segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18977: Notas de leitura (1097): Relendo uma obra soberba - "Vindimas no Capim", por José Brás; Publicações Europa-América (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julno de 2016:

Queridos amigos,
Quis o feliz acaso ou a fortuna que descobrisse em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, na manhã de domingo, 12 de Junho, num mercado onde se vendem, roupas usadas, cds, mil imensos bibelôs, agrícolas biológicos, pão feito por alternativos alemães, o prodigioso "Vindimas no Capim", que em tempos aqui exaltei e pela mesmo ordem de razão aqui volto a ovacionar.
Na verdade, naquele década de 1980, os combatentes, chegados aos 40 e 50 anos, deram para falar de si com uma estonteante sinceridade. Assim aconteceu, no caso da Guiné, com Álamo de Oliveira, Cristóvão de Aguiar e José Brás.
A brutalidade do romance de José Brás é por vezes arrepiante, uma brutalidade que lembra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz ou "Olhos de Caçador", de António Brito. O testemunho violentíssimo de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota tem outras vertentes, há também muita brutalidade (recorde-se a descrição inultrapassável do ataque a Mansabá) mas perpassa pelo seu livro um doloroso lirismo de um herói a quem se lhe nega aquela estranha noiva de guerra. José Brás pode orgulhar-nos por este seu livro soberbo, exclamativo, nunca escamoteando o jargão da caserna.
Abençoada a hora em que me decidi em ir aquele mercado de velharias e reencontrei o nosso admirável José Brás.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1)

Beja Santos

Um acaso feliz permitiu-me adquirir um exemplar de “Vindimas no Capim”, estava a fazer uns dias de férias em Pedrógão Pequeno e foi um bálsamo reencontrar-me com a prosa, encontrada num mercado de velharias que funciona todos os domingos em Vila Facaia. O que é muito bom lê-se com imenso prazer, o que é muitíssimo bom, numa segunda ou terceira leitura, e distante que estamos da descoberta de uma gema preciosa, permite ver a originalidade, cerca de três décadas depois da sua publicação.

O que há de verdadeiramente distinto neste romance avassalador do nosso confrade José Augusto dos Santos Brás? Em seu nome irá falar Filipe Bento, oriundo de um meio rural, onde pontificava o machismo, a rudeza, a praga. Tempos não muito distantes, mas Filipe é solene a desvelar o teatro de origem:
“Vocês talvez não saibam, mas quem já teve a profissão de cavador, digo a profissão, não o passatempo de horas livres em pequena horta de brincar, o ofício mesmo, de levantar às cinco, cinco e meia da matina, ir à porta do patrão, caminhar os quilómetros necessários para estar no rego ao nascer do Sol, almoçar às dez, recomeçar às onze, quando não às dez e três quartos, jantar da uma às duas e largar com o pôr-do-sol, caminhar outra vez para casa, para, no dia seguinte e nos milhares de dias seguintes, repetir o gesto e isto dito assim, num repente, pode até enganar quem lê e da vida de cavador não teve notícia nunca, ou se teve foi só de raspão”.
Adrede a esta apresentação, vem um texto antológico, não é a primeira vez que o reproduzo e com muita ufania, admiração por quem o escreveu:
“Uma enxada não é só aquele pedaço de ferro retangular, moldado em meia-lua de bicos afiados num dos lados menores e encimada de um pequeno anel chamado ‘olho’, no outro lado. A enxada compra-se completa com mais dois ferros: o pescaz e a cunha.
E o que é isso do pescaz e da cunha?
Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mis ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata, semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo”.
Tudo começou para Filipe Bento em S. Jerónimo do Ermo, neste preciso mundo rural, não se pode falar da tropa e sobre a guerra sem ter de se falar de outras coisas.

E depois vem a parada, a ordem unida, a disciplina, andar de quartel em quartel antes de embarcar no Niassa, o destino é o Sul da Guiné. Não há artifícios para a linguagem, o nosso furriel vai para Cutima Fula e passado um mês tudo se revirara na sua vida mas que o leitor não se acanhe para além da sua preparação naquele mundo áspero, onde pontifica a virilidade, aprendeu muito com o professor Leiria, e o seu filho militar, mais a mais major, aprendeu que existia a Legião Portuguesa, que havia maroscas, pequenos e grandes poderes entre oficiais, sargentos e praças, vagomestres ladrões.

Este o pano de fundo, a superfície preparatória de uma viagem que começou em Bissau até Buba e que se espraiou por vários locais do Sul da Guiné. É uma linguagem coloquial, um tu cá tu lá com o leitor, ele que se aguente cada vez que é necessário discorrer sobre uma expressão pertinente, caso de “no cu de Judas” que ele tinha lido num livro celebérrimo de Lobo Antunes.
E o discurso que se segue é frenético entre consonâncias e dissonâncias das diferentes guerras que cada um viveu, como segue:
“A porra toda é que se para o Lobo Antunes os cus de judas eram os casinos e os dancings da Ilha de Luanda, onde kamanguistas, comerciantes do planalto, roceiros, cauteleiros da Baixa, gente se ocupação definida, se babava nas mamas de velhas putas lisboetas e cariocas, vociferando contra os cabrões que não lhes deixavam “tratar da saúde aos pretos”; se para ele os cus de Judas eram Malange e a baixa do Cassanje, o algodão que os agricultores não podiam vender se não à empresa que lhes fornecia os fatores de produção e a que estão presos por dívidas eternas, aumentadas ano a ano, colheita após colheita, e por leis do governo de Lisboa, pela vigilância de sobas e cipaios, da O.P.V.C.D.A. e da PIDE; se para ele os cus de Judas eram o Leste de Angola, Gago Coutinho, Luso, Chiúme, Marimba, Cambo; se para ele os cus de Judas eram o deserto de areia e a chana, onde soldados Ferreiras e cabos Pereiras deixavam as pernas e as tripas e militarzinhos quase crianças se enfastiavam daquela merda de morte em vida e disparavam em si próprios; se para o Lobo Antunes os cus de Judas são os percursos entre Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, o servilismo de sobas e de gentes gingas, a explosão da carne da lavadeira Sofia, a cama da hospedeira da TAP no Bairro Prenda, para mim cumpriu-se os cus de Judas naquela confusão de selva e água, de batelões e LDGs, de CUF e libaneses, e comércio de mancarra com agricultores igualmente esfarrapados, igualmente ligados a dívidas e a leis e a vigilâncias de cipaios e de traidores e de milícias e pides; o meu cu de Judas foram Buba e Cutima-Fula, e Nhala e Colibuia e Cumbijã e Cajamba e Mampatá e Saltinho e Madina e Gandembel e Gadamael-Porto e Cacine, tudo terras de morte de raivas contidas no calor das tardes vazias, nas garrafas de uísque e de gin, e de conhaque e do caralho, nos ataques aos quartéis, nas emboscadas, na humidade linfática daquele ar irrespirável entre as dez e as quatro da tarde; na descarga do intestino revoltado; para mim, os cus de Judas eram as idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados na lama das bolanhas, todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vagomestre e do bar com comes-e-bebes que depois se vomitavam na caganeira, quando o estômago aguentava a corrida, ou logo ali à saída da porta se a golfada saltava sem aviso”.

E prossegue a sua toada a estabelecer diferenças, que também as havia, por exemplo a proveniência da mina, seja anticarro ou antipessoal, até houve um caso em que a mina lhe estava destinada, quis a roda da fortuna que lerpasse o cabo Júlio, e por hoje aqui ficamos com tal pungente descrição:
“Os olhos do Peniche abriam-se espantados. Ali aos pés tinha o volume do resto daquilo que fora o corpo do Júlio, meio aterrado, com os cotos dos braços e das pernas a fumegarem estorricados, apontados ao alto. A pele da barriga esticara, rebentando, e mostrava um amontoado de carvão. Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também”.

E agora vamos vê-lo a viver em Cutima-Fula.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18967: Notas de leitura (1096): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18976: Parabéns a você (1492): Luís Gonçalves Vaz, Amigo Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC - 1983/84)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P18969: Parabéns a você (1491): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

domingo, 2 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18975: In Memoriam (319): Uma porção de Guiné - em homenagem ao Joaquim Carlos Peixoto que hoje nos deixou (Joaquim Mexia Alves)

Monte Real, 8 de Junho de 2013 > Joaquim Carlos Peixoto e sua esposa Margarida, no VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande


Do nosso camarada Joaquim Mexia Alves chegou-nos hoje esta mensagem com um texto dedicado ao Joaquim Carlos Peixoto, que hoje nos deixou:

Meus amigos
Fui apanhado de surpresa!
Escrevi num repente um texto, ditado pelo coração, que publiquei na nossa Tabanca do Centro e aqui vos envio para dele fazerdes o que muito bem entenderdes.

Com um abraço amigo e francamente sentido do
Joaquim
  

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UMA PORÇÃO DE GUINÉ

Joaquim Mexia Alves

Chega uma pessoa de um almoço domingueiro em família e abre estas novas tecnologias de comunicação e depara-se com uma notícia: Morreu o Joaquim Carlos Rocha Peixoto!

De repente, do meio do calor da Marinha Grande, chega o calor da Guiné e sinto-me transportado para aquelas terras ou sei lá eu bem para onde!

Pergunto-me se o conhecia assim tão bem e chego à conclusão de que não, mas a sua bonomia, a sua simpatia, o seu olhar sereno, confiante, camarigo, ligado ao da sua mulher, Margarida, transporta-me para uma realidade que queria longe de mim e que é o saber que nós, os camarigos, vamos partindo, e que não sei se deixamos história, se deixamos sentimentos, se deixamos alma lusa, para motivar os vindouros, que já cá vão estando!

O Joaquim Peixoto era a serenidade em pessoa, pelos menos para mim, e na sua partida, chora-me o coração de camarigo, mas anima-se a minha alma de cristão: Ao homem bom Deus recebe sempre no seu amor!

Sirvo-me da expressão popular e desejo que a “terra lhe seja leve”, porque aos homens bons Deus toma-os nos seus braços e leva-os para a eternidade!

A ti, meu amigo, camarigo, Joaquim, como eu, junto-me em oração à tua Margarida, à tua família, e espero que lá no “assento etéreo a que subiste”, nos relembres sempre junto daqu’Ele que é a vida, para que também nós a ti nos juntemos um dia, fazendo de um bocadinho do Céu, uma porção de Guiné!

Marinha Grande, 2 de Setembro de 2018
Joaquim Mexia Alves
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Nota do editor

Vd. poste de 2 de Setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P18973: In Memoriam (318): O nosso amigo e camarada Joaquim Carlos Rocha Peixoto (1949-2018), ex-Fur Mil da CCAÇ 3414 (Guiné, 1971/73), faleceu hoje... O corpo estará, esta noite, em câmara ardente na Igreja das Freiras, em Penafiel, e as exéquias fúnebres serão amanhã, às 15 horas

Guiné 61/74 - P18974: Blogues da nossa blogosfera (102): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (21): Palavras e poesia



Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


O SEGREDO

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


O mais belo segredo da minha vida
Onde o horizonte foge contra o tempo
É só nosso e de mais ninguém
Onde as sombras negras desaparecem
Ele procura ver-me na janela dos teus olhos
E tenta falar-me no silêncio falso do desdém.

Mais além veste-se de negro
De sol enorme e de pão quente
Do eco de tudo à volta do teu ninho
De purpúreos reflexos de sol poente
Do vermelho de sangue em coração de gente.

Não consigo ver-te tão ausente
Sem calor no descampado que aqui mora
Sem o dilúvio do desejo permanente
Que adormece nos verdes rios do meu segredo
E acorda sempre ao romper da aurora.

Tudo me encaminha para os teus olhos
Quando te sentas à porta da minha idade
Nesta entrada iluminada de enganos e algemas
Mas o segredo que devora a vida
Presa entre as mãos abandonadas e serenas
Veste de mentira a beleza da verdade.

Como criança quase me obriga a pedir ao vento
Uma lufada de Primavera amor e sentimento
Mas as palavras fazem ninho
No mais doce recanto de um beijo de sofrimento
E adormecem de mansinho.

Vou embora…
São horas de saber se a vida vale a pena
No dobrar de avessos e gargalhadas
Junto ao rio que os dedos fazem e desfazem
Vou correr as margens no sentido da nascente
Sabendo que o rio me arrasta para o fim da tarde
Na implacável força da corrente.

Ainda bem que esta margem é clara e amena
E do outro lado é tudo escuro quase negro
Mas quando o fogo queima o pensamento e a razão
Até o segredo azul de um pálido coração
Escondido desde há muito no ventre dos pinheiros
Parece verde como o verde da ilusão.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18956: Blogues da nossa blogosfera (101): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (20): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18973: In Memoriam (318): O nosso amigo e camarada Joaquim Carlos Rocha Peixoto (1949-2018), ex-Fur Mil da CCAÇ 3414 (Guiné, 1971/73), faleceu hoje... O corpo estará, esta noite, em câmara ardente na Igreja das Freiras, em Penafiel, e as exéquias fúnebres serão amanhã, às 15 horas

IN MEMORIAM


Joaquim Carlos Rocha Peixoto 
(Penafiel  1949-Porto, 2018)



Realidade quase impensável e inaceitável quando se trata de um amigo de há tantos anos.

Acabou de chegar ao nosso conhecimento, através do seu inseparavél amigo e vizinho, José Manuel Cancela, a notícia do falecimento do nosso camarada e amigo Joaquim Carlos Rocha Peixoto, natural de Penafiel.

Especialmente à nossa querida amiga Tertuliana Margarida Peixoto, e demais família (filhas e netos), deixamos o nosso mais sentido pesar pela perda do seu dedicado marido, pai e avô.

Voltaremos para dar notícias quanto ao local onde o malogrado amigo estará em Corpo Ardente assim como com pormenores do seu funeral.

Os editores

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PS - Acabamos de saber, por notícia das 16h, da Tabanca Matosinhos, que o corpo do nosso querido camarada e amigo Joaquim Peixoto está hoje à noite em Camara Ardente na Igreja das Freiras em Penafiel (Perto da Praça da Feira). 


As exéquias fúnebres estão marcadas para amanhã - segunda feira - pelas 15 horas na referida Igreja.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18839: In Memoriam (317): João [Alfredo Teixeira da] Rocha (Ilha de Moçambique, 1944 - Porto, 2018), nosso grã-tabanqueiro n.º 775, a titulo póstumo (Luís Graça / Jaime Machado / Carlos Silva / Tabanca de Matosinhos / António Pimentel)

Guiné 61/74 - P18972: Blogpoesia (582): "Brilhantina espanhola", "Magia das manhãs" e "O regato da serra", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Brilhantina espanhola

Aos Domingos, depois da missa, vinha o adro.
O convívio com os da freguesia.
Roupas novas, muito bem brunidas.
Xailes compridos, vários temas.
Vestidos de seda, até ao chão, em grandes folhos.
Fatos de fazenda, em corte fino.
Camisas azuis em popelina.
E as gravatas variavam muito.
Largas ou fitas,
Segundo a moda.
E os cabelos, reluzindo ao sol.
Da brilhantina,
Vinha de Espanha
. Cruzavam-se olhares.
Olhos vivaços.
Moças trigueiras, crestadas do sol.
Seios ardentes,
Apetite à vista.
E os rapazes ariscos vinham de longe,
Desconhecidos, sem história.
Lançando a isca,
Tentavam a sorte.
Se era um sucesso.
Primeiro o namoro.
Depois o altar,
Com brilhantina…

Berlim, 29 de Agosto de 2018
8h32m
Jlmg

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Magia das manhãs

É vaidosa a fidalga manhã.
Cada dia uma veste diferente,
Folhos compridos,
De seda ou de lã.
Indiferente à chuva e ao sol,
Avança impante pela avenida do dia,
Cobrindo-o de cor e de luz.
Corre as montanhas,
Desliza nos vales,
Se banha no mar.
Se enxuga ao sol, deitada na praia,
Como se fosse uma dama esbelta,
Sedenta e com fome.
Se despede ufana, à chegada da tarde,
Sua vizinha e da noite.
Viaja sózinha
E vai descansar.
Ninguém sabe onde fica.
Adora a missão.
À hora certinha ela aí está...

Berlim, 31 de Agosto de 2018
8h9m
Jlmg

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O regato da serra

Corre um regato ao fundo da aldeia.
Vem lá da serra aos saltos,
Rasgando o caminho,
Parece um puto tratante,
A caminho da escola.
Assobia e canta ao ritmo das pedras,
Inunda as margens humildes e secas
Que lhe pedem esmola.
Rouba areia e semeia açudes e ilhas,
Onde crescem as canas
Com ninhos de pássaros,
Em frente de praias.
De longe a longe, se torna lagoa
E puxa a mó de moinhos,
Apesar de ser pedra,
Transformando o milho em farinha.
É um amigo atento,
Não pára quieto,
Em visita constante,
Através das aldeias.
Dizem que vai a caminho do mar.
E, muito lá à frente,
É tal o caudal,
Há barcos a remos e vela,
Levando fregueses,
Dum lado para o outro.
Vão para as romarias e feiras.
Rezam as lendas que antanho,
Até as sereias e fadas,
Vinham da serra de noite
E assombravam as gentes
Com cantos e loas,
Pareciam de anjos...

Berlim, 1 de Setembro de 2018
10h49m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18955: Blogpoesia (581): "Para que servem as palavras", "Soletro os meus versos, letra a letra" e "O essencial", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18971: Manuscrito(s) (Luís Graça) (144 ): Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês



















Marco de Canaveses > União das Freguesias de Paredes de Viadores e Manhuncelos > Candoz > Quinta de Candoz / Tabanca de Candoz > 1 de setembro e 2018 >  Alfaias agrícolas, coisas cada vez mais inúteis com a mecanização da agricultura, hoje uma arte e uma ciência...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Se tens galinha pedrês, 
não a mates nem a dês 

por Luís Graça



Como era simples a vida da camponesa
que ia ao monte buscar lenha,
a moinha, as pinhas, as giestas.
No carro de bois, que chiava pelo estradão.

Ou que, de saco à cabeça,
ia levar o grão de centeio
à azenha, lá longe, no Porto Antigo

onde abicavam os barcos rabelos...
Seguia,a pé, pela linha férrea do Douro, 
mas não segura...
E que abria as pernas, depois,
ao seu homem e senhor, seu amo,
no meio do campo de milho.

Que quadro,
que pintura,
que beleza,
tardo-naturalística,
o desta humilde cena portuguesa,

desta gente
sem rosto,
sem nome,
sem registo,
sem trilho,
sem a mística nem a estética 

do Movimento Nacional Feminino.


Porra e lenha,
é quanto a venha,
diz o meu home!


Como era simples e brutal
a vida da mulher do campo
no tempo em que ainda havia
a distinção socioantropológica
entre a cidade e o campo,
ou a diferenciação teológica
entre o céu, o purgatório e o inferno.

E havia o carro de bois, 

e o penso para o tourinho,
e a maçã, biológica, do paraíso perdido,
e o império colonial, 
e as campanhas de pacificação,
e a costeleta de Adão
e as criadas de lavoura que eram violadas
em cima da meda da palha de centeio.

Enquanto os bois gemiam
e as rodas do carro chiavam,

e o varapau voltejava,
e o senhor abade praguejava:
feiras e frieiras
é coçá-las e deixá-las.


Como eram imutáveis as leis
que regiam as relações

entre a terra e o sol,
entre presas e predadores,
entre machos e fêmeas,
entre fidalgos e rendeiros,
entre donzelas e donzéis,
entre soldados e capitães, 

entre operários e patrões,
entre ricos e pobres.
entre cabaneiros e os sem eira nem beira.

Se queres conhecer o vilão
mete-lhe o mando na mão.
E cada um tomava o seu lugar 
no desconcerto da nação
e no palco do teatro da vida e da morte. 

E ela levava, com a sua licença,  a vaca,
ao boi do povo para a emprenhar,
E, com a sua licença,  o porco à feira
para, com sorte, no regresso trazer
uns vestidinhos de chita 
para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz
a infância, breve, dos rapazes e raparigas,
no tempo em que 
a sardinha era para três.
e sobrevivia o mais forte

e o pai era pai e patrão
e a mãe era mãe e pai,
quando o home partia para os brasis
ou outros eldorados que ficavam para além do mar,
ou simplesmente para lá das serras.
E o galo cantava
para a galinha pedrês.
e a vida fiava-se e tecia-se
linha a linha, em branco fio de linho, 

no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, 

a esperança de vida,
e certa, tão certa, a velhice e a morte.
Muita saúde, pouca vida,
porque Deus não dava tudo,

lembrava o sino da igreja da aldeia, 
quando morria algum cristão.

E quem não poupa lenha
não poupa nada que tenha
,  

acrescentava, misógino, o rifão.
Ou noutra variante, 

quiçá feminista "avant la letre":
Se tens galinha pedrês,
não a mates nem a dês
.


Quinta de Candoz, 
setembro de 2008, versão revista em 21/7/2023 (LG)

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Nota do edtor;

Último poste da série > 17 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18853: Manuscrito(s) (Luís Graça (143): "No coração da escuridão" (filme de Paul Shrader, 2017): Quando a razão nos mata e a fé já não nos salva, o que nos resta ? ... Resta-nos a esperança.

sábado, 1 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18970: Os nossos seres, saberes e lazeres (282): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 28 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
No início, o projeto tinha muito ambição: calcorreava-se de Aix-en-Provence até Marselha, na fase seguinte o passeio seria pela terra dos Cátaros e Albigenses, de Toulouse até Montpellier, juntavam-se as pontas da Gália ao tempo dos Romanos.
Houve que ser mais modesto, na 2.ª fase aterrou-se em Toulouse (entre nós Tolosa) à procura de joias preciosas da arte românica, seguiu-se para Albi, Carcassone, Pirenéus franceses, Pau, de novo Toulouse.
Não foi empreendimento arrojado, mas deu para ver e sentir belezas incomparáveis, se a Provença é magnífica a Occitânia não lhe fica atrás.

Um abraço do
Mário


Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (1)

Beja Santos

O viandante faz-se acompanhar de um Guia Michelin datada de 1989, certo e seguro com desatualizações, à cautela procurar-se-á invocar o que o valor patrimonial é insuscetível de estar alterado. A viagem aqui começa, antigamente falava-se em Languedoc Roussillon Midi Pyrénées, hoje o termo da região administrativa é Occitanie (Occitânia, em português). Toulouse é uma aglomeração de grandes proporções, aqui teve origem a indústria aeronáutica francesa, e recordam-se dois nomes que a literatura do século XX acolhe no seu panteão: Saint-Exupéry, o autor do Principezinho e Jean Mermoz, o pioneiro da aviação que estabeleceu a primeira ligação com a América do Sul. Toulouse é uma cidade com muito tijolo. O viandante vem com o propósito de ver alguns monumentos de renome mundial, antes de partir para Albi, e no final da viagem reservou tempo para uma deambulação mais cuidada.



A primeira impressão é o colorido do tijolo, o viandante começa o passeio à volta do Canal du Midi, um empreendimento gigantesco que permite a ligação do rio Garona ao Mediterrâneo, projetado no século XVII, entra pelos boulevards e procura o centro histórico.



A primeira escultura tem a ver com o resistente que morreu num campo de concentração na Alemanha, a segunda fala por si, glória aos heróis de vários bairros da velha Tolosa do Império Romano, quem foi martirizado pelas suas ideias e pelo seu patriotismo, quem caiu de arma na mão na trincheira ou no campo de batalha não pode ser esquecido.



O monumento emblemático de Toulouse é a Basílica Saint-Sernin (poderemos traduzir por São Saturnino), primeiro bispo de Toulouse. Houve uma modesta basílica no século V, mas a excecional popularidade do mártir tolosano falou mais alto, a afluência dos peregrinos era enorme. E foi assim que apareceu entre os séculos XI e XII o mais espetacular templo românico que há na Europa. A sua nave central é impressionante, ao fundo há um magnífico claustro. Felizmente que em meados do século XIX andou por aqui o famoso arquiteto Viollet-le-Duc, que procedeu a uma série de restauros que garantiram a formosura primitiva do templo.



As obras de Saint-Sernin duraram de 1070 até ao século XVI, mas as torres ocidentais jamais foram acabadas. Vê-se que é um edifício perfeitamente coerente, é um caso raro em que se respeitou integralmente o projeto inicial. Pela sua estrutura, Saint-Sernin pertence à família das igrejas chamadas “de relíquias e de peregrinação”, e por isso tem esta ampla nave flanqueada por naves laterais, um amplo cruzeiro, um couro majestoso e profundo rodeado de um deambulatório de onde irradiam capelas. Tem 115 metros de comprimento e 64 de altura, medida pelo cruzeiro. É por isso que é a maior igreja românica do mundo.


O acesso à basílica é feito sobretudo por três portas, veja-se a beleza deste tímpano, dentro das estritas linhas românicas. Os capitéis, tanto no interior como no exterior, são de uma enorme beleza, são livros em pedra, falam dos suplícios infernais, da Ascensão de Cristo no meio dos anjos, mostram Apóstolos, leões, Adão e Eva expulsos do Paraíso, a Anunciação e a Visitação, são necessários vários dias de visita para absorver tanto esplendor românico nesta construção de fé onde os peregrinos vinham pedir consolação e salvação das suas almas.



Pode-se fazer a visita no deambulatório, andar no exterior à volta, visitar capelas ou a sacristia, pode-se andar demoradamente no cruzeiro ou a estudar os capitéis. Aqui se vê uma porta do Renascimento, a chamada fachada principal, em seu derredor decorrem obras de beneficiação, e veja-se a belíssima torre.
Voltaremos a esta igreja de peregrinação, pela sua invulgar simplicidade e porte majestoso.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18952: Os nossos seres, saberes e lazeres (281): De Aix-en-Provence até Marselha (13) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18969: Parabéns a você (1491): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18959: Parabéns a você (1490): António Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Corceiro, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18968: Em busca de... (289): Camaradas de armas do ex-Fur Mil João António (1950-2010) do Batalhão do Serviço de Material da Guiné (Brá, 1972/74), de quem vai ser inaugurada uma exposição de pintura na Associação 25 de Abril, em Lisboa (Dulce Afonso/A25A)

JOÃO ANTÓNIO (1950-2010)
Ex-Fur Mil do BSM da Guiné (Brá, 1972/74)

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1. Mensagem enviada ao nosso Blogue por Dulce Afonso, membro da Direcção da Associação 25 de Abril, com data de 29 de Agosto:

Boa noite, caro Carlos Vinhal 
Estou a contactá-lo por sugestão do Carlos Matos Gomes, devido ao assunto de que poderá tomar conhecimento no email mais abaixo.

Se for possível encontrar alguns antigos camaradas do João António, através dos vossos contactos, e divulgar a inauguração da exposição referida, seria ouro sobre azul :) 

Envio desde já o convite para a mesma, para que façam a divulgação que entenderem, e informo que este mesmo convite estará disponível no Facebook da Associação 25 de Abril a partir desta 6ª feira, dia 31/08. 

Agradeço antecipadamente toda a ajuda que puderem dar e gostaríamos muito de contar convosco na inauguração da exposição. 

Abraço, 
Dulce Afonso 
Direcção A25A

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2. Pedimos à Dulce Afonso que recolhesse mais elementos sobre o João António para facilitar a sua identificação pelos seus camaradas de armas.

O João António (1950-2010), natural de Leiria, foi Furriel Miliciano no Batalhão do Serviço de Material da Guiné, sediado em Brá, entre 19 de Abril de 1972 e 12 de Maio de 1974.

Dele aqui ficam estas quatro fotos do seu tempo de Bissau, para que os seus camaradas contemporâneos o possam reconhecer e visitar a exposição dos seus trabalhos de pintura, organizada pelas suas duas filhas, Carla e Patrícia, que pode ser visitada entre 7 e 21 de Setembro na Associação 25 de Abril. 

 João António, tendo como fundo uma parede com ilustrações de sua autoria

 João António junto a uma barreira

 João António, o primeiro, em cima à esquerda

João António, o 4.º a contar da esquerda, com alguns dos seus camaradas

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3. Sobre a exposição dos trabalhos de pintura de João António, a inaugurar no próximo dia 7 de Setembro, na Associação 25 de Abril, publicamos para já o convite, uma vez que iremos dar o devido destaque ao evento em poste a publicar oportunamente.

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18681: Em busca de... (288): Helga dos Reis, nascida há 46 anos, em 6 de janeiro de 1971, em Ponta Consolação (Nhinte), que fica entre Bula e Binar, e a cujo parto assisti eu e o 1.º cabo enf Afonso Henriques, já falecido... Faço um apelo à Rádio Viva de Bula... (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Bula)

Guiné 61/74 - P18967: Notas de leitura (1096): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49) (Mário Beja Santos)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose - duas visitas - uma despedida”, comemorativo do período de governação do engenheiro Raimundo Serrão, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Continua a luta renhida para manter a capital da Guiné em Bolama, o gerente de Bissau do BNU é demolidor, com aqueles argumentos era como se pedisse a transferência imediata, o Sul da Província era pobrete em negócios. Bem elucidativo é o documento respeitante à participação da Guiné na I Exposição Colonial, que iria decorrer no Porto, é um descasca pessegueiro aos empreendimentos agrícolas, alguns deles muito vistosos, sempre na mira da exploração da mão-de-obra.
Chega entretanto à Guiné Luís Carvalho Viegas, nome incontornável, irão registar-se mudanças, o novo governador vem com várias incumbências, melhorar as condições do funcionalismo, preparar Bissau para ser capital, o que só ocorrerá ao tempo de Vaz Monteiro. Ver-se-á a seu tempo que o gerente do BNU vai arrasar Carvalho Viegas, tratá-lo como dissoluto, um reles distribuidor de prebendas.
É um dos textos mais chocantes que encontrei no Arquivo Histórico do BNU.

Um abraço do
Mário


Hospital Militar e Civil de Bolama 
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49)

Beja Santos

Em 1932, a Associação Comercial de Bolama enviara ao Governo da Colónia, e este ao Ministro das Colónias, um longo ofício a defender a permanência de Bolama como capital.
Instado a pronunciar-se sobre o documento, escreve o gerente da filial de Bissau em 13 de dezembro desse ano:
“Não nos surpreendeu o que a Associação Comercial expôs porque, sentido que a cidade de Bolama, a pouco e pouco, vai perdendo o seu valor prático na colónia, a tudo se agarra para manter a vida de uma terra que há muito vem vivendo artificialmente e que, uma vez transferida a capital da colónia, perde a razão de existir.
E tanto assim é, que ainda há dias tivemos conhecimento pelos jornais de Lisboa que a Associação Comercial de Bolama, a propósito da extinção do lugar de Capitão de Porto de Bolama escreveu ao Exmo. Ministro das Colónias no sentido de ser criado de novo esse lugar ou ser para ali transferida, de Bissau, a Repartição dos Serviços de Marinha da Colónia, com o fundamento de que Bolama era um dos melhores aeroportos de África Ocidental.
Parece que, realmente, o porto de Bolama, como aeroporto, não é mau; mas tem o inconveniente de não irem lá hidroaviões, por circunstâncias estranhas, certamente, há boa vontade da Associação Comercial.
Isso, porém, não a preocupa.
O que a preocupa e pretende dar a Bolama uma vida que não pode ter, sem se importar com os encargos que a sua fantasia pode acarretar ao Estado, como não se importa com os encargos que a modificação da organização dos serviços das Dependências da Guiné possa acarretar ao Banco”.

É um extenso documento em que o gerente de Bissau vai procurando desmontar a argumentação dos comerciantes bolamenses, e tece um quadro bastante cru da atividade da filial de Bolama:
“Tem o seu movimento limitado a operações de empréstimo sob penhores, que não são feitos pelo comércio a alguns descontos de letra da praça, e pouco ou nada mais (…). A praça de Bolama vale tão pouco oficialmente, que não tem condições para sustentar a organização de estabelecimento bancário, por modesta que seja a sua organização”.

1932 é também o ano em que volta a vir à tona as dificuldades da Sociedade Agrícola do Gambiel. Nesta documentação avulsa, o Arquivo Histórico do BNU conserva um acervo de cartas que dá alguma claridade à ascensão e queda de uma das maiores promissoras sociedades agrícolas que se instalara na Guiné nos anos 1920 e 1930.
Logo em 1927, a filial de Bissau refere-se ao empreendimento para Lisboa nos seguintes termos:
“É detentora de uma extensa concessão compreendida entre as regiões de Bambadinca e Geba, na qual se acham instaladas as fábricas de destilação, escritórios, hangares, moradias de pessoal, etc., possuindo também uma edificação na Avenida Central de Bissau. Grande parte dos seus actuais bens pertenciam à Companhia de Fomento Nacional, da qual é sucessor, pela aquisição que fez por compra, em condições vantajosas, de todo o activo e passivo daquela.
Se bem que até há pouco tenha sempre apresentado como principal entrave aos seu desenvolvimento a obtenção de mão-de-obra indispensável, podemos sem receio de contestação afirmar que a principal razão das suas dificuldades residiu sempre na falta de matéria prima para a sua destilação, originada especialmente pelas cheias do rio Geba que lhe destruíram nos últimos anos dezenas de hectares das plantações de cana sacarina.
Relativamente à falta de mão-de-obra, não acreditamos que ela exista na Guiné. Factos diários nos confirmam esta afirmação. Dirigimos há cerca de oito meses a fábrica de cerâmica, e mantemos há anos as obras nos nossos edifícios, dispondo sempre de pessoal indispensável, sem ter necessidade de requisitar às autoridades administrativas. Pagando-se convenientemente e tratando o indígena bem, creiam V. Exas. que os braços não faltam nunca. O ponto difícil da questão é saber se remunerando o indígena com um justo valor do seu esforço haverá muitas empresas que possam com êxito e probabilidade de resultados manter quer as suas indústrias quer os seus trabalhos agrícolas. A Gambiel é das poucas que está em condições de suportar este encargo.
Ainda a este respeito, falando em tempos com o ex-Governador Velez Caroço, com quem variadas vezes trocámos impressões sobre a Gambiel, nos foi afirmado que a falta de mão-de-obra nesta empresa teve sempre origem no deficiente e irregular pagamento feito aos trabalhadores”.

Em 14 de junho de 1928, escreve-se para Lisboa acerca do mesmo empreendimento agrícola:
“Esteve aqui há cerca de dois meses o Engenheiro Armando Cortesão que veio tratar de conseguir o exclusivo para a instalação que dezasseis máquinas para descaroçamento e prensagem de algodão nos principais centros do interior da colónia, e ainda, ao que nos informou, para estudar a forma de regularizar a situação da Gambiel”.
Mais se informava que o Engenheiro Cortesão se retirara para França, havia vultuosas responsabilidades da Gambiel com a Agência do BNU, dava-se como garantia dos débitos tanques e garrafões com cerca de doze mil litros de aguardente. Na mesma carta se informava que a Gambiel cessara a destilação de aguardente. Em 1931, de novo se informava Lisboa que a Gambiel ainda não liquidara integralmente os juros e outras despesas em atraso. Em janeiro de 1932 voltava-se a informar que a Gambiel entregara a aguardente como caução do seu débito. Temos depois o silêncio, é bem provável que a Gambiel, de que se depositara tantas esperanças como empreendimento agrícola modelo caminhava para a extinção.

No fim de abril de 1933, confirma-se que o Major de Cavalaria Luís António de Carvalho Viegas assumira o cargo de governador, o gerente de Bissau não se exime a dar as suas impressões pessoais:
“Ao senhor Governador, como é da praxe, apresentamos em devido tempo os nossos cumprimentos, tendo trocado com ele algumas impressões gerais.
Deixou-nos a impressão de uma pessoa de inteligência normal, mas bem-intencionado e animado de bons desejos.
Oxalá que tenha a força necessária para transformar a feição indisciplinada da colónia.
Quanto à transferência da capital para Bissau, cremos que não será tão cedo que esta justa aspiração se realizará”.

Era claro o investimento que o BNU fazia na Sociedade Industrial Ultramarina, o gerente de Bissau contacta os seus colegas em Cabo Verde, tanto em S. Vicente como na Praia. Vale a pena ler os seus comentários, fica-se com a dimensão de que o gerente bancário tinha olho para os negócios industriais.
Assim se informa S. Vicente os pormenorizados esclarecimentos sobre a colocação de telha fabricada pela Sociedade Industrial Ultramarina:
“Por este vapor remetemos três grades com telhas, como amostra.
O preço é de 1$00 por telha tomada na fábrica de Bandim – a três quilómetros de Bissau –, podendo ali ser carregada por qualquer palhabote. Pretende esta sociedade que a telha possa ser vendida nos portos dessa colónia ao mesmo preço por que a vende aqui.
Para tanto, o que convém é que os veleiros, fretados por conta da Sociedade ou de estranhos o sejam com frete redondo, para ser gratuito o frete da telha. Nestas condições, convém que venham carregados de sal, cobrindo este carregamento o frete de retorno. Se V. Sras. tiverem oportunidade de conseguir que qualquer dos vossos clientes se interesse por este negócio, agradecemos o favor de o promover”. 
E escreve-se deste modo para a Praia, depois de usar argumentação idêntica a que já se usou para S. Vicente:
“Está a Sociedade estudando o assunto a fim de fazer a operação por conta própria; no entanto, se V. Sras. tiverem de conseguir que qualquer dos vossos clientes se interesse por este negócio, agradecemos o favor de o promover”.

E assim chegamos a 1934, pede-se a colaboração do BNU para a I Exposição Colonial Portuguesa, Lisboa fizera um conjunto de perguntas para apurar a viabilidade de incluir um pavilhão referente à Guiné, era preciso fazer um inventário das indústrias existentes e empreendimentos agrícolas. Convenhamos que a resposta terá sido recebida em Lisboa como muito desalentadora:
“Não foram nesta colónia criadas indústrias, sendo certo, porém, que com o dinheiro levantado no Banco por meio de descontos ou empréstimos caucionados, uns e outros feitos a firmas comerciais e a título comercial, se montaram na Guiné as indústrias de cerâmica, gelo e eletricidade, fábricas de óleo de palma e transportes de cabotagem.
A fábrica de cerâmica de Pereira Neves & Cª e as flotilhas dessa firma e da Sociedade Portuense, Lda., foram administradas directamente pelo Banco, depois dessas firmas terem liquidado contas com esta agência, entregando-nos os seus haveres e valores que mais tarde passaram para a Sociedade Industrial Ultramarina. São factos posteriores a 1925.
Quanto a auxílio prestado pelo Banco directamente à agricultura, também verdadeiramente o não há. Algumas firmas comerciais desviaram um pouco da sua actividade e dinheiro para a agricultura, mas as operações de crédito efectuadas realizaram-se a título meramente comercial.
De resto, na Guiné não há, praticamente, agricultura europeia com exploração organizada e metódica, como em outras colónias do Império.
Todas as tentativas agrícolas da colónia com essa preocupação – Companhia Estrela de Farim, Sociedade Agrícola de Fá, Sociedade Agrícola do Gambiel, Lda., Empresa Insular da Guiné e Companhia Algodoeira da Guiné Portuguesa – foram ou têm sido apenas sorvedores de dinheiro dos accionistas, e a única que ainda se mantém é a Sociedade Agrícola do Gambiel que explora exclusivamente culturas anuais – cana sacarina –, como outras pequenas agriculturas disseminadas pela colónia.
As firmas atrás indicadas, de que hoje só existe o nome, realizaram com esta agência apenas operações de utilizações de créditos mandados abrir em nossos livros”.

A Guiné, dito com total frontalidade, tinha muito pouco a mostrar na I Exposição Colonial Portuguesa, que se realizou no Porto, nesse ano, a Guiné deu brado, enviou o régulo Mamadu Sissé, um herói das campanhas de pacificação, a belíssima Rosinha, que ganhou o certame das vampes coloniais, e as Bijagós de peito ao léu e a ondular as saias de ráfia provocaram uma grande consternação às senhoras de bons costumes, que apresentaram queixa ao coordenador da exposição, Capitão Henrique Galvão.

Bafatá, a ponte sobre o rio Geba, 
Imagem do Arquivo Histórico do BNU, com a devida vénia.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 24 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18950: Notas de leitura (1094): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (48) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18958: Notas de leitura (1095): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18966: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte VIII: Sangue, suor e lágrimas... mas missão cumprida!


Foto nº 52 


Foto nº 54


Foto nº 51


Foto nº 50


Foto nº 53


Fotos (e legendas): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757.


Legendas (de 50 a 54, de um total de 55):

50. Atirei a uma gazela, ainda hoje se deve estar a rir, não lhe acertei!

51. Apanhado em flagrante de Litro (... a beber chá)

52. Tarefa diária obrigatória [, a piagem da estrada]

53. Retrato de família [ou de parte da família...]

54. Missão cumprida! Com o Vitor Simões, à esquerda, e eu a telefonar para... Bucelas!

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18885: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte VII: As chaimites chegam a Bissau em 1971