segunda-feira, 27 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21203: Efemérides (331): Os 100 anos de Amália, "o povo que lavas no rio" e Afife (onde vivi até aos 9 anos) (Valdemar Queiroz)



(com a devida vénia...)

1. Mensagem do nosso camarada e amigo Valdemar Queiroz [, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem 110 referências no nosso blogue]

Data - sexta, 24/07, 17:48 (há 22 horas)


Assunto - Amália, o 'Povo que lavas no rio' e Afife

 Luís,

Os 100 anos da Amália merecem aparecer no nosso blogue.

Agora, e sempre, ouvir a Amália cantar este fado [, o Povo que lavas no rio,]é estar em Afife com nove anos de idade.

O poema de Pedro Homem de Melo [, Porto, 1904 - Porto, 1984] é sobre o povo, também o povo de Afife, Viana do Castelo.

É imperdível a consulta ao blogue lopesdareosa (vd. anexo) e a explicação tim-tim-por-tim sobre do poema, e não só, é uma pérola.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
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Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão
Há-de haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Beber em malga que esconda
Um beijo de mão em mão
Era vinho que me deste
Água pura e fruto agreste
Mas a tua vida não

Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição
Povo, povo eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso
Mas a tua vida não


Letra: Pedro Homem de Melo  / Música: Fado Vitória / Criação: Amália Rodrigues (1963)  (com a devida vénia...)


2. Excertos de um poste do blogue lopesdareosa, de António Alves de Barros Lopes > 
sábado, 29 de dezembro de 2012 > Povo que Lavas no Rio (com a devida vénia...)

(...) O tal povo que lavava no rio eu o conheci. Era a minha mãe, era a minha avó era a minha tia. Eram todas as mulheres de Areosa.

Até sei onde eram os rios e seus nomes. Era o da Maganhão, era o dos Ôlhos, era o da Ponte Nova. era o do Rapido, era o das Pontes do Cascudo era o do Poço da Baeta o do Poço da Arrinca. Era o da Romenda, Era o de Fontes era o do Fincão onde até as da Ribeira vinham lavar.

Depois o tal Povo que ía à feira e à tenda eu o conheci. Era o meu avô que dizia que ir a Ponte de Lima e não ir à tenda do Cachadinha ou da Rosa Paula era como ir a Roma e não ver o Papa. Ainda reconheço esse Povo nas feiras de Ponte e do Cerdal nas tendas de S. João ou da Peneda. Eram todos os lavradores que se debatiam com os regatões por umas quantas notas, por uma vaca.

A malga de mão em mão eu por ela bebi nos tempos em que os artistas no regresso a casa paravam na Loja do Perrito e de lá não saíam sem que antes tivessem pago cada um a sua rodada daquele verde tinto intragável. Se no beijo na tigela que passava de mão em mão o Poeta viu irmandade, comunhão ou outra coisa qualquer, por isso era Poeta: 

Procissões, praias e montes, areais, píncaros passos, braços e fontes, quem não os conheceu???

Montanhas veredas e cangostas foi Pedro Homem de Mello que as inventou?

Buxas, lobas, estrelas. Vozes na casa deserta, almas penadas, chascas nas encruzilhadas? - Quem não ouviu histórias medonhas?

Quem não sabe ao que o Poeta se refere quando afirma que tinha rasgado certo corpo ao meio e que tinha visto certa curva em certo seio?

Apesar de tudo e mesmo assim o Poeta se confessa apartado da essência do Povo que tão bem canta.
- Pertenço-te e deste-me alturas de incenso, mas não me deste o teu modo de viver porque esse é inatingivel.

(...) Resumindo, Povo que Lavas no Rio  é um hino ao Povo. Pelo menos ao Povo do Alto Minho, em relação aos quais  já pressenti muito desdém.

Talvez por inveja. Talvez porque haja muita boa gente que não aceitou em  Pedro Homem de Mello a sua rebeldia.

"- Monárquico em todas as repúblicas do mundo."

Ou que, apesar disso, ousou afastar-se dos seus, cujo desprezo presenciei na muralha inultrapassável em frente à Havaneza em noites de Feiras Novas.

Ou porque a intelectualidade não conseguiu catalogar o Poeta no cardápio das correntes e das mediocridades.
Outros porque não perdoaram ao Poeta ter-se misturado com o tal povo e cantado essa vivência roubando assim a iniciativa aos especialistas.

Outros porque não lhe chegando à bitola se apressaram a classificar Pedro Homem de Mello como poeta de segunda!

Sei lá! (...)

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Guiné 61/74 - P21202: Notas de leitura (1295): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Dá-se continuidade à análise de um livro que consideramos de leitura obrigatória para todo aquele que se sente motivado pelo estudo da história da Guiné. Trabalho de rigor, e uma análise muito cuidada, que inclui leituras, entrevistas e o estudo dos números e dos inquéritos. Álvaro Nóbrega não se circunscreve aos 10 anos de democratização, procede ao levantamento do antes a independência, estuda as diferentes elites que se formaram na Guiné-Bissau, identifica as ambiguidades, os obstáculos e os antagonismos entre um Estado que não cobre o que se chama o território nacional e um território nacional onde é muito forte o peso da sociedade civil rural, das tradições. Com esta análise, lembra o autor, torna-se mais claro o papel político dos militares, a fragmentação dos partidos e a inoperância das instituições.
Um livro precioso, tanto na Guiné-Bissau como em Portugal.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (2)

Beja Santos

Em “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, Álvaro Nóbrega, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015, dá-nos um estudo admirável sobre as sinuosidades do processo democrático guineense, a partir da luta de libertação, das tensões que esta mesma provocou, dos equívocos entre um sonho de modernização e as múltiplas dificuldades do Estado se encontrar com a nação e com as populações nela residentes.

O Estado existe mas é negligente, descura a sua própria história e o autor cita um artigo publicado em 2003 em Kansaré, de algo de grave que se viu em Lugajole: “As ruínas da Casa da Independência continuam a cair pedra a pedra nas brumas das preocupações dos governantes (…) A placa comemorativa da proclamação da independência já desapareceu. Onde foi parar? Ninguém sabe. É provável que o metal deste símbolo da liberdade já tenha sido fundido para fabricar algum objeto fútil. Triste reciclagem dos valores da independência!”. Na euforia da chegada a Bissau, em Outubro de 1974, os líderes entenderam mandar arrancar os símbolos da presença colonial, as estátuas foram enviadas para a fortaleza de Cacheu. A estátua do presidente norte-americano Ulisses Grant, que tivera um papel primordial na questão de Bolama, foi pilhada e fundida. Perderam-se memórias preciosas, a começar pela destruição do património que pertencera ao Museu da Guiné e que estava nas instalações do INEP que foram vandalizadas pelas tropas senegalesas que fizeram fogueiras com mapas antigos. E o narcotráfico fez relevar outra questão que comporta alta perigosidade, como observa o autor: “A sede real do poder tem sido pretensa de um núcleo de poder, sem enquadramento constitucional, que envolve militares e civis ligados por interesses patrimoniais e por outros níveis de solidariedade. É este núcleo informal que detém, em última instância, a capacidade de determinar o exercício da força e da violência do Estado”. Isto ocorre na falta de autenticidade do poder, de uma verdadeira criminalização do Estado, na incapacidade de se praticar com independência e rigor a justiça e onde o funcionalismo, cronicamente mal pago, é a própria bandeira da corrupção.

E temos a efemeridade das governações, como o autor comenta: “Quando os governos não são inexperientes, não são coesos, resultando de coligações precárias intra e interpartidárias que se fazem e desfazem ao sabor das intrigas políticas, das pressões militares e das vontades presidenciais. Essa tem sido uma constante dos governos guineenses cujo tempo máximo de vida, depois da abertura política de 1991, tem rondado os dois anos de mandato”. E a governação precária anda também a reboque da instabilidade política e militar: “Em 2008, as eleições trouxeram de novo Carlos Gomes Júnior ao poder, que iniciou um ciclo de crescimento económico, mas a luta pelo poder e instabilidade política e militar continuaram a marcar na vida guineense, como ficou bem expresso nos assassinatos de 2009, na deposição do CEMGFA Zamora Induta, em 1 de Abril de 2010, e no golpe de Estado de 12 de Abril de 2010, que o obrigou ao exílio”.

É pois importante apurar o papel dos atores. Logo a elite política. Na década de 1980 uma camada social ou grupo de pessoas, a propósito da liberalização que então estava a ocorrer, passaram a intervir fortemente na vida política. Nesta elite moderna entram famílias de cultura crioula com peso histórico, invejada e detestada pelos grupos intervenientes de diferentes camadas étnicas, que não lhes reconhecem legitimidade. Daí os apodos, sempre depreciativos: à quem considere Carlos Gomes Júnior, cabo-verdiano, o ex-presidente Henrique Pereira Rosa, português e Francisco Fadul, libanês. As discriminações sucedem-se, não há pior insulto que chamar alguém Burmedjo (vermelho), uma tez clara que faz com que uma pessoa seja considerada de “cor”.

Há outro percurso das elites, que é o das habilitações, há os pergaminhos da luta, e depois da independência chegaram muitos jovens educados no exterior. O autor observa: “Estes jovens forneceram os quadros necessários aos muitos partidos que se criaram para competir pela sede do poder, vão dar origem a uma elite política onde se irá integrar uma elite tradicional”.

Procedeu-se a um estudo para identificar a composição desta elite política, enorme, se atendermos à presidência e aos seus conselheiros e assessores; ao governo com os seus ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, diretores-gerais, diretores das empresas públicas, governadores regionais, administradores de setor; pelos deputados e pela legião que são as fileiras dos partidos políticos. O estudo em apreço sobre a elite política teve em conta os representados na Assembleia Nacional Popular. Apura-se a ver subalternização da mulher, são 10% da composição do parlamento; os grupos etários dominantes estão entre os 30 e 59 anos; analisando a distribuição dos deputados por profissão constata-se que o peso dominante vai para os comerciantes, professores, engenheiros e trabalhadores da função pública e o nível de escolaridade que mais pesa (41%) é dado pelos licenciados; não surpreende os problemas complexos da etnicidade por várias razões: a dupla e tripla pertenças étnicas são uma realidade comum e frequente. A identificação étnica pode variar no tempo e no espaço, pode mudar para processos de convergência étnica e, por exemplo, os processos de mandiguização e de fulanização levaram as etnias sujeitas a tais processos de aculturação a adotar a mesma antroponímia; quanto à cultura religiosa, os números não são devidamente esclarecedores, temos cerca de 42% deputados islamizados e 60% que se dividem entre o animismo e o cristianismo.

Já fora deste inquérito, o autor disseca o papel político dos militares. Nas democracias estabilizadas, as forças armadas permanecem submetidas ao poder civil. Recorde-se na Guiné-Bissau nunca houve uma separação efetiva entre a política e as armas. Em Cassacá estruturou-se o corpo de guerrilha do PAIGC que ficou dependente da direção política. Com o golpe de Estado de 1980, a regra subverteu-se e com o multipartidarismo estabeleceu-se a promiscuidade e daí as acusações recíprocas entre partidos de acusações das interferências políticas, dos assassinatos de militares da conivência com os golpes. O autor sublinha existir promiscuidade entre políticos e soldados nas bases militares. Tagme Na Wai, o terceiro CEMGFA desde 1999 estava consciente desta situação perigosa e de que as lutas partidárias nos quartéis podiam ser mortíferas. E daí ter lançado um aviso: “Queremos dizer aos partidos políticos da Guiné-Bissau, cujos elementos são nossos familiares – irmãos, sobrinhos, tios –, que nos deixem fazer o nosso trabalho militar nos quartéis, que cada vá organizar o seu partido na sua sede. Para nós, os militares, as nossas sedes são os quartéis e os nossos militares são os nossos militantes”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21188: Notas de leitura (1294): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 – P21201: Memórias de Gabú (José Saúde) (94): Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

Deixo-vos mais um pequeno texto inserido no meu último livro intitulado, nono, “Um Ranger naGuerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” e já à venda ao público nas livrarias (Edições Colibri, 2019).


Memórias de Gabu



Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu
 A fuga

Foi por aquele pequeno espaço  feito em tijolos que os guerrilheiros do PAIGC se piraram [Vd. foto acima],

Relato, com um saudosismo que é próprio da minha pessoa, o conteúdo de uma fuga protagonizada por dois guerrilheiros do PAIGC, feitos prisioneiros, que numa bela noite se piraram de uma modesta e casual prisão existente no quartel.

Assevero, que o meu primeiro aposento em chão fula foi precisamente de paredes-meias com a dita cadeia. Naquele tempo alguém terá comentado a razão do espaço. Todavia, a coisa, dita com verdade, pareceu soar a “bocas da velhada” – em final do seu ciclo de rendição - para amedrontar o pessoal piriquito acabado de chegar àquelas paragens guineenses. 

Recordo que a temática acerca da prisão dos dois inimigos de guerra – usualmente conhecidos por “turras” pelas nossas tropas - suou a silêncio. Falou-se, sim, sorrateiramente no assunto, todavia as impressões sobre o caso caíram num pressuposto saco roto.

Lembro, que foram alguns os camaradas no quartel que se aperceberam da endiabrada e hábil aventura dos lestos homens. Tanto mais que o acontecimento passou quase despercebido à generalidade da maralha. Falou-se do tema à socapa, mas na verdade o assunto comentou-se.

Naquele tempo, e com a guerrilha em plena atividade no terreno, tudo o que transpirasse a eventual curiosidade, ou saísse fora da rotina, era normalmente abafada. Assim, tudo ou quase tudo, digo eu, era restrito a conversações entre graduados. A malta, o tal soldado desconhecido, combatente exímio e corajoso, cumpria deveres e recreava-se com momentos de ócio que os instantes livres lhes proporcionavam.

Mas nem tudo era sinónimo de desinteresse. A novidade carecia sempre de dois dedos de conversa. Dois turras presos no quartel sintetizava atenção acrescentada. Mormente para ver in loco o rosto de dois guerrilheiros com os quais o pessoal da Metrópole combatia no terreno.

Sei que a sua estadia foi efémera. Desconheço pormenores da sua captura e o local onde o aprisionamento ocorrera. Portanto, debitarei aquilo que, na ocasião, me foi dado saber. Evoco, como dado adquirido, que a chegada ao quartel foi marcada pelo secretismo. Seguiu-se, naturalmente, a sua instalação num espaço considerado de segurança. Uma espécie de “jaula” assegurava, fortuitamente, uma vigia apertada. Um pequeno quarto com uma porta que acusava já algum desgaste, sendo o espaço exíguo, parecia apresentar-se com as condições ideais para os homens pernoitarem sob o segredo dos deuses. Depois, sucedia-se o imprescindível interrogatório, como era hábito acontecer.

Elementos da PIDE encarregar-se-iam de lhes sacarem informações, nem que para tal a sua ação passasse por utilizar os métodos mais rudes. O importante, para eles, agentes do Estado Novo, passava por colocar os homens a confessar tudo aquilo que sabiam. 

Mas, nem tudo o que parece é. Ou seja, existiam pequenos pormenores que tacitamente fugiam à intenção dos graduados, homens que já pareciam denotar algum traquejo na guerrilha. Aquele pequeníssimo recanto virava para uma área totalmente livre. Havia, é certo, os arames que limitavam o espaço do quartel a que acresce a presença das sentinelas cuja missão era garantir a segurança àqueles que dormiam, logo pressupunha-se, sim, que a seguridade dos guerrilheiros inimigos apresentava fiança.

Porém, tudo se esfumou num horizonte de incertezas, ou contrariamente de profícuas certezas, clarificando melhor este filme a preto e branco entretanto visualizado. Na noite da chegada às novas instalações, e sob o silêncio da madrugada, consumou-se a fuga. Os homens, quiçá mestres em escaramuças de guerra e sabendo o que os esperava, piraram-se sem que ao menos deixassem um pequeno rasto da sua auspiciosa fuga.

Acrescente-se que a sua porta de saída foi simplesmente uma pequena janela vedada em tijolos de cimento. Os homens escavaram o espaço sem o mínimo de barulho, concentraram no interior tudo o que era entulho e calmamente soltaram o afiado grito de Ipiranga, como quem diz, o da liberdade.

Seguiu-se a passagem do arame, facto este ultrapassado, e lá marcharam pela calada do breu rumo aos seus camaradas. A guerra, para eles, apresentava-se também como um pesaroso calvário, sabendo-se que a razão da sua luta no mato era levar o seu povo à independência.

Dessa enlouquecida aventura nunca mais nada se soube!... Peripécias de uma peleja onde o sistemático envolvimento das forças em confronto transmitiam arte no saber contrariar as liças que o IN a todo o instante impunha.

Em Gabu, os dois homens do PAIGC trocaram as voltas ao inimigo, prepararam e concretizaram a fuga que parecia, em princípio, condenada ao fracasso. Mas assim não o foi. “Os turras piraram-se, pá”, comentava-se depois no aquartelamento, mas em sigilo. 

Passados todos estes anos dessa famigerada fuga que deixou de boquiaberta o pessoal que soube da estratégia montada pelos guerrilheiros, revejo a história e ainda admiro a audácia dos afoitos prisioneiros.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. também o último poste desta série em: 

3 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21136: Memórias de Gabú (José Saúde) (93): Piriquitos exploram o centro de Nova Lamego (José Saúde)

domingo, 26 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21200: Blogpoesia (687): "O sabor da sabedoria", "Quem haveria de dizer..." e "Desinfestar os males", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


O sabor da sabedoria

É vasto e fundo o mar.
A sabedoria é um mar.
As ideias e os conceitos navegam nele à solta e em liberdade.
A ele recorrem, a toda a hora, os pescadores com suas artes, as mais variadas.
Enchem os seus porões.
Como sardinha ou pescada.
Depois as levam com sofreguidão.
As descarregam, em grande festa, nas bancadas dos mercados.
A seguir são cozinhadas e servidas à mesa das refeições.
Cada cozinheiro tem sua mão.
Dali saem gostosos petiscos que saciam não só o corpo mas também a alma.
É bom e salutar mergulhar no mar da sabedoria a toda a hora...

Berlim, 23 de Julho de 2020
7h56m
Jlmg

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Quem haveria de dizer…

Nasceu de família rica e apalaçada.
Frequentou colégios dos melhores que havia pela redondeza.
Foi para o Porto.
Quis viver sozinho.
Ruelas manhosas.
Crivou-se de vícios.
Mergulhou nas drogas.
Dormia no chão.
Inverno e verão.
Fez-se um farrapo.
Tudo esqueceu.
A família inteira.
Lá na aldeia serrana.
‘Inda espera por ele.
Juiz ou doutor.
Um destino perdido.
Mas a avozinha velha,
Lhe queria tanto.
De pequenino o cuidou.
Todas as noites acendia uma vela.
Senhora da Esperança!
Senhora de Fátima!
Uma fé total.
Há-de aparecer.
...................

Certo dia, pela tardinha,
Apareceu ao portão
Da quinta murada.
Conhecia-o tão bem.
O velho cão logo apareceu.
Se atirou a ele.
A ladrar de júbilo.
A velha criada assomou ao alto,
Lá do escadório,
A ver o que era.
E o cão, de contente, ladrava, ladrava.
Sem lhe fazer mal.
Um pressentimento:
Só pode ser ele.
O Antoninho.
Desceu a correr.
Que grande abraço.
Eu sabia que havia de voltar.
E agora a avozinha?
Seja o Deus quiser.
…................

Que grande festa houve naquela mansão, naquela noite.
Quem haveria de dizer?...

Berlim, 24 de Julho de 2020
7h21m
Jlmg

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Desinfestar os males

Oro ao sol desinfeste as nuvens negras que, de repente, toldaram a terra de tristeza e de angústia.
Secaram os sonhos de viver.
Nos sentimos amordaçados pelo terror do temor.
Ficaram presos nossos passos.
Deixamos de voar com medo das tempestades inesperadas e imprevisíveis.
Temos os olhos entumecidos por pesadelos das noites mal dormidas.
A esperança deixou de brilhar no horizonte.
Soaram a rebate os sinos da aflição.
Parece que o abandono se instalou.
Mas eu, contra tudo e todos, creio vivamente que não estamos abandonados.
Brevemente, há-de vir Alguém, a socorrer e desinfestar todos os males...

Ouvindo Schubert
Berlim, 25 de Julho de 2020
8h23m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21183: Blogpoesia (686): "As multidões..." e "Derramaram prata neste mar ardente", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21199: Da Suécia com saudade (78): “O que teria sido se....?” ... A propósito da Bissau dos anos 60/70, recordados por Carlos Pinheiro... (José Belo)


Guiné > Bissau > s/d > "Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

Colecção: Agostinho Gaspar (2010).  Digitalização (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



1. Mensagem de José Belo [. régulo da Tabanca da Lapónia]

Date: sábado, 18/07/2020 à(s) 13:56
Subject: "O que teria sido se....?"

Um interessante texto sobre Bissau, escrito por Carlos Pinheiro e há anos publicado na Tabanca Grande (*), foi agora reproduzido na Tabanca do Centro. (**)

Interessante por conseguir recriar  um certo ambiente,  e mesmo o "ar" que se respirava na Bissau daquela época. [Vd. também a nossa série, "Estórias de Bissau", de que já se publicaram uma vintena de postes, LG]

José Belo, ex-alf mil,. CCAÇ 2381 (Ingoré,
Buba. Aldeia Formosa, Mampaté e Empada,
1968/70); autor da série "Da Suécia
com Saudadr"
Tendo feito parte de uma Companhia Independente de Atiradores [, a CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70];  que passou toda a sua comissão de serviço afastada dos reluzentes centros cosmopolitas , fossem eles a Capital ou outras grandes cidades guineenses,confesso recordar Bissau como uma cidadezinha de Avenida única (esfaltada) ao fim da qual existia um arremesso de cais muito apropriado para navios de pequeno calado e...pouco mais.

Esta aparentemente tão falaciosa recordação é agora completada pelo texto publicado,nas  referências a meia-dúzia de comerciantes "terceiro-mundista", somadas a alguns "restaurantes" que mais não eram do que o que eram, e a uns "night-clubes" capazes de fazer sonhar o aldeão mais empedernido do nosso querido Portugal.

Depois de lidos todos os detalhes apresentados na descrição fica-se quase, quase,com a ideia de que a tão próxima cidade senegalesa de Dakar mais não seria que subúrbio pobre desta pujança social,comercial,e não menos ,intelectual .

O que será perfeitamente justificável. Os colonialistas franceses chegaram a esta Costa africana..... muito depois de nós!

Não será portanto de estranhar que um Senhor  Comentador, sempre atento a todas as oportunidades de "reeducar" politicamente a História e os cidadãos (então muito em uso pelo Oriente,e não menos por alguns dos pseudo revolucionários portugueses), tivesse de imediato colocado a seguinte pergunta: 

"O que teria sido se os malfadados colonialistas lá tivessem ficado mais umas dezenas de anos?" (O termo "malfadados" é obviamente usado com semântica contraditória)

"O que teria sido se....?" ,pergunta o mesmo comentador, se nos tivessem oferecido a oportunidade de mais uma dúzia de anos coloniais.

Se nos tivessem oferecido a oportunidade de conseguirmos (ou sequer tentássemos) fazer nessa dúzia de anos o que não realizamos em seiscentos anos de colonialismo na Guiné?

"O que teria sido se...?" a herança cultural e social que por lá ficou tivesse sido antes em educação de profissionais especializados em Administração, Medicina, Engenharia, Economia, Indústria, Agricultura, Pesca, etc. (E lá volta o Senegal,Dakar, tão próximo e tão distante em tudo o acima referido.)

Os neocolonialismos tão sonhados por alguns dos nossos patrioteiros, ao mesmo tempo que convenientemente esquecem que para tal se torna necessário economias robustas e forças militares significativas?!

A França em relação à África Ocidental,e outros arrivistas mais modernos sem passados coloniais importantes são exemplos interessantes.

"O que teria sido se...?" não tivéssemos sido obrigados pela guerrilha a nos reagrupar estrategicamente, em processo cada vez mais acelerado, abandonando Madina do Boé, Gandembel, Guileje, e outros Destacamentos, menores mas não menos importantes estrategicamente .

"O que teria sido se...?" o mesmo iluminismo-saloio dos geniais políticos, que levou à perda de Goa, se viesse a repetir na Guiné ?!. Marcelo Caetano referiu essa possibilidade. Os Chefes Militares da época também o fizeram.

"O que teria sido se...?"

Com tal tipo de pergunta cai-se no que em meios jurídicos norte-americanos se denomina "infantilidade analítica".

Pergunta que,  aplicada a toda e qualquer situação, seja ela pessoal ou coletiva (, histórica no exemplo referido), é verdadeiro exercício de retórica que pode nos levar a qualquer resposta,ao mesmo tempo que não nos leva a resultado algum.

Uma forma de infinito....caseiro.

Um abraço do J. Belo (***)

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(**) Vd. Tabana do Centro > quarta-feira, 15 de julho de 2020 > P1241: Já passaram 50 anoss... > A cidade de Bissau em  ‘68/’70, por Carlos Pinheiro

(***) Último poste da série > 18 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21179: Da Suécia com saudade (77): Os Vikings, os capacetes... e os cornos (, que só aparecem em 1820 e que hoje são de plástico, "made in China") (José Belo)

sábado, 25 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21198: Blogoterapia (296): Achado misterioso (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de hoje, 25 de Julho de 2020:

Amigo, Carlos Vinhal
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que são queridos.
Carlos, de quando em vez publico na minha página no facebook uns pequenos textos a que dou o nome de pensamentos à deriva, o próximo vai ser este.
Se entenderes que merece a pena, pública no blogue.
Algumas vezes coisas com pouco jeito também tem o seu interesse, se mais não for ajudam-nos a valorizar aqueles que são bons no que fazem, neste caso aquilo que escrevem. Se entenderes que não merece a pena, como já te tenho dito, o caixote do lixo está sempre à mão.

Recebe um abraço.
António Eduardo Ferreira


Achado Misterioso

Acordei exaltado e confuso. Sonhei com alguém que há muito andava perdido e me pediu ajuda. 
Levantei-me, ansioso, e logo fui à sua procura, era ainda cedo quando de casa saí, caminhando sem rumo esperando que a sorte, ou o acaso, me ajudassem a encontrar esse alguém que em sonhos me pediu ajuda, subi montes, desci encostas, atravessei vales e rios até que cheguei ao mar, caminhei pela areia, com o andar incerto e preocupado as gaivotas se assustavam, mas quem eu procurava não encontrei. 

Voltei de novo à montanha, subi ao ponto mais alto de onde olhei em várias direções, mas ninguém perdido eu consegui ver, entrei no deserto e fui mais além onde tive por companhia sombras vagabundas, até que a noite chegou, e eu, já cansado, à ânsia começava a juntar a desilusão de não encontrar quem procurava. 

Teimosamente decidi seguir em frente, entretanto uma forte trovoada se abateu sobre o deserto e um enorme relâmpago durante algum tempo tudo iluminou e a minha mente se transformou em dia, foi então, que graças à trovoada, que se abateu sobre mim, eu entendi que esse alguém que eu procurava e até então não tinha encontrado, afinal era eu próprio…

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21085: Blogoterapia (295): O Covid-19 e os mísseis Strela (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P21197: Os nossos seres, saberes e lazeres (403): Nadir Afonso, as invisíveis cidades geométricas, ao alcance da Matemática (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Há muito que desejava confrontar-me, olhos na tela, com a trajetória pictórica de Nadir Afonso, uma singularidade das Artes Plásticas portuguesas, um percursor do abstracionismo, após o trabalho pioneiro e o terreno desbravado por Amadeo de Souza Cardoso e Maria Helena Vieira da Silva, as figuras marcantes da rutura.
Nadir percorreu o mundo, era arquiteto, a profissão reflete-se na linha, na geometria, nas teorias estéticas que legou. Recebeu louvores da crítica, está patente em importantes museus, gerou muitas controvérsias, deixou-se ficar à parte de outros movimentos artísticos. E no entanto, quando contemplamos aquelas curvas e contracurvas, as espirais, as formas que se movimentam, aquelas cidades e aglomerados de que desconhecemos o nome, o contraste por vezes brutal entre os fundos brancos e as cores primárias, aqueles negros que parecem esbarrar com as cores luminosas, somos levados a questionar se Nadir Afonso não merece a nossa melhor atenção para todo este trabalho sobre as formas abstratas que alteraram a nossa maneira de olhar a Arte e de ver o mundo.

Um abraço do
Mário


Nadir Afonso, as invisíveis cidades geométricas, ao alcance da Matemática

Mário Beja Santos

Nadir Afonso (1920-2013), arquiteto, ensaísta, artista plástico, autor de teoria estética, ocupou um lugar ímpar na pintura portuguesa, gerou controvérsia por ter defendido que a Arte é puramente objetiva e regida por leis da Matemática, o seu pensamento estético foi posto por muitos em causa, ganhou ao longo da sua longa vida muitos adeptos e a crítica nem sempre foi benevolente com ele.
Esta exposição que visitei em janeiro de 2020 no Museu das Artes de Sintra centrava-se no Nadir Afonso a percorrer uma trajetória figurativa até ter encontrado os seus parâmetros próprios na abordagem abstrata. Como escreveu o crítico Bernardo Pinto Almeida no texto de abertura desta exposição, “A Arte da primeira metade do século XX, construiu-se na pintura tal como na escultura, através da persecução do imperativo: o de se encaminhar com vista a chegar até ao limite formal da abstração. Na verdade, de Kandinsky a Malévich, ou destes a Mondrian e aos da Bauhaus, poucos foram os artistas que não se sentiram desafiados a entrar por esse caminho que se tornou numa forma disciplinar para o programa modernista”. Será assim na Arte Portuguesa do século XX, primeiro pela mão genial de Amadeo, na década de 1930 continuada por Maria Helena Vieira da Silva, por outros caminhos Nadir Afonso e Fernando Lanhas, entrar-se-á depois num jardim labiríntico e metamórfico, o grupo KWY seguirá uma via bem distinta e outros que através do abstracionismo chegarão a outras correntes, como Júlio Pomar, Júlio Resende, Sá Nogueira, Paula Rego ou António Palolo.
Nadir era arquiteto de formação, trabalhou em ateliês de renome, em França e no Brasil, em Paris vai alinhar com outros artistas que apostavam na nova abstração europeia, daí uma certa fixação de Nadir pela arte ótica de um Vasarely, é a partir desse período que nunca mais a sua originalidade se perdeu, mesmo sujeita a diferentes ciclos de intervenção.





Tivemos poucos teóricos em Artes Plásticas. Houve um Joaquim Rodrigo que ficou convencido que deixara para a posteridade uma teoria da cor, Nadir foi incansável a escrever, era descrente de que a Arte fosse um ato de inspiração, antes de mais entravam em cena a observação, a perceção e a manipulação da forma. Um ano antes de partir, foi dado à estampa o livro Nadir Afonso conversa com Agostinho Santos, Âncora Editora, 2012. É categórico na entrevista: a geometria é a essência do absoluto; considerava-se um obcecado pela observação da forma, as formas são uma fonte de harmonia e de exaltação espiritual; a geometria é uma fonte de certeza, dirá o artista, mostra-nos até que ponto nos enganamos, porque, insistindo na contemplação, muitas vezes, reparamos que, de facto, nos enganámos. E dirá sem rebuço que a sua teoria estética tem por base o materialismo dialético. E diz, impávido e sereno, que “em certas obras acho que atingi o absoluto, principalmente na composição”.





Fixa-se em espalhar pelas telas cidades, muitas vezes sobre fundos brancos, são lugares do mundo com que nos confronta, há a sensação de que vamos ser engolidos ou que aquelas cores primárias assumem a forma de uma dança aos nossos olhos, como se aquele abstracionismo geométrico possuísse o dom do magnetismo. Será sempre assim ao longo das intensas décadas do seu trabalho, formas espiraladas, curvilíneas, disparando para uma espécie de infinito, noutros períodos do seu trabalho as espirais comungam com retas e linhas sinuosas, são mares ondulantes. Nos últimos anos do seu trabalho privilegia os fundos brancos, as formas côncavas e convexas, os polígonos, cores vivas que parecem amortecidas por traços negros, substanciais.



O leitor que procure Nadir Afonso no Google verá sempre referências ao seu trabalho nos ateliês de Le Corbusier e Oscar Niemeyer, nomes supremos e revolucionários da arquitetura. E aparecem os tais ciclos denominados, por exemplo, abstracionismo geométrico, período barroco, egípcio, indo por aí fora chega-se ao período fractal, à liberdade total que as linhas assumem, linhas que se justapõem para sugestionar metrópoles e o negro adquire uma nova harmonia, a certificar que estamos perante grandes aglomerados urbanos.




Em jeito de despedida, volta-se ao texto de Bernardo Pinto de Almeida: “Foi a sabedoria da idade e, com ela, o cada vez maior despreendimento para com a ideologia modernista e aquela razão de progresso histórico que ela queria exigir aos artistas, que levou Nadir a autorizar-se na liberdade de registar figurativas as cidades. É assim que elas começam, literalmente, a aparecer, saídas das anteriores composições abstratas realizadas ao longo da década de 60, que foi dominada nesta obra, neste mesmo período, pela invenção, ao mesmo tempo conceptual e formal, de que o próprio artista chamou Espacillimité, simultaneamente uma máquina e um processo”. Talvez assim se possa entender como o artista julgava ter atingido o absoluto. É evidente que um artista que se comenta deste modo, que consagra a geometria, que define a Arte por ser objetiva, acabou por ser exaltado e incompreendido, confessou não ter qualquer relação com o meio artístico, diz ter sentido que entre meio e a Arte existe um abismo, o meio artístico, disse, é o caos de interesses e confusões.
Apreciado ou ignorado, deixou obra vastíssima, não descurou a arte pública, a estação do metropolitano dos Restauradores está cheia das suas cores, da sua geometria, da sua objetividade.


Azulejaria de Nadir Afonso na estação do metropolitano dos Restauradores
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21180: Os nossos seres, saberes e lazeres (402): Tapada da Ajuda: Obrigatório visitar e fruir (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21196: Os nossos regressos (36): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): foi há 50 anos, no T/T Carvalho Araújo, com algumas pequenas peripécias... (Fernando Calado)


Abrantes > RI 2 > s/d (junho ou julho de 1970) > O Otacílio Luz Henriques, ex-1º cabo bate-chapas, do pelotão de manutenção comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Otacílio Luz Henriques (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



O T/T "Carvalho Araújo", propriedade da Empresa Onsulana de Navegação. Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973. Imagem extraída do sítio "Navios porugueses", que deixou de estare dispponíevÇ. estava alojada no Sapo.pt.  



Fernando Calado
1. O Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) telefonou-me, no passado dia 19,  da praia de Monte Gordo, a propósito da data do regresso a casa do pessoal  da CCS/BCAÇ 2852 (*).

Disse-me que não ia a Monte Gordo há maus de 10 anos, e que a praia  estava agora às moscas, sem veraneantes: fora cá a passar uns dias, com a sua querida Rosa (cuja “Casa do Alentejo” está a sofrer com a presente crise…), acompanhados de um casal amigo.

Sem poder consultar outros elementos que têm no seu arquivo, quis-me dar uma explicação sobre a data que, para ele, é "a do regresso a Portugal, 19 de julho de 1970", a bordo  do velho T/T "Carvalho Araújo”, já em fim de vida.  Teria sido também a data em que passou à disponibilidade, conforme documento publicado no poste P21185 (*)


Ainda há dias ele comemorara a efeméride dos 50 anos do regresso a Lisboa, em almoço com mais dois velhos camaradas e amigos desse tempo de Bambadinca: o Ismael Augusto, o ex-alf mil do pelotão de manutenção da CCS (que, em 1970, ficou em Bissau, a chefiar a comissão liquidatária, tendo regressado só em setembro de 1970) e ainda  o José Carlos Lopes, ex-fur mil de reabastecimentos (Os três são membros da nossa Tabanca Grande.)


O Fernando Calado fiz que, "logo nesse dia 19 de julho de 1970, ainda foi a Abrantes ao RI 2, com mais um camarada, no carro do amigo, posto à disposição pelo pai"… Chegaram lá, e trouxeram o papel, da passagem à disponibilidade,  com o carimbo, regressaram a Lisboa de tarde, com o carro "na mecha”, na velha estrada nacional Lisboa-Abrantes. Ainda nesse dia esteva com a namorada, a Rosa.

Segundo eu apurei depois da conversa ao telefone, pela consulta do calendário de 1970.  esse dia, 19 de julho,  era domingo. 


Parece que, nos registos de arquivo, referidos em comentários ao poste P21185 (*)  a partida do "Carvalho Araújo", com o comando e CCS / BCAÇ 2852 e ainda com a CCAÇ 2404, do mesmo Batalhão, foi em junho (16, com a chegada a 25)  e não em julho.  Em 20 de julho de 1970, o "Carvalho Araújo" já estava a desembarcar novas tropas em Bissau,,,


Parece, pois,  haver, da parte do Fernando Calado alguma confusão de datas. Talvez os camaradas da CCS / BCAÇ 2852 e  da CCAÇ 2404 / BCAÇ 2852 (Teixeira PintoBinar e Mansambo, 1968/70), que viajaram juntos, na mesma data, no T/T "Carvalho Araújo", possam acrescentar algo mais sobre o assunto,. 



Fernando Teixeira
Por exemplo, o Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux-Enfermeiro da CCAÇ 2404, membro da nossa Tabanca Grande, diz-nos que desembarcou em Lisboa em 25 de junho de 1970 (**). 

Esta CCAÇ 2404 passou por Mansambo e fez connosco, CCAÇ 12, algumas operações do Setor L1.

Temos fotos desse regresso (e inclusive da ida do pessoal  a Abrantes, ao RI 2, mas não temos datas precisas na legendas...), do álbum do Otacílio Luz Henriques, ex-1º cabo bate-chapas, que pertencia ao pelotão de manutenção.  comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (***)


2. Independentemente do "rigor das datas", o Fernando Calado pareceu-me ter o "filme do regresso" no T/T “Carvalho Araújo”  bem  gravado na memória, na conversa que tivemos ao telefone… 

Por uma razão muito simples: ele foi nomeado, pelo capitão de bandeira, como "o comandante das tropas embarcadas", por ser "o oficial mais antigo",,, 

Explicação dada pelo Fernando Calado: não havia oficiais superiores do comando do batalhão nem o capitão da CCS, já que o Spínola tinha "decapitado" o comando e a CCS do BCAC 2852… Havia um tenente, mas não era operacional, era SGE, o nosso conhecido, açoriano, Manuel Antunes Pinheiro, o chefe de secretaria do comando do BCAÇ 2852. 


O que importa agora é relembrar alguns aspetos desse regresso a Lisboa. Enfim, terá havido alguns peripécias, que merecem ser partilhadas.

O Fernando Calado, no dia da partida do T/T "Carvalho Araújo" , esteve muito atarefado com as diligências e as burocracias do embarque, pelo que nem sequer  tivera tempo de almoçar a bordo. O capitão do navio, pronto a partir,  deu-lhe autorização para "em vinte minutos, meia hora, no máximo" ir ao “Pelicano”, ali ao lado, comer qualquer coisa: ainda se lembra do prato que ele escolheu e de que gostava muito, "um bife de gazela com batatas fritas"...


A caminho de Lisboa, fizeram uma paragem no Funchal, e dois camaradas que ficaram em terra a curtir uma “cardina”… Feita a recontagem do pessoal embarcado, faltavam dois militares… Foram encontrados a dormitar numa esplanada…
Outra peripécia: o Fernando Calado lembra-se ainda que teve de “acalmar” vários militares da CCS que vieram com blenorragias (“esquentamentos”),  mal curadas... Alguns eram casados, um inclusive tinha-se casado por procuração… O drama era saber o que é que iriam dizer às esposas que os esperavam...

Alguns, mais desesperados, batiam com os punhos na cabeça: “Porque é que não eu fiquei em Bissau?!”... O Fernando arranjou uma solução diplomática mas salomónica: quando chegassem a casa, os “entrapados” contavam a verdade, e ficavam à espera que a penicilina acabasse por surtir efeito… Em suma, não era caso para se atirarem ao mar…

Enfim, ele prometei, no regresso a Lisboa, passar ao papel estas e outras memórias dessa algo rocambolesca e pícara viagem que teria demorado "cinco dias" (,. ou nivcem segundo o Fernando Teixeira)...


Aqui fica um primeiro resumo. O Fernando Calado, por certo, irá acrescentar umdia destes dias,  o que bem entender. (****)

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Notas do editor:



(**) Vd. poste de 8 de junho de  2018 > Guiné 61/74 - P18724: Tabanca Grande (464): Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux-Enfermeiro da CCAÇ 2404/BCAÇ 2852, Teixeira Pinto, Binar e Mansambo, 1968/70

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21195: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux está a entusiasmar-se com a figuração que lhe foi proposta por aquele portuga que pretende escrever um romance contando com um amor à distância. O diabo tece-as, a realidade supera a ficção, besuntam-se dos mesmos condimentos, e atrapalham-se numa narrativa que está permanentemente a pôr de sobreaviso o leitor, a intérprete belga pede mais informações sobre o território da guerra, o amoroso português ganha balanço, vai aos escaninhos da memória, socorre-se dos mapas, conta-lhe os primeiros meses, já se adaptou, patrulha, vai buscar comida, leva e traz doentes, conheceu o primeiro foguetório, identifica por onde passa a guerrilha, os pesados tormentos estão prestes a acontecer.
Entretanto, e ele não dá por isso, a malha afetiva estreita-se, os dias são cheios, ainda consegue ler e ouvir música, e tudo quanto vai contando à intérprete belga acende-se aos 50 anos, ganha um outro olhar, ele sente-se encadeado por tudo quanto a amorosa belga lhe pede para contar.
É uma lamechice, mas foi assim que aconteceu, como se vai ver.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, estou em alvoroço, e com justificação, já tenho a viagem marcada e a certeza de que não tem impedimentos profissionais naquele fim de semana de três dias, feriado na Bélgica na sexta-feira, tive em conta o facto, parto quinta-feira à tarde, as minhas reuniões prolongam-se por segunda e terça-feira, regressarei na noite desse dia. O seu entusiasmo contagia-me, percebo perfeitamente que queira saber-se situar na topografia e até na toponímia daquela minha guerra. Tem aí a carta da Guiné, e em tamanho reduzido aquele território que era militarmente designado por Sector L1, gravitando à volta de Bambadinca. O Cuor era o respaldo desta sede do batalhão, para lá do Geba, o principal rio da Guiné, tem o nome de Geba ou Xaianga. Veja com atenção, tem também aí imagem de uma larga linha bem sulcada de laterite, vai desde a rampa do aquartelamento de Bambadinca e desce numa linha perfeita até ao porto. Aí, eu faço a cambança numa canoa e chego a um caminho lamacento, muitas vezes esburacado (é preciso em permanência estar a enchê-lo de pedras e a alisar a superfície, para que o Unimog 411 ou o Unimog 404, as duas únicas viaturas de que eu disponho, não resvalem para o arrozal, quando isso acontece é o cabo dos trabalhos, pôr o guincho a funcionar para voltar a pôr a viatura no trilho), é a “estrada” de e para Finete, mais de dois quilómetros tormentosos, até chegar a um destacamento de milícias e de população civil de etnias Mandinga e Balanta. Daqui se parte para Missirá, sobe-se uma encosta rochosa, depois é uma linha igualmente perfeita até Canturé, muitos anos atrás aqui se plantaram, quase numa geometria perfeita poilões em igual distância, não houvesse guerra e era um completo desfrute ouvir-se ali bem perto o rumorejar das águas do Geba estreito, como vê na carta o Geba adelgaça-se, é uma perfeita tripa, navegar até Bafatá só em embarcações de calado reduzido.

Adoro esta viagem, e gosto muito de Canturé, passo por aqui praticamente todos os dias quando vou ou venho de Mato Cão, local onde tantas vezes chegamos para montar a segurança dos barcos, há atrasos enormes, enganos nas tabelas das marés, podemos chegar às oito da noite e estamos aqui dez horas a fio, já me habituei a levar no bornal umas bolachas e uma bebida achocolatada para acalmar o estômago. Há em Canturé o que eu julgava ser um esplendoroso laranjal, aqui muitas vezes nos dessedentamos, julgava que se tratava de umas laranjas horríveis, com uma invulgar acidez, só muito mais tarde é que soube que eram toranjas que cumpriram o seu dever, mitigavam a nossa sede. Em Canturé vamos por uma picada que na época das chuvas é um perfeito lago, o abastecimento é um inferno, o problema será ligeiramente ultrapassado quando recebermos um Sintex, uma embarcação com um motor, monta-se segurança pela margem até um ponto chamado Gã Gémeos, aí estará um Unimog que rapidamente se encaminhará para Missirá, passando por Sansão. Tenho ao serviço dois condutores, gente exemplar, e de vez tem de vir um 1.º Cabo Desempanador, o último que cá esteve não gostou muito da intensa flagelação, estava encolhido no abrigo, crepitavam os cartuchos quentes que saltavam da metralhadora, queimou-se ligeiramente, para além daquele sobressalto que é ouvir aqueles estrondos e estar sempre à espera do pior. Quando o levei a Bambadinca, avisou-me que da próxima vez vem ao amanhecer e parte depois do almoço, não quer mais sustos.

Tem aí o Cuor intenso, já conheço a três quintos, patrulho até à Ponte de Gambiel, e como lhe disse, é um paraíso aquele palmeiral frondoso, só dói é ver destruída uma bela ponte em madeira que noutros tempos nos podia levar até à povoação de Geba e depois a Bafatá. Um outro pormenor, chère Annette, é o “passeio” de Sancorlã até Salá, é uma floresta hermética, desapareceram vestígios da presença humana, as copas das árvores parecem constituir formidáveis abóbadas por onde entram nesgas de luz, nunca me fora dada a conhecer este tipo de vegetação onde se misturam o piar das aves, o restolhar de animais cujo nome desconheço, alguém diz que é da família do porco, ou mesmo javali, corre à distância, os símios aparecem e desaparecem, talvez intrigados por aquele tipo de incursão em território sem vivalma. Ouvem-se tiros de caçadores, a uma boa distância e alguém me informa que é para lá do Gambiel, já no regulado de Mansomine, ou então para os lados de Quebá Jilã, aí habita gente que apoia o PAIGC. Percorro tudo à volta do rio Gambiel, não se pode atravessar o rio Passa, é profundo, foi-me dado ver, só trazendo botes, e então entrava-se em território onde tudo é inesperado. Mas o Cuor vai muito até cá abaixo ao Geba, e eu aproveito as idas a Mato de Cão para percorrer à volta do rio de Biassa, não há indícios de presença humana. Indícios encontro-os nas margens do Geba estreito em frente àquela enorme bolanha onde Annette vê o nome Nhabijão, com várias designações, ali perto, veja o nome Samba Silate, foi a maior tabanca de todo o Leste da Guiné, as populações fugiram seja para a proteção portuguesa, seja para os confins do rio Corubal, encontro pegadas e já descobrimos duas canoas metidas no tarrafo, foram destruídas, deu-se mensagem a quem vem de Madina e Belel, e atravessa o Geba para trocar produtos e obter informações. Mais acima, no Geba estreito, como se fosse em frente a Canturé, do outro lado há uma povoação chamada Mero, consta que é aí que as populações do PAIGC e que vivem no Cuor se abastecem, o que eu encontro do lado de são bostas de vaca, carregadores de pistolas-metralhadoras e granadas de bazuca. Isto significa que as colunas de abastecimento trazem esquadrões armados, ou coisa parecida.

Não a incomodo mais com estes dados sobre o local onde vivi e me fiz homem. Estou muitíssimo feliz por a ter conhecido e por nutrir por si esta crescente ternura e necessidade da sua presença, telefonar-me constantemente, saber do meu dia-a-dia, falar-lhe dos meus projetos e cimentar uma relação tendo por fio condutor uma guerra de guerrilhas que a Annette há escassos meses nem sabia ter existido. Parto para Bruxelas para contemplar o seu sorriso, vivo o entusiasmo de um cinquentão que parece ter descoberto alguém que também precisa de companhia e de muita ternura. Temos igualmente este ponto em comum que é o prazer de calcorrear Bruxelas, fiquei muito contente quando me disse que no Botanique há agora uma exposição sobre transatlânticos decorados com arte Déco, que temos no domingo de manhã um pequeno concerto na Igreja dos Mínimos, cantatas de Bach, e que vai fazer em sua casa waterzooi, que tanto aprecio.

Disponha do nosso tempo neste fim de semana prolongado. Cumpro a promessa de levar jornais e revistas, o seu vinho do Porto, tudo farei para aí desembarcar com pastéis de nata não a escaldar, mas frescos. Agradeço a Deus tudo quanto me dá, é esse seu sorriso que me faz dardejar a esperança, sinto que encontrei alguém com quem posso contar e a quem posso oferecer o meu tempo, os meus sonhos, o meu futuro. Bien à toi, Paulo.


 © Infogravuras Luís Graça & Camaradas da Guiné

 Eu com Madiu Colubali à minha direita e abraçando o régulo Malam Soncó

Imagem da Bambadinca do meu tempo, a meio, do lado direito, o edifício dos CTT, depois comércio e ao fundo o porto e na linha do horizonte o Cuor.
Uma bela fotografia do meu querido amigo Jaime Machado, já inserida no blogue.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21178: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória