sexta-feira, 10 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui mais uma porção dos primeiros meses no Cuor, Annette Cantinaux insiste em saber mais pormenores, chegará mesmo ao requinte de pedir informações sobre a fauna e a flora, pede informações sobre Malam Soncó, aquele régulo do Cuor que não se deixou intimidar pelas ameaças do PAIGC, pede ao jovem alferes que lhe descreva o quotidiano, as obrigações, como subsiste a população, não hesita em perguntar a natureza da guerra, faz comentários em função do mapa do Cuor, das movimentações do autor daquelas linhas que ela recebe regularmente na Rua do Eclipse.
Da curiosidade em saber mais, a correspondência já não esconde que aquelas duas figuras da ficção que se acordara num almoço de cantina, na Rue Froissart, meses atrás, estão numa rota de aproximação, não há carta, não há telefonema que mate a sede de um reencontro em Bruxelas, e quanto mais cedo melhor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, fiquei felicíssimo quando ontem à noite me disse que está a pôr num caderno estes primeiros meses da minha vida na Guiné. Já que pretende um registo pormenorizado do que a minha memória alcança, recapitulo e continuo, a todas as dúvidas que subsistirem, a minha querida amada belga de romance pede esclarecimento, que haja toda a transparência na Rua do Eclipse…
Entrei no Cuor em 4 de agosto de 1968, já contei a profunda inquietação de ter dois destacamentos com segurança precária, tanto Finete como Missirá, abrigos apodrecidos, infraestruturas como o refeitório ou o balneário num estado deplorável, não havia gerador de eletricidade, trabalhávamos com petromax para garantir uma curta visibilidade à volta dos aquartelamentos. O régulo do Cuor ofereceu-me uma morança de piso térreo, pôs-se brita, pintaram-se os ferros da cama que tinha pertencido a um eminente cartógrafo que por ali andara a trabalhar em plantações de palmeiras de Samatra, vi o fruto do seu trabalho dias depois de chegar a Missirá, patrulhámos a região de Gambiel e eu vi um palmar paradisíaco, árvores altíssimas, quase justapostas, uma natureza frondosa atravessada pelas águas murmurantes do rio Gambiel, nesse mesmo dia vi uma linda ponte de madeira destruída pelos guerrilheiros, assim se impedindo a possibilidade de circular entre Bafatá, Geba, Missirá, Enxalé, Porto Gole, até Bissau. Foram dias, semanas, direi sem hesitação que foi um período de adaptação que durou cerca de três meses até conhecer o Cuor, ficando a uma escassa dezena de quilómetros de Madina/Belel, região onde vivia um grupo significativo da população civil e, supunha-se, um contingente militar de pequena dimensão, 60 homens com espingardas metralhadoras, bazucas e morteiros. Ninguém me informava sobre itinerários percorridos pelas gentes do PAIGC, demorei esse tempo a encontrar provas que havia circulação para lá do Geba, para localidades que davam pelo nome de Mero e Nhabijões, encontrei trilhos, granadas e carregadores de armas perdidas, e a partir destas provas iria começar um sangrento confronto, com perdas para ambas as partes.

A Annette pergunta-me como é que eu me dava com a população e com os meus soldados. Começo por lhe falar do relacionamento com os meus militares. Como se recordará, o meu Pelotão de Caçadores Nativos e a responsabilidade pelos dois pelotões de milícias estava a cargo de um furriel, com muito boas provas dadas no campo militar, vim a verificar no terreno. Mas entre nós houve imediatamente uma grande tensão.
Zacarias Saiegh
Logo na primeira noite, Zacarias Saiegh convidou-me a visitar o seu abrigo, queria oferecer-me um uísque, eu estava com o estômago praticamente vazio, tinha simulado à hora de jantar uma indisposição, pura mentira, repugnara-me a galinha quase crua e o arroz espapaçado, comera avidamente uma papaia e comprara uma lata de leite achocolatado e um pacote de bolachas. No abrigo de Saiegh deparei-me com uns frascos que me lembraram os nossos laboratórios escolares de Ciências Naturais e de Física, e com o ar mais calmo deste mundo Saiegh explicou-me que gostava de trazer relíquias quando nas operações ficavam guerrilheiros mortos, trazia um dedo, uma orelha… Sem erguer a voz, mas falando-lhe com firmeza, dei-lhe conta que tais práticas tinham acabado neste dia, viera para comandar e combater segundo normas civilizadas, em circunstância alguma consentiria em comportamentos de barbárie. Iniciava-se aqui um estado de afrontamento, passámos a ter relações respeitosas e pouco mais. No final do ano, Saiegh pediu o fim da sua comissão, voltou para Bissau, confessou-me mais tarde que não se adaptara à vida civil, assim que soube que o Comandante-Chefe, Spínola, estava a preparar a criação de uma primeira Companhia de Comandos Africana ofereceu-se como voluntário, foi promovido a alferes, encontrámo-nos várias vezes em Bambadinca, em 1969, essa Companhia de Comandos estagiava em Fá.
A despeito de tudo o que nos separava, chorei amargamente a sua morte, quando soube que tinha sido fuzilado em Porto Gole, creio que em novembro de 1977.

Deslocação na bolanha de Finete, dia de abastecimento, Zacarias Saiegh sentado no capô do burrinho

Durante este período de adaptação, fora das obrigações inquestionáveis, quis conversar com todos os militares, fossem elementos dos caçadores nativos ou das milícias. Chamara-me a atenção alguém dizer que Paulo Semedo, considerado um exímio apontador de dilagrama, era cristão de Geba. Mordido pela curiosidade, chamei-o à minha morança e conversámos. O seu português era perfeitíssimo, era estudioso, revelava uma calma inquebrantável, uma voz ciciante, um olhar direto, alguém cheio de autoconfiança.

Eu quero que saiba, agora que a nossa intimidade vai crescendo, e dado o dever que assumi com a Annette que deve estar completamente informada de tudo quanto se passou, que jamais esquecerei o dia em que o Paulo Ribeiro Semedo se acidentou. A fotografia que tem aí presente é de alguém a quem a cirurgia plástica escondeu horríveis destruições, o que mais avulta na imagem é o olhar do Paulo, houve um milagre da Oftalmologia, um dos olhos perdeu-se irremediavelmente, é aquele olho de vidro que nos olha fixamente, o outro foi sendo recuperado, daquele globo ocular saíram até pedaços de metal. Então o que se passou para ter havido tão tremendo acidente?

1.º Cabo Paulo Ribeiro Semedo
Um dia, durante um patrulhamento de reconhecimento, na região de Chicri, pode ver no mapa que entreguei, não está muito longe de Mato de Cão, ainda por cima num outro local frondoso que lembra Gambiel, com um palmar parece caminhar para o rio Geba e mais à frente uma mata densíssima. Percorríamos um terreno alcantilado quando o meu guia, o Soldado Cibo Indjai, detetou um trilho, começámos a percorrê-lo, a mata a adensar-se, pouquíssima luz entrava naquela floresta de galeria, caminhámos cautelosamente, procurando sinais de vida, ouvir vozes, mas a quietude era total, nem pássaros, nem javalis, parecia mundo abandonado, e subitamente avisto um grupo que caminha em passo estugado, à frente alguém que traz cofió na cabeça e espingarda a tiracolo, fixei a imagem de alguém que veste uma djilaba amarelada, Cibo Indjai e José Jamanca, que seguiam à minha frente, atiram-se para o lado, eu e aquele homem puxamos pela arma, inicio a fuzilaria, outros elementos atrás de mim avançam prontamente, é um tiroteio atordoador, o grupo que viera porventura de Madina dispersou, deixou o chão cheio de esteiras e sacos de alimentos, procurei iniciar uma perseguição, apanhou-se a arma daquele homem que deve ter conseguido fugir, deixou poças de sangue, aguentou os seus ferimentos e é quando estamos a tentar capturar esse e outros feridos que houve um estrondo medonho, seguida de uma enorme algazarra. Paulo Ribeiro Semedo terá cometido a negligência de ter misturado no seu carregador balas reais com balas fulminantes, ao disparar com bala real o dilagrama, não teve morte instantânea por milagre. Não lhe vou contar por carta os momentos horríveis que se seguiram, deu para perceber o ódio visceral entre guineenses e cabo-verdianos, o que é importante agora contar-lhe é que se salvou a vida do Paulo, chegou todo retalhado, crivado de estilhaços a Bissau, perdeu os músculos do braço esquerdo, braço inerte, em Lisboa salvaram-lhe um olho, recompuseram-lhe os traços da face, iremo-nos encontrar muitas vezes, nunca, repito, nunca, iremos falar do que se passou naquela manhã em Chicri. Talvez porque quando atravessamos aquela linha vermelha entre cá e lá, emerge uma atitude de pudor e profundo respeito sobre a vitória à morte, deixou de ter razão debater os comos e os porquês.

José Jamanca
Uma palavra sobre um amigo muito querido, José Jamanca, um jovem ávido de ler, vinha-me pedir livros, queria conversar, aspirava ser professor, prometi-lhe enviar uma carta para Bissau para ele ser chamado para um curso do Magistério Primário, demorou bastante tempo a resposta, o que permitiu cimentarmos uma estima mútua. Com a independência, perdi o rasto das minhas gentes, mais tarde contarei à Annette o meu regresso, vinte anos depois. Concluídos os meus estudos em Lisboa, ingressei no Ministério da Economia e um dia tive a grata surpresa de ser chamado à entrada, o contínuo anunciava que um senhor chamado José Jamanca me queria ver. Que alegria este reencontro! Depois da independência, o Zé conseguira uma bolsa para tirar em Leninegrado um curso de eletricista, era a sua profissão, na Guiné tinha um baixíssimo rendimento, viera para Lisboa, agora emprego não lhe faltava. Visitava-me com regularidade, e um dia desapareceu. Falando deste meu desapontamento a um outro querido amigo que a Annette irá ouvir falar muitas vezes, Cherno Suane, que fora meu guarda-costas por decisão dele, com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Zé morrera tuberculoso no Hospital da Ajuda. Continuo a contemplar esta fotografia que está no meu escritório e só vejo um homem bom, afável, belíssimo conversador, falando comigo de igual para igual, que desejava singrar, estudando afincadamente, era tão pedagógico que me dava detalhes sobre a montagem de uma instalação elétrica de um prédio que estava em construção no fundo da Calçada de Carriche. Todos os nossos amigos são insubstituíveis, é um lugar comum, é por isso que dói muito esta perda de alguém que pausada mas entusiasticamente queria que eu soubesse como é que a eletricidade se instala nos nossos prédios.

Gostava que a Annette fixasse estas duas fotografias que agora deixo. Este homem que sobraça uma bazuca dos tempos da II Guerra Mundial chama-se Adulai Djaló, mas é conhecido por Campino, faz questão de passear nas horas vagas em Missirá com um barrete de campino que alguém lhe ofereceu. A cobiça por um sem-número de objetos extravasa tudo o que a Annette puser na sua imaginação. Um dia bateu-me à porta o Soldado Mamadu Camará que me disse placidamente que gostava muito de uns sapatos que eu ali tinha, já que eu tinha dois pares de sapatos e só usava botas de lona ou botas de cabedal, perguntava se me podia comprar o par de sapatos a prestações, via-se à légua que ambos tínhamos uma patorra enorme. Desatei a rir, levou o par de sapatos de borla.

Quanto à última fotografia, vou a caminho do Xime, não chega o que faço no Cuor, temos que participar em operações. Neste dia, partimos para chegar a um local que dá pelo nome de Burontoni, uma boa estopada, o guia perdeu-se, andámos meio dia debaixo de uma chuva diluviana, a meio da tarde lá da avioneta recebemos instruções para voltar à base. Pela primeira vez na minha vida, subi para a caixa de um Unimog, e mesmo com a viatura aos saltos dormi uma boa soneca.

Minha querida Annette, não sabe a felicidade que me dá perceber que me entende, me quer acompanhar e que tem muitas saudades minhas, em breve estarei aí, permita-me que não lhe diga quanta alegria sinto em estar consigo. Bien à toi, chère Annette, Paulo Guilherme

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21156: In Memoriam (366): José Maria da Silva Valente (1946-2020), ex-Fur Mil Art da CART 1689 / BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (José Ferreira da Silva)

 IN MEMORIAM

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de hoje, dia 9 de Julho de 2020, com a triste notícia do falecimento de mais um dos nossos camaradas que combateram na Guiné, desta vez o ex-Fur Mil José Maria da Silva Valente, camarada de Companhia do José Ferreira e seu amigo para o resto da vida.

Caros Camaradas
Faleceu o Valente!


Aconteceu hoje, pelas onze horas, no Hospital de Oliveira de Azeméis. Foi um dos seus filhos gémeos quem me deu a notícia. Fiquei chocado e um pouco desorientado, com a notícia deste desfecho inesperado.
Logo ele, aquele militar que eu tanto admirei na nossa guerra da Guiné!
Logo ele, cuja acção e comportamento temerário suplantavam o apelido que teve por nascimento!

Pois, é esse mesmo, o José Maria da Silva Valente que tanto se dedicava à pesca e que há 4 anos caiu na Barragem de Castelo de Bode, de onde foi preciso tirá-lo quase inconsciente. Nunca mais ficou bem, devido ao ferimento sofrido na cabeça.

Para que conste no património das minhas memórias, caracterizei-o e registei-o no segundo livro que publiquei. E é esta pequena homenagem que lhe presto, através do texto que vai junto, pois quero recordá-lo na força da vida.

Nota: A família aconselha a que não nos desloquemos, pois que o funeral terá lugar somente com a presença de familiares próximos.

********************

2. Recordemos então, em jeito de homenagem póstuma, o que escreveu o José Ferreira acerca do seu camarada e amigo, José Maria Valente, em 13 de Janeiro de 2011[*]:


Outras memórias da minha guerra (6)

O Valente era mesmo valente

Foi dos últimos a integrar a nossa Companhia. Chegou a Viana do Castelo antes duas ou três semanas de partirmos para a Guiné. Era muito franzino, branquito e sem barba. Não pesava mais de 50 quilos e teria uns 155 centímetros de altura. Até metia pena, pensar que aquele imberbe, também iria para a guerra. Porém, conforme se veio a verificar, a aparência não condizia com a realidade. Curiosamente, alguns dias depois, já ele tinha “presa pela beiça”, uma adolescente que trabalhava na nossa Pensão. Todavia, ele demarcou-se logo e fez questão de nos comunicar que era casado e que já tinha dois gémeos, (acabados de nascer). Inicialmente não acreditámos, mas viemos a confirmar que era verdade.

Pois o Furriel Valente, oriundo de Oliveira de Azeméis, foi um militar de primeira. Cumpridor, corajoso e abnegado, ele, temerariamente, surgia na frente de combate sempre que “elas” começavam a cantar. Foram vários os combates em que ele se destacou. Por isso era muito respeitado na Cart 1689, especialmente pelos seus soldados que o seguiriam até ao inferno, caso fosse preciso.

Silva, Valente, Faria e Jaime - Passeando na Av. de Bissau


Valente também era dançarino


Em Bissau, vindos de férias. O Valente triste no regresso a Catió

Em zona de combate era normal distribuírem-se rações de reforço, para as refeições. Eram diferentes das rações normais. Dizia-se que na contabilidade da Companhia as rações normais eram pagas como refeição normal e as outras não. Ora isto dava azo a um lucro jeitoso, mas isso não era tão mau para os militares que, como eu, até preferia as rações de reforço. O problema maior surgia quando, estando fora do quartel, tínhamos a percepção de que não regressaríamos mais cedo, para não reivindicarmos a refeição quente. Alguns barafustavam, em surdina, mas isso era perigoso.

Estávamos instalados no cruzamento de Camaiupa, perto de Cufar. A coluna auto de abastecimento a este quartel já havia terminado há mais de duas horas e, portanto, a segurança ao itinerário já não era necessária. Nós aguardávamos ali o regresso das viaturas que nos transportariam para Catió. Elas só sairiam ao nosso encontro, depois da ordem do nosso capitão, que estava ali sentado, segundo se suponha, a empatar o tempo. Era o período mais quente do dia e já passava das 14 horas. O Valente, como o alferes estava ausente, reclamava junto do capitão que estava muito calor e que deveríamos regressar. Porém, o capitão aconselhava a esperarmos mais um bocado.

- Meu capitão, saímos de madrugada, estamos cansados e o que queremos é ir embora, para tomar banho, refrescar e descansar – reclamava o Valente. – Pois todos nós também – refutava o capitão. E pouco tempo depois, voltava o Valente: - Mas, ó meu capitão, nós não queremos comer, porque já nem temos fome e não estamos aqui a fazer nada. Isto é que não tem jeito nenhum.

O capitão apercebeu-se, pelo apoio geral, de que o Valente estaria a mexer numa ferida sensível e não deixou agravar mais a situação. Virou-se para o Valente e disse-lhe num tom mais elevado: - Se Você está assim com tanta pressa, não quer ir andando? - pensando que o Valente se calaria.

- Pensa que temos medo, meu capitão? - Atenção à minha Secção – gritou logo o Valente - Formem aqui imediatamente. – E continuou: - Firme, Sê..ooope. Meu capitão dá licença? O capitão já estava de boca aberta ao ver a reacção, parecia não ter outra alternativa, e respondeu: - Sim. E o Valente ordena: - Esquerda, aaarche… E lá seguiram.

Do cruzamento de Camaiupa até ao quartel de Catió eram cerca de oito quilómetros, com perigo de emboscadas.

O capitão, já preocupado, accionou logo a mensagem para as viaturas começarem o movimento.
Todos nós ficámos também preocupados com a situação, embora existissem militares emboscados, ao longo da estrada, em alguns locais estratégicos e mais perigosos, para protecção à passagem das colunas auto.

Quando alcançámos o Valente já ele estava às portas de Priame, a povoação dos milícias comandados pelo João Bacar Jaló, encostada a Catió.

E quando os carros pararam junto deles para entrarem, tiveram a resposta: - Agora? F...-se!

Silva da Cart 1689

********************

À família e amigos do nosso malogrado camarada José Maria Valente, os editores e a tertúlia deste blogue endereçam as suas mais sentidas condolências.
____________

Notas do editor

[*] - Vd. poste de 13 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7609: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Valente era mesmo valente

Último poste da série de 5 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21042: In Memoriam (365): António Lúcio Vieira (1943-2020), ex-Fur Mil Cav da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67) (Carlos Pinheiro)

Guiné 61/74 - P21155: Da Suécia com saudade (76): A propósito dos 'elefantes brancos' da cooperação sueca com a Guiné-Bissau: o caso do laboratório de saúde pública... (José Belo)






Bandeiras da Guiné-Bissau e da Suécia



1. Mensagem de José 
 Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:


Date: quinta, 9/07/2020 à(s) 08:31

Subject: A propósito do texto publicado na Tabanca do Centro.

O artigo lá publicado sobre a Guiné [, vd. ponto 2] é, infelizmente, mais um dos infindáveis que hoje se podem encontrar nos arquivos da imprensa sueca das últimas décadas.


Saúde Pública, Educação, Agricultura, Pescas, Transportes, Indústria Alimentar, Refrigerantes, Investimentos e outras actividades bancárias..., as conclusões das Comissões Estatais suecas que as analisaram (demasiadamente tarde!) são quase fotocópias nos seus negativismos.

Houve, nos anos sessenta e setenta, um genuíno interesse, por parte das sociedades escandinavas, em preencher os vácuos criados por seis séculos de Administração colonial.

Seria incapacidade? Seria não vontade?

A política spinolista "Por uma Guiné Melhor", surgida a contra corrente de todo o desinteresse anterior, apesar de tardia, limitada por uma situação de guerra então já bem implantada, não dispondo das muito avultadas verbas necessárias, ainda conseguiu por um curto espaço de tempo criar condições sociais únicas cujos resultados nos deixaram antever o que poderia ter sido se a política do governo colonial tivesse seguido o caminho do desenvolvimento.

"Quanto mais atrasados , educacional e socialmente, mais fáceis de governar": poderia ter sido a definição concisa da Administração Colonial. Princípios não só aplicáveis em África mas também em Portugal.

Em ambos os locais os resultados finais desta política de "Iluminismo saloio" falaram por si. 
Muito fácil, e limitativo, o apontarem-se como raízes de todos os erros (muitos e graves) os tempos pós-Abril de 74.

Mas está "bagunceira" final foi criada por uma longa e abrangente história de criminosas incompetências políticas, sendo Goa um bom exemplo das mesmas.

Alguns (!) dos "actores " deste histórico final de época em 74, fossem eles militares ou civis, mais não foram que pequenos palhaços de um vasto circo de interesses internacionais que em tudo os ultrapassava e...ultrapassou!

Apesar de todos os tão saudosistas "velhos do Restelo ", as gerações do nosso querido Portugal de hoje poderão cometer muitos erros e...certamente o fazem! Têm no entanto uma possibilidade não disponível a tantas e tão sacrificadas gerações anteriores: podem fazê-lo em LIBERDADE !

Um abraço do J. Belo.

PS - Aproveitando esta “janela” climatérica criada pelas curtíssimas semanas do Verão lapónica, vou arrancar este fim de semana, com a minha mochila e dois cães, para mais uma longa passeata (aqui chamada de “vandring”) pelos infindáveis rios, lagos e montanhas locais.

Um facto óbvio é o de não haver aqui em todas as árvores uma tomada elétrica para recarregar o telefone que (recomendavelmente!!!) deverá ser usado com prioridades bem escolhidas.

É um pequeno detalhe a acrescer ao facto de por aqui não haver nem casas nem gente, o que torna por vezes as coisas... complicadas... Enfim, é da natureza do Árctico ser “a modos que” imprevisível.

A haver alguns simpáticos “piropos” de alguns comentadores, tentarei, da minha parte e dentro destes condicionalismos, dar a sempre mui respeitosa mas devida resposta.

2. Tabanca do Centro > Quarta-feira, 8 de julho de 2020 > P1240: Desventuras dos Amigos Suecos > Elefante branco em história negra

[Reproduzido com a devida vénia...]
 

Após a independência,  a Guiné procurou obter avultados apoios económicos da Suécia para o sector da saúde. Um moderno laboratório clínico fazia parte prioritária da lista apresentada.

O Departamento Estatal Sueco para o auxílio aos países em desenvolvimento (SIDA) estava dividido entre consultores com opiniões díspares.


Deveria ser um laboratório de elevado nível internacional? Ou antes um laboratório adaptado às realidades guineenses, capaz de funcionar com pelo menos cinco paragens de electricidade diárias e pessoal não especializado?Como o auxílio a ser prestado deveria respeitar os desejos dos recebedores... ambas as sugestões foram apresentadas ao Presidente guineense [, Luís Cabral].

Este, sem o mínimo de dúvida, decidiu-se pelo modelo de laboratório mais avançado… e de custo mais do que duplo!

Argumentou o Presidente ser este o modelo que correspondia ao seu sonho de uma Guiné desenvolvida em futuro próximo.

As realidades vieram dar razão aos críticos:
  • O funcionamento parava continuamente;
  • Os cabos eléctricos e os compressores queimavam-se regularmente;
  • O sistema de refrigeração avariava-se;
  • O fornecimento de água era irregular devido a problemas da canalização...

O laboratório passou a ser conhecido como o elefante branco…

A SIDA.desejava acabar com os apoios mas, graças aos esforços e muita dedicação dos trabalhadores do laboratório, este lá se foi arrastando até 1998.

Dá-se a guerra civil e o laboratório acaba por ser atingido por algumas granadas, iniciando-se um importante fogo.

Como pode o laboratório sobreviver a todos estes incidentes Como são hoje analisados os resultados?

Todos os apoios aos mais variados sectores da Guiné acabaram por falhar, decidindo a SIDA terminar com a cooperação económica no início dos anos 2000. (2,2 mil milhões! Tendo sido a Guiné o país que recebeu maior auxílio económico per capita).

A cooperação por parte do Instituto Sueco da Saúde Pública também terminou então. O laboratório passou a ser financiado por diversos Institutos Suecos de Investigação.

A universidade sueca de Lunde, através de um grupo de investigadores e do laboratório, tem vindo a estudar um tipo especial de HIV/Sida  que existe na Guiné, chamado de hiv-2.

Os resultados foram já apresentados em publicações científicas, tendo gerado grande interesse quanto a vir a ser criada uma vacina.

Hoje considera-se terem sido estes apoios económicos contra-produtivos para o país, o qual, deste modo, não sentiu necessidade de mobilizar os seus recursos próprios.

Ao terminarem os apoios,  criou-se um vazio económico, agora preenchido pelas avultadas verbas do tráfego internacional da droga.

Excerto da revista “OmVärlden”
Texto: Mats Sundgren

UTVECKLINGSSAMTALET
Avsnitt 7: Det svenska biståndets vita elefant
Publicerad: den 31 maj 2015 Uppdaterad: den 31 maj 2015


[Tradução / adaptação livre: José Belo; revisão / fixação de texto para efeitos de publicação no nosso blogue: LG]

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de julho de 2020
Guiné 61/74 - P21145: Da Suécia com saudade (75): Pedagogias várias para proveito do macho-ibérico: as representações sociais das... suecas, "muito dadas" (José Belo)

Guiné 61/74 - P21154: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (14): Álbum fotográfico - Parte VII

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 8 de Julho de 2020:

Boa Noite Carlos Vinhal
Aqui estou a enviar-te o meu Álbum de Fotos Nº 7.
Aproveito para cumprimentar toda a malta desta Tabanca e enviar um abraço aos Chefes de Tabanca a quem fico grato por me aturarem.
Albino Silva



____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21122: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (13): Álbum fotográfico - Parte VI

Guiné 61/74 - P21153: Parabéns a você (1836): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 2412 (Guiné, 1968/70) e Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Meânico Auto (Guiné, 1968/70)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21149: Parabéns a você (1835): José Zeferino, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4616 (Guiné, 1973/74)

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21152: Historiografia da presença portuguesa em África (217): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
É sempre bom descobrir um relato palpitante que não faz parte do rol das bibliografias institucionalizadas. O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira fora nomeado comissário encarregado da delimitação das fronteiras, viaja para a Guiné no início de 1888.
É um relato assombroso, na carta que anteriormente escrevera ao seu amigo Luciano Cordeiro verificou-se que não era tíbio nem dado a meias verdades, estas escreviam-se com o rigor da verdade, em frases nuas e cruas. A viagem começa em Bolama, e não se esconde o que se encontrou. O governador cedera-lhe um tugúrio para habitar e receber a delegação francesa, a descrição é chocante. São só dificuldades nos preparativos da expedição, são medos e hesitações. A descrição que ele faz da força pública de Bolama arrepia os cabelos. E quando se embrenha no mato, na região de Cacine, dá-nos parágrafos de grande beleza, desenha os pormenores das travessias e das florestas com vibrante paleta. Bom, a viagem está a dar os primeiros passos, preparem-se para as próximas emoções.

Um abraço do
Mário


Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (1)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregado de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa. É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo secretário-geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral.
O seu primeiro punhado de observações dirige-se à ilha de Bolama, como se transcreve:
“Para o comércio e comodidade pública, seria proveitosa a construção de uma ponte-cais, não só para servir ao tráfego de mercadorias, mas também ao desembarque de viajantes e outros indivíduos que são forçados a exibir quotidianamente o grotesco espectáculo de atravessar uns cem metros da praia às costas dos pretos, vindo alguns de casaco e chapéu alto, ou de grande uniforme, como acontece aos comandantes dos navios nacionais e estrangeiros, quando vêm a terra.
Em toda a vila de Bolama há três ou quatro casas construídas de pedra, melhor, de tijolo e argamassa, e com primeiro andar; as demais são edificações abarracadas, construídas em adobe e cobertas de telha ordinária ou de tela de madeira.
Os quartéis, vastos, limpos, bem ventilados e de construção elegante; o hospital e a igreja estão situados num platô relativamente elevado.”

Fala na urgência em se mandar construir o Palácio do Governo a uns três quilómetros da praia, ao norte da povoação, deixando próximo da praia, para comodidade do comércio e navegação, a Alfândega, e deixa bem claro que a sede do governo devia estar em Bissau, que ele diz ser a capital natural da Guiné Portuguesa. A posição de Bolama tinha sido no passado uma boa escolha, não devia ter sido a capital da província, mas era um ótimo lugar para aí se estabelecerem instalações comerciais, isto quando Buba e as muitas feitorias espalhadas pelas margens do rio Grande exportavam a mancarra, o marfim, a borracha, a cera e outros produtos. Ora, estes pontos comerciais tinham sido abandonados e ele diz claramente que não existe um único comerciante em Buba, Bolama tinha perdido toda a sua importância comercial.
E descreve a capital:
“As ruas da vila são estreitas e sujas, não sendo empedradas nem macadamizadas, transformam-se na estação chuvosa em verdadeiros lodaçais. As praias imundas e malcheirosas, por se fazerem nelas todos os despejos, são, no dizer de muitos, uma das principais causas da insalubridade da ilha.
O interior de Bolama é pouco acidentado e ocupado por Brames, Fulas, Manjacos, etc. Aqui se produz milho, mancarra, arroz, feijão, batata-doce e outros géneros de menor valor”.

Fortim de Cacheu, gravura do século XIX, Arquivo Histórico Ultramarino, imagem retirada do site Fortalezas.org, com a devida vénia.

O que se segue é escrito com serenidade mas não ilude a crítica acerada, ele vai falar da casa onde ficou instalada a comissão que irá demarcar as fronteiras da Guiné:
“Era um primeiro andar de aspecto pouco asseado. Entrava-se por um quintal pouco limpo, cheio de fardos e caixotes, barris vazios, arcos velhos de pipa, etc., pertencentes ao inquilino da loja; subiam-se uns toscos degraus de madeira que terminavam num largo patim, onde se viam em pitoresca promiscuidade, colchões velhos, quinas velhíssimas, potes de barro, candeeiros partidos, etc.; aranhas enormes povoavam os tectos e paredes, e os mosquitos alvoraçados por tão inesperada visita vinham zumbir aos nossos ouvidos como que prevenindo-nos de que à noite seríamos mimoseados por estranho concerto… Abria-se uma porta e penetrava-se numa pequena sala alumiada por pequenas janelas sem portas de vidraça. Foi nesta casa tão própria e tão decentemente mobilada que recebemos a comissão francesa”.

É neste ambiente insólito que o Capitão-de-Fragata arregaça as mangas e planeia a viagem que se segue, procura completar o pessoal da expedição. Todos se furtam a colaborar, uns afirmavam que o grupo seria atacado à mão-armada e roubado pelo gentio, logo que se internasse no mato; outros diziam que o célebre potentado do Futa Djalon não iria consentir que as duas comissões entrassem nos seus domínios sem trazer valiosos presentes ou pagarem elevadas tributações. Sem desanimar, ele requisitou trinta praças, obteve vinte espingardas, mil cartuchos e um enfermeiro.
Enquanto descreve os preparativos da exposição revela o que era a força pública de Bolama: “Um único batalhão de caçadores, composto na sua grande totalidade de deportados e vadios de Angola, e uma bateria de artilharia com quatro peças. Os soldados do Batalhão de Caçadores n.º 1, na generalidade, portavam-se pessimamente: ladrões, bêbados, desordeiros e insubordinados, e também gente com os pés e pernas ulcerados e purulentos”. Mais adiante dirá que desertaram dezoito recrutas que levaram três espingardas.

Travessia do rio de Canjambari, imagem retirada do site WikiMilim, com a devida vénia 

Em finais de janeiro chegou a Bolama a comissão francesa, dividiram tarefas, e cada uma delas se pôs ao caminho. Se todo o relato desta viagem já é vigoroso e revelador da efemeridade da presença portuguesa, o que se segue é de uma vibração empolgante, do melhor da literatura de viagens. A delegação portuguesa ruma para a Ilha Tristão, o objetivo é atingir Kandiafara, era aí que estava a delegação francesa (observe-se que esta povoação hoje da Guiné Conacri foi de grande importância no período da luta contra os portugueses, o PAIGC tinha aqui um incontornável ponto de apoio a tropas e logística). Da Ilha Tristão caminham para Biquese, importante povoação dos Nalus, situada na margem esquerda do rio Cacine, a oito milhas da sua foz. É um relato pontuado de luz e cor, e assim chegam ao encontro de Talibé, que é o chefe do Cantanhez.
Neste momento, o Capitão-de-Fragata faz um comentário muito ácido:
“A riqueza de Cacine, para mim, é bastante duvidosa e parece confirmar esta nossa opinião a facilidade com que a França desistiu dos seus imaginários direitos sobre aquele enorme estuário e o abandono do posto militar muito antes da delimitação!”. E o seu olhar dirige-se para as perdas, a contrapartida exigida pelos franceses fora excessiva, na negociação o governo entregara toda a região do Casamansa, os franceses queriam apoderar-se de Zinguinchor e da margem esquerda daquele formoso rio.
E diz sem ambiguidades: “Tivemos que ceder perante a retórica da França, apoiada por um milhão de marionetas”.
E prossegue a viagem para Kandiafara.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21127: Historiografia da presença portuguesa em África (216): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21151: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Óio-Morés em 1963: o caso da queda do T6 FAP 1694 em 14 de outubro de 1963 (Jorge Araújo) - Parte I


Foto 1 - exemplo de um T-6 (matrícula 1688).
(com a devida vénia)



Foto 2 - exemplo de uma parelha (ou esquadrilha) de T-6 (matrículas: 1620 e 1661 …) In: http://riodosbonssinais.blogspot.com/2014/09/ 
( com a devida vénia)




O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior; vive em, Almada, está atualmente nos Emiratos Árabes Unidos; tem cerca de 260 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963
- O CASO DA QUEDA DO «T-6 FAP 1694» EM 14OUT63 -
PARTE I




Mapa da região do Óio-Morés com infografia da queda do «T-6 FAP 1694», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14Out1963. Identificam-se, com pontos a azul, três das bases existentes naquela região: Maqué, Fajonquito e Morés. Quartéis das NT mais próximos: Olossato e Mansabá.



1.   - INTRODUÇÃO

A quantidade de documentação histórica que continua em silêncio nos arquivos é de tal monta que será difícil, a cada um de nós, dela ter conhecimento e, quiçá, encontrar respostas às dúvidas que persistem… teimosamente!

É dessa teimosia, que se traduz em revisões continuadas do trabalho histórico, emergente da "pesquisa" e do seu estudo, que às vezes faz-se "luz", e, por acumulações de verdades parciais, conseguimos ir mais longe na objectividade histórica, pois esta deverá ser consistente.

Em novo regresso "às matas da região do Óio-Morés" (*),  o Lourenço Gomes e eu, através de «Memórias Cruzadas» de há cinquenta e sete anos, foi possível reconstruir uma parte do nosso «puzzle» da "guerra", que continua incompleto, mas ao qual lhe adicionamos mais algumas peças, retirando as que não encaixavam correctamente, como procuramos provar ao longo das duas partes em que foi dividida esta narrativa.    

2.   - VISITA A BASES DO NORTE DA GUINÉ: - MISSÃO ATRIBUÍDA A LOURENÇO GOMES, EM OUTUBRO DE 1963

Três meses depois da entrada dos primeiros grupos de guerrilheiros do PAIGC em território da Guiné – Frente Norte – para início da sua acção de guerrilha contra as forças militares portuguesas (europeias e do recrutamento local), Lourenço Gomes, o versátil operacional em território do Senegal, responsável pela "gestão" de problemas logísticos (recursos e informação) dos dois lados dessa fronteira, com particular relevância para os cuidados de saúde, onde se incluíam os primeiros socorros e transporte dos feridos em combate resgatados do interior, foi incumbido de realizar mais uma "missão", esta agendada para o período entre 08 e 18 de Outubro de 1963, cujo objectivo era o contacto com algumas das bases da Região do Óio-Morés.

Eis o que deixou escrito sobre esta sua "missão":

2.1 – RELATÓRIO (elaborado por Lourenço Gomes)

Dakar, 24 de Outubro de 1963 (data em que assinou o documento dactilografado)

Visita ao interior (Bases)

Parti de Samine (Senegal) no dia 8 deste mês (Outubro'63), (3.ª feira), para uma visita ao interior. Cheguei à base do camarada Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira; 1938-1974], no dia 09-10-63 (4.ª feira). 

Visitei três bases do Óio [Morés (Central), Fajonquito e Maqué; bases assinaladas a azul na infografia acima].

Pude fazer a visita das bases de dia sem qualquer perigo. Só causa aos camaradas um pouco de preocupação os aviões portugueses. Vi as armas que vieram e são muito boas. A moral dos camaradas é excelente. Estão animados de uma vontade extraordinária. Visitei todos os sítios onde foram abatidos os aviões portugueses. Contei 16 restos de aviões abatidos.

◙ No dia 14-10-63 (2.ª feira) = 

Na minha presença, os aviões portugueses tentaram atacar a base [Central do Morés] do Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira]. Os camaradas abateram três aviões inimigos [apenas um: o «T-6 FAP 1694», do Cap Pilav João Rebelo Valente]. 

Nós tivemos nove mortos e oito feridos. Esses feridos deviam ser transferidos comigo para Samine [no Senegal], mas tiveram que voltar para o Óio, porque os portugueses descobriram uma cambança por onde deveríamos passar e tentaram apanhar-nos nesse mesmo sítio.

# «MC» ▼ A informação do Lourenço Gomes, sobre os "três aviões abatidos no Morés", é extramente relevante para a historiografia militar relacionada com a "Guerra do Ultramar", em particular os "acidentes da aviação militar" no CTIGuiné.

De facto, em nome da verdade, não foram três os "aviões abatidos", como ele refere. Somente o «T-6, matrícula FAP 1694», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, caiu naquela região na data por ele indicada, e que se confirma.

Seria igualmente relevante saber se esta aeronave era a única que estava em "missão", naquele momento, ou se, porventura, fazia parte de uma parelha ou esquadrilha? uma vez que Lourenço Gomes refere-se a três unidades.

Já anteriormente esta ocorrência tinha merecido o meu interesse no seu aprofundamento, como, aliás, deixei expresso na narrativa publicada em 25 de Julho de 2019 – P20010 – a que dei o nome de «O T-6G FAP 1694 e o Cap Pilav João Rebelo Valente, desaparecido em 14/10/1963, na região do Óio-Morés».

O "mistério" ou o "conflito histórico" nascera da discrepância observada entre as fontes consultadas, em que, no primeiro caso, a causa foi consequência de "voo de experiência do avião, embatendo no solo ao fazer acrobacia a baixa altitude", conforme registo abaixo: 




No segundo caso, o acidente é descrito que a mesma aeronave "ao colidir com o solo após manobra acrobática, em Olossato, provocou a morte do Capitão Piloto aviador João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, facto que pode ser comprovado com a informação seguinte:



A recuperação das duas imagens, que se apresentam abaixo, servem para testemunhar que a aeronave «T-6 FAP 1694» se despenhou na região do Óio e, segundo Pedro Pires (1934-), "muito próximo da base [Central] do Osvaldo Vieira, perto da tabanca de Morés".

Perante a violência das imagens observadas ao estado em que ficou a aeronave, onde só se vêm ferros retorcidos, é aceitável considerar-se que durante o movimento da queda ou após o seu embate com o solo, o avião se tenha incendiado, e o corpo do piloto carbonizado.

Mesmo tratando-se de fotos "preto e branco", fica-se com a sensação de que o capim e as folhas das árvores se encontram queimadas. É que estas imagens não foram registadas no dia do acidente, mas sim algum tempo depois… certamente!




Foto 3 - Citação: (1963) "Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: 



Foto 4 - Citação: (1963) "População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: 

Quanto aos nove mortos contabilizados por efeito do bombardeamento, referidos por Lourenço Gomes, este mesmo acontecimento volta a ser abordado por Osvaldo Vieira, no documento que enviou do Óio ao Secretário-Geral, em 10 de Novembro de 1963, relatando: "no dia 14 do mês de Outubro'63 sofremos um bombardeamento na base onde perdemos 13 [treze] camaradas entre eles o 1.º responsável das mulheres do Morés, de nome Joncon Seidi", o que difere dos números avançados por Lourenço Gomes.



Ainda no que concerne a este episódio, nomeadamente em relação às mortes registadas, Amílcar Cabral (1924-1973), em carta dirigida, de Conacri, a Osvaldo Vieira, datada de 31 de Dezembro de 1963, destaca um nome – o de Joncon Seidi.



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36712, com a devida vénia.

Medicamentos no interior = 

O camarada [enfermeiro] Tiago Lopes já não dispõe de mais medicamentos. Há dias tive de comprar 30.000 francos de medicamentos para o interior. Precisamos de ter em conta que hoje muita gente não pode ir à consulta dos portugueses. Todas as crianças doentes vão ver o Tiago Lopes. 

Gasta-se muito medicamento. Os feridos menos graves têm sido tratados pelo Tiago Lopes. Só têm saído os feridos graves. Hoje necessitamos de muitos medicamentos.

Material de Guerra = 

Segue o camarada Chico Té [Francisco Mendes; 1939-1978], que há-de fazer um relatório completo sobre o que foi discutido e decidido.

Despesas = 

Recebi os cem mil francos pelo Pedro Pires. Esse dinheiro é pouco. Hoje, se não gastamos com a alimentação de camaradas, temos que gastar muito com os feridos. Tenho de comprar medicamentos para mandarmos para o interior e de pagar todos os tratamentos feitos no Hospital de Ziguinchor. O transporte dos feridos são pagos por mim. Há dias gastei 20 mil francos por duas viagens com feridos. 

No Hospital de Ziguinchor temos de pagar tudo. A alimentação dos doentes também é paga. Pago à Carmem 30.000 francos por mês para alimentação dos doentes. Só por esses dados podem ver as despesas que fazemos. Temos de comprar até as ligaduras.

Com os camaradas do interior também temos despesas: compro óleo para as armas, sal, etc.. Tenho comigo uma lista de artigos de necessidade urgente que tenho de mandar, quando voltar a Samine. Peço que avaliem qual é a nossa despesa, hoje, no Norte. Preciso que enviem mais 200 mil francos para despesas até ao fim do mês de Novembro'63. Mas tem de ser urgente, porque estou à espera dos oito feridos do interior e nessa altura terei catorze feridos em Ziguinchor. 

Se vocês não me mandarem a quantia pedida, estou a ver que terei de ir a Conacri para discutir convosco a questão das despesas e arrumar as contas com o Aristides Pereira [1923-2011]. Nestas condições, sairei de Dakar no dia 08 de Novembro'63. Conto que vocês saberão compreender as nossas necessidades actuais e terei a quantia pedida dentro de pouco tempo.

Viatura = 

Novamente tenho de vos falar da questão de uma viatura. Torna-se necessário ter-se uma viatura para transporte dos feridos. Como vocês sabem, Samine é uma vila muito pequena e muitas vezes não há carro nenhum de aluguer aí. Também as despesas de transporte são grandes por isso insisto nesta questão da viatura.

Refugiados Portugueses = 

Vieram de Bissau dois militares portugueses, enviados pelo camarada Zain Lopes [Rafael Barbosa]. Foram conduzidos até à base do Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira] por um camarada do Partido [Biagué]. Tratam-se do alferes miliciano Fernandes Vaz [subtenente Manuel José Fernandes Vaz] e do sargento miliciano Fernando Fontes [ambos militares da marinha].

Quando chegaram a Ziguinchor foram presos pela Polícia de Sureté [Segurança] senegalesa e transferidos para Dakar. Também estive preso com eles em Ziguinchor durante três dias e transferido para Dakar. Em Dakar fui posto em liberdade. 

Os camaradas portugueses encontram-se ainda na polícia a fim de prestarem declarações. A minha prisão em Ziguinchor foi motivada mais pelas intrigas do 'Ndjai Bá, que tive que expulsar do Comité de Ziguinchor porque estava pedindo dinheiro em nome do Partido.

# «MC» ▼ 

Os dois desertores da marinha portuguesa, acima identificados, por terem entrado em território do Senegal, foram detidos pela Polícia de Fronteira e levados para Ziguinchor, onde permaneceram em cativeiro durante três dias. Seguiu-se a sua transferência para Dakar, a fim de concluírem o processo de interrogatório. Após serem postos em liberdade, tomaram a iniciativa de escrever uma carta de agradecimento a Amílcar Cabral, pelo apoio prestado, de cujo conteúdo reproduzimos a parte que segue:



Citação: (1963), Sem título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, 

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36581, com a devida vénia.

Fico aguardando ou a vossa resposta urgente ou a minha partida para Conacri.
Dakar, 24 de Outubro de 1963.
Lourenço Gomes.



Citação: (1963), "Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região de Óio", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41412, com a devida vénia.
Continua…
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07075.147.046. Título: Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região do Óio. Assunto: Relatório assinado por Lourenço Gomes sobre a sua visita ao interior, região de Óio. Visita aos locais onde foram abatidos os aviões portugueses; ataque à base de Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira]. Necessidade de medicamentos no interior. Material de Guerra. Despesas. Viatura para transporte dos feridos. Envio dos militares portuguesas, Fernandes Vaz e Fernando Fortes, para a base de Abel Djassi. Em anexo documento assinado por Pedro Pires, datado de 21 de Outubro de 1963, com as informações colhidas das declarações de Biagué. Data: Quinta, 24 de Outubro de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
04JUL2020

_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 2 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21130: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte