segunda-feira, 4 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16267: Nota de leitura (854): Os Livros do Povo - A Guiné Portuguesa em 1917, Livraria Profissional, Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Foi mesmo inesperado, entrei numa biblioteca à procura de uma coisa, saiu-me outra. Além de inesperado, vê-se que o divulgador tem ideias consistentes sobre a Guiné, a nossa presença espúria, a pressão francesa, paciente, até ocupar o Casamansa, dando-nos depois as sobras.
O que é curioso é ficarmos saber que afinal a Convenção Luso-Francesa foi bastante lisonjeira connosco já que a nossa ocupação de facto era avaliada entre os 55 e 62 quilómetros quadrados, o que dá para meditar sobre a fragilidade da presença portuguesa.

Um abraço do
Mário


A Guiné Portuguesa em 1917

Beja Santos

Entra um sujeito na Biblioteca de Arte da Gulbenkian à procura de materiais do escritor Fausto Duarte e descobre uma brochura carregada de interesse, chama-se “A Guiné Portuguesa” e fazia parte de Os Livros do Povo, quem a escreveu foi A. Loureiro da Fonseca, 1.º Tenente da Administração Naval. Custava cinco centavos.


Vê-se que o oficial da Armada consultou conscienciosamente a principal bibliografia existente ao tempo, e fez trabalho enxuto, deu provas de ser um bom divulgador, como se pode certificar adiante. Diz ele que apenas se sabe ao certo que antes de 1581 já existia no rio de S. Domingos duas feitorias, uma em Cacanda, na margem esquerda, e outra na margem direita, mais a montante, em Buguendo. No rio Geba havia já portugueses estabelecidos numa aldeia e no rio Grande havia feitorias em Santa Cruz de Guinala e em Biguba. Em 1603, alguns missionários capuchinhos iniciaram as conversões entre os gentios de Bissau e em 1607 o régulo de Guinala cedeu aos portugueses a Ilha de Bolama. Gonçalo de Gamboa, capitão de Cacheu, fundou entre 1643 e 1645 a povoação de Zinguinchor. No ano de 1687, os franceses, que já então se tinham apoderado do comércio do Senegal, fazem a tentativa para a fundação de um forte em Bissau, insistiram em 1700 mas foram repelidos pelo Capitão Rodrigo da Fonseca Oliveira. Em 1828, os franceses apossaram-se do Ilhéu dos Mosquitos, à entrada de Casamansa, fundaram a feitoria de Carabane e ocuparam Selho. O governo de Lisboa procurou responder com o estabelecimento de um presídio em Bolor.

A cobiça britânica igualmente se manifestou, com a tentativa de uma feitoria em Bolama, seguiram-se hostilidades que culminaram com a sentença do presidente dos EUA Ulisses Grant que reconheceu a legitimidade dos direitos portugueses. Dá-se então um processo de expansão territorial ao longo de período do século XIX: posse da Ilha das Galinhas, ocupação de Ganjara e Fá, fundação de um presídio em S. Belchior, mas também se intensificou a presença em Buba e deu-se a ocupação definitiva de Bolama em 1870.

Como balanço da Convenção Luso-Francesa de 1886 foi reconhecido a Portugal o direito à posse de um território cuja superfície abrange 36.125 quilómetros quadrados quando, na verdade, a nossa ocupação de facto pouco mais iria, em 1886 do que Lopes de Lima em 1842 avaliava entre 55 e 62 quilómetros quadrados.

As primeiras autoridades portuguesas que houve na Guiné foram os feitores de rio, simples autoridades fiscais. Mais tarde, cerca de 1615, é que essas atribuições se tornaram extensivas aos assuntos da justiça e da guerra, acumulando então os feitores as funções de capitães-mores e de ouvidores. Em 7 de Dezembro de 1853 deu-se a criação do Distrito da Guiné Portuguesa.

A Guiné ocupa uma área que corresponde aos distritos de Beja, Évora, Lisboa, Santarém, Leiria e o concelho de Penela. Loureiro da Fonseca disserta sobre os aspetos físico, orográfico, hidrográfico e geológico da província. Surpreendeu-me quando ele escreve que o rio Geba e o rio Corubal se encontram em Ponta Volvo, na verdade o local tal como eu conheci e é hoje conhecido é Ponta Varela. O autor não se coíbe de dar a sua opinião sobre as potencialidades comerciais e as virtualidades económicas da região. Diz ele que conquanto a Guiné, pelas suas condições climáticas e pelas suas produções deva ser classificada economicamente como colónia de exploração agrícola, tem sido desde o tempo dos Descobrimentos apenas quase como colónia de comércio.

Primeiro, os moradores de Santiago, a quem desde 1466 pertencia o exclusivo do resgate nos rios da Guiné e, mais tarde, pela liberdade de comércio, portugueses e estrangeiros. Falando das trocas comerciais dirá que o país que mantinha mais relações comerciais com a Guiné era a Alemanha. A razão do predomínio do comércio estrangeiro deve-se a que nem a metrópole produz o que a Guiné necessita nem consome, se não em pequena quantidade, os géneros de exportação da colónia. Os tecidos de algodão metropolitanos não podem competir em preço com os estrangeiros; o tabaco é de origem americana ou holandesa e as nozes de cola são fornecidas pela Serra Leoa.

Apenas nos géneros alimentícios a metrópole concorria com 50% da importação total e nos vinhos de pasto a metrópole mantinha a primazia. Mas a curiosidade de Loureiro da Fonseca nunca nos deixa de surpreender. Diz existir na Guiné, sem ser objeto de qualquer exploração, o poilão. Segundo ele, existiam também com abundância laranjeiras, limoeiros, mangueiras, anoneiras, cajueiros e bananeiras; o ananás seria igualmente abundante, de fruto pequeno mas muito saboroso. Faz o reparo de que a flora da colónia merecia ser convenientemente estudada e afirma que no Sul se encontra o elefante e um pequeno antílope de nome fritambá. É um autor que tem as suas ideias formadas quanto às comunicações para um futuro mais radioso da colónia. Diz ele que a Guiné se presta a ser a via de comunicação mais fácil entre a região montanhosa do Futa-Jalon e o oceano. Essa região encontra-se fora da zona de influência do caminho-de-ferro francês, todos os seus produtos vão procurar o porto de Boké, no rio Nuno, sendo forçados a atravessar em diagonal o nosso território de Sueste. E sugere que valia a pena concluir uma linha férrea desde a fronteira, em Cadé, até Bissau, todo o comércio do Futa-Jalon obteria vantagens se existisse essa linha. E bem curiosas são as suas conclusões neste livrinho de divulgação em que ele fala de noções de tudo. Diz ele que a Guiné não é uma colónia de povoamento apropriada à colonização branca e isso afasta a ideia de estabelecimento de qualquer corrente de emigração de indivíduos, a partir da metrópole. E surpreende-nos com o seu juízo veemente e categórico: o europeu na Guiné tem de restringir-se ao papel do dirigente e, à parte as funções burocráticas só pode encontrar colocação no comércio como empregado de escritório, como técnico ou como capataz de trabalhadores indígenas. É pois muito limitado o âmbito dentro do qual os europeus ali podem exercer materialmente a sua atividade, o que de modo algum significa que nos devamos desinteressar da colónia. Era isto o que à data da publicação, 1917, o 1.º Tenente Loureiro da Fonseca, entendia sobre o passado, presente e futuro da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16256: Nota de leitura (853): Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16266: Blogpoesia (457): Dois poemas sobre Aveiro (Francisco Gamelas, autor de "Outro olhar - Guiné 1971-1973", Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp.)



Ria de Aveiro > Ílhavo > 25 de agosto de 2010 > Um velho moliceiro que morreu na praia



Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Francisco Gamelas,com data de 3 do corrente


[Foto à direita: Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73). Engenheiro eletrotécnico de formação quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973". Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust. Preço de capa 12,50 €].

Bom dia Luís.


Também para partilhar contigo as emoções fortes e um tanto   indefinidas, após a releitura do poema que publicaste no blogue [O Relim não é um poema] (*). Poema  forte, como não podia deixar de ser,  como um grito de revolta, como um  dedo apontado ao absurdo, ao estupor, ao poder absoluto que esquece as  pessoas, usando-as como peças descartáveis nos seus jugos de poder e  afirmação. Contudo, evidenciando toda a mediocridade de que eram  feitos, toda a inconsequente impulsividade de quem pode e manda sem  correr qualquer risco.

Estou completamente solidário com tudo o que  escreves, apesar de nunca ter estado na situação que descreves, mas  que compreendo, quanto mais não seja, por proximidade. O meu grito,
engrossa o teu.

Junto reenvio os dois poemas sobre Aveiro, já corrigidos. (**)


Um grande abraço e obrigado pela partilha.

FG


Dois poemas sobre Aveiro
(depois de ler Entre sono e abandono, de Luís Serrano)


por Francisco Gamelas


I


Neblina
Água
Algas
Barco

Muito lentamente
uma forma de onda a quebrar
emerge da surpresa.

Traz no mastro
o quadrilátero duma vela
bamba.

Abriu-se uma cortina
para o moliceiro passar.

Pressente-se o respirar do silêncio.

Ao rés das águas
o verde saturado das algas
desliza
pairando nos braços etéreos
da neblina.

No espelho de água
nascem riscos em vê
ondulantes
que se alongam.

E a miragem vai passando
fantasmática
com um braço a acenar

até que a neblina
a volta a engolir
repondo a quietude da madrugada.

Os pássaros ainda dormem.

Junho de 2016



II



Água
Sol
Vento
Safra


Já só moram
nas memórias dos velhos


os inúmeros alvos seios
cristalizados
oferecendo ao céu
a sua nudez
dum puro branco alucinado
que as mãos do vento
acariciavam
gemendo baixinho


na dinâmica geometria
dos espelhos
morava o mistério
do parir das águas
fecundadas pelo sol
e assistidas pelo vento


é um cada vez
mais frio manto
de neblina
que vai cobrindo
o sono senil
do abandono
do esquecimento
em que dissolveram
o génio
a vontade
a persistência
do marnoto


resta
o crocitar agudo
de ave
a rasgar o silêncio
da recordação
enamorada
magoada
esvaecente


as sombras
espreitando o desistir
da luz
vão estendendo
sobre o esquife da memória
um lençol
de penumbra
até que a noite
caia
e cubra tudo de breu.


Junho de 2016

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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 2 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16259: Manuscritos(s) (Luís Graça) (86): O Relim Não é um Poema (à memoria do médico Joaquim Vidal Saraiva 1936-2015)

(**) Último poste da série > 3 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16262: Blogpoesia (456): "Mais uma vez..." e "Nova moeda de troca geral", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 63/74 - P16265: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte VI: singela homenagem ao etnólogo e antigo diretor do Museu do Dundo, João Vicente Martins (n. 1917)



Dedicatória autografada de João Vicente Martins, no seu livro «Contos, Fábulas e Lendas dos Tutchokwe do Nordeste de Angola», ao seu amigo e antigo colega da Diamang, José Manuel Matos Diniz. 

Foto (e legenda): © José Manuel Matos Dinis (2016)-.Todos os direitos reservados




Foto à direita:  José Manuel Matos Diniz, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, 
nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales;
depois do seu regresso a casa, a Cascais,
em janeiro de 1972, vindo da Guiné,
rumou até Angola, em maio de 1972,
para ir viver e trabalhar na Lunda,
na melhor empresa angolana na época,
a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo;
aqui casou (por procuração),
aqui nasceu o seu primeiro filho:
desafiado por nós justamente
a falar da sua experiência angolana 

em meia dúzia de crónicas memorialísticas,
,aceitou galhardamente o desafio
e está a cumprir o prometido.] (*)




1. Texto enviado em 29 de junho último pelo José Manuel Matos Diniz:

Caros Luís e Carlos,

Anexo nova descrição de memórias sobre o tempo que passei na Diamang. Iniciei a actividade em Maio/72 na região de Cassanguidi, onde permaneci por cerca de 6 meses. Entretanto, em Andrada ocorreria uma situação anómala, e fui deslocado para lá, que era o maior centro técnico da Companhia, pelo que vou despedir-me deste primeiro contacto com a vida de mineiro com as duas memórias seguintes:
Com um abraço, JD.


2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) n (José Manuel Matos Dinis): Parte VI:   singela homenagem ao antropólogo e antigo diretor do Museu do Dundo, João Vicente Martins (n. 1917)



Um belo dia de trabalho fui surpreendido pela chegada de um estranho ao Munguanhe. Não pertencia ao grupo de pessoas do meu conhecimento, mas deslocava-se num carocha que era o carro tipo utilizado quase em exclusivo (para acautelar alguma excepção), pelos empregados da Companhia, pelo que me suscitou curiosidade. Enquanto ele estacionava, saía eu do escritório de onde o tinha visto em aproximação lenta.

Tratava-se de um cavalheiro de meia idade, de calças e com um panamá a cobrir-lhe a cabeça. Seria de algum serviço central, pois o restante pessoal técnico, com excepção dos directores, usavam calções. Dirigimo-nos um ao outro, cumprimentei-o com um sorriso a que ele correspondeu, e apresentei-me. Com uma voz baixa e pausada respondeu nos mesmos termos, e assim perguntei-lhe a que título devia a honra da sua presença. 

Era o senhor João Martins, do Museu do Dundo, que se revelou de grande afabilidade, e perguntou-me se tinha alguns "coup de points" para lhe entregar. Surpreendido, respondi que não, nem sabia da existência de tais materiais no âmbito do trabalho da mina. Contou-me então, que um colega anterior a mim teria dado conta da existência daquelas peças pré-históricas no cascalho tratado na lavaria. Que por um acaso, o trabalhador que exercia actividade no controle do cascalho que a correia transportadora levava para as "pans", e que antes de crivado podia saltar da correia e afectar o funcionamento dos rolos por onde ela passava, tinha sido instruído para, detectando aquelas pedras de instrumentação das primeiras manifestações civilizacionais, as retirar e guardar num balde até uma próxima visita.

De facto havia o balde e tinha conteúdo. Removeram-se as pedras lascadas de vários tamanhos e materiais para um saco, o senhor Martins agradeceu ao trabalhador o cuidado que tivera, trocaram sorrisos e cumprimentos. No regresso à viatura convidei-o a entrar e a servir-se de água, que ele aceitou alegando que a que tinha no carro já estaria demasiado quente. Ali fiz algumas perguntas sobre a actividade que exercia, e fiquei a saber que era formado em antropologia e o conservador do Museu. Referiu que ali existira uma civilização com cerca de dez mil anos, donde provinham aquelas peças. Depois falou durante um bocadinho sobre a actividade do Museu, e os métodos que seguia na investigação permanente, revelando-se uma pessoa muito interessada sobre essas vertentes histórico-sociais. Convidou-me para o visitar no Dundo, despedi-mo-nos, e cada um foi à sua vida. 

Mais tarde vim a ter relações mais frequentes e amigáveis com este homem do mato, profundo conhecedor das funções que exercia, não só pela formação académica, mas também, porque anteriormente fora prospector durante vários anos e várias regiões, ao mesmo tempo que constituía família com uma senhora local e estudava todos os dias durante as horas livres.

Se isto permite revelar, que ao menos um português foi profundamente dedicado às populações locais, pois foi ainda professor em horário pós-laboral e sem acrescento salarial de trabalhadores que frequentavam o liceu, deixou uma obra de inegável valor científico, e contribuíu para o prestígio internacional granjeado pelo museu que dirigia abnegadamente. Vim a relacionar-me com o casal de filhos, ambos já licenciados e com extrema simpatia, sem manifestações de amargura em relação aos acontecimentos que os obrigaram a sair de Angola, mas com sentido crítico e construtivo. Em Portugal, o senhor João Vicente Martins prosseguiu nas suas tarefas de ensinar e estudar, pelo que, sucessivamente, concluíu um mestrado e, posteriormente, o doutoramento. [Sobre Vicente Martins, vd. texto de Sílvia Milonga, "Dedicação aos povos Lunda". 28/01/2002]

Era um grande humanista, de trato fácil e sempre interessado, tranquilo, e generoso, que no seu livro «Contos, Fábulas e Lendas dos Tutchokwe do Nordeste de Angola» [recolha e e tradução de João Vicente Martins ; comentário de Herald de Sicard, Lisboa, Universitária, 2002,  307 pp.] fez a seguinte dedicatória: «A todos quantos passam a vida trabalhando e ou lutando em prol da ciência, do progresso, da liberdade, da paz e do bem-estar da humanidade». 

Um grande português que fazia por valorizar os povos de Angola de modo despretensioso, enquanto alguns outros contribuíram para a sua devastação desgraçada, a coberto de clamarem pela liberdade e pelo ostracismo dos colonos, coisas de que não mostraram conhecimentos consolidados. [Sobte o Museu do Dundo, ver foytos antigas, do portal www.diamang.com]

Mudando de assunto: naquelas paragens muitas pessoas nunca viram diamantes. Quando chegavam ao contacto de familiares e amigos, normalmente durante as férias metropolitanas, e eram questionadas de como são as pedras preciosas, não sabiam responder e deixavam uma sensação de suspeita, do género não queriam falar sobre o assunto. Talvez por isso, em Cassanguidi houve duas ocasiões em que fui abordado para satisfazer tal curiosidade. 

A primeira vez foi o médico local, cuja mulher não se cansava de lhe pedir para que ele movesse influências. Compreendi o senhor e alertei-o para o regime de proibição sobre tal intento, ao que ele referiu estar informado, mas a mulher não lhe dava descanso. Avaliei a situação, e disse-lhe para se deslocar à mina um pouco antes do fecho das instalações da lavaria onde eu estaria na lavagem de "jigas" e carregamento do concentrado.

Assim aconteceu. Quando a senhora se aproximou da instalação, logo os "capitas", elementos do tal exército privado e eventuais informadores levantaram-se surpreendidos e vieram para mais próximo do que era costume. Passei então a mão com alguma suavidade sobre o concentrado existente na jiga, para não provocar o deslizamento para a botija de transporte à estação de escolha, e quase acariciei as pedras até descobrir um diamante, com cerca de meio quilate. Coloquei-o na mão, e a senhora logo estendeu a mão dela para o apanhar, mas, propositadamente, deixei-o cair na jiga e logo se infiltrou com o material ainda à vista, tendo em conta o seu maior peso.

Depois tive que explicar à senhora que não há muitos diamantes naqueles volumes de concentrado, e não teria outra oportunidade, mas já os tinha visto em lugar diferente de uma montra de joalharia. 

Outra pessoa que terá revelado idêntica curiosidade, foi um padre das relações de um primo meu colega, ainda menos experiente que eu, que trabalhava por turnos numa lavaria. O Carlos pediu-me para facilitar a satisfação do desejo daquele embaixador de Deus, ao que correspondi pela deslocação à lavaria em que trabalhava. O turno acabava pelas 22H00, e aprontei alguma coisa de comer e cervejas. Não chegou a acontecer o mesmo, porque nos atrasàmos na conversa e o padre esqueceu-se ao que ia. 

Em nenhuma daquelas circunstâncias cujas regras violara, não me chegou ao conhecimento qualquer admoestação. É que a presença de estranhos era rigorosamente proibida, e tanto a mulher do médico, como o padre, não eram pessoas do staff, nem estavam possuidores de autorização especial para aquele efeito.

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domingo, 3 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16264: Convívios (757): XXII Encontro do Pessoal da CCAV 2748, levado a efeito no passado dia 4 de Junho de 2016 (Francisco Palma, ex-Soldado Condutro Auto)




1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Palma (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAV 2748 / BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), fala-nos do XXII Convívio do pessoal da sua Unidade, levado a efeito no passado dia 4 de Junho de 2016.


DIA 04 JUNHO 2016

XXII ENCONTRO DO PESSOAL DA CCAV 2748 / BCAV 2922

CANQUELIFÁ, 1970/1792

Apesar de passados 44 anos após o regresso, as saudades são sempre imensas, o tempoe sempre curto para reviver as lembranças boas e os momentos de perigo, bom como os camaradas tombados ou feridos em combate.

Ficamos todos ansiosos para que passe mais um ano e que o novo Encontro tenha lugar.

Obrigado aos presentes e aos que por motivo de força maior não puderam comparecer.

Camaradas e amigos, até ao próximo ano.

Francisco Palma e
Luís Encarnação











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Nota do editor

Último poste da série de 25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16237: Convívios (756): XIV Encontro do pessoal da CART 2520, levado a efeito no passado dia 14 de Maio de 2016, em Fátima (José Nascimento)

Guiné 63/74 - P16263: Blogoterapia (278): A minha casa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 26 de Junho de 2016 o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos este texto.


Por mais que viaje pelo mundo, embalado no sonho que promete elevar-me à felicidade, ou buscando apenas aquilo que mais anseio para minha realização, volto sempre a casa despido e ansioso. É na sua paz e aconchego que consigo encontrar-me de novo. Janela de oportunidades sempre aberta, pela qual se projetam, de mãos dadas, as realidades e as utopias, que são a razão da minha forma de viver. O meu mundo.

Nada melhor que sair de casa por uns tempos. Vaguear pelos vales e montanhas da vida, para apreciar quanto vale o ninho construído com as penas encontradas no caminho, e encasteladas uma a uma, como quem edifica uma fortaleza. Não há chuva nem vento, tão pouco tempestades, que o derrubem.

Instalado na minha casa, dou alimento às folhas verdes que cobrem em abundância o tapete das recordações e nelas me alimento, caminhando sobre elas ao encontro do futuro. Sigo, expectante, os símbolos dos tempos que apontam para percursos de paz e de concórdia entre os homens. Local por excelência para acolher o mundo que me abraça e me seduz, nela celebro as vitórias que a vida me proporciona, e procuro o unguento para aliviar as dores provocadas com os desaires sofridos.

Como que se confunde comigo, cantando alegremente quando sente que estou a trilhar caminhos de felicidade. Acolhe-me de braços abertos nos momentos menos felizes. Sinto o seu silêncio, quando se deixa invadir pelos acontecimentos que me desinstalam da vida, por não conduzirem ao mundo com que sonhei: as guerras e as fomes que avassalam a orbe terrestre; as intempéries e as catástrofes naturais; as ações dos homens ambiciosos e sem escrúpulos que maltratam, das mais variadas formas, esta hospedaria global, que a todos pertence, mas de que alguns se assenhoraram. Minha casa, meu mundo…

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15921: Blogoterapia (277): Velhos são os trapos (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

Guiné 63/74 - P16262: Blogpoesia (456): "Mais uma vez..." e "Nova moeda de troca geral", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Mais dois belíssimos poemas do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), dos vários que nos vai enviando ao longo da semana, e que nós recebemos com prazer:


Mais uma vez...

Mais uma vez me vejo em Roses.
Prenda linda que o Mediterrâneo dá.
Praia alegre, com tês africana,
Presa à Europa,
Começo da serra.

De verão há sol.
De inverno há neve.
E o vento é forte,
Quando lhe dá na gana.

Fui ver o mar.
Como vai azul.
O céu é verde
A brilhar ao sol.

Que rico colar de oiro
Que esta praia tem.
Tantas voltas dá Como em carrocel.
Uma manta de ondinhas
Fica-lhe tão bem.

Reluzem lá ao longe
Tantas casinhas brancas.
Parecem lencinhos brancos
A acenar de paz.

Tantos barquinhos leves
Em sementeira azul,
Dançam sobre as águas,
Sua alegria é grande
Por nos ver aqui...

Ramblamar em Roses, 3 de Julho de 2016 9h33m

lindo amanhecer de sol

Jlmg Joaquim Luís Mendes Gomes

************

Nova moeda de troca geral

Nem de papel nem de metal
Será a nova moeda.
Será pesada e eterna,
E seu estalão terá o cunho exacto
da verdade.

Sem cotação nas bolsas.
De curso livre,
Valerá igual e sempre
Porque é fruto da verdade.

Tudo paga à hora.
De mão para mão.
E nunca falta.

Encherá os bolsos,
Sem excepção,
De toda a gente.
Sua fonte é a alma
De cada parte.

Já tem efígie.
O seu nome é a bondade...

Berlim, 30 de Junho de 2016 7h50m

dia de sol duvidoso

Jlmg Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16238: Blogpoesia (455): "Das cordas dum violino..." e "Nunca eu vacile...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 63/74 - P16261: Álbum fotográfico de Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, 1969/71) - Parte I: Um batizado em Bambadinca, para o qual foi convidado o pessoal do serviço de saúde e dos reabastecimentos... Os padrinhos da criança, filha de mãe libanesa, foram o alf mil António Manuel Carlão e a professoa Dona Violete da Silva Aires

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Foto nº 1 >  Foto de grupo, tirada à porta da igreja de Bafatá (pormenor)


Foto nº 1 B > Possivelmente, os pais (na segunda fila, do lado direito),  avós (nma terceira fila, de óculos escuros) e familiares e amigos da criança, mais o padre, missionário (em primeiro plano, à direita). A jovem mãe seria de origem libanesa.


Foto nº 1 > Foto de grupo, tirada à porta da igreja de Bafatá 



Foto nº 1 C > Foto de grupo, tirada à porta da igreja de Bafatá (pormenor): o Fernando Andrade Sousa é o primeiro da esquerda; o Joaquim Vidal Saraiva (alf mil médico) é o segundo da última fila, de óculos escuros e boné, Há mais 3 militares, fardados, que não identificamos. À esquerda do do Vidal Saraiva, pode ser o José Carlos Lopes, o ex-fur mil dos reabastecimentos...



Foto nº 1 D > Os padrinhos e a criança (ao colo da professora  Dona Violete)


Foto nº 2 > O almoço do batizado na casa dos pais da criança, em Bambadinca... Pelo que se depreende da visualização da imagem, a cerveja Cristal era muito popular na época... Se calhar, era por ser a mais barata... Os comerciantes de Bambadinca também estavam muito dependentes da tropa para efeitos de logística e segurança: os barcos civis que chegavam a (e partiam de) Bambadinca tinham segurança militar, pelo menos em dois pontos do rio Geba: Mato Cão e Ponta Varela...


Foto nº  2 A > O almoço do batizado na casa dos pais da criança, em Bambadinca (pormenor): um civil, em primeiro plano (talvez irmão ou cunhado da mamã libanesa), e o alf mil médico,Vidal Saraiva, já à civil.


Foto nº 2 B >  O almoço do batizado ba casa dos pais da criança, em Bambadinca: O Fernando Andrade, de bigodinho, é o terceiro... (Ele já não se lembrava do bigodinho, à margem do RDM...). 


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCS&BCAÇ 2852 (1968/70) > Batizado de um filho de um casal de comerciantes de Bambadinca, para o qual foram convidados alguns militares da CCS/BCAÇ 2852 e da CCAÇ 12. Por volta de finais de 1969, A mãe da criança era libanesa, o pai possivelmente era tuga (Foto nº 1 B)...


Fotos: © Fernando Sousa (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Uma cena algo insólita, no TO da Guiné, numa zona de guerra, em Bambadinca: uma festa de batizado para a qual, como se costuma dizer, só vão os convidados... Mas,  como todas as "fotos de família", tem algo de comovente... Pergunto-me: quem são estas pessoas, por onde andam agora... Algumas conheço-as, foram meus camaradas... E dos civis, meus vizinhos, posso ter uma vaga lembrança... Afinal,  morámos perto, uns dos outros, durante, quase dois anos, de julho de 1969 a março de 1971... Espantoso: vivia a 100 metros da escola, nunca vi, "ao vivo", a professora dona Violete...

O Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf da CCAÇ 12, 1969/71), que vive na Trofa,  já não se lembra bem de toda a gente, muito menos dos civis. Diz que o batizado era de uma criança da "libanesa" que vivia em Bambadinca numa das casas junto à rampa de acesso ao quartel, possivelmente do lado direito, talvez em frente à casa e loja do Fernando Rendeiro (que ficava do lado esquerdo), e que eu frequentava com alguma regularidade, tal como o bar do Zé Maria... Os Rendeiro não aperecem aqui. Possivelmente o jovem casal, os pais da criança, aparecem,  na foto nº 1 B, ao centro, tendo a atrás os avós  e possivelmente um tio (o mais forte).

A cerimónia religiosa foi em Bafatá, onde a foto de grupo (nº 1) é tirada. O padre era missionário, posssivelmente italiano (foto nº 1 B). Não posso garantir que era italiano, os missionáriso católicos italianos tiveram uma relação difícil com as autoridades portuguesas. Alguns foram presos ou expulsos (o missionário de Catió, o de Samba Silate....).

Os padrinhos da criança foram o alf mil António Manuel Carlão, ainda solteirinho (?), sem a sua Helena que há de vir morar para Bambadinca, e a única professora, branca, que havia em Bambadinca, a Dona Violete da Silva Aires (que segura a criança, e que era solteira, nascida em Cabo Verde; vivia no edifício da escola, com a mãe). (Foto nº 1 D).

O Fernando lembra-se de ter sido convidado, mesmo sem conhecer (nem privar com) a família. Dos militares, da CCS/BCAÇ 2852 e da CCAÇ 12 (além do Fernando, haveria um outro), terão sido convidados o pessoal dos serviços de saúde e do reabastecimento. O fur mil enf João Carreiro Martins não aparece aqui, o que não admira: ele recusava-se a sair do arame farpado...  Aparece o alf mil médico Joaquim António Vidal Saraiva (1936-2015), acabado de chegar de Guileje em novembro de 1969 (foto nº  1 C) e que possivelmente terá feito o parto da mamã libanesa...

As fotos devem ser de finais de 1969.E acho que merecem generosos comentários. Se o Vidak Saraiva não tivesse morrido o ano passado (*), possivelmente estes fotos iriam ficar esquecidas no álbum do Fernando Sousa que pediu, a instâncias minhas,  a um sobrinho para as digitalizar... Obrigado aos dois. (LG)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16251: In Memoriam (260): Joaquim [António Pinheiro] Vidal Saraiva (1936-2015), especialista em Cirurgia Geral, ex-alf mil med CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, nov 1969/jun 1970) e HM 241 (Bissau, 1970)... Está sepultado em Valadares, V. N. Gaia. Passa a ser nosso grã-tabanqueiro nº 720, a título póstumo.

Guiné 63/74 - P16260: Parabéns a você (1105): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16254: Parabéns a você (1104 ): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

sábado, 2 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16259: Manuscritos(s) (Luís Graça) (86): O Relim Não é um Poema (à memoria do médico Joaquim Vidal Saraiva 1936-2015)


À memória de Joaquim Vidal Saraiva  (1936-2015), ex-alf mil médico (Guileje, Bambadinca e Bissau, 1969/71)


Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Extractos de: História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina. Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos: (i) Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Comb, reforçada pelo Pel Caç Nat 52; (ii) Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb; (iii) Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106.

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.


Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): 

COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.



2. O Relim não é um poema



por Luís Graça



[à memória do médico 
Joaquim António Vidal Saraiva, 1936-2015]




Participaste nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.

Um passeio a Madina/Belel, 
a sudeste de Sara / Sarauol,
um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,

Porto Gole e Enxalé,
e à navegação no Geba Estreito,

no Mato Cão.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado 
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais seguro e barato:
pretos de primeira da tua CCAÇ 12
e dos Pel Caç Nat 52 e 54,
mais alguns brancos de segunda,
os açorianos
da CCAÇ Vinte e Seis Trinta e Seis

e um esquadrão de morteiro 81.
Levámos dois cantis de água por cabeça.

O que é um gajo pensa,

aos vinte três anos,
de Missirá a Salá 
e daqui até Sancorlá,
em bicha de pirilau,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,

lá na cabeça do império, 
a fustigar-te as trombas ?
Bendita chuva, ou chuvinha,
a primeira do ano,
que é um refrigério;
maldita a trovada,
ligada ao automático,
a disparar de rajada,
que te desperta os terrores mais antigos
da tua espécie.


Um gajo não pensa nada,

enquanto caminha toda a noite,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais uma operação,

no final do tempo seco...
Era março, marçagão,
mas na tua terra não,
que em abril, sim, 
é que as águas são mil.


Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(ver Operação Lança Afiada
em que um em cada seis fora evacuado).


Caminhaste, caminhámos, 
penosamente,
toda noite,
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã,
às dez em ponto,
para fazer o piquenique.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.

Cortaram-nos as voltas,
os gajos do PAIGC
(não te apetece dizer IN),
cercaram-nos pelo fogo.
E, quanto a Deus, Alá e os irãs,
mais as abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exatamente
de que lado é que estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
às catorze horas da tarde, 

no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...


Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Pois que saia, e  forte,
a bazucada, a morteirada,
com o código da morte!

Nós, quem ?

O patrão da Dornier, do PCV,
da tropa-macaca,
a quem as moranças estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio,
com ciclovia e tudo,
uma autêntica autoestrada
para as "bikes" dos homens do mato,
oferta da Suécia com amor.
Ainda não havia os Strelas,
a temível arma dos arsenais
do inimigo,
que haveriam de pôr o tuga
em sentido, em terra,
ou a pau, quando voava...


Alguém puxou dos galões dourados
e decidiu fazer um golpe de mão,
ou melhor: mandar fazer,
que tu nunca viste nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão,
p'ra ficar bem no álbum de fotografia do

batalhão,
e impressionar o Caco Baldé,
o homem grande de Bissau...


Um senhor da guerra qualquer,
do batalhão de Bambadinca,

que gostava de andar de Dornier, 
de cu tremido,
e que queria chegar a tenente-coronel,
e a coronel
e a general,
o que era perfeitamente normal
para quem escolhera a carreira das armas.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
ó oinca,
que lavras a tua bolanha,
e que talhas com a tua catana
a piroga onde te afogas ?
Quem é que comanda esta tropa-macaca,
ó mandinga,
ó beafada
ó fula,
ó minha gente ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
qual rolo compressor
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.


Entretanto, já alguém,
o nosso "tigre de Missirá",
tinha ido buscar, de heli,
o reabastecimento de água
a Bambadinca.
Alguém dos nossos (preto ou açoriano) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
e estilhaçou um dos vidros laterais.
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o "tigre", que é vadio mas não voa,

ficou retido no Xime.


A verdade é esta, camaradas:
o PCV falhou, 

o plano de operações,
o heli falhou,
a cadeia de comando quebrou-se,
ou porventura alguém quis matar
o "tigre de Missirá",
afinal o elo mais fraco da cadeia.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o senhor comandante do PCV
foi dormir nessa noite na sua cama em Bambadinca.



No regresso ao Enxalé,
depois de uma segunda noite no mato,
sofremos brutalmente,
tu sofreste,
que a dor não dá
para partilhar,
sofreste brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
a insolação,
as miragens,
o absurdo,
a desumanidade.

Tiveste miragens,
como no deserto do Sará,
bebeste o teu próprio mijo,
esgotado o soro,
mastigaste as ervas do orvalho,
esgotada a água,
desesperaste,
perdida a esperança,
bebeste sofregamente a água choca dos charcos,
amparaste os mais desgraçados do que tu,
transportaste os feridos.
consolaste os mais sofridos,
fizeste as tuas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus

que aprendeste quando eras cristão e crente 
e temente a Deus 
e tinhas amor à Pátria.

Não deste nenhum tiro de misericórdia, 
mesmo cristãmente, 
aos moribundos que não chegaram a haver,
felizmente,
mas odiaste o PCV,
Bambadinca,
as fardas, 

os galões,
a tropa, 

a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné,

o Amílcar Cabral,
os senhores da guerra
e os seus títeres.
Odiaste até... 
o dia em que nasceste.

Um homem,
mesmo o cristão que tu és,
tem que odiar, saber odiar,
para sobreviver,

em qualquer guerra,
tem que odiar o inimigo
e tem que odiar o seu general.

Camarada
que fizeste comigo a Op Tigre Vadio,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim:

o relim não é um poema,
um poema épico ou dramático,
é sim, tão apenas,
um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.


O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos,
das miríades de abelhas kamikazes
que arrancaste do cachaço,
que arrancámos do couro cabeludo,
dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel,
dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados dos elementos pop
que morreram à hora da sua sesta,
carbonizados,
o relim faz economia de tudo que é acessório,
das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome,
a sede,
a lassidão do corpo,
a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para chorares, de raiva.

Não, nunca mais iremos esquecer Madina/Belel.
tu, eu e mais 250 homens, combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
o "capitão diabo"
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China ou em Cuba.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
do batalhão,
o nosso médico,
Vidal Saraiva (tinha esquecido o teu nome,
valente alferes miliciano médico),
que o "tigre de Missirá"
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação
e ferimentos em combate...

Pobre doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficaste em terra
(nunca te tratámos por tu, a não ser hoje),
perdeste a boleia do heli
e conheceste o inferno do Cuor,
com os teus trinta e três anos feitos.

Agora, que morreste,
lá no Olimpo,
ao lado do velho Hipócrates, teu mestre,
deves estar a sorrir,
com um sorriso bonacheirão,
benevolente,
ou com uma gargalhada desbragada,
destas peripécias cá na terra...

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de bridge ou de king
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
vê lá tu,
é coisa que se apalpa, outrossim,
e que em último caso serve,
bem melhor do que o capim,
para enxugar a pele,
para limpar... o cu.

Luís Graça

Bambadinca, abril de 1970 / Alfragide, junho de 2016
 _____________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16165: Manuscrito(s) (Luís Graça (85): Peço desculpa...

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16258: Brunhoso há 50 anos (8): O Ciclo do Pão (1) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos, desta feita com a primeira parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 8 - O Ciclo do Pão (1)

Na década de cinquenta do século passado, que é até onde a memória me consegue transportar na minha viagem ao passado, Brunhoso vivia de uma agricultura rudimentar que pouco diferia da agricultura praticada pelos antigos egípcios, gregos, romanos e outros povos mediterrânicos.

Era uma agricultura, sem recurso a máquinas que se baseava na utilização intensiva da força humana e dos grandes animais domésticos: bois, vacas, gado muar e asinino. A tecnologia mais avançada que utilizava, para além da charrua, era o arado e o carro de bois de que já se vêm em gravuras do antigo Egipto do tempo dos faraós. A charrua com funções semelhantes às do arado, era toda em ferro, mais pesada portanto e com uma relha maior que rasgava a terra com mais profundidade e conseguia lavrar em solos mais duros, que veio como tal permitir aumentar a área de cultivo possibilitando o desbravar de muitos terrenos incultos. A charrua é considerada um avanço tecnológico da Idade Média, que terá sido mais difundida após a revolução industrial da Europa com a criação de fábricas metalúrgicas que as fabricavam em série como acontecia na fábrica de Tramagal no Ribatejo, donde eram as que eu conheci, nesses tempos. Para além da melhoria tecnológica que representou a invenção da charrua, terá havido, como é natural outras melhorias que a marcha dos tempos sempre traz, como melhores selecções de sementes, um melhor conhecimento dos solos e a criação de melhores adubos para os tornar mais férteis. Um adubo muito utilizado e publicitado por paredes de vilas e até aldeias, nos anos cinquenta e algumas décadas subsequentes era o famoso "Nitrato do Chile".

Charrua do Tramagal
Com a devida vénia ao Blogue Alcoutim Livre

Depois das sementeiras em fins de Setembro, meados de Outubro, conforme o tempo o permitisse, novo ciclo do pão recomeçava. O lavrador nunca tinha descanso e a terra, essa deusa antiga, exigia dele uma atenção e um trabalho constante. O meu amigo Joaquim "Passarinho", já com 86 anos, diz muitas vezes que a “fazenda” (conjunto das propriedades agrícolas de que o lavrador tinha que pagar anualmente a décima nas repartições da Fazenda Pública) gosta de ver o dono. Para preparar as terras para as sementeiras do próximo ano, os lavradores começavam logo a decrua, que era a primeira lavra com as tais charruas de ferro da fábrica de Tramagal, puxadas por juntas de bois, vacas, mulas ou machos que rasgavam a terra cheia de ervas e restolho já ressequido. O tempo da decrua, que decorria no Outono, que por não haver colheitas, era uma estação do ano triste e temida pelos trabalhadores da terra, pois antes da apanha da azeitona que só começava em Dezembro as jeiras eram escassas.

Venda do Pinheiro - Publicidade ao Nitrato do Chile em azulejo
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A “vima”, que era a segunda lavra, fazia-se normalmente na Primavera, nos meses de Março, Abril e Maio. Não havia muito rigor nestas datas pois tanto a decrua como a vima dependiam muito das condições atmosféricas que podiam trazer tempo seco ou chuvas e condicionavam as fases da preparação dos campos de cultivo. Podia até acontecer que se fizesse alguma decrua na Primavera por não ter havido condições para fazê-la antes, nesses casos a vima seria já mais próxima da sementeira.

Alguns lavradores, quando a vima era feita logo no inicio da Primavera, “escardavam” também os campos, que era uma última lavra que tinha por objectivo arrancar as ervas daninhas que entretanto tinham crescido. Um dos sinónimos de escardar é eliminar os cardos, que nalguns terrenos cresciam em abundância.

As sementeiras começavam em Setembro e acabavam em Outubro. As sementeiras eram pois feitas ao entrar o Outono, nesse tempo de paz em que duração dos dias e das noites se equilibravam e o sol enviava raios mais oblíquos com um calor suave que iluminavam a terra com uma claridade que alargava mais os horizontes, quando as folhas caducas dos castanheiros, das parreiras e de outras árvores e arbustos de folha caduca, na despedida, se iam transformado em tonalidades suaves de verde, castanho, amarelo, rosa e vermelho. O tempo das sementeiras era um tempo que se adequava ao meu temperamento e sensibilidade. Um tempo calmo, ameno e em que os horizontes de montanhas se alargavam e tornavam mais visíveis, fazendo crescer os sonhos em evasões imaginárias.

Nesse tempo tínhamos uma junta de bois e uma junta de vacas. O meu irmão mais velho lavrava com a junta de bois e eu com a junta de vacas, enquanto o meu pai semeava o trigo. De manhã ao sair de casa a minha mãe como de costume, dava-nos o saco da merenda, feito de linho ou estopa, com o pão, presunto, toucinho, chouriço, por vezes queijo ou frango. Lembro-me desses dias de sementeira como de solenidades místicas com homens e animais empenhados no mesmo esforço comum, sendo o nosso pai o “Xamã” que "espalhava" o cereal (trigo ou centeio) com ar sério e compenetrado. Pelo meio-dia, por ordem dele, parávamos e escolhíamos uma sombra para merendar. Nunca esqueci um dia, teria 16 ou 17 anos, em que fizemos a sementeira duma terra do Zimbro. Há dias ou momentos que recordamos para a vida inteira sem sabermos explicar o porquê desse registo. A mim tem-me acontecido algumas vezes ao longo da vida. Desse dia de sol esmaecido, de fins de Setembro, recordo quase tudo com uma fidelidade fotográfica. Além da visão dos homens e dos animais e das suas tarefas até recordo o sabor do toucinho que fazia parte da merenda. Não me lembro de ter comido um naco de toucinho como aquele. Depois de ter sido curado pelos frio seco de Inverno e resguardado do calor intenso de verão na despensa fresca do rés-do-chão, o toucinho estava curado e feito, como um bom vinho, que afinal até lhe fazia companhia no mesmo lugar. Talvez tudo isto me tenha acontecido por ter experimentado a bênção da terra que o lavrador recebe quando comunica com ela, eu que era um lavrador sazonal, de tempos de férias.

Normalmente as terras ficavam de "POUSIO", pelo menos um ano. Não havia nenhum pacto de regulação de zonas, no entanto, para acautelar o pastoreio dos animais, os lavradores procuravam andar na mesma folha que os outros, embora houvesse quem assim não fizesse, se não tivesse alternativa. Isto significa que metade dos campos cultiváveis da aldeia estavam cobertos de cereal enquanto os da outra metade, de pousio, estavam a ser preparados para as próximas sementeiras.

Depois das sementeiras o trigo e o centeio tinham uma gestação de nove meses, tão demorada ou mais como as dos filhos dos lavradores, pois as colheitas só seriam feitas nos meses de Junho ou Julho do ano próximo. As searas iam crescendo lentamente, passado um mês não teriam mais de um palmo. Chegados os frios de Dezembro ou Janeiro, um pouco mais crescidas para poder suportar as geadas e a neve desses meses. Um provérbio muito conhecido, a experiência acumulada dos lavradores tinha tantos provérbios mensais e anuais, que este era mais um a juntar aos outros: “Cresce o trigo debaixo da neve, como o carneiro debaixo da pele”.

Com a chegada da Primavera ainda com muitas chuvas mas com mais sol a aquecer os campos de trigo e centeio, as searas iam crescendo e ondulando ao vento em aguarelas de tons de verde sobre verde. Pelos fins de Maio os campos de cereal iam adquirindo uma cor aloirada, sinal de que o grão e a palha estavam quase maduros e prontos a ser colhidos. Com as ceifas, que conforme o tempo atmosférico, teriam lugar nos meses de Junho e Julho, começavam os trabalhos que durante três meses congregavam o esforço de todos os homens e muitas mulheres da aldeia.

Olho para trás, para esses tempos antigos, e revejo esses homens, alguns ainda adolescentes, a andar ligeiros, curvados sobre a terra, cada qual com três assucadas, com a seitoura na mão direita, a ceifar o trigo e centeio, horas e horas debaixo desse sol transmontano de Julho que abrasa a terra como o fogo do inferno. Tenho recordações que são como flaches da memória e volto a ver esses quinze segadores, nesse dia quente de Julho, na Cortinha das Maias, todos magros e curtidos pelo sol e pelos ventos, com o suor a cair do rosto em pingas de água, como se fossem lágrimas. Os mais experientes revezavam-se ainda na tarefa de “atar” sempre difícil e dolorosa, ainda mais dolorosa que segar. Era preciso que alguém fizesse esse trabalho difícil com responsabilidade e, ao mesmo tempo, que os “molhos” fossem todos mais ou menos iguais entre si. Os segadores além de cada qual assumir uma responsabilidade individual pelo acompanhamento na marcha ritmada das assucadas tinham também a responsabilidade colectiva de fazer um trabalho perfeito mesmo que para isso alguns tivessem que se sacrificar mais. Eu, era o filho do patrão, que tinha por missão um trabalho bem mais leve que era distribuir água, que transportava num cântaro de barro, a quem dela necessitasse.

CEIFEIROS - Painel de azulejos policromos, pintado por Eduardo Leite segundo cartão de Dórdio Gomes, produzido na Fábrica da Viúva Lamego, Lisboa. Átrio da Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja. 
Com a devida vénia ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora

 As refeições eram os únicos momento de descanso que tinham durante todo o dia. Gostava de as fazer com eles, sempre abundantes e com boa qualidade para repor as energias gastas e compensar o organismo do esforço despendido:
Cerca das 9,30, comíamos sopas de pão centeio que levavam alho, colorau e azeite rijado. Os homens agrupavam-se cinco ou seis, de volta de uma caçarola, munidos de uma colher para comer esse repasto matinal. Gostava muito dessas sopas que a minha mãe só fazia para os segadores.
Ao meio-dia era o almoço que podiam ser batatas guizadas com carne de borrego ou carneiro;
Às quatro da tarde era a merenda, que podia constar de toucinho, queijo, saladas de alface e tomate, e às oito horas, já em casa do patrão, o jantar que muitas vezes era bacalhau cozido ou guisado com batatas.

Nesses tempos em que a dureza do trabalho era sentida por quem a prestava e era bem visível para quem a pagava geralmente todos os lavradores tratavam os trabalhadores com boas comidas, melhores até, falo dos lavradores médios, do que aquela que comiam diariamente eles e as suas famílias, em suas casas.

Todas as refeições acompanhadas de algum vinho pois era consensual, entre os trabalhadores, que o patrão que dava pouco vinho não prestava.

Os principais cereais que se semeavam em Brunhoso, que cresciam e amadureciam ao mesmo tempo, por vezes lado a lado, eram o trigo e o seu meio irmão o centeio, mais escuro e considerado menos nobre, como se fosse um bastardo do mesmo pai, mas apesar disso com um porte mais altivo. Tanto com um como com o outro as nossas mães faziam os grandes pães cozidos em grandes fornos aquecidos com lenha de giesta e esteva, que se conservavam quinze dias em óptimas condições, guardados nas despensas das casas. Lembro-me da minha mãe, afogueada pelo esforço e pelo calor, depois de ter metido todos esses grandes pães no forno, os abençoar, fazendo o sinal da cruz, na sua entrada, com a mesma pá com que os tinha metido. O pão era esse alimento sagrado que nunca devia ser pousado doutra forma que não fosse aquela em que assentou quando foi cozido, que quando deixávamos cair um pedaço ao chão tínhamos que o beijar, que não se devia estragar ou usar em brincadeiras.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)