sábado, 23 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21002: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (11): O Bando festejou mais um ano

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, dedicada ainda ao confinamento.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 10

O Bando fez mais um ano


“Num te mexas beilho, não.
Nem gozes a bida, não.
Bais ber o que perdeste,
Ou a merda que fizeste.
Já foste, ó meu Morcão!”

(autor desconhecido)

No final de cada ano, cada individuo devia fazer uma retrospectiva e destacar quais os melhores dias que passou. Pelo que tenho observado, poucas são as pessoas que ultrapassam o registo do número dos dedos de uma mão.

Felizmente que nem eu nem os meus principais amigos pertencemos a essa multidão de morcões que espera pacientemente pela sua “boa horinha do Senhor”.

Ora aqui está uma boa razão para manifestar a minha satisfação por ter vivido mais um ano de alegrias e de bons convívios. Dentre eles, terei que destacar as oportunidades bem vividas junto do nosso Bando.

Com o Bando, saboreamos boa camaradagem, boa amizade e a boa gastronomia, cultivamos os conhecimentos e promovemos o bom-viver.

Visitámos os lugares mais lindos, os mais históricos e os mais sagrados. Apreendemos o nosso Património, revivemos as nossas raízes e recordamos as nossas tradições.

Quinta Sr.ª da Graça

Com o Bando, tanto olhámos deslumbrados o nosso Douro (Vila Real, Régua, Mogadouro, Pocinho, etc.) como convivemos nas fraldas do Barroso, nas encostas do Alvão e do Marão, nas vinhas de Penafiel e da Sr.ª da Graça, nas escarpas da Senhora do Salto e da Serra do Pilar, nas praias do Litoral, nos jardins do Bom Jesus de Braga, de Aveiro, de Ponte de Lima ou no “presépio” de Crestuma.

Galafura - Douro

O Bando assalta o Castelo do Mogadouro

No Big Beef

Com o Bando, fomos ao Museu do Douro, Museu dos Clérigos, Museu Militar, Museu do Gramido, Museu Vivo dos Combatentes, Museu do FCP, Parque Biológico, Jardim Botânico, Museu do Infante, Museus de Vila do Conde, Museu das Conservas da Murtosa, Museu do Montesinho, Museu dos Pescadores de Espinho, Museu Souza Cardoso de Amarante, a Nau Quinhentista, o Isqueiro da Maia, etc., etc..

Na Nau Quinhentista e outros Museus de Vila do Conde

Com o Bando, relembrando os nossos camaradas, fomos ainda ao RAP 2, ao GACA 3, ao Dia do Combatente de Gondomar, ao 10 de Junho de Crestuma e ao 25 de Abril na Régua.

No GACA 3 - Espinho

Com o Bando, percorremos os lugares mais típicos e mais simbólicos da nossa mui digna Cidade Invicta (o Porto, pois claro!), Património da Humanidade. Aqui, cabe referir que beneficiámos da companhia do Bandalho Jorge Portojo, mais que “Doutor” a falar sobre a História Tripeira. Ribeira, Banharia, Sé, S.Bento, Fontaínhas, Batalha, Aliados, Bolhão, Campo 24 de Agosto, Antas, Areosa, Carvalhido, Boavista, Campo Alegre, Palácio, Caldeireiros, Massarelos, Foz, Alfândega, Infante, etc., etc., são pontos de referência permanente e cheiinhos de Histórias. E, no que toca a nomes, ele discorria facilmente sobre as personagens mais sonantes do burgo portuense e arredores. Dava gosto ouvi-lo quando lembrava as origens do Porto e de Portugal, os seus donos na Idade Média, o Infante D. Henrique, a fauna fluvial do Rio Douro, a Ferreirinha, as guerras, as revoluções, os Bispos, o Camilo, o Eça, o Alexandre Herculano etc., etc..

O Portojo gozando das imagens nas alturas (e dos digestivos), no “17º.” do Hotel D. Henrique

E, por fim, em jeito de Almoço de Natal, já fomos contemplar o Porto, através da panorâmica disponível no Restaurante 17.º, do Hotel D. Henrique, fomos à Taberna do Rústico e à Quinta do Costa.




Também com o Bando, saboreámos os melhores petiscos da região nortenha. Seria injusto se não lembrasse:
- O Cozido Transmontano do Pires
- Os petiscos do Regula e do Ramirinho
- O Sável do Vigário de Atães
- Os Rojões do Pinto da Rua dos Polacos
- As Tripas da Rosinha da Marroca
- A Cabra Velha do Súcio
- A Paella do Ricardo de Recarei
- O Leitão da Casa do Casalinho
- O Bacalhau à Liberdade da Churrasqueira das Antas
- Bacalhau com todos no Carpa
- A Carne Estufada de Penafiel
- Chanfana no Pote Velho
- O Magusto da Campeã
- O Risoto do D. Henrique
- Lampreia de Rio de Moinhos
- Arroz de Sarrabulho de Ponte de Lima
- Feijoada da Luísa
- Bacalhau assado no Monte São Felix
- Assado do Big Beef
- Caldeirada na Casa das Enguias (Torreira)
- Posta no Lareira do Mogadouro
- Cabrito no Zeca Diabo de Brunhoso
- Sardinhas no Milho Rei de Matosinhos
- Vitela no Merendola da Maia
- Espetada no Mar à Vista da Madalena
- Lulas com Gambas em Espinho
- A Francesinha na Marisqueira do Porto
- O Polvo no Madureiras
- Caras de Bacalhau no S. Nicolau
- Cabrito refogado na Taberna do Rústico
- Self Service no Choupal dos Melros


Claro que tudo isto só se consegue graças a um excepcional núcleo de amigos ex-Combatentes que, por coincidência, já reuniam no Café Progresso antes de irem para a tropa, para Vendas Novas e, depois, para a Guiné. A eles se juntaram outros habilitados camaradas que, perante boas provas dadas, foram sendo agradavelmente admitidos. Agora, que o Progresso fechou, vão mais ao Piolho, Adega de Chaves, Badalhoca, Calhambeque, Guedes, etc. E chamam-lhe Reuniões de Trabalho.


Sentimos muito a falta dos que já partiram, especialmente a do Fundador do Bando, o Jorge Portojo e a do Bom Professor, o Carlos Peixoto.

Porém, a sua lembrança dá-nos mais força para cada vez mais nos agarrarmos à vida que nos resta.

E porque essa vida está indissociavelmente ligada às “combatentes” que nos têm acompanhado desde a maldita guerra que nos marcou, chegou a hora de lhes darmos maior atenção e maior abertura nos convívios que participamos. Afinal, elas são valentes e sabem mais da guerra que muitos condecorados da nossa Pátria.

Não vamos parar, ó meu!
Nem vamos esmorecer.
Para irmos par’o Céu,
Falta muito que fazer

Se o Covid nos levar
Sem honras, sem orações,
Nunca nos vai apagar
Das boas recordações.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20980: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (10): Feliz em África (em jeito de biografia)

Guiné 61/74 - P21001: Os nossos seres, saberes e lazeres (394): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Enquanto o viandante percorre as escavações de Herculano e medita neste capricho do destino que foram aqueles bons metros de lava e lama que "congelaram" a existência da cidade e permitem agora este maravilhamento que é percorrer um mundo que se extinguiu há quase dois milénios, pensa-se no Vesúvio, que é muito belo de ver à distância, é imponente e sobranceiro na sua vastidão de rocha vulcânica, há uma rota turística para visitar o Monte Vesúvio, contemplar as suas vinhas com uvas Lacrima Christi que davam um dos melhores vinhos de Itália - é uma beleza terrífica, nas camadas de cinza e nas correntes de lava fica a lembrança de um poder destruidor que mudou a vida em Pompeia e Herculano.
Agora, depois do cataclismo, é o calmo peregrinar por esse mundo perdido, e aplaudir a paciência e a sabedoria dos arqueólogos que desnudam esse opulento mundo perdido.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (5)

Beja Santos

O viandante sobraça o guia de Nápoles e a costa amalfitana, um daqueles livros onde cabem vulcões, património edificado com museus, igrejas e ruínas, um pouco da história da cidade, lugares onde comer e ficar, shopping e entretenimento. A informação é útil e completa o pequeno guia de Herculano oferecido à entrada do parque arqueológico. A cidade tornou-se parte do Império Romano em 89 a.C., era próspera, contígua ao mar e quando em 79 d.C. a erupção do Vesúvio soterrou Pompeia cobriu igualmente Herculano com uma camada profunda de lava e lama, acabaram por ser o prodigioso elemento que levou à conservação destas escavações que estão patentes ao público e que, insista-se, são uma parte minoritária da primitiva Herculano. Olhando à volta, pergunta-se com tanto casario a rodear estas escavações, o que será possível fazer mais. O que é pena, veja-se a beleza que as escavações oferecem e imagine-se o muito que ainda há para ver. Logo a seguir, a imagem num estabelecimento que servia comida, não esquecer que era prática romana almoçar fora de casa, deviam ser fogareiros que permitiam servir à ilustre clientela um buffet quente, era assim o takeaway do Império Romano.


A visita a Herculano, tal como a Pompeia, permite conhecer as divisões da casa, o átrio, com a sua parte central que recolhia a água da chuva, o impluvium, as paredes decoradas, a sala de estar, também decorada, o tablino, que estava situado entre o átrio e o peristilo (jardim rodeado de pórticos ou galerias com colunas). Os dormitórios davam pelo nome de cubiculum. Os elementos religiosos eram recorrentes, os romanos tinham os seus deuses domésticos, os manes.



O viandante entra agora numa casa chamada a Herma de Bronze (uma herma é um busto sem braços assente num pilar), este senhor seria o dono da casa, impressiona muito.


Em Herculano todas as habitações escavadas têm nome: a Casa de Aristides, a Casa do Esqueleto, a Casa do Albergue, a Vila dos Papiros (não está patente ao público, sabe-se que inspirou a construção do museu Jean Paul Getty em Malibu, Los Angeles), o viandante fica intrigado, gostava de saber mais, segue em diante, vai a outras casas, entra na sede dos sacerdotes augustais, é de uma rara beleza, descodifica um pouco a prática religiosa romana. Para os libertos, antigos escravos, o facto de se poderem transformar em sacerdote augustal dava-lhes ascensão social. Tinham então um colégio consagrado ao culto do imperador Augusto, que se situava na área do fórum, o local onde se desenrolava a vida política, religiosa e comercial da cidade. O que mais impressiona são os seus frescos. As outras casas que se podem visitar dão-nos conta da organização do espaço doméstico, como se pode ver na imagem seguinte.





Herculano revela estabelecimentos, casas com átrio repleto de mosaicos, casas com varandas de madeira, com jardins, com entradas repletas de colunatas, há mesmo uma casa com átrio coríntio, outra que possui um grande portal. Impressiona o ginásio que é um gigantesco complexo arquitetónico destinado a atividades desportivas. Só uma parte do edifício foi alvo de escavações, o que se pode ver em colunas é de cortar a respiração. Neste ponto da visita considera o viajante que é bom saber que todo este reboco foi restaurado, as ruínas de Herculano estão a céu aberto, desapareceram as proteções em pedra, durante os restauros acordou-se em fortalecer as paredes para evitar mais deteriorações. É uma operação de conservação que garante uma longa vida para estes achados arqueológicos que fazem parte do património da humanidade.




No termo da visita, o viandante foi conhecer as réplicas das tais ossadas de alguma gente que fugia espavorida do inferno vulcânico, carregada dos seus haveres, numa efémera tentativa de se salvarem no mar, o que não aconteceu. Com a barriga a dar horas e meditando nas partidas do destino e nas erupções vulcânicas que não escolhem idades nem ricos e pobres se põe termo à visita a Herculano. Resta ir comer, flanar pela baía de Nápoles, entrar nos bairros populares e descansar o corpinho, amanhã é dia de partida para a costa amalfitana, caminhar até Ravello.


(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20979: Os nossos seres, saberes e lazeres (392): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 22 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20999: Os nossos seres, saberes e lazeres (393): Diário de um confinado (... mas não condenado) (José Saúde, Beja, abril de 2020)

Guiné 61/74 - P21000: PAIGC - Quem foi quem (13): Areolino Cruz, professor do ensino primário, que alegadamente terá perdido a vida ao tentar salvar os seus alunos durante um bombardeamento, em Cubucaré, em 17 de fevereiro de 1964 (Cherno Baldé / Jorge Araújo)


Fundação Mário Soares > Portal Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Pasta: 07065.084.016 > Título: Requisição de material de ensino > Assunto: Requisição de material de ensino, assinada por Areolino Cruz, para a zona Sul > Data: Quarta, 22 de Julho de 1964
Citação:
(1964), "Requisição de material de ensino", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40014 (2020-5-22)

1. Troca de comentários ao poste P20994 (*);

(i) Cherno Baldé:

Estas cartas mostram, se dúvidas existissem, quão difícil foi iniciar a luta na zona Leste, pois eles (os guerrilheiros) estavam mais aterrorizados do que as populações civis a quem deviam aterrorizer e meter medo: tinham que passar todo o tempo escondidos no mato, porque se fossem detectados pela população eram presos e apresentados as autoridades coloniais.

As cartas sobre o ataque a Pirada e sabotagens [pontes, linhas telefónicas,,,], provavelmente, nada seriam do que um "bluff", para mostrar, à direcçao superior do partido, alguma acção no terreno, porque na verdade tinham imensas dificuldades de movimentaçao e abastecimentos e não podiam contar com o apoio da população local.

Esta situação de desespero criou no partido o sentimento anti-fula que resultou depois no genocídio dos líderes desta etnia no pós-independência.

O Areolino Cruz é hoje  considerado herói nacional [, tem nome de rua em Bissau e nome de liceu regional/escola secundária em Catió].

Desse grupo de guerrilheiros, penso que só Chico Té [ , Francisco Mendes,]  assistiu à independência em 1974.

O Areolino Cruz foi professor numa escola da região de Cubucaré (no Sul do país) onde morreu durante um bombardeamento no dia 17 de Fevereiro de 1964, dia festejado na Guiné Bissau como o dia do Professor em homenagem à sua morte.

Quanto ao Yaya Koté, a grafia do seu nome indica que é natural ou naturalizado no Senegal, podendo ser descendente de pais de origem Guineense, pois a grafia portuguesa na Guiné portuguesa seria Iaia Coté, portanto diferente. Seria daqueles aventureiros que se juntaram ao movimento,  contando com a rápida independência do território, mas que depois se afastaram em virtude das dificuldades encontradas no terreno...Fazia de elo de ligação com os elementos de Dakar, facto que confirma a sua facilidade de movimentos no Senegal.

Quanto ao tal Demba... Não se trata do mesmo Demba, criado do [comerciante de Pirada,] Mário Soares, este ninguém o tirava da mesa do M. Soares, muito menos para ir morrer de fome no mato. Se calhar morreu depois da partida do patrão em 1974/75.

O Demba mencionado na carta, fazia parte do grupo dos poucos fulas que, no início, o PAIGC conseguira mobilizar para a guerrilha no Senegal, mas que, de seguida, abandonariam o barco devido às dificuldades e à feroz perseguição de que foram alvo no Chão fula.

(ii) Luís Graça:

Estes documentos de 1963 são bem elucidativos das tremendas dificuldades por que passou a guerrilha do PAIGC no chão fula, em especial no Gabu... Pirada (e não só) era um sítio hostil...Já em Bambadinca e Xime havia importantes núcleos balantas... como Nhabijões, Samba Silate, Poindom...


(iii) Cherno Baldé:

Contrariamente ao que se possa pensar, em Bambadinca e Xime a semente da rebelião não estava na população Balanta (vítima do seu caracter rebelde e belicoso), mas sobretudo entre os ponteiros mestiços e assimilados (Guinéus e Caboverdianos) das familias dos Semedos e Pereiras que detinham grandes extensões de terras agrícolas e que utilizavam os Balantas como mão de obra nas suas pontas (as tais pontas do Inglês, entre outras). 

No inicio as autoridades militares não conseguindo fazer uma leitura correcta da situação, perseguiram e massacraram muitos inocentes apanhados no meio e assim conseguiram empurrá-los para o lado da guerrilha.

(iv) Jorge Araújo:

Caro Cherno Baldé: Antes de mais, os meus agradecimentos pelas informações complementares ao meu texto acima. São sempre achegas oportunas e relevantes, que ajudam à compreensão do(s) contexto(s)

[...) Quanto ao assunto relacionado com a morte do Areolino Cruz (e não Aerolindo):

Referes que "foi professor numa escola da região de Cubucaré (Sul do país) onde morreu durante um bombardeamento no dia 17 de Fevereiro de 1964 [último dia do I Congresso do PAIGC], dia festejado na Guiné-Bissau como o dia do Professor em homenagem à sua morte”.

Porém, em consulta aos meus apontamentos, verifico que em 17 de Junho de 1964, ou seja, quatro meses depois, Amílcar Cabral manda-o apresentar ao Nino Vieira, com uma guia de marcha, onde consta:

“Vai o camarada Areolino Cruz apresentar-se ao camarada João Bernardino Vieira (Nino) na zona 11, para ser integrado nos serviços de instrução (ensino) no chão dos Nalus.

"O camarada Areolino Cruz, que era estudante e tomou parte activa no complô contra o Partido, está sujeito a uma sanção suspensa de expulsão do Partido. Por isso, não tem quaisquer direitos de membro do Partido e deve ser rigorosamente controlado pelos responsáveis. Deve ser enviado um relatório mensal sobre a sua conduta, ao Secretário-Geral.”

Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40246

Será que se trata da mesma pessoa?

(v) Luís Graça:

Mito ou não, o Areolino Cruz é descrito, na “hagiografia” do PAIGC, como um professor que perdeu a vida ao tentar salvar os seus alunos durante o bombardeamento de Cubucaré, no dia 17 de Fevereiro de 1964...

É um dos heróis nacionais, "combatente da liberdade da Pátria"... E os guineenses, como todos os povos, "precisam de heróis". de exemplos inspiradores... Tem nome de ruas, de estabelecimemtos de ensino, etc.

Mas o que passou realmente com este Areolino ?

Também já tinha dado conta, no Arquivo Amílcar Cabral, do "anacronismo" apontado pelo Jorge Araújo... Ele morre, estranhamente, no último dia do Congresso de Cassacá, no Cubucaré, em 17/2/1964... E em 17 de junho do mesmo ano, Amílcar Cabral manda-o, de castigo, com "guia de marcha",  para o sul, para ser "reeducado" pelo 'Nino' Vieira ?  Afinal, onde é que ele estava ?

Pode ser um erro de dactilografia, um erro no ano... Mas podia ser 17/6/1963 ? Nessa altura está em Pirada e é co-autor da carta de 10 de julho de 1963, transcrita pelo Jorge Araújo...

Já agora, de que chão seria o Areolino Cruz ? Manjaco ?

No portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, encontrámos o seguinte documento, da época colonial (1933), que faz parte hoje do arquivo do INEP / Bissau, e que fala de um "arrolador" (recenseador) de nome Areolino Cruz, talvez um antepassado do homónino, combatente do PAIGC... Pai ? Avô ? Bisavô ?.

Instituição:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau
Pasta: 10426.215
Assunto: Solicita envio dos elementos do arrolador Areolino Cruz.
Remetente: António Pereira Cardoso, 1.º oficial, Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas
Destinatário: Administrador da Circunscrição Civil de Canchungo
Data: Sexta, 3 de Novembro de 1933
Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas
Tipo Documental: Correspondencia
Cota Original: C1.6/13.215

http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10426.215

(vi) Cherno Baldé:

Caro Jorge Araujo,

Pode haver algum problema com a data oficial da sua morte em Cubucaré, que não sei explicar, é bem provavel que tenha sido um ano depois, em 1965.

De notar que, alguns meses depois da sua passagem por Pirada e arredores,  documentada pelas cartas publicadas neste Poste (*), o Areolino (Lopes) da Cruz seria enviado à URSS para continuar seus estudos e em finais de 1963 (Setembro e Outubro) ele escreve aos irmãos Cabral (Luís e Amílcar) da cidade de Leninegrado onde estava a frequentar a Faculdade preparatória da lígua Russa. Todavia, sabe-se que depois houve problemas no seio dos estudantes sobre questões políticas, nomeadamente sobre a difícil questão da luta no interior e sobre a unidade Guiné/Cabo-Verde. (Fonet: Arquivo da Casa Comum)

Tudo leva a pensar que se trata do mesmo individuo que, infelizmente, terão mandado regressar e transferido para uma escola do Sul, na zona 11, como referiste na nota, para ser cuidadosamente observado, tipico dos métodos estalinistas usados pelo PAIGC durante e apás a luta.

(vii) Jorge Araújo:

Caro Cherno Baldé,

Obrigado pelas notas supra. Algumas delas já estavam incluídas nos meus apontamentos, pois fazem parte do espólio documental do Arquivo de Amílcar Cabral, disponível na Casa Comum, onde a sua consulta é pública.

Perante a ausência de informações concretas, sobre as questões em aberto, significa que este dossiê não ficará fechado, aguardando por novos/outros desenvolvimentos. Até breve.

(viii) Luís Graça;

No livro de Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita" (Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp) (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11), há uma informação detalhada sobre "guerrilheiros caídos no campo da honra" (Parte V). São duas dezenas, entre eles o Areolino Cruz.

Diz Bobo Keita,  na pág. 242:

 (...)"pertencia a uma família bem conhecida em Bissau. Indivíduo bastante instruído, foi para a luta e o seu desejo foi sempre o de trabalhar no domínio da educação. Era responsável pelo setor de educação no Sul (...). Ocupava-se do enquadramento e da educação dos jovens na escola primária. Morreu durante um ataque inimigo apoiado pela aviação. Foi violento".

Não diz o o local e a data da sua morte. (**)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20999: Os nossos seres, saberes e lazeres (393): Diário de um confinado (... mas não condenado) (José Saúde, Beja, abril de 2020)




Beja > Abril de 2020 > O Zé Saúde... "confinado mas não condenado"

Fotos (e legenda): © José Saúde (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem do José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), jornalista e escritor, residente em Beja, com 190 referências no nosso blogue:

Data: 15/05/2020, 17:35 
Assunto: Diário de um confinado



Luís, boa tarde

Tu, como administrador do nosso blogue, entendes que a temática que escrevo tem cabimento no nosso espaço?


Todos vivemos a preocupação do covid-19, e todos falamos a mesma linguagem de uma pandemia que por ora nos aflige.

O texto é longo e tem três fotos e foi feito a 20 de abril. Deixo isto ao teu critério, se entenderes publica. Ah, falo também de dois camaradas nossos por terras guineenses.

Abraço,

Zé Saúde


Diário de um confinado
por José Saúde

O confinamento que o Covid-19 obrigou!

Somos ínfimas partículas de um universo onde a banalidade dos acontecimentos proliferam, sendo a sua arquitetura surreal construída em peças soltas que ditam fins pressupostamente engendrados e cuja aritmética final baterá sempre certa desde que a conjetura derradeira da prova seja pautada pela exiguidade e o seu fim se apresente estritamente compreensível. 

Agora, confrontado com uma perspetiva inimaginável, o mundo depara-se com uma epidemia que não conhece fronteiras, raças humanas, credos, religiões, natureza das línguas, cores, estratos sociais ou políticos, enfim, um flagelo de consequências ilimitadas que obrigam o mais vulgar cidadão cosmopolita a resguarda-se de um inimigo invisível que dá pelo nome Covid-19.

Nasci no dia 23 de novembro de 1950 em Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, distrito de Beja, Baixo Alentejo.  e no universo celeste de então ainda se falava dos sórdidos alaridos dos sons das armas com as quais os desavindos combateram na Segunda Guerra Mundial a qual ocorreu entre 1939 e 1945. Depois, com a Europa praticamente destroçada, procedeu-se à sua renovação, assistindo-se às emigrações em massa de gentes que procuravam melhores situações financeiras além-fronteiras.

O mundo perante a devastação territorial observada, soube evoluir e a era das máquinas trouxe uma outra performance a uma sociedade que reclamava bem-estar e sobretudo pão para colocar na mesa de famílias famintas que viviam confinadas aos magros salários entretanto auferidos. Da carroça puxada, à época, por uma parelha de animais, às novas máquinas foi um passo gigante, seguindo-se o inovado tempo dos tratores, dos automóveis e sobretudo de uma enorme alteração infraestrutural quer do mundo rural na sua plenitude, quer do urbano.

A humanidade desenvolveu-se, conheceu a expansão das cidades, vilas e aldeias, assim como as novas técnicas industriais e, por outro lado, soubemos, in loco, o quão difícil foi a funesta guerra colonial nas três frentes de combate – Angola, Moçambique e Guiné – onde estiveram envolvidos cerca de 800 mil jovens soldados, intitulados como “carne para canhão” e de onde resultaram 100 mil feridos, 30 mil evacuações e perto de 10 mil mortos.

A evolução entrementes deparada não parou e cresceu desalmadamente no tempo e no espaço, o homem foi à lua, desbravou campos aéreos, implementou novas dinâmicas e chegou ao ponto de denominar tecnologicamente um qualquer espaço independentemente do local onde porventura este se situe. Carrega-se num botão e de repente eis-nos em contacto direto e visual com um outro amigo que se encontra do outro lado do globo terrestre. Acrescesse que as cenas cinéfilas a preto e branco do passado deram lugar à cor e o mundo evoluiu compreensivamente.

Aliás, tudo mudou radicalmente. Na minha singela opinião o universo confronta-se com uma presumível “Terceira Guerra Mundial”, mas sendo esta biológica, química e nuclear. A mãe Natureza é imutável e, quando o homem se fixa no interior de um casulo onde o eu se sobrepõem ao nós, eis que o desfecho tem efeitos tremendamente desastrosos. É o covid-19 a causar danos irrecuperáveis.


Retido em casa

Encontro-me retido entre as paredes de uma casa onde o vazio é uma arma de arremesso que me coloca, felizmente, ainda na prateleira dos seres viventes. Desabafo com os meus botões e eles, embora murmurando de baixinho, respondem-me com altivez: não tombes, transmite-me o mais voluntarioso companheiro no alto da sua irreverente dignidade e eu, obediente, volto a reerguer-me. Vivo só e as visitas, não sendo diárias, dão-me alento para reencontrar o caminho seguro do amanhã.

A minha rotina do dia-a-dia passa pelo levantar cedo, cerca da sete da manhã, como aliás sempre foi costume, tomo banho, desfaço a barba, umas vezes visto-me como se fosse para sair, outras fico em pijama, delicio-me com o meu pequeno almoço e parto para mais uma jornada de trabalho. Ligo o computador e é nele que passo parte dos meus dias de ócio.

Aproveitando a razão de um confinamento imposto pelas entidades oficiais, que se aceitam plenamente, lá vou “matando” o tempo com a escrita, lendo e ouvindo as últimas notícias emitidas pelos canais televisivos. As informações todas elas recaem no covid-19 e das sequelas que o dito cujo proporciona numa sociedade onde os velhos são os mais fustigados, dado que a sua fragilidade é naturalmente superior. X mortos, y de novos casos e w de recuperados.

Creio que o medo que a determinada altura se apoderou da minha pessoa, está diretamente relacionada com o AVC que há quase 14 anos me flagelou, na madrugada do dia 27 de julho de 2006, e que tentou levar-me para o além quando nada o fazia prever. Logo, a minha condição patológica acarreta cuidados redobrados. Sou, portanto, uma das pessoas de alto risco, daí que as minhas filhas, Marta e Rita, diariamente me telefonem para saberem o meu estado de alma.

A Marta vive no Montijo e por volta das 10 horas da manhã, faz o primeiro contacto repetindo o feito ao longo da tarde. A Rita utiliza o mesmo método, para além das visitas onde me traz a comida que consumo em horários considerados adequados. Aqui fica também o profundo obrigado ao meu genro, Paulo Paixão, sendo que ambos se ocupam da missão ao trazerem-me os preciosos bens alimentícios. Aliás, desde que estou confinado a uma casa cheia de nada, é comum às segundas-feiras tanto a Rita como o Paulo trazerem-me o “avio” para a semana.

Uma outra presença, mesmo não sendo constante, é a do meu amigo Chico Fonseca, também ele um camarada na guerra da Guiné que, equipado com uma máscara,  me traz algumas das novidades postas a circular nas ruelas citadinas acerca do covid-19. Numa destas recentes quintas-feiras, 17 de abril, lá me trouxe uma remessa de encomendas para aconchegar na minha dispensa e outras que foram a caminho do frigorifico. A ele estou-lhe verdadeiramente grato.

De resto recebo telefonemas, outras vezes a iniciativa é minha, dos meus amigos Otílio, Zé Cano Brito, Machado, Fernandes, Joaquim Catrapona, Dorival Xavier, Manel Serra, de entre outros que esporadicamente me perguntam sobre o meu estado moral, o que aliás muito agradeço, como foi o caso do Toinho no passado dia 15 de abril. Aqui deixo também o meu bem-haja à minha prima Anazinha, residente em Almada, que nunca se esquece de fazer o favor em me ligar. Ou não fosse a nossa amizade uma espécie de irmãos de sangue.

A lida da casa

Os afazeres de casa foi coisa que nunca me perturbou a mente. Sabendo-se que a minha condição física é limitada, a mão direita resolveu um dia declarar-se ausente às tarefas, utilizo somente a esquerda, aquela que é hoje a minha idolatrada rainha, ponho a mesa, lavo a loiça e volto a colocar os utensílios utilizados no seu lugar. 

Para além destes afazeres diários, faço máquinas para lavar a roupa, estendo-a e passo-a a ferro. Reconheço que o cansaço é, amiudamente, confrangedor dado que a diminuição física acarreta alguns contratempos, mas a minha voluntariedade, assente essencialmente numa enorme ânsia de viver, não me faz recuar perante os obstáculos que me surgem pela frente. O fazer a cama, por exemplo, é uma outra tarefa quotidiana de que não abdico.


Saudades da convivência social

É óbvio que tenho saudades da convivência social e aceita-se que assim o seja. Dos finais de tardes passadas na companhia dos amigos Zé Pardal, um velho companheiro e e também ele camarada da Guiné, Manel Vilão, Fernandes, Léi Marujo, Manel Augusto, Manel Aleixo, Chico do Talho, como é conhecido, Pepe, Correia e Zé Horta, ou do simpático Rui Torres, um rapaz com trissomia 21 que amavelmente se aproxima de nós, sendo a nossa reação de aproximação entendida como profícua, de entre outros companheiros que se juntam connosco à mesa do Café Caixinha, no Bairro de Santa Maria, em Beja, onde a cordialidade do Vítor e da Sandra é digna da nossa afeição, enfim, ali se dispersam um rol de conversas que tempo, já com tempo, dissemina a uma velocidade estonteante.

Tenho também saudades em conduzir o meu carro estrada fora e desbravar os dias solarengos de uma primavera onde o mês da abril nos envia para os tempos em que se conquistou a liberdade no ano de 1974 com a Revolução dos Cravos. Mas este abril nasceu sob o signo do confinamento, um confinamento que aleatoriamente leva o ser humano a um monumental cansaço psicológico reclamando-se laivos de liberdade, não obstante as regras que determinam a razão de o ficar em casa. Todavia, uma luz ao fundo do túnel aconselha-me que lance um grito de “Ipiranga” e soletre calmamente a expressão: quero ser livre, quero abraçar, apertar a mão e beijar, sobretudo os meus netos!

Liberdade

Através dos vidros da janela de um segundo andar vejo movimento, embora limitado, de pessoas em circulação numa rua que acusa uma suprema falta de trânsito. Algumas, poucas, criaturas segurando a trela de animais de estimação, outras com sacos de compras, ou de lixo para jogar para o contentor, outras em carros que se preveem serem gente em trabalho, e eu em casa amarrado ao mui digno conceito que acusa falta de uma liberdade plena.

Olho, atentamente, as fotos dos meus cinco netos que faço questão em manterem-se por perto e à noite contemplo-me com uma videochamada onde nos permite um encontro virtual. Avô e netos reencontram-se à distância porque a liberdade das novas tecnologias permite-nos trocar dois dedos de conversa. Ou quando à socapa vou vê-los, eles na varanda e eu cá em baixo na rua, e com a minha neta Ritinha, na inocência dos seus quatro aninhos, lançando-me o alerta: “avô, vai para casa porque o coronavírus é perigoso”! Tem razão. O avô cumpre.

Com o breu da noite a reclamar descanso parto rumo ao meu leito, seguindo-se uma noite desassossegada por via de um rol de sonhos que teimam em não me aluviar de um stressante dia onde uma imensidade de fantasias me ocorrem amiúde.

Sequioso da liberdade, remeto-me a incentivar o mais incauto cidadão que o tempo que por ora vivemos requer cuidados e sobretudo respeito por nós e pelos outros, porque só assim levaremos no futuro, que se requer próximo, a carta a Garcia.

Soltem as amarras do medo

Sim, é perfeitamente admissível que neste diário de um confinado lance o meu estridente e solidário grito de alerta o qual se encontra perfeitamente enquadrado com a questão sanitária que se abateu sobre o povo: soltem as amarras do medo e viajemos com segurança pelo interior de uma sociedade farta de estar em casa, sabendo-se de antemão que os tempos que sobram passam pela tenaz luta contra um inimigo cujo paradeiro é literalmente marcado pela sua invisibilidade. É, no fundo, o assistir a uma peleja desigual visto que do outro lado da trincheira existe um outro guerreiro, com rosto, nós, que foi apanhado na cilada sem que nada o fizesse prever.

Neste subtil contexto, fica o solidário aviso de um ermita que recusa perentoriamente atirar a toalha ao chão porque a vida, sendo efémera, vale a pena ser vivida. Cuidem-se, porque o barco em que navegamos é o da solidariedade e nele jornadeiam ricos, remediados e pobres, logo pronunciemos com firmeza que o momento é de união e não de discórdia, já que o covid-19 bate às mais diversificadas portas, sejam elas a da ostentação ou a da pura humildade!


Almoço do confinado

Neste permanente deambular à volta de uma mesa onde os bens alimentícios são trazidos não só pela minha filha Rita como também pelo meu genro Paulo, hoje, 22 de abril de 2020, o estômago do confinado nutriu-se com um bacalhau feito no forno, cujo paladar foi abençoado com um copo de vinho da região e pão de São Miguel do Pinheiro.

Para compor a refeição fiz uma salada com tomate, pepino e cebola, regada com azeite e vinagre e, por fim, uma laranja. Convém deixar vincado que arranjar todos estes ingredientes comestíveis dá-me um imenso trabalho. Só com a mão esquerda a funcionar, o serviço, parecendo fácil, de facto para mim não o é. Mas pronto, lá puxo pelas ferramentas escondidas e por fim dou graças por mais um obstáculo vencido.

As notícias

As notícias sobre o covid-19 caem em catadupa. Todo o mundo, o que é absolutamente normal, fala da epidemia. As conversas cruzam-se a uma velocidade estonteante. O medo instalou-se e a sociedade parece martirizada a um confinamento que tarda em conhecer o seu fim.

Reconheço que o covid-19 trouxe uma forma mais real para o ser humano se reencontrar com a veracidade da vida. A monstruosidade de efeitos provocados pela mão do homem neste imenso globo, trouxe catastróficas condições existenciais que levaram a própria Natureza a reclamar a razão pela qual é mãe.

É óbvio que a epidemia conhecida terá tido uma outra razão. Daí a desigualdade conferida na essência da mortalidade. Vejamos: racionalmente conhecemos que os mortos, quase na generalidade, são pessoas cujas idades se situam acima dos 70 anos. É a terceira idade a ver-se confrontada com tamanho mal. Aliás, numa observação atenta no capítulo mundial, verifica-se que os mais idosos são aqueles que sofrem na pele um destino que se apresenta como lógico. Os Lares são espaços que merecem uma maior atenção.

Falando com os meus amigos, pessoas que se situam já casa dos 70, ou próximo desta idade, pois todos na generalidade para lá caminhamos, observo medo neste covid-19. Mostram-se apreensivos e ninguém ousa traçar o caminho do futuro com convicção. Ou seja, projetar o dia de amanhã em segurança. Resguardados em casa limitam-se ao convívio caseiro e nada de visitas. Todos, já com netos, lá vão mendigando a presença dos seus descendentes, todavia, o dever do confinamento e da aproximação lá vai ficando colocada na prateleira dos desejos.

Neste contexto, as notícias não são animadoras. Fiquemos, pois, com a esperança que tudo passará, sabendo-se que nem tudo será como dantes, pelo menos ao dia em que existir uma vacina que “derrube” o maldito covid-19.

Os medos

Confesso, convictamente, que ninguém é herói nesta epidemia que infelizmente nos flagelou. Nos meus elevados 69 anos conheci as mais díspares situações que fizeram o mundo evoluir. Conheci o mau e o bom. Conheci uma outra guerra em que existia um inimigo com qual lutávamos nas frentes de combate. Sim, estive no conflito armado na Guiné, onde assisti a caóticas situações. Camaradas que morreram, outros estropiados, outros psicologicamente atrofiados, outros que passaram imunes às balas que felizmente lhe passaram ao lado, ou a uma mina que rebentou fora da sua área de ação, ou a um flagelamento ao quartel onde tinha sido depositado, enfim, a malfadada guerra aqui era uma outra.

Mas, atualmente, a guerra é contra um inimigo sem rosto e onde a sua invisibilidade acarreta problemas acrescidos. Tenho medo? Sim, porque os medos aqui são literalmente tidos como incertezas do amanhã.

A minha esperança, que é a de todos, que estes medos que ora nos angustiam sejam convertidos em auréolas de felicidade num futuro que esperamos seja risonho.
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Guiné 61/74 - P20998: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Dá-se sequência a um conjunto de esboços de um romance que não chegou a ver a luz do dia, houve um baralhar e dar de novo, a partir de 2006, quando voltei à fala com o Luís Graça, e me comprometi a pôr por escrito o meu diário, deixei no limbo todos os projetos anteriores, seja o que vivi na experiência açoriana, seja na ficção que me ocorreu, e ponho as mãos sobre os livros sagrados como magiquei estes amores que culminaram na Rua do Eclipse. E confesso que me dá prazer rememorar este projeto e as pessoas que o envolviam, reais ou ficcionadas, e que nem lhes passa pela cabeça como estão a ser movimentadas nestes tilintares de memória.
Continuemos, era suposto haver muitíssimo ainda mais para dizer.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo Guilherme, agradeço-lhe os seus telefonemas, são sempre bem-vindos, são esclarecedores do que pretende para o arranjo do romance que está a organizar, espero não o dececionar com a minha colaboração. Estudei vários meses em Lisboa, para dominar com fluência o português, antes do 25 de Abril frequentei um curso de férias na Faculdade de Letras, nessa altura já trabalhava como intérprete, usando as minhas línguas nativas, o francês e o neerlandês, mais o alemão e o inglês, só mais tarde me decidi pelo espanhol e o português. Foi nos estudos em Lisboa que me apercebi da profundidade da vossa cultura, e pode imaginar a alegria que senti há alguns anos atrás, precisamente na Europália 1991, dedicada a Portugal, passei fins de semana nas vossas exposições em várias cidades da Bélgica. Consegui a custo entrada para a exposição do Triunfo do Barroco, no Museu Nacional das Belas-Artes, fiquei abismada com a sumptuosidade das obras apresentadas, já conhecia o Museu dos Coches, mas aquelas carruagens que D. João V mandou ao Papa, ainda por cima bem restauradas, foi um assombro. Estive também na exposição De Goa a Lisboa, visitei-a antes do Natal desse ano, também guardei o catálogo, estava perto do Museu Nacional das Belas-Artes, no Banque Bruxelles Lambert, dedicado à arte indo-portuguesa dos séculos XVI a XVIII, não sabia da importância de S. Francisco Xavier, de toda aquela arte religiosa em marfim, os cofres, os relicários, as imagens dos santos, as alfaias religiosas, os paramentos e até o mobiliário, foi outra completa surpresa, a vossa presença no Oriente deu aquela síntese com as tradições milenares indianas.

Não deixo de refletir como nós, os europeus, que caminhamos para uma maior aproximação do nosso destino comum, temos uma irradiação universal: os portugueses em África, no Brasil e em regiões do Índico, até na China e no Japão; os espanhóis no continente americano; sabemos por onde se fixaram os britânicos e os franceses; assimilámos a cultura greco-latina e as suas desvairadas proveniências; aos holandeses, não podemos subestimar a sua presença comercial em dois oceanos; e se virmos com atenção, os povos nórdicos também se espalharam, misturando-se com eslavos, procurando até conquistá-los. Somos um continente com algumas fronteiras bem precisas mas temos o privilégio de todos estes cruzamentos, em todos os continentes. Tomei nota da sua observação das imisções culturais do que é hoje a Bélgica, a nossa arquitetura é por um lado genuinamente flamenga e francesa. Mas há o passado, e gostei muito que me tivesse falado de Saint-Géry, temos vestígios da presença romana, o bairro era percorrido pelo rio Senne que, como bem sabe, foi todo abobadado do século XIX para o século XX, quando Bruxelas perdeu o ar medieval e passou a ter um traçado urbanístico de grandes boulevards. Ainda bem que gostou da requalificação do Mercado de Saint-Géry, terei muito gosto de na sua próxima viagem irmos lá tomar uma bebida.

Percebo o seu fascínio pela cidade. Não é por acaso que eu vivo aqui, neste ponto central, permita-me que lhe fale um pouco da minha história. Sou de origem judia, o meu pai chegou a ser dirigente do Partido Comunista da Bélgica, foi preso quando as tropas alemãs aqui chegaram. Nasci em 1944, em Marolles. Maman, de nome Juliette, deu-me à luz na comuna de Ixelles, no exato momento em que os alemães procuravam os últimos judeus para os recambiar para Leste, não havia ilusões de que era para os exterminar. O meu pai falou com um casal católico de Marolles, eu fui para lá e registada com o nome deles. Maman e a minha meia-irmã de seis anos, Ester, conseguiram, através de uma viagem audaciosa, chegar à Suécia, regressaram em julho de 1945. O meu pai ficou muito combalido pelo que passou na prisão, voltou ao ensino e foi com muita dor que assistiu ao definhamento do Partido Comunista, morreu amargurado. Tive bolsas de estudo, muito cedo descobri esta inclinação para as línguas, parece ser uma propensão natural dos judeus. Como o Paulo Guilherme, gosto muito de Arte e percorrer os mercados de velharias. Ciente de que nos encontraremos mais vezes, pelas razões do seu livro, vou preparar um roteiro com alguns passeios, por exemplo, há visitas guiadas a Marolles e a Saint-Gilles, há os passeios Arte-Nova, temos quase cem museus para visitar, é tudo uma questão de tempo e disponibilidade. Durante aquele nosso almoço referi-lhe que sou obrigada a constantes deslocações, embora uma boa parte da minha vida se passe nos bairros Léopold e Europeu, reuniões da Comissão e do Parlamento, vou ao Luxemburgo, há as conferências internacionais de todos os Estados-membros, dão-me jeito por causa das ajudas de custo, tenho muitas vezes os fins de semana tomados. Mas tudo se há de conciliar para conversarmos, ainda bem que gosta de passear, a minha mãe vive na comuna de Saint-Josse, depois de Madou, numa pequena moradia na Avenida Georges Pêtre, vamos buscá-la, podemos ir até Waterloo, que me disse que não conhece, será o nosso primeiro passeio.

Falemos agora do seu trabalho, vamos deixar essa paixão ficcionada para mais tarde. Há aqui uma mistura entre a realidade e a ficção, como aliás me tem observado nas conversas telefónicas, e não lhe quero esconder o assombro que me provoca aquelas descrições da sua guerra colonial. Como me pede sugestões, gostava muito que o Paulo Guilherme me descrevesse as razões que o levaram a decidir ir à guerra, já que era contra ela. Não entendi bem o que me disse que rapidamente se aclimatou a viver muito bem com a população e com os seus soldados, não percebi se havia um quartel de um lado e um aglomerado de habitações nativas ali perto, pelo que me descreve parece que tudo se mistura. Parecendo que não, esse seu esclarecimento pode tornar, permita-me a apreciação, o seu relato mais interessante e aproximativo entre o tal português que vem trabalhar a Bruxelas e que se rende incondicionalmente de amores por uma mulher que tem o seu coração livre mas quer saber tudo sobre o passado dele, quer entender como aquela guerra tão violenta lhe mudou a vida, como ele tão insistentemente proclama.

Não se esqueça de me confirmar os seus planos de viagem. Os seus telefonemas são recebidos com o maior agrado, acredite, mas se possível telefone-me sempre antes das dez horas, não se esqueça que há vezes em que saio de casa às cinco e meia da manhã, quando vou trabalhar no Luxemburgo. Bem para si, muito bem para si, Annette.



Les Halles de Saint-Géry

Interior de Les Halles de Saint-Géry

Annette foi trabalhar para Antuérpia e manda uma imagem da Grand-Place


Imagens da Feira da Ladra de Bruxelas, Place du Jeu de Balle

Num bairro típico de Bruxelas, Marolles

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20975: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P20997: Parabéns a você (1806): Luciano Jesus, ex-Fur Mil Art da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20989: Parabéns a você (1805): Joaquim Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74) e Xico Allén, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20996: Memória dos lugares (408): Ponte Alferes Nunes, sobre o Rio Costa Pelundo na Região de Cacheu (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) com data de 19 de Maio de 2020:

Olá Carlos
Dado que recolhi mais elementos sobre a Ponte Alferes Nunes existente sobre o rio Costa Pelundo, região do Cacheu, fiz um vídeo para que os tertulianos tomem conhecimento na sequência do que muito já se escreveu no blogue sobre a obra de arte da Engenharia nos posts: P2275; P3743; P4364; P4381; P4382 e P9625 e com certeza mais alguns.

Aqui vai o link da minha página Jumbembem do Youtube onde tenho mais vídeos alojados sobre a Guiné: https://youtu.be/Acp92_WHSvs - 2020-05 Guiné-Bissau - Ponte Alferes Nunes – História



A designação de Ponte Alferes Nunes (Alferes José Nunes) militar português, Administrador da região do Cacheu na Guiné no início do Séc. XX e que numa batalha contra os naturais daquela terra, que se travou nas proximidades da travessia do rio Costa Pelundo, acabou por falecer e daí ter ficado conhecida a ponte aí existente com o seu nome.

Presumo que tal designação nunca foi oficializada.

Abraço
Carlos Silva
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20863: Memória dos lugares (407): Cuntima: a hortinha da CCAÇ 14 (1969/71) (Eduardo Estrela)

Guiné 61/74 - P20995: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (72): Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida! (José Martins)

1. Mais um excelente trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blogue em mensagem de 2 de Maio de 2020, subordinado ao tema "Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!", que nos traz alguns esclarecimentos/informações sobre as sepulturas dos nossos militares caídos em campanha na I Grande Guerra e Guerra do Ultramar, espalhadas em cemitérios por todo o mundo e, sobre as trasladações dos restos mortais levadas a efeito durante e depois das guerras terminadas.


Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!

Monumento ao Valor do Infante, em Mafra


Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.

O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título "Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post [*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.

É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.

Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.

Entrada do Cemitério de Santo António do Carrascal, Leiria
Inaugurado em 1871

O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.

O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.

Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente “fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de “unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a “acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.

Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.

Efeitos de mina num Unimog 411
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados

Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o “baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os “baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de “bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma “corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar “esqueletos do armário”, para “reabilitar a verdade”

Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a “pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A “pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.

Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.

Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura “manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados “desaparecidos” ou “falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar “desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.

Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas “libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam “desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.


É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.

Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.


Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se “lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.

Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas. Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.

Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.

Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor. Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.

Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em “projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.

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4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)