sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20928: 16 anos a blogar (10): Independências - Parte II (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a segunda parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE II

(Continuação)

No cortejo de misérias o pior ainda está para vir, com a desestabilização das potências emergentes, que não conseguiram, não puderam, ou não quiseram alterar a relação do poder com os seus cidadãos, distribuindo para o bem geral as riquezas que os seus territórios são detentores.
Quando o dinheiro entrava a rodos teria sido muito mais barato criar infra-estruturas como rede de esgotos, água, habitação e emprego, sistemas de saúde, do que o custo a pagar pelas epidemias, de cólera, ébola, sarampo, guerras com milhares de mortos e estropiados para não falar na hecatombe que esta pandemia fará num continente tão desprotegido apesar de tão rico, se atentarmos no mapa da distribuição das suas riquezas.

Como já mencionei, o problema já não pode ser resolvido pelos próprios países que ficaram reféns das grandes companhias que dominam a economia mundial, que não estão nada interessadas nisso.
As moedas nacionais não contam para nada, são os dólares ou francos que encharcam as economias conforme a zona de influência. Vejamos a acusações dos ganhos que a França aufere com a sua moeda tutelar sobre as moedas nas ex-colónias em África a que até a nossa Guiné já se rendeu funcionando aí um franco oriundo do Senegal.

Dizem economistas que estudam o fenómeno da pobreza em pais ricos, enquanto esses povos são empurrados para becos sem saída. Não há solução pois os seus países são impedidos de promoverem o desenvolvimento sustentável equilibrado, porque as empresas petrolíferas e de minério, passam a explorar essas riquezas despejando milhões de dólares sobre esses países, que assim, não transformam o tecido produtivo mas passam auferir do que não produzem, não deixando as mais-valias que receberiam se o transformassem e vendessem depois da transformação.

"Não lhes dês peixe ensina-os a pescar". Assim diz o ditado.

A Noruega, quando foi descoberto petróleo na sua costa, era um país pobre de pescadores. Negociou duramente, foi chantageada, mas conseguiu não ser relegada e assim participar no bolo que lhe permitiu ser hoje o que é. E porquê? Porque era um país com uma vincada politica social para redistribuição as riquezas ali descobertas.

Outro caso paradigmático passou-se na Holanda.

A Doença Holandesa

No Norte da Holanda, a Royal Dutch Shell em parceria com Exxon junto à aldeia de Shochterem em 1959, descobre a maior jazida de gás da Europa. Seguiu-se a fartura do gás. Mas não tardou muito que os dirigentes desse país se questionassem sobre os benefícios de tal descoberta e se ela seria uma bênção. As pessoas começaram a perder os empregos e outros sectores da economia afundaram-se, criando assim um padrão que a revista The Economista chamou em 1977 como a “Doença Holandesa”. Está claro que a Holanda reverteu essa situação para seu bem e não para sua desgraça.

Mas em África dirigentes deslumbrados com tudo o que conseguem comprar, vivem numa bolha embriagados com uísque nunca menos de 18 anos, vinho importado das melhores castas e roupas compradas nas melhores capitais europeias . O dinheiro parece cair das árvores sem fim.
Os preços são alavancados, a produção cai a pique, impera o desenrasque do pequeno comércio de rua nas grandes cidades e quem tem posição de chefia começa a amealhar. O preço do petróleo tomando por exemplo Angola ($3,5 milhões dias antes da baixa desse produto) dá para tudo e como não há incentivo à produção, não se produz, importam-se até produtos de primeira necessidade, que eram produzidos antes, só pelo o luxo de dizer que é importado.

Também não há cobrança de impostos de monta, a justiça funciona na lei de extorsão do mais forte, segurança social é coisa que nem ouviram falar, o estado é assim uma cadeira do poder só para alguns e raros, são os que não acabaram nas malhas da corrupção numa rede infindável de filhos, sobrinhos e alguns amigos que esbanjam pelo o Mundo fora o dinheiro que não lhes custou a ganhar, já que a liberdade tão duramente conquistada, perde-se na falta de solidariedade e da Justiça social e duma politica e reguladora da causa pública.
Para essas fortunas existem sempre contas especiais e os offshore mal de que sofre a economia portuguesa, também onde se cruzam muitas vezes.
Em Angola por exemplo a teia não é diferente da de outros países.

Por estranho que pareça, embora seja a ideia aqui no blogue, não foram a URSS nem os seus satélites apoiantes das lutas armadas, os beneficiários das riquezas e julgo que o seu envolvimento acaba por ser deficitário, pois só a Rússia emerge como potência económica e militar. Os outros apressaram-se erigir duvidosas democracias musculadas e a recolher-se sob o manto da NATO, participando em aventuras como Iraque, Afeganistão, e em manobras que visam intimidar os antigos patronos, com resultados que espero nunca sejam funestos para eles e para nós, a julgar pelos resultados do passado.

Assim o desenvolvimento da industria petrolífera da Sonangol deve-se à BP, do Reino Unido e a Chevron e a Exxon Mobil, dos Estados Unidos e à Total francesa que extraiu mais petróleo do país do que qualquer outra empresa. As receitas do petróleo angolanas, em 2011, equiparam-se às receitas da Coca-Cola ou da Amazon em todo o Mundo. A China, maior importador de petróleo do Mundo, também reclama o seu pedaço com empresas estatais. Também Moscovo, Manhattan, Coreia do Norte e Indonésia, todos associados em offshores, a BP, a Total, mais empresas petrolíferas, mais o gigante da distribuição Glencore, sediada na Suíça, formam a Queensway Group que tem como riqueza o que sacam do subsolo africano.

Uma última palavra para a “nossa Guiné” tão maltratada pelos seus dirigentes, que lutam num pós-independência por um poder de riqueza de pouca monta. Sem riquezas no subsolo, têm deixado desbastar as suas florestas, que saem do país rumo à China e alimentam assim a fome devoradora que o pais tem pela transformação que, depois vende ao Ocidente com valor acrescentado.

Fala-se pontualmente da existência de alumínio e petróleo mas a verdade é que são produtos como o caju, os únicos produtos dignos de nota numa monocultura perigosa. A Guiné é acusada de ser um narco-estado e qualquer um pode ver também que é um estado falhado. Os golpes de estado, institucionais ou armados, são uma constante, as eleições são subvertidas constantemente, a parte que perde nunca aceita o resultado e a que ganha através de chapelada eleitoral, também finca os pés num daqui não saio, daqui ninguém me tira.
Que estará guardado para aquele pais onde a sua maior riqueza será a diversidade étnica, que também pode ser o seu maior problema pois o sonho de Amílcar Cabral, de um País um povo e uma só bandeira está cada vez difícil de atingir?
Será anexada pelos vizinhos do Norte, mais bem posicionados?
Esperar para ver é o que nos resta.

Por cá, a busca do precioso ouro preto também tem tido a suas épocas de procura obstinada. Em Alcobaça furaram em vários lados, fizeram tremer zonas residenciais, perfuraram em zonas agrícolas, e por último no mar em Aljezur o que irá por em risco o nosso turismo bem como meio ambiente. Não sei se com algum ganho, pois os ganhos tirando os gastos, também reportados, o estorno para o Estado português e, uma vez que não temos condições para a própria exploração, logo os galifões mundiais assentarão arraiais de onde levarão a maior parte do lucro, de nada servindo a boa experiência Norueguesa ou da Doença Holandesa, que de má memória foi convertida a tempo e não se transformou em pandemia.

“Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”
Mahatma Gandhi

Um abraço caseiro para todos os camaradas
Dia 28/04/2020
45.º dia de confinamento e com muito tempo ainda pela frente.
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P20927: (De)Caras (158): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VII: mais uma achega do Carlos Geraldes: o caso do ataque (anunciado) a Pirada em 28/5/1965 e o linchamento do gila confundido com um espião,


Comunicado do PAIGC referindo um ataque a Pirada,  o dia 28 [, sem mês nem ano],,, Cruzando informação disponível no blogue, esse ataque só pode ser o dia 28 de maio de 1965, ao tempo da CCART

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07065.068.053
Título: Comunicado [Frente Leste]
Assunto: Comunicado sobre o ataque da Secção do Exército Popular ao quartel de Pirada.
Data: s.d. 
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Página(s): 1

Citação:
(s.d.), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40762 (2020-4-29)




Mário Soares > Pirada >
14/2/1974.
Foto: António Rodrigues 
(2015)
1. Continuamos à(s) volta(s) dessa figura algo misteriosa que foi o comerciante português Mário Soares, ou Mário Rodrigues Soares, mas também identificado com António Mário Soares (*). Dizem, justa ou injustamente, que serviu dois senhores, as NT e o PAIGC. Foi acusado de ter sido informador da PIDE/DGS tanto quanto "espião" do PAIGC. Em suma, "um "hábil agente duplo (...) durante muito tempo", condição que "acaba sempre por ter um preço amargo de pagar" (, segundo o seu amigo Carlo Geraldes). No fim da guerra, terá sido escorraçado por uns e por outros.

Esteve estabelecido em Pirada, no leste da Guiné, na fronteira com o Senegal, e diversos camaradas nossos (, nomeadamente, alferes milicianos)  conviveram com ele ao longo da guerra colonial, pelo menos desde 1963 a 1974.

Tende, por vezes, a ser confundido com o  seu homónimo,  esse, sim,  inconfundível figura pública Mário [ Alberto 
Nobre  Lopes] Soares (1924-2017), presidente da República Portuguesa (1986-1996), duas vezes primeiro ministro, fundador 
e secretário geral do Partido Socialista, opositor do regime de 
Salazar-Caetano,  etc.

A ignorância pode ser tanta que até a jovem cabo-verdiana, nascida em 1991, Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho, troca os dois nomes, os homónimos,  num trabalho académico, defendido em provas públicas numa universidade brasileira (**).

Sabemos, por testemunhos anteriores (*), que o Mário Soares: (i) era natural de Lisboa; (ii) terá vindo para a Guiné por "dificuldades financeiras); (iii) estabeleceu-se como comerciante em Pirada; (iv) era casado (com Luísa  e tinha 3 filhos (um rapaz. José, a estudar em Lisboa,  e duas raparigas, Rosa e Eva Lúcia, esta a mais nova,  nascida em 1958); (v) deverá ter nascido na década d 1920, pelo que nos anos de1964/65 já teria mais de 40 anos; (vi) era "o branco mais africano que comheci" (, segundo a opinião de José Pratas, antigo alf mil médico, CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/73).

Sabemos ainda que: (vii) em Pirada havia mais 4 comerciantes brancos, em 1964/65; (vii) em 1971/73,  havia um agente da PIDE na vizinhança, "bom para seviciar e intimidar", o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  que "tinha farroncas mas com as flagelações tremia como varas verdes" (José Pratas).

Portanto, o Mário Soares não era o gente da PIDE/DGS de Pirada, nem nunca pertenceu ao quadro de pessoal da PIDE/DGS... o que não o impedia de colaborar com a política política, aproveitando-se das "relações especiais" que tinha com as autoridades fronteiriças do Senegal. O que também não quer dizer que não fosse "informador" da PIDE/DGS...e não pudesse também ser útil ao PAIGC. Dáí que, desde muito cedo, corresse a fama de ser um "agente duplo".


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública. Entre 1971 e 1973, ao tempo do alf mil médico José Pratas (CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/74),  terão passado por aqui dois agentes:  o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo senhor Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  (José Pratas). 


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares. Ficava,  à esquerda,  na Rua principal que levava à fronteira do Senegal, 

Fotos (e legendas): cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

No livro de Maria José Tíscar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o "patrão" da polícia política na Guiné, homem  da confiança pessoal de Spínola, o Fragoso Allas, dá a entender, abusivamente, que  o comerciante Mário Soares era "mais" agente que o "seu"agente, o Carvalho, e depois, o Pereira:  que estes, ou um deles,  viveriam na casa do comerciante, que ele é que atenderia, em 90% dos casos o rádio da DGS, e que era aceite por ele, Fragoso Allas, como "agente duplo"... Porque lhe convinha... No fundo, é menorizado o papel do Mário Soares, conforme se pode deduzir das longa conversa com a historiadora,em que ele terá aberto o seu "livro": 

(...) "Era habilidoso [, o Mário Soares], tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. 

(...) " Era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las.

/...) "As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles.


(...) "Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”. (...)


2. Quem mais escreveu sobre o comerciante Mário Soares,  aqui no blogue,  foi  ex-alf mil Carlos Geraldes, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), infelizmente já falecido em 2012. 

A sua foi a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964). Até então Pirada era um destacamento guarnecido por um pelotão: em 1963, por exemplo, o nosso camarada e grã.tabanqueiro Jorge Ferreira disse-me, em conversa ao telefone, que esteve lá em Pirada, dois dias, e almoçou na casa do Mário Soares, ele, e outros militares, incluindo  o comandante do destacamento, o então alf inf Artur Pita Alves, hoje cor ref, que faria mais tarde uma outra comissão na Guiné, como capitão (CAÇ 1423, Bolama. Empada e Cachil, 1965/67).

O destacamento possivelmente pertencia ao BCAÇ 512 (Mansoa e Nova Lamego, 1963/65) ou então ao BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), pormenor que o Jorge Ferreira já não pode precisar, mas seria o batalhão de Mansoa,

O Mário Soares recebeu, de resto,  em sua casa vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65), e o Carlos Geraldes (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (Ao António Pinto, que  vive em Vila do Conde, mandamos um especial abraço.)

O Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63),  autor do livro de etnofotografia, "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016), estava nessa altura destacado em Buruntuma. Portanto, em 1963, ele também confirma que o Mário Soares já estava estabelecido em Pirada.

No Arquivo Amílcar Cabral, disponível no portal Casa Comum, criado pela Fundação Mário Soares, há pelo menos 11 referências a Pirada, mas nenhuma referência ao nome ou à pessoa do comerciante Mário Soares...

Sabe-se que em 1963 o PAIGC tinha muitas dificuldades de implantação na região, devido à hostilidade dos fulas e à fraca lealdade dos seus simpatizantes e militantes,  de maioria mandinga,  bem como à concorrência da FLING. Por outro lado, o Senegal, de Leopoldo Senghor, impunha, na época,  sérias limitações à liberdade de movimentos do PAIGC.

Se o Mário Soares fosse militante ou simpatizante do PAIGC seria, na época, um recurso precioso: os homens do PAIGC queixavam-se, então,  de que passavam fome, não dispunham de cuidados médicos, não tinham  armamento em condições nem muitos menos explosivos para a destruição de pontes, eram combatidos pelos fulas... Em suma, o moral era baixo ou estava em baixo.



Excerto de carta (manuscrita) remetida por Areolino Cruz a Pedro Pires, data de Pirada, 17/7/1963. É referido um ataque a "quartel de Pirada", no dia 15, tendo sido incendia a casa de um "tipo da PIDE".  Resultados: (i) "morreu um soldado europeu"; (ii) " soldados europeus têm agora medo de sair à noite, e mesmo depois das 6 da tarde"... O PAIGG não teria na época um bigrupo, o Areolino Cruz diz que "fomamos de agora em diante um só grupo comandado por Chico Tê, aproximadamente 22 homens"... (Não temos noticia de que nessa data, 15/71963, tenha morrido algum militar português no TO da Guiné.)

(Fonte: Arquivo Amílcar Cabral... Com a devida vénia; Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881 (2020-4-30)


3. O primeiro verdadeiro ataque a Pirada só acontece em 28 de maio de 1965, ao tempo da CART 676. (Talvez não por acaso, o PAIGC desencadeou mais do que um ataque ao longo da guerra, nessa efeméride, evocativa do 28 de maio de 1926,  data histórica em que triunfou, em Portugal, o golpe de Estado que deu origem à Ditadur Militar e ao Estado Novo; estou-me a lembrar, por exemplo, do ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969.) 

Estava então o Carlos Geraldes de licença de férias na Metrópole... [Há um interregno da sua correspondência para a Metrópole entre 18/4/1965 e 13/6/1965, correspondente ao período - mês de maio - em que não apenas gozou a sua licença de férias como celebrou  o seu primeiro casamento.]

A posteriori, logo a seguir, quando regressa a Pirada e a Paunca (onde o seu pelotão está destacado), reconstitui esse ataque e os acontecimentos que se lhe seguiram, o linchamento de um pobre gila (comerciante ambulante), confundido com um espião,  por ter sido encontrado transportando alguns sacos de invólucros na sua bicicleta depois do ataque do PAIGC...

Não tendo sido "testemunha ocular" nem do ataque do PAIGC  nem do linchamento do gila,  Carlos Geraldes, por uma questão de honestidade intelectual, começa a narrativa com a segyinte reserva: "Não sei se o deva contar"...Mas depois conta, e o que escreveu está  publicado no blogue, na sua série "Gavetas da Memória".

Voltamos a reproduzir essa crónica, com título e subtítulos nossos. Pode ser que, entretanto, mais algum camarada possa confirmar ou infirmar  (ou acrescentar algo mais sobre) o que aconteceu nesse dia 28 de maio de 1965, em Pirada.


O caso do  ataque (anunciado)  a Pirada em 28/5/1965 e o o linchamento do gila, confundido com um espião (**)


(i) O Primeiro Ataque a Pirada

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá,  a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade.

Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia,  embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M[ário] Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. 

O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

"Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!"

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.


(ii) O enigmático Mário Soares


Segundo depois me contou o M[ário] Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa, fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. 

Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M. Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Conacri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá-Mansoa-Bissorã.

Na verdade a imunidade de M. Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Com o raiar do dia [, 28 de maio de 1965], já depois de as armas se terem silenciado,  é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. [No comunicado do PAIGC, acima reproduzido, fala-se em 3 viaturas incendiadas: 1 jipe, 1 Unimog, 1 Mercedes Benz; mais: diz-se que "incendiámos toda a Pirada"...]

Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres 
espalhas pelo chão. 

Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal [, pelo menos dois mortos, conforme comunicado do PAIGC acima reproduzido].


(iii) O linchamento do gila


Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que, inocentemente, tinha carregado na sua bicicleta vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). 

Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba,  uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e,  no meio de insultos e pancadaria, acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros, revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer! Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo,  tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.Mas, o gila teria deixado família? Mulher,  filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paunca [, destacamento da CART 676], logo que pude, para tentar esquecer.

(iv) A guarda republicana senegalesa corre com todos os grupos armados que podem ameaçar os postos fronteiriços portugueses (****)


(...) Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã [, 15 de junho de 1965,]tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho [, pseudónimo do Pinheiro], e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, incluindo negritos, itálicos e realces a amarelo: editor LG]
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(**) Katheleen Rocheteau Gomes Coutinho - A Política Externa de Cabo Verde (1975 a 1990): uma análise da configuração e atuação da política externa de Cabo Verde durante a guerra fria. Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais como requisito parcial à obtenção do Bacharel em Relações Internacionais. Brasília, Unibversiade de Brasília, Faculdade de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, 2015. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/16366/1/2015_KathleenRochteauCoutinho_tcc.pdf

(...) Estes dois fatores [, a vitória da luta de Libertação Nacional levada a cabo pelo PAIGC,  e a Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de abril de 1974,] foram importantes e estiveram na origem do Acordo para a independência de Cabo Verde, assinado em 19 de dezembro de 1974, pelas delegações do governo de Portugal e o PAIGC, nomeadamente entre Mário Soares (representando Portugal) e Pedro Pires (representando o PAIGC). (...)

Em nota de rodapé, diz-se que o seguinte: 

(...) Mário Rodrigues Soares- Português, 1922. Comerciante na região de Pirada onde acabou por funcionar como “agente” ou “espião”, nos contatos entre as autoridades portuguesas, senegaleses e o PAIGC. (Lopes, 2012).(...) [LOPES, José Vicente. “Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”. Spleen edições, Cabo Verde, Cidade da Praia, 2012.]

(...) Pedro Pires, Cabo-verdiano 1934. Oficial miliciano na Força Aérea Portuguesa. Membro do PAIGC. Formação militar em Cuba e URSS. Comandante da Região Militar do PAIGC. Lidera a delegação do PAIGC na assinatura (...)

(****) Excerto da carta datada de  Pirada, 13 de junho de 1965, reproduzida aqui;

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

Guiné 61/74 - P20926: Parabéns a você (1795): José Carlos Neves, ex-Soldado TRMS do STM/CTIG (Guiné, 1974) e Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20918: Parabéns a você (1794): Giselda Pessoa, ex-2.º Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a primeira parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE I


Caros Camaradas

Começaria por pedir a especial atenção para os dados bem como mapa da existência de minérios, tanto de usos mais gerais bem como preciosos, petróleo e gás natural. Foram dados publicados pelo o Jornalista de investigação premiado do Financial Times, Tom Burgis no seu livro "A Pilhagem de África":
No mapa é referido onde estão as riquezas desse continente tão rico e talvez, por isso mesmo, tão miserável.

À medida que nos distanciamos dos anos em que a libertação das colónias foi exigida pelos respectivos movimentos, vão-se avançados como novas visões da solução dos problemas, que os países emergentes sofrem passados que são 50/60 anos da sua autodeterminação.
Pelo que me é dado a perceber, segundo as opiniões dos mais diversos comentários, é que a independência é boa para mim, que sei viver com ela. Como diria uma velhota da minha terra com ar da maior sabedoria quando via o marido chegar perdido de bêbedo a casa:
– O vinho devia ser só para alguns e para mim, que o sei beber.

A África subsariana já ia com atraso em relação aos países do Índico e Sudoeste Asiático bem como o próprio Norte de África, tinham alcançado a sua independência logo no fim da II Guerra Mundial e vai revindicar pela voz de activistas mais esclarecidos na sua maioria estudantes nacionalistas, que passam a militar clandestinamente nas cidades das potências colonizadoras.
Na altura os dirigentes coloniais fizeram leituras erradas sobre o que se estava a passar. Confundiram nacionalismo, autodeterminação e independência, com comunismo, o que levou às cruzadas do costume e ao abafamento dos direitos humanos, bem como a uma repressão brutal pouco aceitável para um Mundo que se tinha visto livre do totalitarismo nazi e fascista.

Os impérios coloniais governavam dentro de uma bolha. Usavam, exploravam mas não conheciam e não se misturavam os povos sob sua administração. Assim, quando alguma coisa acontecia debaixo do seu nariz, o preconceito e racismo só lhes indicava uma direcção, que era a repressão. Aconteceu em todo o lado e com muitas dezenas de anos de intervalo. O pretenso castigo usado de forma exagerado acaba por ser recebido como justificação para que a violência se instale por todo o lado.

Assim, não era anormal ouvir um soldado chamar filho da puta a um negro e dizer-lhe que era por causa dele que ele para ali tinha ido. Ora o que era mentira, pois os autóctones tinham pegado em armas e revoltando-se contra o poder colonial, que o soldado defendia e representava.
O que quero dizer com isto, é que quem tem o poder dificilmente aprende com isso, se tem os olhos e sentidos abertos, logo os fecha porque a ganância é mais poderosa.
Crescem assim os movimentos iniciados por minorias intelectuais, que são fortemente reprimidas e que dai passam à luta armada.

Os países que foram atingindo a autodeterminação, passaram a servir de abrigo para os activistas, que a partir dai, lançavam ataques aos territórios sobre administração colonial.
Mas a luta dos povos tem avanços e recuos e muitos desses países sofreram golpes de estado, apoiados pelas potências ex-colonizadoras e assim nasce o neocolonialismo. Esses países com atitudes mais ao menos dúbias, acabaram por escorraçar quem o anterior regime apoiou numa inversão valores e politicas, ajudam a formar grupos armados, que passam a ter um papel activo muitas vezes contra os movimentos que tinham reivindicado junto das organizações internacionais o direito à independência da sua terra. É assim o prelúdio das guerras civis, que grassam por todo o continente sem fim à vista, num cortejo de horrores miséria e morte.

Atribui-se hoje como beneficiários dessas hecatombes humanitárias as claques governantais, que em total ausência de escrúpulos rege em proveito próprio o que devia servir para o bem estar do povo. A ambição desmedida, o novo-riquismo, as purgas, infectaram para sempre os dirigentes, que na sua juventude teriam vertido o seu sangue pelo ideal. (a ler "A Geração da Utopia", de Pepetela. para ter uma ideia).
Mas quem são os responsáveis pela continuação da criação de estados falhados, pelo aproveitamento da pilhagem feita à custa de trabalho escravo nas minas de diamantes, ouro, coltan, petróleo etc? Na verdade criticamos os governos africanos, mas não os verdadeiros responsáveis. Quem lhes compra os produtos a preços de miséria e lhes vende armamento para manterem a desestabilização permanente para assim continuarem a retirar dividendos com produtos regados com sangue?

Mediante esse estado de coisas, vai germinando entre saudosistas e preconceituosos, a opinião de que os povos nativos tudo dariam para voltarem para as potências colonizadoras e que se lá continuassem, os países que antes os administravam ou melhor se tem chegado à independência com minorias brancas no poder, então sim, atingiriam o paraíso na terra e que os negros, fornecedores da mão de obra barata, salvo honrosas excepções, estariam hoje todos contentes num regime, que acabaria por ser a separação entre cidade do asfalto e cimento, a da terra batida e a palhota, entre a cidade dos néon e os bairros nativos de duvidosa salubridade, num projecto falhado como se comprovou com a África do Sul e Rodésia. Falhado porque talhado em moldes de separação da comunidade branca e os direitos das outras comunidades, que ainda assim eram divididas por castas e em escalões étnicos.

Numa palavra, sociedade onde um engenheiro negro devia serventia a um servente branco. Uma sociedade onde as crianças brancas eram criadas pelo o carinho dos seus servos negros mas quando cresciam, ficavam tão maus como os pais, rejeitando e não retribuindo o amor que tinha recebido.
Um continente dividido em tempos idos a régua e esquadro pelas potências dominantes, sem qualquer cuidado nem respeito por laços familiares e culturais. Os problemas que persistem nunca serão resolvidos em mais sessenta anos, pois a resolução desses mesmos problemas está sujeito a interesses exteriores de quem não lhes interessa nada que sejam resolvidos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20924: 16 anos a blogar (8): Outro combate (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P20924: 16 anos a blogar (8): Outro combate (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Porto - Parque da Cidade
Foto: Com a devida vénia ao autor


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 29 de Abril de 2020:


OUTRO COMBATE

Francisco Baptista

Os dias de confinamento vão passando devagar, com algumas leituras agradáveis, algumas passagens breves pela televisão e pela internete e com algumas saídas ao Parque da Cidade ou às ruas próximas de casa, para desentorpecer as pernas, renovar o ar dos pulmões e viver a ilusão de caminhar só pela Terra a sentir, a liberdade, a paz e o silêncio, que esses momentos de solidão proporcionam. Anteontem foi o dia da Terra, essa entidade suprema, que criou todas as formas de vida e nos criou, que aprendi a amar por viver tantos anos em contacto próximo com ela, que na minha filosofia de vida, depois de muitos anos elegi como a justificação plausível e satisfatória para compreender os princípios e os fins, o nascimento e a morte.

Interrompo a escrita porque me telefona um camarada da Guiné, que vive em Santarém com a Boneca, uma cadela mais velha do que ele pois já tem 16 anos. Foi sempre um aventureiro, foi corredor de automóveis, teve um bom hotel numa pequena cidade do litoral, em Buba foi um organizador de paródias, criou no quartel uma emissora de rádio, com microfone e colunas potentes com discos pedidos e bailes fandangos e carnavalescos de militares na messe de sargentos. Continua a ser um bom amigo

Volto ao computador, e eu, que gosto de música, para preencher os espaços vazios que o meu pensamento um pouco letárgico cria, escolho no Youtube "Hasta Siempre Camarada" uma canção melódica e nostálgica sobre um guerrilheiro que sonhou e morreu a lutar por um ideal. Nathalie Cardone, com os requebros melódicos da sua voz jovem e com o bambolear ritmado do seu corpo esbelto, transmite prazer e emoção estética. a quem a ouve e a quem a vê.

A Terra, como uma Deusa indiferente à vontade dos humanos, continua a girar em torno do sol e em torno do seu eixo há milhões de anos, já teve somente um grande continente que por fenómenos geológicos vários ao longo de milhões de anos se foi fraccionando até tomar a forma actual com cinco continentes e cinco mares, até um dia muito distante. Na sua transformação foi criando as vidas mais simples e as mais complexas, até criar o homem que inventou a escrita, o amor, a informática, a arte e a bomba de hidrogénio.

Na Terra, o nosso adorável planeta azul e verde já houve cataclismos terríveis, grandes vulcões em erupção, terramotos, maremotos, idades de gelo implacáveis, epidemias, pandemias, pestes e outras grandes calamidades em que morreram milhões de seres vivos, de muitas espécie e muitos humanos também. A peste negra que veio também da China, nos meados do século XIV, terá matado 30 a 60% dos habitantes da Europa, a gripe espanhola que surgiu em 1918, terá matado entre 20 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo, em quase todos os séculos houve grandes gripes e pandemias. Houve guerras terríveis entre os homens os filhos mais inteligentes da Terra. Bem perto de nós, no século vinte, na 1.ª Guerra Mundial morreram cerca de 40 milhões de pessoas: na 2.ª Guerra Mundial terão morrido 80 milhões de pessoas. Na Europa houve também a guerra civil espanhola, a guerra dos balcãs com muitos milhares de mortos e em Portugal, país de brandos costumes, houve a guerra do Ultramar com mais de 8 mil mortos.

Esta pandemia do covid-19 que nos altera as rotinas e obriga ao recolhimento , terá em comum com as outras que se têm sucedido talvez a omnisciência da Terra em procurar equilibrar os seus recursos de acordo com os seus habitantes.

Os homens por pensarem ser entidades superiores sonham com a vida eterna por não quererem aceitar o destino dos restantes habitantes da Terra. Dizem-nos que temos espírito, dizem-nos que temos alma, mas a nossa alma ou espírito volatiza-se quando o corpo, que é feito de água, de carbono, de ferro, de enxofre e doutras matérias-primas que a terra nos deu, morre e regressa às origens. Depois do dia da Terra tivemos o dia do livro, livros que vieram acrescentar a minha curiosidade em me compreender e conhecer a Terra que no sítio onde me criei se alongava por horizontes a perder de vista, que ainda me enchem a memória de sonhos. Os livros têm-me dado muito prazer muitos conhecimentos e têm também sido fontes de muitas dúvidas e interrogações de que nem sempre encontrei respostas. Penso muitas vezes se não teria sido mais feliz se fosse como os rapazes da minha aldeia e da minha idade, todos trabalhadores valentes e musculados que somente leram os livros da escola primária porque a isso foram obrigados. A esses que nunca foram curiosos e aceitaram o destino procurando melhorá-lo embora, aceitando os poderes e os deuses dos pais sem discussão, desejo longa vida ou mais breve se já vos pesarem os anos.

Os velhos portugueses do meu tempo, os da minha aldeia e doutras aldeias e cidades de Portugal, que regressaram e ainda se conservam vivos, agora vêem-se ameaçados pela clausura e pela segregação para sobreviverem, sem armas de defesa eficazes contra um inimigo que não dá a cara. Fragilizados pelas doenças das guerras africanas e pelas outras que vão surgindo com a idade, não quererem esconder-se por muito tempo debaixo das saias das mulheres, longe dos filhos, dos netos e dos amigos. Quando a vida lhes prometia realizações e aventuras, foram mandados para longe ouvir o troar assustador dos canhões e dar o corpo às balas com coragem, por uma Pátria que nunca lhes agradeceu. Que ninguém queira agora quando os seus filhos já estão criados e os seus netos são promessas de futuro, arrumá-los em casa como se fossem trastes velhos, fora de prazo. Há rumores, temos que estar atentos.

Para quem gostar de ler recomendo dois livros que estou a ler e outros dois que já li:
"Origens - Como a Terra Nos Criou" autor Lewis Dartnell;
"O Naufrágio das Civilizações" de Amin Maalouf

Acabei de ler já em Abril o romance "Um Milionário em Lisboa", de José Rodrigues dos Santos, que continua a história do "Homem de Constantinopla" sobre a vida de Calouste Gulbenkian.

Interessantes.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20921: 16 anos a blogar (7): Os camiões Volvo... e outras peripécias da cooperação com Bissau (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20923: (Ex)citações (368): Contributos para uma análise crítica do poema (panfletário) "Sobre o 25 de Abril", de J. L. Mendes Gomes, o autor de "Baladas de Berlim" (2013) - Parte II (José Belo, Suécia)

 1. Mensagem de José Belo, ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, e manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década; está reformado como capitão inf do exército português; jurista, vive entre (i) Estocolmo, Suécia, (ii) nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, e (iii) Key-West, Florida, EUA; é o único régulo da tabanca de um homem só, a Tabanca a Lapónia (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães e dos seus ursos)

Date: terça, 28/04/2020 à(s) 14:04
Subject: A propósito de ser fácil "bater" nos poetas.

Depois de a poesia ter sido ,quanto a mim, demasiado evocada em comentários a texto político sobre o 25 de Abril, aqui segue interessante análise feita pela escritora e poetisa [polaca] Wislawa Szymborska [ 1923 - 2012] em discurso  aquando da aceitação do seu Prémio Nobel da Literatura [, em 1996]:

(...) quando preenchem documentos ou conversam com estranhos,ou seja, quando não podem deixar de revelar a sua profissão, os poetas preferem usar o termo genérico "escritor" ou substituir "poeta" pelo nome de qualquer outro trabalho que fenham,  além de o de escrever.

Burocratas, ou passageiros de autocarro, reagem com um toque de incredualidade (e alarme!) quando descobrem que estão a falar com um poeta. Creio que os filósofos enfrentam reações semelhantes.

Estão contudo em melhor posicão pois na maioria das vezes podem ornamentar o seu ofício com algum tipo de título universitário. Professor Doutor em Filosofia. Isso sim! Soa muito mais respeitável!

Mas não existem professores em poesia. Afinal de contas, isso significaria que a poesia é uma ocupação que requer um estudo especializado, exames regulares, ensaios teóricos com bibliografias e notas de rodapé anexadas e, por fim, diplomas concedidos com pompa! Isto significaria, em troca, que não basta encher páginas de poemas, mesmo os mais primorosos do mundo, para se tornar um poeta.

O factor decisivo seria um pedaço de papel com um selo oficial!

Lembremos que Joseph Brodsky [1940-1996], orgulho da poesia russa e laureado com o Prémio Nobel  [em 1987], foi um dia condenado ao exílio no seu próprio país,  justamente com base nesta ideia. Chamaram-lhe "parasita"  porque não possuía o certificado oficial que lhe assegurava o direito de...ser poeta!" (...)

 Um abraço, J. Belo.

PS - Sendo admirador sincero dos teus poemas, e depois de toda a "porrada" (quanto a mim justa, mas..) levada por um camarada/poeta no blogue quanto à sua análise política-enevoada sobre o 25 de Abril )....atrevo-me a sentir quase teres a obrigação de publicar este texto quando o "ferro ainda está quente" (*).


2. Comentários anteriores do José Belo ao poste P20905 (**):

(i) Caro Mendes Gomes

A análise política "Sobre o Vinte Cinco De Abril" será a sua, assim como a de muitos. Outros tantos não farão análises semelhantes,nem tirarão as mesmas ilações.

A História sempre se escreveu, e certamente continuará a escrever-se,segundo as perspectivas dos 
historiadores. Felizmente que, fora das ditaduras, estas divergem.

Seria muito limitativo o considerarmos as nossas maneiras de analisar os acontecimentos como que quase "iluminada" frente ás opiniões e perspectivas de outros.

Não quero de modo algum afirmar ser esse o caso quanto ao seu texto, pois são as suas opiniões e como tal devem ser respeitadas. Não sendo as minhas, que me seja permitido frontalmente discordar.

Mas, e quanto ás razões originais do Movimento dos Capitäes, trata-se de factos e não de opinião .
Este Movimento surgiu das reivindicações de tipo "corporativo-militar" quanto ao conflito futuro a ser criado por promoções em quadro paralelo ao Quadro Permanente de Oficiais das Forças Armadas.
As restantes (!) reivindicações foram levadas por alguns, posteriormente(!),  para o interior do Movimento.

Aproveitando este facto, alguns rapidamente compreenderam que, ao embrulharem-se em tais bandeiras, criavam uma imagem pública muito diferente e...conveniente para alguns políticos que pairavam nas sombras envolventes dos mais ingénuos,ou ignorantes.

Abr. J.Belo


(ii) Voltei a ler com a atenção merecida esta análise política do Abril de 74 (**).

Independentemente de todos os outros detalhes de circunstância (nos States chamaríamos de “Soun(d)bites”) escreve-se:

“O governo estava a estudar instituir uma União ou Confederação das províncias ultramarinas com a metrópole. As potencialidades desta fusão de interesses,respeitadores dos interesses nacionais eram enormes”.

Coloca-se a pergunta: Que governos está a referir? Do saloiísmo iluminado da ditadura de Salazar?
O mesmo que recusou as ofertas dos aliados mais próximos e da União Indiana de uma possível Confederação com uma Goa independente? A escolha entre esta possibilidade política e a triste total derrota militar foi evidente.

O governo da ditadura de Caetano? O mesmo Caetano que não permite a Spínola negociar com Amílcar Cabral soluções políticas que (então!) ainda poderiam salvaguardar interesses de ambas as partes?

Porque, quer se goste,ou não, da ideia,estes políticos de iluminismos saloios imbuídos, mais não eram que os representantes de uma”certa maneira de estar” de uma parte previlegiada da sociedade portuguesa de então.

Alguns dos que, como eu,  foram educados por detrás  dos altos muros de jardins de recatadas vivendas da “Linha [do Estoril]",  talvez se sintam “classificados” em ambos os sentidos do termo (classe social/preparação educacional) para aqui recordar como exemplo “confederativo “ uma interessante situação surgida na Guiné, piscina e bar de Oficiais de Santa Luzia, quando um bem conhecido e medalhado oficial guinéu dos Comandos Africanos se atreveu a convidar duas senhoras (também guineenses) a o acompanhar a tal local.

O escândalo imediatamente criado entre algumas das mui dignas esposas de alguns respeitáveis Oficiais das altas repartições militares de Bissau,  propagou-se como um fogo na mata seca.

Mais não será um exemplo real da tão poética Confederação entre este tipo de “Nós “ e os pretinhos africanos...medalhados ou não!?

Seria que, em finais dos anos sessenta, início dos anos setenta, os brancos de Angola e Moçambique (os com influências e poder económico) algo quereriam ter a ver com os brancos de Portugal?

Quando na sua análise política se refere a “névoas tendenciosas que toldam intencionalmente acontecimentos”,  esqueceu-se de referir as palavras de ordem das bandeirolas empunhadas por brancos em manifestações moçambicanas,como por exemplo as da cidade da Beira. E repare que elas realizaram-se ANTES do Abril de 74.

Guiné 61/74 - P20922: Manuscrito(s) (Luís Graça) (184): Parabéns, amiga e camarada Giselda Pessoa (Lisboa); parabéns amiga M... (Costa Nova do Prado, Ílhavo)...


Capa do livro "Nós, enfermeiras paraquedistas", org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2015 439 pp.; isbn: 9789898647351, preço. c. 19 €. A Giselda Pessoa, que tem vários depoimentos neste livro (*), foi a primeira camarada, no feminino, a integrar a nossa Tabanca Grande (**).



1. Mensagem de Luís Graça (***):

Giselda: É o nosso pequeno contributo para a tua festa... Só te faltava fazer anos em plena pandemia... Só te faltava, de resto,  uma pademia como esta para pores no teu currículo... 


Mesmo "aquarentenados", e sem podermos ir a Monte Real este ano,  temos que continuar a celebrar a camaradagem e a amizade. Luís & Alice

Giselda, a nossa querida enfermeira,
Não ficou no céu da Guiné (e)strelada (*),
É de há muito nossa grã-tabanqueira,
Por todos nós sempre acarinhada.

Com as demais, poucas, paraquedistas,
Abriu portas à mulher portuguesa,
Ninguém lhes diz que foram feministas,
Nem ela quer títulos de nobreza.

Faz hoje anos, mas aquarentenada,
Só lhe faltava uma pandemia,
Mas estará bem-apessoada,
P’ra nosso descanso e alegria.

Muita saúde e uma longa vida,
É o que a nossa Tabanca te deseja,
Toda a malta te está reconhecida,
E diz: “Que p’ró ano a gente cá ‘steja”.


Com um "balaio" cheio de telebeijinhos e telechicorações da malta toda!.

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2. Também faz anos hoje uma amiga, nossa, do peito... Aqui vão uns versinhos para ela  que está, como todos nós,"em casa", por causa da pandemia de COVID-19... Este ano não podemos sentar-nos à mesa para celebrar. Tivemos que recorrer à videoconferência:


E Deus apontou na agenda… o teu pedido

(Soneto para a nossa amiga M…,
que hoje faz anos
e, que está, que pena, 
em casa de quarentena,
na Costa Nova do Prado, Ílhavo)

 

Quem nos diz que Deus castiga sem pau nem pedra,
Dev’ estar a pensar nesta nova pandemia,
Que me ameaça a vida e a alegria
Na Costa Nova, onde agora a doença medra.

Mas, meu Deus, porquê logo eu, confinada ?
Se o tal vírus é a tua ira divina,
Vou aplacá-la, mesmo no fundo de uma ravina,
Mas poupa-me, qu’eu sempre fui bem comportada!

Não, a doença não é castigo de um tal deus,
Que, a ser perfeito, não é cego, surdo e mudo,
E vai poupar-me a mim e a todos os meus.

E logo hoje: celebro mais um aniversário,
E pensava que tinha direito a tudo…
Mas, vá lá, só quero chegar… ao centenário!

29 de abril de 2020

Dos amigos Luís & Alice,

Guiné 61/74 - P20921: 16 anos a blogar (7): Os camiões Volvo... e outras peripécias da cooperação com Bissau (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

1. Mensagem de António Ramalho  [ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira, membro da Tabanca Grande, com o nº 757: tem mais de duas dezenas de referências no nosso blogue]
Date: terça, 28/04/2020 à(s) 17:25

Subject: Camions Volvo na Guiné!

Caro Luís Graça,  boa tarde.

Cada dia louvo mais a tua iniciativa da criação deste excelente blogue!

Ao visitá-lo preenche-me o tempo e confirma aquilo com que muitos de nós nos questionamos: O que fomos lá fazer?

Os políticos não aproveitaram a nossa presença nada fizeram,  os nativos muito menos, o resultado está bem à vista!

lá que a Suécia só enviou Volvos para trabalhar, ainda bem que não enviou também Suecas para os conduzir!

O que será feito do navio/escola de pesca "Noruega", último grito da tecnologia à época, assim se dizia, que este país para lá enviou após 1974, tens algumas notícias?

Na mesma linha conheço uma pessoa ligada ao fornecimento de geradores, instalação, conservação e reparação dos mesmos.

Este ano fez uma instalação para um hotel, recomendando que o cabo deveria ser enterrado, protegido, sinalizado e coberto com areia.

Muito bem, estava aterrando de regresso a Lisboa, recebeu a notícia de que o cabo e o quadro tinham ardido, todos adivinhamos a razão, total desprezo pelas recomendações sugeridas.

Além da interrupção do fornecimento de energia, e os transtornos que provocou os custos foram elevadíssimos, e assim continua aquele país para o qual nós contribuímos com o nosso esforço e abnegação em várias ocasiões, é no mínimo lamentável!

Outro amigo ligado ao descasque e branqueamento de arroz, com uma unidade móvel, viu-se e desejou-se para progredir e libertar-se de um emaranhado de situações, deixando lá uma mão cheia de dólares!

Um dia que passe por Oliveira de Azeméis terei todo o gosto em ir visitar a barbearia do Simão que ostenta um nome pomposíssimo, não consegui fixá-lo, irei levar-lhe um bife de Carne Alentejana para oferecer ao "seu" Alferes!

Não dou como tempo perdido e aprecio os camaradas que têm a coragem de lá voltar em visita, não consigo apesar de algumas boas recordações e bons momentos de sã camaradagem, não consigo ver destruído aquilo que construí ou tentei ajudar a construir!

Qualquer ONG, com o patrocínio da ONU ou outra, deveria encarar e preocupar-se com aquele país em total consonância com as entidades locais, ser entreposto para negócios ilícitos poucos lucram, tanta mancarra, caju e beanda que haverá para produzir!

Continuação de uma excelente quarentena para todos, temos que nos cuidar!

Um forte abraço


António Fernando Rouqueiro Ramalho

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Guiné 61/74 - P20920: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (17): Um condutor zeloso e cumpridor do seu dever

1. Em mensagem do dia 23 de Abril de 2020, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) manda-nos mais uma recordação da sua CART, hoje o exemplo de "Um condutor zeloso e cumpridor do seu dever".


RECORDAÇÕES DA CART 2520

Um condutor zeloso e cumpridor do seu dever

Uma das missões da CART 2520 era manter a segurança da estrada Xime/Bambadinca às colunas de viaturas militares que desembarcavam no Xime vindos de Bissau pelo rio Geba e seguiam depois para o interior da Guiné, ou vice-versa. A segurança da estrada consistia na picagem do itinerário até à Ponta Coli e uma vez aí chegados emboscávamos à beira da estrada, normalmente junto às árvores existentes e eventualmente junto aos chamados "baga-baga". Também montávamos o nossa própria segurança quando era necessário deslocarmo-nos a Bambadinca ao Batalhão 2852 e a Bafatá para a compra de víveres. Normalmente assim que as colunas de viaturas passavam, regressávamos à nossa base.

Certa tarde o Capitão Maltez, à falta do Alferes Marques, ordena-me para ir fazer uma segurança à Ponta Coli, iria desembarcar no Xime e seguir para Bambadinca uma coluna militar. E lá vamos nós cumprir a nossa missão com o pelotão bastante desfalcado, Furriel Monteiro "cá tem", estava no Enxalé; Furriel Soares "cá tem", estava nos reordenamentos em Nhabijões com outro militar do nosso pelotão. Como seria normal nestas ocasiões deveria seguir também um elemento de transmissões e um enfermeiro, mas como era para voltar de seguida, o capitão entendeu que estes elementos ficariam no quartel.

Estrada Xime-Ponta Coli-Bambadinca
Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

Instalados e emboscados no local a segurança está montada e passados alguns minutos as viaturas começam a passar. Uma, duas... até que uma das viaturas que seguia rebocada por outra, fica imobilizada em virtude de ser partido o cabo de reboque. Esta viatura tinha a mobilidade bastante reduzida porque creio eu, tinha sofrido um acidente ou se tinha incendiado. Feitas algumas tentativas em vão para seguir percurso, um dos responsáveis pela coluna pergunta-me se posso ficar ali mais algum tempo a fazer a segurança enquanto iriam a Bambadinca, voltariam muito breve para rebocar a viatura sinistrada, ao que eu acedi. Ficou junto a nós o militar condutor responsável pela viatura.

O tempo passa e a noite começa a cair sem que se vislumbre o regresso dos militares para fazer o necessário reboque. Dou indicações aos meus elementos para que se juntem mais, devido ao dia começar a escurecer e a visão entre os operacionais ser menor. Na minha cabeça começa a pairar o panorama ter de permanecer no local durante a noite sem estarmos preparados para tal, sem alimentação, com munições em quantidade mínima para a ocasião, sem enfermeiro e com a impossibilidade de comunicar com o nosso quartel por falta do operador de rádio e iria pôr em risco a vida de mais de 20 operacionais.

Uma ideia que me ocorreu foi regressar ao Xime e aí chegados, o Capitão Maltez decidisse o que fazer, mesmo que fossemos nós a voltar ao local, mas devidamente preparados para permanecermos naquele lugar extremamente perigoso durante uma noite, de guarda a uma viatura assucatada. Dirijo-me então ao condutor e digo-lhe o que pretendo fazer, ao que perentoriamente me responde: - Eu não abandono a viatura!
Fico a ferver de raiva, o que fazer com este gajo? - pergunto a mim mesmo. Levá-lo obrigado era completamente impossível e abandoná-lo junto à viatura, nunca o iríamos fazer, era impensável. Faço várias tentativas de o persuadir, mas em vão, a sua recusa em sair do local é determinante.

Esperamos, esperamos, a noite já havia caído, a nossa ansiedade aumentava a cada minuto, quando do lado de Bambadinca se ouve o barulho característico dos motores das viaturas a trabalhar, são os elementos que vêm proceder ao reboque da teimosa viatura e recolher o bravo e determinado condutor de que nada o demoveu de cumprir a sua missão como militar português. A salientar que as viaturas já vinham de luzes acesas o que não era muito aconselhável para a situação, talvez por desconhecimento da zona. Regressamos enfim, à nossa base, chegados ao nosso Xime já o sol tinha ido iluminar outras paragens havia mais de uma hora.

Para todos os camaradas desta Tabanca Grande um abraço.
José Nascimento
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20768: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (16): O Furriel Pestana

Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
São curiosidades, este punhado de notas respigadas do Boletim Geral das Colónias, mas permitem várias leituras. Sarmento Rodrigues, o Governador que pôs a Guiné no mapa, muito fez para intensificar processos agrícolas que assegurassem autossuficiência alimentar, que garantissem trabalho. Na inauguração desta barragem de ourique, di-lo expressamente, aquelas toneladas de arroz seriam para a população, não para o Governo. E satisfaz-nos a curiosidade o artigo com dados científicos sobre o sucesso da cultura de amendoim na Guiné.
Recordo que por essas décadas de 1930, 1940 e 1950, os responsáveis do BNU na Guiné falavam abertamente na venda da mancarra com uma absoluta falta de qualidade, cheia de impurezas, o que a desqualificava no preço junto dos mercados para onde se exportava, aliavam essas informações críticas à falta de apoio no fomento agrícola, pondo os serviços agrícolas oficiais pelas ruas da amargura. São pois curiosidades mas que permitem, de qualquer modo, perceber os graus de desenvolvimento da Guiné no exato momento e que a sua economia levantava voo.

Um abraço do
Mário


A planta do amendoim, Guiné.


Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2):
A que se deve o êxito da cultura do amendoim na Guiné Portuguesa

Beja Santos

No número de Abril de 1948 no Boletim Geral das Colónias, Armando Xavier da Fonseca, a quem já devemos uma referência a um artigo seu sobre madeiras da Guiné, debruça-se sobre o sucesso da exportação da mancarra, a Guiné superava Moçambique e Angola, e por números expressivos. Ele escreve: “Se com más sementes, sem nenhuma interferência das mais rudimentares máquinas agrícolas, sem mais do que uma monda, melhor ou pior, usando de processos violentos, mesmo que fossem usados fora de um clima de África, na preparação da terra, na sementeira, sem o principal granjeio que é a amontoa, para afofar a terra, para que as flores mais facilmente se enterrem para fortificarem, qual é o segredo que permite que o amendoim, se as chuvas de outubro não vêm, dê uma tonelada de sementes por descascar, como dão as piores culturas do Estado do Texas, na América do Norte?”.
E ele procura responder:  
“Na Guiné temos a demonstração feita do valor que tem a cultura das leguminosas, representadas principalmente pelo amendoim. O exemplo da nossa Guiné tem sempre de ser citado, como verdade que é: onde as leguminosas se cultivam abundantemente raras vezes é necessário aumentar a riqueza dos terrenos, salvo nas faltas de cálcio, fósforo e potássio. A própria experiência agrícola reconhece, desde sempre, o facto evidente de que, onde se cultivam as leguminosas em abundância, raramente se recorre a adubos químicos, principalmente aos azotados, sendo apenas precisos os de cálcio, fósforo e potássio, que na Guiné se obtêm pelas queimadas. Como não vi até agora campo de demonstração mais positivo, cito sempre o exemplo da Guiné na cultura da leguminosa que é o amendoim, que é valiosíssima porque se trata também, como se sabe, de um grande alimento, uma excelente forragem e acima de tudo isso, fertilizadora das terras em que é cultivada”. E demonstra possuir conhecimentos bastos sobre o valor do amendoim: “Desde 1886, que se sabe que esta extraordinária qualidade, até então misteriosa, que têm as leguminosas de reunir, armazenar e oferecer, em forma de alimento, forragem ou adubo, muito mais azoto do que aquele que se encontra na terra, é devido à presença, função e actividade de umas bactérias que se metem pelos estomas ou poros dos pelos das radículas, quando estas saem do germe ou semente”.

É um artigo de divulgação científica de quem domina a química alimentar e sabe da engenharia de solos, explica as funções das bactérias fixadoras do azoto, das bactérias das nodosidades das raízes das leguminosas e as suas propriedades.
E termina assim o seu trabalho:  
“Há também outro assunto que desejo focar e que é vulgaríssimo nas extensas lalas da Guiné, cultivadas com amendoim; é a facilidade com que as palhas do amendoim se transformam, mesmo nos terrenos mais ordinários de laterite grosseira. A razão já a deu a ciência: é porque os restos das leguminosas, devolvidos às terras, são rapidamente atacados por microrganismos que se multiplicam muito em resultado deste alimento adicional azotado. Muitos estudos têm sido feitos para determinar quanto azoto aproveita uma colheita a seguir a uma de leguminosas, empregando esta última como adubo verde e em que condições resulta mais perfeita e efectiva, e demonstraram que 50 a 80% do azoto é aproveitado pela primeira colheita seguinte. O efeito fertilizante dos restos dura uns dois ou três anos, mas diminui progressivamente de eficácia. A acção da cultura do amendoim tem-se desenvolvido afortunadamente nas nossas colónias, nestes últimos anos, e a Guiné não escapou a essa onda salvadora”.

Terminamos esta ronda de curiosidades extraídas do Boletim Geral das Colónias com a inauguração feita em 10 de fevereiro de 1946 da “grande barragem de Picle, situada no Posto Administrativo do Biombo, Bissau”. Atribuía-se grande importância ao empreendimento, era uma barragem cuja extensão de ourique era orçada em mais 14.000 metros. A previsão era uma produção de arroz calculada em 2.000 toneladas. Esteve presente Sarmento Rodrigues, mulher e filhos, recebeu os cumprimentos do Administrador do Concelho de Bissau, Francisco Artur Mendes e do Chefe do Posto do Biombo, João de Oliveira Seborro. O Governador percorreu cerca de um quilómetro sobre o dique, conversou com os indígenas e garantiu-lhes que o arroz produzido por esta nova extensão era para eles. Inaugurou-se um padrão, o Administrador pronunciou algumas palavras alusivas à cerimónia, estava-se ainda nas comemorações no âmbito do V Centenário do Descobrimento da Guiné. Sarmento Rodrigues encerrou os discursos declarando ser destituído de lógica o conceito tão generalizado de que os indígenas não estavam prontos a trabalhar, ele estava absolutamente seguro que eles empregariam o seu esforço desde que nele vissem a justa compensação de um objetivo que lhes facilitasse os meios de subsistência. Sarmento Rodrigues, finda a cerimónia junto do padrão, procedeu à distribuição de tabaco aos chefes indígenas assim como de vacas e mantimentos – arroz, vinho e aguardente – aos habitantes que colaboraram no ourique.




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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20888: Historiografia da presença portuguesa em África (206): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (1) (Mário Beja Santos)