quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Quinta de Candoz > Vindimas de 1979 >  "De calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles [, amigos, vizinhos e familiares do dono] pisando e repisando os cachos das  uvas tintas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: "estragavam o mosto", diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado." ... 

No foto nº 3, vê-se, de perfil, ao canto direito,  o dono da casa e da quinta, o José Carneiro (1911-1996). (Faria 109 anos, se fosse vivo, depois de amanhã, dia 26.). O lagar já não existe, a casa, com paredes de granito de 200 anos, foi reconstruída... Os campos, em solcalcos, outrora de milho, deram origem a uma moderna vinha... É hoje a sede da Tabanca de Candoz. E já não se produz tinto, só branco... Que este ano deu 13 graus... Castas principais: pedernã (arinto) e azul...Outras: loureiro, avesso, alvarinho... Subregião de Amarante...O grosso das uvas são entregues à Aveleda, Penafiel...

Legenda: da esquerda para a direita, os seguintes familiares e amigos do dono: Luís Graça (genro), Gusto (genro), Quim (genro),  Manel (filho), António (filho) e Fernando (amigo da família, cunhado do Manel)


Fotos (e legenda) : © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1.  Num país em que, quando nós nascemos, o vinho dava de comer a um milhão de portugueses,  é quase um insulto perguntar, à rapaziada da nossa geração, quem é que nunca  "foi às vindimas"...

"Pisar a uva", no lagar, já é outra coisa: nem todos nós pisámos uvas... Mesmo os citadinos, como eu, que "vivia na vila",  tinham avós ou tios no campo, e iam nas férias grandes à "festa das vindimas"... (Quando as férias escolares eram mesmo  férias  grandes, duravam três meses...). Tratava-se realmente de uma festa, fechando o solstício do verão,  ou seja, um ciclo nove meses de trabalhos e canseiras no campo... 
A vindima era o parto da vinha.

Na região do Oeste, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha que havia espalhados pela Estremadura e Ribatejo... Deslocavam-se em grupo, com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha (e o trigo)  deu lugar a outraser culturas mais rentáveis  (nomeadamente hortofrutícolas) ...

Mais tarde, a partir de 1976, descobri as vinhas e as vindimas do Norte, na região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos), as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima", a parceria agrícola e pecuária, as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta, sim, porque o branco faz-se "de bica aberta")...

São tradições que se perderam, mas que ainda hoje perduram na memória dos "antigos" (e que em Candoz de algum modo procuramos preservar) ...Aqui fica um texto, que vai ser dividido em duas partes, sobre as vindimas de outrora. Foi publicado no blogue  A Nossa Quinta de Candoz

É uma descrição primorosa das vindimas de antigamente, na freguesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, onde fica situada hoje a Quinta de Candoz... É da autoria do meu amigo, cunhado e hoje sócio da Quinta de Candoz, que nos coube em herança, e que modernizámos, juntamente com mais dois herdeiros, nossos cunhados... (*)

O Augusto Pinto Soares, o nosso "Gusto",  economista e gestor de profissão, reformado, é o nosso homem dos sete ofícios, o nosso vitivinicultor-mor... É também uma homenagem a ele (e o nosso sogro, José Carneiro,  proprietário agrícola e ramadeiro, nascido em 26 de janeiro de 1911, e falecido em 1996). 

É, enfim,  um texto delicioso pelos regionalismos usados, parte dos quais nem sequer ainda hoje estão grafados  nos nossos  dicionários : freima, ausio, serviçada, vinha de enforcado, cantaréu, chia, mula, etc.

O "Gusto" foi alferes miliciano de administração militar, com a especialidade de contabilidade e recebedoria, tirada na EPAM, no Lumiar, Lisboa, e é dos pouco da minha geração (, ambos somos de 1947) que, por mérito próprio  (e também sorte), não foi mobilizado para o ultramar, sendo o primeiro do seu curso. Se a memória, não me erra, fez a tropa em 1970/72. Licenciado em economia, foi gestor em empresas, nacionais e estrangeiras, da indústria de calçado.

É natural do Porto mas, enquanto trabalhador-estudante, conheceu bem a zona da origem da sua mulher (e minha cunhada), onde tinha raízes (da parte dos pais), e inclusive ajudava o futuro sogro, nas férias e aos fins de semana, a "fazer as contas" da compra de uvas por conta de empresas vinícolas   da região, como o Moura Bastos, ou a Sociedade dos Vinhos Borges, que engarrafavam e comercializavam vinhos brancos nossos comnhecidos na Guiné...  (Aliás, foi na Guiné que muitos de nós começaram a apreciar o vinho verde branco: quem ainda não se lembra  de marcas históricas como o Gatão, as Três Marias, o Casal Garcia, o Lagosta, e outras ?!)

Este texto é também uma homenagem também à antiga Casa de Candoz a cujas vindimas os amigos e vizinhos gostavam de ir porque, em troca da "serviçada", a patroa, Maria Ferreira (1912-1995), gostava de servir o melhor que tinha na salgadeira e no fumeiro. (**)



Marco de Canaveses > c. 1947 > As vindimas...
 

Marco de Canaveses > c. 1947 > O típico carro de bois


Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).



por Augusto Pinto Soares (Gusto)



I. Tempos que já lá vão, ou, como se diz agora, por influência do slogan publicitário, a tradição já não é o que era!

Com efeito, um bom par de anos atrás, as vindimas eram uma festa para alguns – os convidados, familiares ou amigos, citadinos – e azáfama e preocupação para a maior parte {, "freima", diz-se aqui]:

(i) os pobres caseiros ou rendeiros na expectativa do terço que lhes poderia caber;

(ii) os pequenos proprietários, sempre na incerteza da colheita que iriam ter e fazendo contas à vida, incluindo alimentação (um peso grande em tempos de míngua – era o tempo da sardinha para três) que haveria de se dar ao pessoal que ajudava à vindima.


Era o tempo em que a data da vindima era marcada de acordo com as disponibilidades dos outros lavradores do lugar ou das proximidades, para que, os pais e os filhos (normalmente mais de seis por família) pudessem distribuir-se na ajuda a prestar uns aos outros. Era o sistema comunitário, a "serviçada", a funcionar.

Então era ver, manhã cedo, homens e rapazes com escadas de madeira (até 12 passos) às costas, com a cesta de vime com o cambito pendurado ao ombro, em romaria às várias propriedades onde a vindima se ia realizar.

Iniciado o corte das uvas, após um frugal mata-bicho – bagaço com açúcar e um naco de broa de milho e centeio –, as conversas, os ditos, as interjeições iam-se sucedendo entre os homens e as mulheres, procurando assim animar os espíritos e dar algum intervalo às dores de costas dos homens, que para além de constantemente terem de mudar as escadas pesadas entre as uveiras altas – as vides como que serpenteavam os choupos que serviam de armação: a tradicional vinha de "enforcado" – ainda tinham, quantas vezes, de se encarrapitar para fora da escada de forma a chegar a um cacho de uvas que teimava em ficar a amadurecer por mais algum tempo.

As mulheres, essas, no seu corrupio entre as leiras e a adega com os cestos de vime pesados à cabeça e com o sumo das uvas, de tão calcadas, a escorrer-lhes pela cara e costas abaixo chegavam afogueadas e com o suor adocicado.

Até as crianças e moçoilas, ainda sem idade para acartar cestos, tinham o seu quinhão na azáfama da vindima. Como diz o ditado, “o trabalho do menino só não o quer quem não tiver tino “, e então era vê-las, cada qual com o seu açafate, empenhadas na sua válida tarefa de apanhar todo e qualquer bago que caísse ao chão, pois desperdiçar era proibido e muitos bagos (envolvidos em terra ou sem ela) sempre davam mais uns quantos litros de vinho.

Aqui e ali ouviam-se os "cantaréus", ao despique, efectuados por 3 ou 4 moças que se juntavam junto às bordas, no intervalo de mais um carreto de cestos e que, ecoando vale abaixo, indicavam aos vizinhos que ali se vindimava e qual o seu estado de alma.

(i)

Lá vai o comboio, lá vai
Lá vai ele à’sobiar,
Lá vai o meu rico amor
Par’à vida militar.

Par’á vida militar,
Par´áquela triste sina
Lá vai o comboio, lá vai
Leva pressa na subida.

Leva pressa na subida,
Leva pressa no andar,
Lá vai o meu rico amor
Par’à vida militar.

(ii)

Deitei meus olhos ao rio,
Para ver teu brio.
Estavas a lavar.

Lava, lava, lavadeira
Estás na brincadeira,
Estás a namorar.

Deitei meus olhos ao rio,
Para ver teu brio.
Estavas a torcer.

Torce, torce, lavadeira
Tua roupa branca,
Que se pode ver.

Deitei meus olhos ao ar,
Para ver de que lado
O sol estav’à dar.

Para nesse lindo arame,
Estender tua roupa,
Para a ver secar.

(iii)

Tenho no meu agulheiro
Agulhinhas de bordar
Para dar ao meu amor
Quando ele aqui chegar.

Borboletinha olaré meu bem
Borboletinha olaré quem tem

(iv)

Tenho uma toalha branca
Fiada à luz da candeia.
O trabalho é oração.
È assim a vida d’aldeia.


(v)

Se vires o mar vermelho!
Não temas que é sagrado.
São as lágrimas de sangue,
Que por ti tenho chorado.


(vi)

Do lado d’além do Rio,
Tem meu pai um castanheiro
Dá castanhas em Abril,
Uvas brancas em Janeiro.


(vii)

Oh! Erva-cidreira
Que estás na varanda,
Quanto mais te rego
Mais tu cais pr’á banda.

Mais tu cais pr’á banda,
Mais t’hei-d’eu regar.
Oh! Erva-cidreira,
Que t’hei-d’eu cortar.


(viii)

Deitei o cravo ao poço. Olé!
Fechado, meio aberto.
Dá cá, toma lá.
Rapaz com’ó Chico.
Não há, não há.


(ix)

Venho de cima do Douro,
Num barquinho de papel.
Já há muito que não ouvi,
Suspiros do meu Manel.


(x)

Ana! Estava na cozinha
E sua mãe a chamou.
Oh! Ana! Oh! Ana!
Senhora Minha Mãe, já vou!

[Fonte: Cancioneiro Popular]



   


Vídeo (1' 59''). Alojado em You Tube / Luís Graça (2013)

Marco de Canaveses >  Paredes de Viadores >  Festa da família Ferreira > 7 de setembro de 2013 > Juntou mais de 100 pessoas. A festa realiza-se há cerca 40  anos. A última tinha sido em 2011. Neste vídeo mostra-se a exibição de um grupo de mulheres da família que cantam lindamente os tradicionais "cantaréus" (que só podem ou devem ser cantados pelas mulheres, e em geral nas vidnimas): Nitas , Mi, São (mulher do maior violonista da região, Júlio Veira Marques, também presente na festa, nosso camarada Guiné) e Dolores...


Eis que chegavam as 10 horas da manhã. E, com um cestinho de vime, bem composto com broa de milho da casa, azeitonas, cebola cortada numa malga ou covilhete com um fio de azeite e vinho verde tinto, um pedaço de toucinho, umas lascas de bacalhau salgado da peça e … pouco mais, coberto com um alvo paninho de linho, lá aparecia a dona da casa.

Fazia-se assim um merecido mas breve intervalo para recompor um pouco as forças já que naturalmente não faltava o garrafão empalhado, com o vinho tinto da casa que ainda sobrara da colheita anterior. Era vê-los, sentados no chão em redor da toalha de linho onde eram dispostos todos aqueles saborosos acepipes ou, quando chovia, com um saco de serapilheira à cabeça com um vértice do fundo dobrado para o interior a fazer de capote ou debaixo dos guarda-chuvas. Era a hora do "almoço" (hoje pequeno almoço).

 Ó Tio Zé! Beba mais uma pinga! Olhe que ele ainda está bô.

Digerida a bucha lá se seguia para mais uma ramada (parreira ou latada) para encher mais uns cestos, para mais uns carretos.

Ao longe já se ouvia o chiar dos carros de bois, por entre caminhos tortuosos, íngremes por vezes, na sua função estóica de levar os cestos carregados de uvas para a adega dos Senhores (ou "fidalgos"), sempre que as propriedades não tinham lagar, onde as uvas tintas de todos os caseiros, conjuntamente, seriam sovadas. Sim,  porque as uvas brancas já tinham sido apanhadas e vendidas para Adegas [, Aveleda, de Penafiel, Moura Basto, de Amarante, por exemplo] pois era muito complexo fazer vinho branco de bica aberta, já que normalmente nunca calhava bem.

Meio-dia! Hora do "jantar" (hoje almoço).

Hoje, infelizmente, tem chovido intensamente, toda a manhã! Os homens e mulheres estão ensopados em água! O trabalho pouco rendeu!

 Oh Tio Zé! Parece que chove a cântaros! Pode ser que ainda venha um "ausio" (aberta) e dê para apanhar uma lagarada!

A dona da casa, afogueada e preocupada, chega a correr:

 Oh! Zé! Chego a panela pr’á frente ou afasto-a p’a trás?

 Oh! Mulher! Cheg'à pr’á frente!

Com dificuldade lá se conseguiu improvisar uma substancial refeição. Uma tachada de arroz salpicado com feijão branco com sardinhas fritas ou de macarrão com espinhas de bacalhau ou batatas cozidas com um naco de presunto ou salpicão que religiosamente foi sonegado às refeições da família durante o ano para agora poder ser servido como lauto pitéu. E naturalmente o vinho tinto da casa que ainda terá de chegar até ao vinho novo.

Sobremesa? Isso era uma fidalguia que não fazia parte dos hábitos alimentares desses tempos. Com muita sorte poderia aparecer um prato de rabanadas ou um prato de aletria que com o seu sabor adocicado merecia mais uma caneca de vinho. Mas tais doçarias raramente apareciam ao almoço, ficavam para a "ceia" (hoje jantar) ou para depois ou durante a sova.

Findo o repasto, novamente a azáfama durante a tarde em tudo igual ao que aconteceu durante a manhã. A meio da tarde, mais uma "merenda" com os mesmos ingredientes daquela que aconteceu a meio da manhã.

A noite chega. Provavelmente a vindima ainda terá que continuar no(s) próximo(s) dias. Agora é tempo de descansar um pouco, preparar as selhas onde os homens lavarão os pés para entrarem no lagar e meter as uvas a vinho. E, de calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles pisando e repisando os cachos de uvas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: "estragavam o mosto", diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado.

Para se vingarem dessa interdição, elas costumavam esconder abóboras no meio das uvas para que os homens ao entrarem no lagar escorregassem nas mesmas e caíssem no meio daquela massa de uvas e mosto ou então, pediam ao homem que durante a vindima ia metendo as uvas a vinho (para muitas mais caberem no lagar) que calcasse as uvas junto a um ou mais cantos (criando assim as "mulas") para dificultar aos homens (sobretudo aos rapazes) da sova o levantamento das mesmas para as poderem arrastar e pisar com os pés.

E quando as moças se lembravam de surripiar as calças que os homens tinham tirado ao entrar no lagar cosendo as pernas das mesmas, uma à outra, rindo-se depois até ás lágrimas – riso puro, jovial, sadio, contagiante  quando depois de sair do lagar os homens tentavam, cambaleando e por vezes caindo, vesti-las?

Chegam entretanto as filhas da casa com uns pratinhos de aletria – feita com ovos caseiros, amarelinhos – bem quentinha, ainda a fumegar, salpicada com uns pozinhos de canela que sabe pela vida e se presta a mais uma rodada da caneca branca de porcelana cheia de vinho, sempre tinto!

Entremeado por ditotes, por cândidas anedotas, adivinhas, alguns cantares (por vezes ao desafio) e de quando em vez alguma música (os proprietários de mais posses chegavam a contratar uns músicos com instrumentos tradicionais), a massa que vai ficando depositada no fundo do lagar é levantada com os pés de forma a encontrar alguns bagos de uvas ainda inteiros e ser esmagados.

As pernas dos homens já escorrem mosto vermelho, qual sangue vivo que começa a brotar para uma nova vida.

O patrão dá a ordem:

– Mais uma volta e podem sair!

Está terminado o dia de trabalho

A patroa já tem pronta a "ceia" (hoje jantar). Arroz de galinha, ou talvez umas batatas cozidas com bacalhau ou. se “fizer minga” [, míngua,],  uma arrozada com um bom naco de toucinho ou presunto – que sempre se foi poupando para estas ocasiões. No fim sempre se improvisava umas rabanadas para servir de final de repasto. Mais uns bons tragos de vinho para compor e…:

 Por hoje está feito, Tio Zé!

Levantada a mesa, uns entreter-se-ão a jogar as cartas (normalmente a bisca ou o burro) com a algazarra própria da batota de alguns ou das "chias" que por vezes iam acontecendo, outros na amena cavaqueira sobre os problemas da vida e da esperança que a colheita fosse boa e para que o ano que vem fosse um pouco mais farto e que um vinho, esbelto e sadio, agora em preparação, saísse para as pipas mantendo o sabor inalterável da uva até à nova colheita.

Começam a sair. As lanternas (de petróleo ou carboneto) começam a acender-se – embora a electricidade tivesse já atravessado a Serra ainda não tinha chegado ao povoado. A noite já vai longa e é preciso dormir para recuperar energias porque os dias que se aproximam serão cansativos, tal como o de hoje.

(Continua)

Texto de Augusto Pinto Soares (2005)

[ Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue: LG]

__________

Notas do editor:



Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69), com data de 22 de Setembro de 2020:

Boa noite,

Desejando acolher-me à sombra do poilão que alberga muitos dos meus camaradas de armas que, tal como eu, sofreram as agruras da guerra da Guiné, segue o meu pedido para que me recebam na vossa companhia.

Segue em anexo uma breve resenha da minha breve (???) passagem pelo GEP (Glorioso Exército Português).

Oportunamente enviarei um relato com a minha versão sobre uma operação realizada no norte da Guiné em Janeiro de 1969.

Abraços
A. Dias


********************


Nome: António Baltazar Valente Ramos Dias
Nascido em 21 de Abril de 1945 em Montijo – Distrito de Setúbal
Ex-Alferes Miliciano de Artilharia
Fazendo parte da CART 1745, embarcou para a Guiné em 13 de Julho de 1967 e regressou a Lisboa em 13 de Junho de 1969.


Ganturé - António Baltazar Dias, então com 22 anos


Breve resenha:

Iniciei a minha vida militar em maio de 1966, tendo sido incorporado no COM em Mafra.
Após o 1.º ciclo de recruta fui destacado para Vendas Novas onde cumpri um 2.º ciclo na especialidade de atirador de artilharia.

Com a minha promoção a Aspirante fui colocado no RAL 1 (muito depois RALIS e hoje, tanto quanto sei, unidade relacionada com transportes).

Seguiu-se Tancos (“pós-graduação” em Minas e Armadilhas), GACA 2 (Torres Novas - hoje Escola Prática de Polícia), Santa Margarida (Treino Operacional), de novo GACA 2 para formar companhia e, posteriormente, Guiné, na CART 1745.

No CTIG estive na fronteira Norte, em Ingoré e Bigene entre julho de 1967 e junho de 1969.




Posição relativa de Bigene e Ingoré - Estrada Bigene Sedengal. © Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta da Província da Guiné - 1:500.000


********************
2. Comentário do editor

Caro António Baltazar Dias - vai ser este o teu "nome de guerra" porque já cá temos o António Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 2406 - sê bem-vindo à nossa Tabanca Grande.

Escusado será dizer que podes escolher o melhor lugar à sombra deste nosso poilão sagrado, uma tertúlia onde se juntam os antigos combatentes da Guiné (e não só) para de certo modo fazerem a sua catarse, ao escreverem as suas memórias e enviando as suas fotos. 

Simultaneamente contribuímos com as nossas vivências para memória futura, quiçá uma fonte de conhecimento para os futuros historiadores e estudiosos da Guerra de África de 1961-1974.

Consultando o Blogue, apenas encontramos uma referência à CART 1745, pelo que te cabe a responsabilidade de dar a conhecer aos nossos leitores a actividade da tua Unidade, assim como possíveis "roncos", ou circunstâncias menos boas.

Eu tive um percurso idêntico ao teu, tirei a Especialidade de Atirador de Artilharia do CSM no 3.º turno de 1969 na EPA de Vendas Novas. Findo o curso, já com a alta patente de Cabo Miliciano, fui colocado no GACA 2 de Torres Novas, onde estive apenas uma semana antes de ingressar na EPE de Tancos - filial do Casal do Pote - para frequentar o XXX III Curso de Minas e Armadilhas. A Guiné esperava-me, não sem antes passar pelo BAG 2/GAG 2 do Funchal, onde formámos a primeira Unidade ali mobilizada e embarcada para o Ultramar.

Vou terminar, não sem antes te deixar um fraterno abraço em nome da tertúlia e dos editores em particular, que por aqui ficam ao teu dispor. Não esqueças que as fotos devem vir acompanhadas de legendas que nos indiquem pelo menos, a data, local e o nome dos retratados.

Carlos Vinhal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21351: Tabanca Grande (502): Carlos Arnaut, ex-alf mil art, 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72): senta-se, no lugar nº 817, à sombra do nosso poilão

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21386: Memória dos lugares (412): Ponta de Jabadá, na região de Quínara, sentinela do rio Geba, reconquistada ao PAIGC em 29 de janeiro de 1965

 

Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5



Foto nº 6

Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > Aquartelamento de Jabadá > Fotos do álbum do ex.fur mil at inf António Rodrigues Pereira (do memso batalhão que o nosso coeditor Edurado Magalhães Ribeiro, fur mil ope esp /ranger da CCS).

Legenda:

Foto nº 1 > Aquartelamento de Jabadá, na margem esquerda do  rio Geba, 1974

Foto nº 2 > Aquartelamento de Jabadá > Edifício das transmissões, camarata do Comandante de Companhia, bar de sargentos e oficiais, cozinha e refeitório, e secretaria,  1974

Fotro nº 3 > Aquartelamento de Jabadá > Emfermaria, central eléctrica, bar dos praças e depósito de géneros, 1974

Foto nº 4 > Aquartelamento de Jabadá > Depósito de água, padaria e cozinha, 1974

Foto nº 5 > S/l (Aquartelamento de Jabadá ou do Cumeré) > Jipe Willis carregado com o Alf Mil Araújo e uma cambada de furriéis milicianos da companhia, 1974

Foto nº 6 >  Aquartelamento de Cumeré > Furriéis Martins, Olo e António Pereira, 1974


Foto (e legenda): © António Rordigues Pereira  (2010). . Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. Da ocupação da Ponta de Jabadá, em 29 de janeiro de 1965 (*) até à data em que foram tiradas estas fotos (já depois de 25 de abril de 1974), vai quase uma dezena anos.  

Da Ponta de Jabadá, o PAIGC flagelava a navegação do Geba.  Até que esta posição foi conquistada pelas NT, em 29 de janeiro de 1965, e montado lá um destacamento. O Gonçalo Inocentes, no seu livro "O cântico das costureiras"  conta como foi (pp. 76-79) (*). 

 De destacamento passou a aquartelamento: as instalações para o pessoal foram sendo melhoradas pelas sucessivas companhias de quadrícula que por lá passaram. Pertenciam em geral ao batalhão sediado em Tite.   A 1ª CCAÇ / BCAÇ 4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) deve ter sido a última  a guarenecer esta posição, muito importante para a defesa da navegação do rio Geba.

A história da Ponta de Jabadá também está por fazer, como muitas outras  "pontas",  da Ponta Varela à Ponta do Inglês... 

Aqui o PAIGC até ao início do ano de 1965 era "rei e senhor", impondo ali o terror à navegação no Geba ?!... Os únicos que lhe faziam frente eram os nossos navios da Marinha (LFG, LDG, LDM)

Quando lá passei, ao largo, em LDG, no dia 2 de junho de 1969 (a caminho de Contuboel, via Xime e Bambadinca e Bafata, até ao Xime de LDG e depois  em coluna), o nosso medo era a Ponta Varela, logo a seguir, passada a foz do Corubal, já no Geba Estreito, antes de se aportar ao Xime... Recordo-me de termos tido cobertura aérea, por um T-6... E os fuzileiros fizeram fogo de morteirete sobre Ponta Varela... Muita malta, desprevenida. atirou-se para o fundo da LDG: foi o seu/nosso batismo de fogo, com 3 ou 4 dias de Guiné...

Os barcos civis, ou "barcos-turra", que prosseguiam até Bambadinca (ou que desciam de Bambadina a Bissau), defrontavam-se, no Geba Estreito, com outro temível ponto de passagem que era o famigerado Mato Cão onde se podia, da margem direita, lançar uma granada de mão para o meio do rio. (***)



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa da Ponta de Jabadá, na margem esquerda do Rio Geba, a meia distência entre Bissau e Porto Gole (situados na maregm direita).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)





A população de Jababá vivia da cultura do arroz, produziido na grande bolanha.  O aquartelamento das NT nunca foi em Jabadá (tabanca, mais a sul) mas na Ponta, que até ao início da guerra era um floresccente entreposto comercial. Por exemplo, o comercinte libanês Jamil Heneni,  com sede em Bafatá, tinha "grandes plantações de arroz em Jabadá «" (e não "Jabanda", gralha tipográfica). (**)

Fonte: anúncio comercial publicado em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.



Guiné > Comando e CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 26 de fevereiro de 1968 > Viagem de regresso a Bissau, atravessando as Regiões de Gabu e de Bafatá, em coluna militar, e depois de barco, a partir de Bambadinca. Até ao Xime e foz do rio Corubal ainda era região de Bafatá. Mato Cão ficava a seguir a Bambadinca, ainda no Geba Estreito (que ia até ao Xime).

A caminho de Bissau. na margem esquerda do rio Geba, no estuário do Geba, já muito depois da Foz do Rio Corubal  ficava Jabadá (foto acima) já na região de Quínara... Não era sítio onde a malta parasse, via.se apenas, de perfil, ao longe...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Subsetor do Xime > A temível Ponta Varela: restos do que parece ser um antigo cais acostável.

 Em 1963/65, ao tempo da CCAÇ 508 existia aqui uma tabanca e um destacamento onde morreram, em 3 de junho de 1965, quatro dos seus homens, a começar pelo seu comandante, o Capitão Francisco Meirelles, em consequência do rebentamento de uma mina. A tabanca e o destacamento foram abandonados, o PAIGC começou a partir dali a atacar a navegação no Geba, até porque em 29/1/1965 tinha perdido a posição da Ponta de Jabadá.

Foto do álbum do José Carlos Lopes, ex-fur mil amanuense, com a especialidade de contabilidade e pagadoria, especialidade essa que ele nunca exerceu (na prática, foi o homem dos reabastecimentos do batalhão).

Foto (e legenda): © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).

(***) Último poste da série > 16 e julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21172: Memória dos lugares (411): Sintra, Colares, Praia das Maçãs (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P21385: Historiografia da presença portuguesa em África (232): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Trata-se sobretudo de muita reclamação, sentenças não faltam, veja-se uma delas, entre muitas: "A decadência política é a fonte perene de todos os nossos males; é a ela que se deve a imobilidade das nossas indústrias e da nossa instrução, a estagnação das nossas colónias e o adormecimento das nossas energias como povo". Não lhe falta azedume e comentário cruel falando de Bolama e de Bissau, isto sem pôr em causa a autenticidade dos seus comentários. Intercala com observações quase luxuriosas, uma sensualidade mal contida, encontra mulheres formosas, é como as estivesse a despir de alto a baixo. 

Não deixa de ser curioso o comentário inverídico que profere acerca da superfície da colónia, estranha-se que tenha andado a demarcar fronteiras e não se tenha apercebido da quantidade de território que nos caiu no regaço depois da Convenção Luso-Francesa e onde não púnhamos os pés, a sua grande preocupação, a sua catilinária vai para Ziguinchor, tinha razão, mas em Lisboa julgava-se que esta amputação teria a contrapartida de os Franceses nos apoiarem quanto às nossas reivindicações do Mapa Cor-de-Rosa. Estávamos enganados, Londres deu ordens para abandonarmos todos aqueles territórios entre Angola e Moçambique, a França assobiou para um lado. A diplomacia está longe de favorecer os mais fracos e não é matéria para inocentes úteis ou parvos necessários.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (4)

Mário Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. É um testemunho único o que nos deixa alguém que andou a fixar fronteiras na Guiné, depois da Convenção Luso-Francesa. É extremamente crítico, se por um lado o vemos fascinado pelo feitiço africano, vai desvelando as mazelas do nosso comportamento colonial.

Vamos hoje despedir-nos deste autor de memórias que deambulou pela ilha da Madeira, escreveu abundantemente sobre Cabo Verde e dedicou 35 páginas em 270 à Guiné, ele que conhecia a colónia por lá ter andado anos atrás, a colaborara na equipa que demarcou as fronteiras. Parte de Cabo Verde muito temeroso, ou pelo menos quer que o leitor possa sentir que ele viaja para meio hostil: “Partimos da Praia para a Guiné, antevendo através do prisma da distância um país pantanoso e selvagem, povoado de perigos e minado pelas febres, onde, segundo as informações, as bexigas ostentam horrores e as biliosas faziam honras de receção, resignados e tranquilos nessa serenidade que precede sempre as grandes resoluções, mas na convicção arreigada de que se nos salvassem das azagaias dos Bijagós e dos gládios dos Mandingas não resistiríamos decerto às iras antropófagas dos Felupes, nem à desagradável impressão dos que se sentem assar nas grelhas de um meio-dia, sobre o braseiro incandescente de um sol sem brisas”.

Procede constantemente a contrapontos, do género: “Se Bissau é imundo, sombrio e miasmático, Bolama, pelo contrário, é alegre, desafogada e sadia”.

É useiro e vezeiro nas recriminações, não entende o descuido da Saúde Pública na colónia, não se cansa de dizer que a administração colonial é indolente e incompetente, e comenta, corrosivo:

“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde há muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, não sabemos se com o fim de lhe adubar a selvajaria, se com o fim de lhe ministrar fermentos enérgicos à dissolução; a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha Cabo Verde, enfeitando-se de todas as complicações burocráticas, fazendo construir na sua capital por um risco único, destituído de toda a elegância e de qualquer vislumbre artístico, desde a igreja ao hospital. E sem pensar sequer nos preceitos mais rudimentares das construções dos climas quentes; sem se preocupar um instante das exigências mais banais para estabelecimentos daquela ordem, edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quartos de banho, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgoto, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis”.

Irá despedir-se do leitor no fim desta viagem à Guiné com diferentes sentenças, acima de tudo considera que a política portuguesa precisa de rever de alto a baixo o seu modo de estar e de se relacionar com o Império Colonial, começa logo a fustigar o que se passa no país e depois vai a África:

“Somos um país agrícola e a agricultura agoniza; somos um país meridional, e não temos artes, e não temos indústrias; as nossas possessões têm a administração mais complicada, mais ridícula e mais atrofiante que se possa imaginar.

Não é pela legislação nem pelas peças oficiais que se pode avaliar do seu estado; a legislação é ludibriada e as peças oficiais muitas vezes sofismam, invertem e desfiguram a verdade; não é com frases que se civilizam povos, não é com indignações que se resolvem problemas práticos, nem com protestos platónicos que se liquidam afrontas sofridas.

Segui o exemplo de Mariano de Carvalho, vinde observar com os vossos olhos o que a vossa incúria, a vossa credibilidade do vosso favoritismo têm arquitectado durante administrações sucessivas, e talvez então, sentido a vergonha pelo estado em que chegámos em África, indignados contra a corrupção e as baixezas dos afilhados que para aqui são exportados, acheis no conhecimento das coisas e dos factos, elementos com que remediar os males, redimir as faltas e precaver o futuro.

O grande inimigo que temos a recear não é a brutalidade inglesa com toda a sua sofreguidão, nem os couraçados monstros com todos os seus canhões. É a decadência a que chegaram as nossas coisas, é o desprestígio a que baixou a nossa autoridade, é o descrédito que vão sofrendo os nossos brios.
Precisamos reformar os costumes, reconstituir a política, substituir esses gabinetes deslocados de semestre em semestre, sempre esculpidos das mesmas figuras dominantes e sempre prosseguindo no problema estéril de forjar deputados para as maiorias e prebendas avultadas para os discípulos amados. Precisamos de iniciar uma orientação ultramarina sem outro ideal que não seja a Pátria, nem outro estímulo que não seja o dever; fazer convergir sobre as colónias a atenção dos homens mais dominantes. Os governadores, os juízes, o pessoal médico, todas as autoridades superiores, escolhei-as por um critério de especialização justificada, apreciando-os pelo justo valor dos serviços prestados. Combater na alta burocracia do Ultramar o enfatuamento cómico. Precisamos fazer tudo isso, se não queremos que as nações poderosas se vão apoderando impunemente do que nos pertence; se não queremos que a própria civilização, um dia, em nome do supremo direito da colectividade, tenha de nos expropriar por utilidade pública, da herança que não sabemos aproveitar… e não deixamos aproveitar aos outros”.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21363: Historiografia da presença portuguesa em África (231): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21384: Parabéns a você (1871): Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16 (Guiné, 1964/66)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21382: Parabéns a você (1870): Carlos Arnaut, ex-Alf Mil Art, CMDT do 16.º Pel Art (Guiné, 1970/72)

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21383: Notas de leitura (1309): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte III (Luís Graça): a conquista da Ponta de Jabadá, em 29/1/1965, importante posição na defesa do rio Geba

 


Guiné > Região de Quínara > Ponta de Jabadá > CCAÇ 423 > 1965  > O alf mil médico Serpa Pinto, natural do Porto, "à entrada do seu apartamento"... Vê-se que o destacamento foi feito com as ruínas do antigo entreposto comercial, florescente até ao início da guerra.

 


Guiné > Região de Quínara > Ponta de Jabadá > CCAÇ 423 > 1965  > "Uma pausa: o dr, Serpa Pinto a ajeitar o banco [, à esquerda]; a seguir o alferes Alcides Pereira, comandante da força; eu e à frente com óculos o furriel João Vaz"
"
 


Guiné > Região de Quínara > Ponta de Jabadá > CCAÇ 423 > 1965  > "Sessão de consultas à população local. A tomar notas o [furriel]  enfermeiro Machado, e logo atrás o doutor S[erpa] Pinto" (*)

Fotos (e legendas): © Gonçalo Inocentes (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da apresentação do último livro do Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande: foi fur mil at cav, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S. João, Ponta de Jabadá, e Jumbembem... Nasceu em 1940, em Nova Lisboa (hoje, Huambo, Angola). Está reformado da TAP e vive em Faro. (*).


Capa do livro de Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).

É um livrinho despretensioso, com mais fotos do que texto, mas que tem o mérito de nos fazer desfilar uma série de situações que todos conhecemos no TO da Guiné, no mato, fosse no Norte, no Leste ou no Sul.

Por exemplo, a evocação do médico que, se calhar, nem todos conheceram tão intimamente como a malta da CCAÇ 423. Estamos no início da guerra, em que cada companhia ainda tinha um médico!... Um luxo!... 

Recorde-se que, no meu tempo (1969/71), haveria (, quando havia!) um médico por batalhão. E que ficava no "bem bom" da sede do batalhão, a trabalhar na "psico",  nunca ou raramente saindo para o mato em operações... Era mais médico "civil" do que "militar",,, O mesmo se aplicava ao furriel enfermeiro... (Estamos a falar do tempo de Spínola, em que aumentaram os efectivos militares e o país não tinha médicos  suficientes para mandar para a guerra; por outro lado, a política "Por uma Guiné Melhor" absorvia uma grande parte dos recursos  sanitários das Forças  Armadas.)

Aqui, nesta época,  no tempo ainda da malta do caqui amarelo, há um médico para cada 150/160 homens (=1 companhia), e que dorme no mato, nos mesmos buracos dos "infantes"... E participa em operações, como a conquista da Ponta de Jabadá!

Para poder escrever este livrinho, a vantagem do Gonçalo Inocentes, em relação a muitos de nós, é que tinha um máquina fotográfica Minolta 16 mm Spy que cabia no bolso do camuflado e que levava para o mato. Além disso, tinha um bloco de notas e o hábito saudável de ir tomando notas.. 

Alguns de nós tinham um diário, mas ao fim de seis meses (que era o tempo de provação da "periquitagem"), deixavam de escrever por lassidão, cansaço, exaustão, falta de disciplina... Outros anotavam nas cartas e aerogramas o seu pequeno dia a dia, incluindo a atividade operacional... Enfim, de uma maneira ou de outra, todos temos "pequenos apontamentos" da nossa passagem pelo inferno que foi a Guiné...

Nalguns casos, como o deste livrinho, são "flashes", relampejos da memória, que vêm contribuir, e em muito,  para o preenchimento dos buracos do "puzzle" da nossa memória... 

Por exemplo, quem é que sabia da história da Ponta de Jabadá onde o PAIGC até ao início do ano de 1965 era "rei e senhor", impondo ali o terror à navegação no Geba ?!... 

Quando lá passei, ao largo, em LDG, no dia 2 de junho de 1969,  o nosso medo era a Ponta Varela,  logo a seguir, passada a foz do Corubal, já no Geba Estreito, antes de se aportar ao Xime... (Os barcos civis, ou "barcos-turra", que prosseguiam até Bambadinca tinham, no Geba Estreito, outro temível ponto de passagem que era o famigerado Mato Cão onde se podia, da margem direita,  lançar uma granada de mão para o meio do rio.)

Jabadá ?... Já ninguém se lembrava em 1969,,,

Explica o autor:

"Depois de várias operações infrutíferas à Ponta de Jabadá, os barcos que navegavam no rio Geba, o que banha Bissau, contibuaram a ser castigados vom fogo do IN a partir dali. Da Ponta." (p. 76)

Foi por isso que os "maiores" de Bissau decidiram ocupar  a dita Ponta (que outrora lterá sido uma bela horta de um algum colono cabo-verdiano). Com "um pelotão reforçado" (!), as NT foram mandadas ocupar o "antigo entreposto comercial". 

A força era comandada pelo capitão Monroy, e tinha o apoio de uma fragata [, o autor queria dizer:LFG - Lancha de Fizcalização Grande] da Marinha, postada em frente, no Geba. (Este capitão Monroy  [Garcia] devia ser o oficial de informações e operações do BCAÇ 599.]

"Fomos comandados pelo alferes Alcides Pereira e pela primeira vez foi também o médico, dr. Serpa Pinto, e o furriel enfermeiro Machado" (p. 76).

Ficamos a saber que:

"Jabadá era como que uma ilha. Rodeada a Sul pela grande bolanha, e  Norte pelo rio Geba" (...). 

Mas a fragata [leia-se: LFG]  foi chamada a Bissau, para algum assunto mais urgente do que a guerra (, vá-se lá saber o quê e o porquê), e rapaziada passou a ser "bombardeada diariamente ao cair da noite" (p. 77). Jantava-se às 18h e recolhia-se aos "abrigos" às 19h.

Depois foram "40 dias de trabalho intenso", a construir abrigos "à prova de morteiro": com troncos de cibe, terra, e em cima uma camada de adobe. "De dia o trabalho e de noite o infeno"... Virá depois um reforço, um pelotão da CCAÇ 508, comandada pelo alferes Ferreira,

Pormenor delicioso é a foto (, infelizmente em miniatura) do ten cor [Carlos Barroso] Hipólito, comandante do batalhão [BCAÇ 599,]  sediado em Tite, a atravessar o tarrafe às costas de um soldado, depois da gloriosa conquista da Ponta de Jabadá, em 29 de janeiro de 1965 (. precisamente no dia em que eu fiz 18 anos e dava o nome para a tropa)...  

Em suma, o senhor tenente coronel não podia molhar o pezinho,,,

O Gonçalo Inocentes presta depois homenagem ao médico e ao enfemeiro que ficaram no destacamento. Do médico ele diz:

(...) "Ele é o anjo da guarda de todos os dias. (...) A relação de todos com o médico, ali o dr. Torcato Adriano Serpa Pinto, homem do Porto, era de filhos para pai.  O carinho era mútuo" (p. 86).

Teve por isso, direito a um abrigo exclusivo, especial e seguro;

"No destacamento em Jabadá, o abrigo pessoal do doutor era mesmo a dois passos do rio Geba e por isso ele não dormia- Temia uma aproximação a coberto da noite pela margem do rio e o lançamento de uma granada para o sítio onde morava".

Qual foi a solução para pôr o médico "a dormir bem", o que era fundamental para que todos dormissem bem ? A ideia  foi do fur mil Inocentes: "construir duas defesas paralelas rio adentro, que fizessem de anteparo o abrigo do doutor"... Cercado "de arame farpado à semelhança do Rommel nas costas da Normandia", o dr. Serpa Pinto nunca mais teve insónias  nem pesadelos (p. 86). 

É uma bonita história de homenagem e de gratidão aos nossos médicos... (**)

(Contnua)

 ___________

Notas do editor:

(*) Vd., postes anteriores:


Guiné 61/74 - P21382: Parabéns a você (1870): Carlos Arnaut, ex-Alf Mil Art, CMDT do 16.º Pel Art (Guiné, 1970/72)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de Setembto de 2020 > Guiné 61/74 - P21378: Parabéns a você (1869): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (Guiné, 1963/65; 1968/70 e 1972/73); Maria Teresa Almeida, Amiga Grã-Tabanqueira de Lisboa e Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Guiné 671/74 - P21381: Notas de leitura (1308): “Henda Xala”, de Abílio Teixeira Mendes; Círculo de Leitores, 1992 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,

Creio que o primeiro médico a escrever literatura de guerra foi António Lobo Antunes, com o seu inultrapassável "Os Cus de Cudas", no início dos anos 1980. E se não erro foi Abílio Teixeira Mendes o segundo estreante, com este primoroso romance, hoje injustamente esquecido. Na análise que Rui de Azevedo Teixeira fez do seu livro ressaltou a figura do anti-herói, aquele alferes médico, Doc, não dá o peito às balas, não descreve mil e um calvários na vida de ermitão em destacamentos longínquos, não pede qualquer glorificação. Pelo contrário, sai de Lisboa com muitas poucas amarras, e di-lo corajosamente, regressa quase um apátrida, mas inebriado com os esplendores da terra angolana. 

No entrementes, o leitor vai ter acesso a todas as farras e bródios da vida noturna angolana, a todos os bons comes, o autor não perdeu tempo a limpar espingardas, usou até não mais poder, e di-lo sem baixar os olhos com falsa pudicícia. 

Um abraço do
Mário



Henda Xala (fica a saudade) por Abílio Teixeira Mendes

Beja Santos

Abílio Teixeira Mendes
É matéria consabida, sobre a mesma o juízo é consensual, não houve dois teatros de guerra em África com caraterísticas vincadamente semelhantes, daí a prudência em não universalizar as temáticas, os enredos, as próprias encenações da guerra. Dito de outro modo, há sempre distinções profundas nas literaturas de guerra, na Guiné, Angola e Moçambique. 

Contudo, para além de não ser viável comparar o incomparável, uma infinitude de situações aproxima todos os combatentes. Sem querer ser exaustivo: as saudades, o choque da aculturação, a expetativa da chegada do correio, a pedra de gelo que dispara na garganta quando explode o fornilho ou a emboscada, a tensão noturna, a permanente queixa com a alimentação, as febres, o paludismo, o senhor medo.

Não é meu propósito ensaiar um processo de literatura comparada, a Guiné é a questão fulcral da minha investigação. Mas não deixo o crédito por mãos alheias a leitura de obras que se revelam importantes pela narrativa, pela inovação da trama, pelas mexidas e remexidas na construção literária, pela marcada singularidade do autor face aos seus destinatários. 

Tenho para mim que “Henda Xala” de Abílio Teixeira Mendes, Círculo de Leitores, 1992, é uma obra imerecidamente esquecida, se bem que investigadores como Rui de Azevedo Teixeira tenham exaltado o sopro de frescura deste romance de Teixeira Mendes.

Abílio Teixeira Mendes morreu precocemente. Licenciou-se em Medicina e ainda estudante deu prova de militância nas organizações académicas e foi ativista das greves ocorridas em 1962. Entre 1967 e 1970 cumpriu o serviço militar como alferes médico, em território angolano. Após a desmobilização, ingressou no Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria. Além deste seu romance publicou em 1987 um volume de contos: Coisas de África. Arquive-se.

Finda a leitura, fica-nos a convicção que esse alferes médico amou desmedidamente Angola. Na organização da sua narrativa, escolhe como nascente a passagem pela Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde fez aprendizagem militar. Logo, para que o leitor não escape à evidência, marca distâncias sobre a natureza da corporação: 

“O seu ídolo era um major pequeno e magrinho, um rato Mickey que aparecia nos momentos mais desconchavados, olhando os cadetes com manifesto desprezo, e abandonava a cena sem responder às saudações. No seu capote azul, nos olhitos vivos, no rosto moreno, nos lábios pinçados num esgar de amargura, pairava a maldição de um frade-guerreiro, sem uma gota de humanidade. Mesmo o temido comandante de esquadrão se vergava perante ele. Era a consubstanciação daquele terrível militar das bandas desenhadas, sem saudades, sem compaixão, sem amor, sem mulher nem amante, sem legítimos nem bastardos, sem anda para além daquele desentranhado amor à Cavalaria”

E dá conta do seu estado de alma e de quem com ele ali convive: 

“Veterinários e farmacêuticos a beirar os 40 anos, médicos de aldeia e chalengers a professores catedráticos, fardas a faltar aqui e a sobrar além, perfilavam-se, angustiados, enquanto o capitão percorria as fileiras murmurando ‘botas’, ‘barba’, ‘cabelo’ e o cabo miliciano, em seguida, soprava ao pescoço ‘número’. De humilhação em humilhação, a resistência dos nossos cadetes ia quebrando”

Teixeira Mendes lembra muita gente daquele seu curso, discorre da atmosfera do quartel até à sua casa, à sua família, ao círculo de amigos, à Pátria.

Embarca, não perde tempo com muitas observações, já está em Luanda, ao princípio é tudo novidade e paródia, descobrem-se mulheres, cabarés, bons repastos, e vai-nos crescendo a intuição de que naquele caldeirão luandense há muita gente ligada à guerrilha. 

Para quem dúvida deste amor desalmado a Angola, tome-se o discurso que se vai tornando cada vez mais luso-angolano, desordenadamente, nem o glossário constituído pelo autor é suficiente para acabarmos uma qualquer página suficientemente esclarecidos, porque há xingos (ralhos), calcinhas (forma depreciativa de designar os assimilados), biaque ou cangundo (formas insultuosas de designar o branco), monandengue (criança), mangonha (preguiça), malanginhos (designação semi-irónica para os habitantes de Malange), mutopas (espécie de cabaças por onde se fuma), tonga (plantação de café), barona (garota de costumes livres mas não propriamente prostituta, essa é uma quitata). 

Dá-nos quadros muito impressivos da vida airada em Luanda, dos vínculos fortes e fracos da vida social, o leitor submerge na versatilidade de todos aqueles usos e costumes. Ficamos a saber que os mufete é peixe assado nas brasas e que o melhor são os mufete de cacusso, um peixe com mais espinhas que o sável, mufete que deve se comer com a polpa do peixe a esmagar-se num jindungo amassado com sal, a moda de Dalatando, ou azeitando-se com dendém, sente-se a heresia de chamar peixe grelhado a essa iguaria de deuses.

Há aqui qualquer coisa de Jorge Amado nos arrebatamentos amorosos, a Lu deixa-o pelo beicinho. Mas a vida no batalhão também está carregada de peripécias e Teixeira Mendes não perde pitada de trazer o humor à conversa militar:

“- Cada um tem o inimigo que merece – suspirou o Marcelino.
- Se o camarada citasse menos Lenine e cuidasse melhor da sua companhia, talvez a guerra tivesse já acabado – comentou o capitão de operações.
- Quando o camarada quiser saber como eu dirijo a minha companhia, venha para fora do Grafanil. Há de ir ao meu lado, mas, se fizer obséquio, traga um camuflado velho porque com esse que vai levar amanhã, tão vivinho, sem uma chapada de lama, dá um rico alvo e eu não me responsabilizo”.


É um alferes médico que escreve na terceira pessoa do singular, é o Doc, e nada mais, despretensioso, anti-herói. Já estamos na guerra, há colunas, minas e armadilhas, gente que merece nomes depreciativos como o Mirandinha Espalha-Merda, os nomes dos quartéis mal são enunciados, a significação da guerra mal passa pelos dizeres da carta geográfica, o mais importante é não fazer esquecer que a guerrilha, mesmo fragilizada, está ali ao pé da porta, que há aspetos divertidos nas relações humanas que se entabulam, como aquela condessa que vive lá no fundo da mata. 

Inevitavelmente, há as perdas, dentro da contabilidade dos imprevistos, assim vai girando Doc pela sua tão atribulada comissão, regressa sorumbático, em desnorte, vacilante, não sabe a que terra pertence, a família a que regressa pouco lhe diz, foi à guerra, divertiu-se à grande, fez hospital na cidade e em campanha, conheceu o horror. Regressa apátrida e cheio de saudades. É preciso ler esta obra primorosa do princípio ao fim para perceber o seu título: “Henda Xala”.

Bem merecia ser reeditado, este primoroso romance.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21359: Notas de leitura (1307): "Admirável Diamante Bruto e outros contos", por Waldir Araújo; Livro do Dia Editores, 2008 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21380: (In)citações (169): Onde esteve a Cruz Vermelha Portuguesa durante a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África ?







1. Onde esteve a Cruz Vermelha Portuguesa durante a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África ?

O camarada António J. Pereira daCostra, cor art ref, comentou (*):

(...) "Nunca dei pela acção da secção feminina (ou masculina) da Cruz Vermelha Portuguesa, mas admito que tenha apoiado os feridos, os deficientes e os prisioneiros... Como? Não sei. Admito que as suas missões fossem discretas, se não mesmo "secretas" (no caso dos prisioneiros)... Era interessante esclarecer esta questão e qual a atitude do Governo para com ela.(..)

Na Internet também não encontrámos grande coisa... Pode ser que algum dos nossos leitores traga mais alguma achega...Meio século depois do fim da guerra,  os portugueses devíamos ter direito a saber algo mais sobre este assunto... 

Enfim, temos de quebrar o silêncio dos arquivos:

(...) "Para mais informações sobre a história da Cruz Vermelha Portuguesa e assuntos relacionados, bem como para marcação de visitas aos nossos arquivos, contacte directamente o nosso Serviço Histórico-Cultural pelo email biblioteca@cruzvermelha.org.pt (...)


Cruz Vermelha Portuesa (CVP) - História

Por nomeação do Rei D. Luís I, o médico-militar José António Marques [1822-1884] representou Portugal na Conferência Internacional realizada em Agosto de 1864, em Genebra.

Nesta reunião, deliberava-se sobre a neutralidade "das ambulâncias e dos hospitais, assim como do pessoal sanitário, das pessoas que socorressem os feridos e dos próprios feridos no tempo de guerra.”

Portugal foi, assim, um dos 12 países que assinou a I Convenção de Genebra de 22 de Agosto de 1864, destinada a melhorar a sorte dos militares feridos dos exércitos em campanha.

Regressado a Portugal, José António Marques organizou, a 11 de Fevereiro de 1865, a "Comissão Portuguesa de Socorros a Feridos e Doentes Militares em Tempo de Guerra", primitiva designação da Cruz Vermelha Portuguesa.

No ano seguinte, o Professor Doutor José Maria Baldy (General) daria início à primeira presidência da nossa instituição.
 
Ao longo da sua história a Cruz Vermelha Portuguesa prestou auxílio em todas as guerras e grandes catástrofes que Portugal esteve envolvido. Prestou também auxílio internacional em situações de catástrofes e guerras no estrangeiro.

Fonte: Adapt. de
Cruz Vermelha Portuguesa: breve hostorial


Hospital Cruz Vermelha (HCV)

Inaugurado em 1 de Fevereiro de 1965, teve a sua génese no Hospital de Santo António da Convalescença ou Casa de Saúde de Benfica, mandada construir pela Cruz Vermelha Portuguesa para dar resposta na avaliação, diagnóstico e tratamento dos doentes com graves ferimentos sofridos na guerra colonial, desenvolvendo as áreas da traumatologia e neurocirurgia.

Sempre na vanguarda da prestação clínica o Hospital da Cruz Vermelha, em 1981, inaugurou a Clínica de Hemodiálise e a primeira Unidade de transplante renal, realizando os primeiros transplantes renais e de fígado do país.

Em 1985, o Hospital da Cruz Vermelha passou a dispor de um TAC, que veio contribuir para a melhoria do diagnóstico em várias especialidades clinicas.

Em 1998 o Hospital da Cruz Vermelha foi objeto de profunda reestruturação e modernização.

Continuando desde sempre a apostar nas tecnologias mais avançadas e na inovação técnica dos seus recursos humanos o Hospital da Cruz Vermelha é hoje uma unidade hospitalar de referência a nível nacional.

Fonte: Hospital da Cruz Vermelha


O MNF e CVP


(...) O Movimento Nacional Feminino, dirigiu a acção para os militares activos nos teatros de operações; a secção da Cruz Vermelha Portuguesa dedicou-se principalmente ao apoio aos militares feridos e estropiados, cujo número aumentava e para os quais não havia sistema nem de recuperação nem legislação aplicável. 

Os dois movimentos aproveitaram as boas relações das suas dirigentes com o apoio do regime para incentivar a publicação de leis e normas correctoras de erros e injustiças administrativas, entre as quais se contava a alteração à situação dos feridos em combate, conseguindo que estes não perdessem direito aos vencimentos e aos subsídios de campanha quando evacuados para os hospitais centrais; a revisão das pensões dos deficientes militares, que era regulada ainda pelas normas da 1ª Guerra Mundial; o apoio às famílias dos mortos, que permitindo que os corpos dos mortos fossem trasladados para as terras de origem destes, sem qualquer custo para as famílias; e ainda a legislação de apoio aos militares estudantes.(...)

Fonte: Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril

_____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 21 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21379: (In)citações (168): Por favor não misturem as instituições, o Movimento Nacional Feminino e a Cruz Vermelha Portuguesa (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

Guiné 61/74 - P21379: (In)citações (168): Por favor não misturem as instituições, o Movimento Nacional Feminino e a Cruz Vermelha Portuguesa (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)



Logo da CVP. Cortesia da Wikipedia


1. Mensagem de José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:

 
Date: domingo, 20/09/2020 à(s) 07:24
Subject: Cuidados a serem usados quanto a misturas de instituições


Caro Luís:
 
Dentro do espírito do texto "Não há só dinossauros na Lourinhã "...

Deverá haver cuidados vários quanto a não misturar, ou mesmo associar, o Movimento Nacional Feminino com a Cruz Vermelha Portuguesa. (*)

A criação, estatutos, objetivos, em muito ultrapassavam, e felizmente ainda hoje ultrapassam, a criação e os objetivos do MNF [, Movimento Nacional Feminino].

O MNF,  criado com o fim de propagandear e apoiar o esforço de guerra de um regime. No período referido, um regime retrógrado de ditadura.

Muito se pode debater a figura (carismática?) da Senhora de Supico Pinto e os seus passeios pela Guiné. Assunto certamente tão interessante para as novas gerações como (ou menos),as descrições  de dinossauros.

Para os que "viveram" a guerra da Guiné, quase escreveria os "dinossauros", colocam-se as seguintes perguntas:

(i) Por muito boas que fossem as intenções dos passeios da Senhora de Supico Pinto, quais os seus resultados práticos?

(ii) Quais as melhorias reais obtidas para o dia a dia dos militares visitados?

Certamente que algumas "plumas coloridas" terão adornado as folhas de serviço dos militares organizadores, acompanhantes, e não menos dos  (alguns!) de...alta-graduação.
 
Quanto ao resto lá caímos nas ...Caridadezinhas! (**)

Um abraço,

J. Belo

2. Comentário anterior do editor LG (*):


Temos falado aqui do papel, mais "mediático",  do Movimento Nacional Feminino (que teria, no seu auge, cerca de 80 mil mulheres inscritas), no apoio psicossocial aos combatentes e suas famílias... 

Papel que numa fase inicial (, com o início da guerra em Angola), substituiu a instituição militar nesse apoio,,,, O Exército não tinha pessoal especializado para exercer essas tarefas... Parece que fomos todos apanhados com os "acontecimentos de 1961", quando havia sinais por todo o lado de que o "terrorismo", a "subversão", os "ventos da história", o "nacionalismo" dos povos africanos e asiáticos, o "anticolonialismo", etc,.também chegariam à(s) nossa(s) porta(s)...

Mas temos ignorado a secção feminina da Cruz Vermelha Portuguesa, que apoiou sempre os feridos, os deficientes e os prisioneiros... Esta instituição teve menos visibilidade na comunicação social...E as suas missões eram mais discretas, se não mesmo "secretas" (no caso dos prisioneiros)...

A Cecília Supico Pinto ocupou a ribalta, ofuscou o papel, discreto mas valioso, de outras mulheres... Por analogia com o "eucalipto", poder-se-ia dizer que secou tudo à sua volta... E no entanto irá criticar, no fim da sua vida, a sua biógrafa por falar "excessivamente" da Cilinha... Autocrítica serôdia ?!...

3. Comentário de António J. Pereira da Costa:

Olá,  Camaradas

Mesmo estando a "gastar cera com ruins defuntos", venho recordar que o Movimento Nacional Feminino nunca teve nem no seu auge, nem no sei fim cerca de 80 mil mulheres inscritas.
Se assim fora,  a sua acção teria sido mais eficaz e visível.

No apoio psico-social aos combatentes e suas famílias os resultados foram pobres, como se sabe. Talvez numa fase inicial (no início da guerra em Angola), tenha substituído a instituição militar, mas pontualmente.

O Exército não tinha pessoal especializado para exercer essas tarefas (e nunca teve), mas o MNF também se "desgastou" depressa. Meios materiais também eram escassos e, sendo caros... era necessário embaratecer a guerra, como sabemos.

Fomos todos apanhados com os "acontecimentos de 1961", quando havia sinais por todo o lado de que o "terrorismo", a "subversão", os "ventos da história", o "nacionalismo" dos povos africanos e asiáticos, o "anticolonialismo", etc,.também chegariam à nossa porta...
É isto que é indesculpável, mas foi assim!

Nunca dei pela acção da secção feminina (ou masculina)  da Cruz Vermelha Portuguesa, mas admito que tenha apoiado os feridos, os deficientes e os prisioneiros... Como? Não sei. Admito que as suas missões fossem discretas, se não mesmo "secretas" (no caso dos prisioneiros)... Era interessante esclarecer esta questão e qual a atitude do Governo para com ela.

A Cecília Supico Pinto ocupou a ribalta, ofuscou o papel, discreto mas valioso, de outras mulheres(?)... Quais?

Pelos apoios de que dispunha e pela necessidade do Regime se mostrar apoiado pelas "mulheres portuguesas", foi sempre apresentada como exemplo a seguir, numa manobra de propaganda, pura e simples, que não teve qualquer resultado palpável.

Quem não a viu ou não sentiu a sua acção (a grande maioria), só se deixou enganar com a manobra se desistiu de observar.

Como, já disse, cumpriu o seu papel histórico e nada mais.

4. Comentário de Manuel Carvalho (*):

Caros camaradas,

Um amigo da Tabanca de Matosinhos e do meu Batalhão que foi ferido e passou algum tempo no Hospital Militar em Bissau diz que a Dona Maria Helena Spínola que era a Presidente da Cruz Vermelha na Guiné e nessa qualidade ia muitas vezes ao Hospital visitar os doentes e levava revistas, tabaco, livros e ia perguntando pelos problemas de cada um e ele como tinha sido evacuado por ferimentos estava sem dinheiro, não demorou muitos dias a aparecer lá o 1º Sargento da Companhia e levar-lhe algum dinheiro. 

Todos sabemos que alguns prisioneiros foram libertados por ação da Cruz Vermelha e esta Senhora terá tido alguma influência nisso certamente. 

Estas duas Senhoras, cada uma com o seu estilo,  tiveram na minha opinião uma atividade muito importante no sentido de minorar o sofrimento,  principalmente das nossas Praças que ganhavam miseravelmente mal e qualquer ajuda por pequena que fosse era sempre bem vinda daí a popularidade da Dona Cecília.

Guiné 61/74 - P21378: Parabéns a você (1869): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (Guiné, 1963/65; 1968/70 e 1972/73); Maria Teresa Almeida, Amiga Grã-Tabanqueira de Lisboa e Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)



____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21360: Parabéns a você (1868): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista da CCS/QG/CTIG (Guiné, 1968/70)