGC, em que perdi a contagem, do numero de ataques a Gandembel, pois sofrera mais de meia centena (era um “Regabofe” de dia e de noite);

A situação acalmou no Subsector de Aldeia Formosa, só após tropas de elite Pára-Quedistas, sediadas em Gandembel/Aldeia Formosa, serem preponderantes em várias operações de surpresa e com sucesso junto à fronteira da Guiné Conakry, de terem aniquilado praticamente dois Bi-grupos In e capturado imenso material de guerra, de que parte esteve exposto em Aldeia Formosa e assim como um ferido In capturado (estava em maca, fora dito que tinha os testículos esfacelados, pelo aspecto deveria ser quadro do PAIGC e recusava-se a falar).

Do que mencionei sobre a CCaç 2317 “Os Mártires e heróis de Gandembel,” e que tenho como referência, é uma pequena e singela descrição, relativa às condições difíceis que enfrentavam estes valorosos camaradas e sendo a ponta de um iceberg.

Por força das circunstâncias “descrito em outra estória” estive a vê-los chegar a Buba e ficamos acomodados na mesma camarata.

Neste Sector não tive conhecimento de quem passasse tanto as passinhas do Algarve (as voltas que os figos dão, desde a apanha e até que sejam torrados no forno).

Foto 5 > Guiné > Algures no Sector de Buba > 1968/69 > São os amigos da CCaç 2381 (uma Secção) em posição de expectativa, identificando Furriel Mil Tareco, seguido do 1.º Cabo Enf Jorge Catarino.

São lembranças que estavam cheias de pó e guardadas no Baú, tratam-se de algumas versões em segunda mão, mas contadas no local e como quem conta um conto altera um ponto, mas a sua essência está toda escrita.

Com cordiais cumprimentos a todos os bloguistas,
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas,
CCaç 2381 ”Os Maiorais”
_________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5857: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (4): Operação Grande Ronco (2)

Guiné 63/74 - P6113: Convívios (212): Pessoal da CART 2412 - "Sempre Diferentes", no dia 15 de Maio de 2010, em Fátima (Jorge Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (ex-Fur Mil Art da CART 2412, Bigene, Guidage, Barro, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Amigo e camarada

Não querendo sobrecarregar o teu meritório trabalho, agradeço que dentro das possibilidades,
publiques no blogue da Tabanca Grande o seguinte comunicado/convocatória:




CONVOCATÓRIA

Convocam-se todos os ex-combatentes da CART 2412 "SEMPRE DIFERENTES" que estiveram na Guiné em 68-70 em Bigene - Guidage - Binta - Barro, a estarem presentes no encontro / convívio anual que se realiza a 15 de Maio em Fátima e a relembrarem, comemorando, os 40 anos do nosso regresso a Lisboa no fim da comissão, que viajando (de lado!!!) no Carvalho Araújo, atracou no Cais de Conde de Óbidos, em 14 de Maio de 1970.


A concentração será às 10:00 horas no recinto do Santuário (Hotel Fátima).

O almoço de confraternização está previsto para o Restaurante "PÉROLA DO FÉTAL" em Celeiro a 10 Kms (+ou-) de Fátima na estrada Fátima/Batalha.




Para quem estiver interessado e para facilitar o transporte, está previsto um autocarro que sairá de Santo Tirso.

Para mais informações e marcações contactar os organizadores do evento:
Moura 22 415 30 87 e 96 924 03 61
Godinho 252 852 325 e 91 750 82 92

...e é só

Obrigado pela atenção e pelo trabalho.

Um abraço
cumprim/jteix
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6111: Convívios (125): 6.º Almoço Convívio do Pel Mort 4574 em Penacova, dia 22 de Maio de 2010 (António Santos)