Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > Uma pausa nos trabalhos ciclópicos de construção do famoso "Forte Apache"
Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(xv) Hélder Sousa
Comecemos pelo princípio.
O Carlos Pinheiro fez bem em trazer para aqui esta questão que teve então a relevância que lhe foi dada pelo artigo do "Público". E fez bem, não só a avaliar pela quantidade (e qualidade) de comentários já existentes, alguns colocados de forma "apaixonada", mas principalmente por, a partir dele, se poder escrever mais alguma coisa sobre o tema.
Várias coisas entrelaçadas aparecem por aqui. Por um lado é costume haver lamúrias sobre o desprezo, o esquecimento, o mal-tratamento com que a questão das "guerras africanas" e principalmente os seus protagonistas são tratados e/ou ignorados. Por outro, sempre que aparece qualquer coisa (atenção! não estou a dizer que seja boa ou má) que pode servir para aumentar, ampliar ou dar maior visibilidade ao debate, costumam vir as observações de que "querem destruir a nossa imagem", "deturpam tudo", etc.
Muitas vezes os comentários (os mais indignados) partem da leitura de títulos (já de si concebidos para chamariz) bombásticos, a puxar para a polémica por causa das audiências e "shares"...
E uma coisa será a entrevista de uma pessoa e outra a tese escrita pela equipa que a produziu e não são as mesmas pessoas.
Num primeiro impulso rejeitei a ideia/tese em si mesma e nos "considerandos" que li nos resumos. Mas será pouco, deverei ter que ler mais.
Claro que, obviamente, não conheci o que se passava ou passou em Angola e/ou em Moçambique, pois não estive lá. E mesmo que tivesse estado como se pode "conhecer" tudo, quando uma pessoa individualmente estaria em apenas alguns, poucos, locais? Teria certamente uma visão muitíssimo limitada e seria desonesto fazer generalizações. Se por acaso visse algum consumo de droga (e parece que o foco é na "liamba") era abusivo dizer que todo o TO consumia. Se por acaso não tivesse visto nada, também não poderia dizer mais nada a não que "onde estive, não vi" e não fazer generalizações.
No meu caso particular, em que estive na Guiné, sabemos todos que não havia "liamba" e, como tal, não havia o seu consumo. Por extensão, os nossos militares não a consumiriam como forma de se alienarem, fosse para "ganhar coragem", fosse "para esquecer", fosse lá para que raio fosse. A ausência de "liamba" (que parece ser o foco) na Guiné é referida no artigo, ou pelo menos, no resumo que li. Portanto, de forma geral, não temos com que nos preocupar com "enxovalhos" desse tipo.
Mas a insinuação de que tais processos "aditivos" (como modernamente se referem a esses casos) era para a superação psicológica é muito "forçada" para não dizer desonesta e com pouca inspiração, parecendo aparecer na senda do que se disse, escreveu e viu, com os militares americanos no Vietnam.
Sobre a "cola", na forma de "noz de cola" já foi por aqui falado bastante. Também quis experimentar mas não "pegou". Sabor amargo.
Não resulta seriedade quando se apreciam e/ou valorizam comportamentos passados há 50 anos, quando se os avaliam com os "olhos de hoje". A frase insinua que o "consumo de álcool" era incentivado e estimulado pela hierarquia militar, através da logística militar. Por extensão pode-se concluir que isso era propositado e objectivamente para "embebedar" os militares.
Vamos lá a ver, "bebidas alcoólicas" vão desde o vinho às aguardentes, passando pela cerveja e também bebidas espirituosas. O vinho, convém lembrar, para além dos seus efeitos benéficos para a saúde, agora tão defendidos em artigos mais ou menos científicos, era uma situação bem aceite na nossa sociedade de então, mesmo para além daquele velho slogan de que "beber vinho é dar de comer a 1 milhão de portugueses". Os militares no interior pediam e bebiam vinho à refeição nas messes, não para ganharem "coragem para as missões".
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 16 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9360: Operação Tridente, Ilha do Como, 1964: Terminada a operação, a luta e a labuta no Cachil continuam (CCAÇ 557): Parte II (José Colaço)
(**) Vd poste de 4 de agosto de 2020 > Guiné 51/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)
(***) Vd. os dois últimos postes da série:
Comecemos pelo princípio.
O Carlos Pinheiro fez bem em trazer para aqui esta questão que teve então a relevância que lhe foi dada pelo artigo do "Público". E fez bem, não só a avaliar pela quantidade (e qualidade) de comentários já existentes, alguns colocados de forma "apaixonada", mas principalmente por, a partir dele, se poder escrever mais alguma coisa sobre o tema.
Várias coisas entrelaçadas aparecem por aqui. Por um lado é costume haver lamúrias sobre o desprezo, o esquecimento, o mal-tratamento com que a questão das "guerras africanas" e principalmente os seus protagonistas são tratados e/ou ignorados. Por outro, sempre que aparece qualquer coisa (atenção! não estou a dizer que seja boa ou má) que pode servir para aumentar, ampliar ou dar maior visibilidade ao debate, costumam vir as observações de que "querem destruir a nossa imagem", "deturpam tudo", etc.
Muitas vezes os comentários (os mais indignados) partem da leitura de títulos (já de si concebidos para chamariz) bombásticos, a puxar para a polémica por causa das audiências e "shares"...
E uma coisa será a entrevista de uma pessoa e outra a tese escrita pela equipa que a produziu e não são as mesmas pessoas.
Num primeiro impulso rejeitei a ideia/tese em si mesma e nos "considerandos" que li nos resumos. Mas será pouco, deverei ter que ler mais.
Claro que, obviamente, não conheci o que se passava ou passou em Angola e/ou em Moçambique, pois não estive lá. E mesmo que tivesse estado como se pode "conhecer" tudo, quando uma pessoa individualmente estaria em apenas alguns, poucos, locais? Teria certamente uma visão muitíssimo limitada e seria desonesto fazer generalizações. Se por acaso visse algum consumo de droga (e parece que o foco é na "liamba") era abusivo dizer que todo o TO consumia. Se por acaso não tivesse visto nada, também não poderia dizer mais nada a não que "onde estive, não vi" e não fazer generalizações.
No meu caso particular, em que estive na Guiné, sabemos todos que não havia "liamba" e, como tal, não havia o seu consumo. Por extensão, os nossos militares não a consumiriam como forma de se alienarem, fosse para "ganhar coragem", fosse "para esquecer", fosse lá para que raio fosse. A ausência de "liamba" (que parece ser o foco) na Guiné é referida no artigo, ou pelo menos, no resumo que li. Portanto, de forma geral, não temos com que nos preocupar com "enxovalhos" desse tipo.
Mas a insinuação de que tais processos "aditivos" (como modernamente se referem a esses casos) era para a superação psicológica é muito "forçada" para não dizer desonesta e com pouca inspiração, parecendo aparecer na senda do que se disse, escreveu e viu, com os militares americanos no Vietnam.
Sobre a "cola", na forma de "noz de cola" já foi por aqui falado bastante. Também quis experimentar mas não "pegou". Sabor amargo.
Aquando da estadia em Piche havia um estabelecimento comercial (digamos assim...) onde para além de venda de artigos vários também serviam refeições (normalmente "frangos") e bebidas entre as quais o café.
O proprietário, sr. Tufico, costumava perguntar, quando lhe pedia café, "com bolinha ou sem bolinha?". Disseram-me para pedir "com bolinha" pois aquilo era bom, saboroso e "animador". Claro que experimentei mas nunca senti qualquer efeito especial a não ser ter ficado com a ideia que aquilo que ele colocava no café (as tais "bolinhas") eram pequenas sementes de anis. Pelo menos era esse o sabor que memorizei.
Não posso jurar que em alguns locais, em Bissau, pessoal mais abastado (lá está, o consumo das "drogas" não poderia ser assim, generalizado, ao militar comum, com poucos recursos), com mais acesso a "modernices", com maior integração em "certos ambientes", não pudesse fazer outro tipo de experiências mas, obviamente sendo humanamente impossível falar por todos os locais do interior, é minha forte convicção de que o "acesso a drogas" não foi utilizado e muito menos para os "objectivos" propalados.
Quanto ao consumo de álcool.... entendido aqui como "bebidas alcoólicas em geral"... Ao lermos (no resumo, insisto) uma pequena frase "mortal", a qual pelo seu tom dá logo a entender a tendência/conclusão do que se pretende, de que "a adoção de padrões de consumo intensivo de bebidas alcoólicas que a logística militar distribuía pelos quartéis" revela ignorância dos ambientes e um grande desfasamento dos costumes da época, apreciados à luz dos conceitos e preconceitos actuais.
Não posso jurar que em alguns locais, em Bissau, pessoal mais abastado (lá está, o consumo das "drogas" não poderia ser assim, generalizado, ao militar comum, com poucos recursos), com mais acesso a "modernices", com maior integração em "certos ambientes", não pudesse fazer outro tipo de experiências mas, obviamente sendo humanamente impossível falar por todos os locais do interior, é minha forte convicção de que o "acesso a drogas" não foi utilizado e muito menos para os "objectivos" propalados.
Quanto ao consumo de álcool.... entendido aqui como "bebidas alcoólicas em geral"... Ao lermos (no resumo, insisto) uma pequena frase "mortal", a qual pelo seu tom dá logo a entender a tendência/conclusão do que se pretende, de que "a adoção de padrões de consumo intensivo de bebidas alcoólicas que a logística militar distribuía pelos quartéis" revela ignorância dos ambientes e um grande desfasamento dos costumes da época, apreciados à luz dos conceitos e preconceitos actuais.
Não resulta seriedade quando se apreciam e/ou valorizam comportamentos passados há 50 anos, quando se os avaliam com os "olhos de hoje". A frase insinua que o "consumo de álcool" era incentivado e estimulado pela hierarquia militar, através da logística militar. Por extensão pode-se concluir que isso era propositado e objectivamente para "embebedar" os militares.
Vamos lá a ver, "bebidas alcoólicas" vão desde o vinho às aguardentes, passando pela cerveja e também bebidas espirituosas. O vinho, convém lembrar, para além dos seus efeitos benéficos para a saúde, agora tão defendidos em artigos mais ou menos científicos, era uma situação bem aceite na nossa sociedade de então, mesmo para além daquele velho slogan de que "beber vinho é dar de comer a 1 milhão de portugueses". Os militares no interior pediam e bebiam vinho à refeição nas messes, não para ganharem "coragem para as missões".
A cerveja não era distribuída insidiosamente pela "logística militar" mas sim fortemente exigida pelos militares no mato. No regresso aos aquartelamentos, após as missões, encontravam de facto conforto numas "bejecas" bem fresquinhas. E isso era recompensador.
As outras bebidas mais "finas", principalmente os wiskies foram, realmente, oportunidade de "descoberta" para a generalidade dos nossos militares oriundos de zonas menos citadinas do nosso Portugal mas, lá está, mais uma vez como forma de "ascensão social" e não para "ganhar coragem".
Hoje por hoje há imensos cursos de antropologia, de sociologia, teses de mestrado, disto e daquilo e, como é natural e acho bem, embora com descoberta tardia, o(s) tema(s) das "guerras africanas" podem estar na ordem do dia.
Hoje por hoje há imensos cursos de antropologia, de sociologia, teses de mestrado, disto e daquilo e, como é natural e acho bem, embora com descoberta tardia, o(s) tema(s) das "guerras africanas" podem estar na ordem do dia.
Não deve haver "condenação" por esse facto. É muito melhor que se debrucem sobre esses tempos do que se continue a ignorá-los. É claro, também, quem nos tempos de feroz concorrência que os académicos e também os livreiros vão vivendo, parece ser uma atracção fatal a procura de "temas fracturantes", ou apresentados de forma polémica. Mas para isso devemos ter a serenidade necessária (e a firmeza) para desmontar o que for preciso e dar o desconto ao que tiver menos importância.
Em resumo:
Em resumo:
O título da entrevista é bombástico/provocador. Não conheço (não li) essa entrevista nem a tese a que se refere. Do que me apercebi dos resumos há algumas "falhas" que se podem perfeitamente corrigir.
O problema é "onde", "como" e "quem", pois o jornal tem a audiência que terá e nós aqui "falamos" uns com os outros.
O problema é "onde", "como" e "quem", pois o jornal tem a audiência que terá e nós aqui "falamos" uns com os outros.
Tenho como posição que é melhor falarem e abordarem as questões que nos dizem respeito, mesmo com falhas e/ou erros do que manterem a ignorância e ostracismo habitual.
Hélder Sousa
______________Hélder Sousa
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 16 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9360: Operação Tridente, Ilha do Como, 1964: Terminada a operação, a luta e a labuta no Cachil continuam (CCAÇ 557): Parte II (José Colaço)
(**) Vd poste de 4 de agosto de 2020 > Guiné 51/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)
(***) Vd. os dois últimos postes da série: