segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21398: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (8): os meus livros de bolso, da RTP, oferecidos pelo MNF, em 25/1/1973, deixei-os a alguns guerrilheiros do PAIGC, em 17/7/1974... E comigo trouxe "farrapos" da nossa bandeira, e ainda os guardo, como símbolo do nosso sofrimento e coragem



Uma amostra da Biblioteca Básica Verbo - Livros RTP, uma coleção de livros de bolso, num total de 100 títulos, de autores portugueses e estrangeiros, traduzidos, lançada em 1970, pela Editorial Verbo, em colaboração com a RTP... Foi um tremendo sucesso editorial, com 15 milhões de cópias vendidas ou oferecidas... Uma boa parte foi oferecida, por intermédio do Movimento Nacional Feminino, aos militares destacados nos TO de Angola, Guiné e Moçambique. O último título publicado, o nº 100, em outubro de 1972, foi "Os Lusíadas". O primeiro tinha sido  a novela "Maria Moisés", de Camilo Castelo Branco (230 mil exemplares), O preço de capa de cada livro era de 15 escudos (, equivalente hoje a menos de 4 euros).

Fonte: Imagem adaptada, com a devida vénia do sítio joaocouto-espinho.com

 


Carlos Barros, Esposende

1. Mais uma pequena história do Carlos Barros, enviada por mensagem de 19 do corrente, às 17h49, ainda a propósito da visita da presidente do Movimento Nacional Feminino  a Nova Sintra,  em 1973:

Estimado amigo.
 
A memória está ainda um pouco fresca, embora desgastada pelo tempo. É importante documentar, com testemunhos, fotografias, registos escritos e outras fontes que serão importantes para construir um pouco da história da Guerra Colonial, concretamente, no nosso caso, da Guiné.

No dia 25 de janeiro de 1973, Nova Sintra recebeu caixotes de livros, da RTP,  oferecidos pelo MNF [, Movimento Nacional Feminino] e no fim da comissão, na entrega do destacamento [, em 17 de julho de 1974,]  ofereci os meus a alguns guerrilheiros do PAIGC. 

Não sabia  se seriam lidos ou poderiam ir  parar à "fogueira"... Uma coisa é certa, eles receberam essas "obras literárias" e eu, pessoalmente, não tencionava trazê-las para a então Metrópole.

Jantamos e jogamos às cartas com o "Inimigo" e notei entre os guerrilheiros que não existia ódio nem rancor e foi uma convivência pacífica.. 

No dia seguinte, numa sessão solene do arrear da bandeira, com a 2ª Cart presente, meus companheiros,  mais os  guerrilheiros do PAIGC,  abandonamos Nova Sintra, a caminho de Tite. E, mais tarde, para o cais do Enxudé a caminho de Bissau, com as LDG  a transportar, via  rio Geba, o imenso material e os militares,  rumo  a Bissalanca. para, finalmente, nos libertarmos de uma Guerra que nunca desejámos.

Um pormenor: fui receber a bandeira de Portugal, já em mau estado,  embrulhei-a e rasguei subrepticiamente, umas pontas e ainda possuo esses"farrapos" como recordação. Uns "farrapos" que são bocados do nosso sofrimento e coragem nessas terras guineenses

No dia 23 de janeiro de 1963 o PAIGC fizera uma ataque ao Quartel de Tite, dando-se o início  da guerra na Guiné e as NT sofreram um morto e um ferido e o PAIGC 8 mortos confirmados e outros feridos graves. 

Penso que era objetivo do PAIGC atacar a prisão de Tite para libertar guerrilheiros presos. Estive em Tite uns meses e depois o meu pelotão foi destacado para Gampará, outro inferno da Guerra....

Fico-me por aqui, neste dia chuvoso que me inspirou para a escrita.

Bom fim de semana
Carlos Barros

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21371: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (7): os craques da bola...

domingo, 27 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21397: Os nossos médicos (89): No BCAÇ 2879, sediado em Farim, onde estava integrada a minha companhia, havia dois médicos: um na sede e outro em Cuntima, e eram de facto mais "civis" do que "militares" (Eduardo Estrela, ex- fur mil, CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)



Eduardo Estrela, membro da Tabanca do Algarve

1. Comentário do nosso amigo e camarada o Eduardo Estrela [ ex- fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)

Caro Luis! Acabo de ler o teu comentário na sequência da apresentação do livro do Gonçalo Inocentes.  (*)

No que diz respeito ao Batalhão de Farim [ BCAÇ 2879, 1969/71] onde a minha CCaç 14 estava integrada como Companhia  de reforço, havia dois médicos. Um em Farim e outro em Cuntima. (**)

Eram, tal como os da tua zona, mais médicos civis do que militares, pois nunca saíam para o mato. Mas o Fur Mil Enf da minha Companhia, o Ilídio Vaz,  era um operacional como nós. Estabeleceu uma escala com a sua malta da enfermagem e alinhava em todas quando chegava a sua vez.  (***)

Quanto ao Inocentes, infelizmente e apesar dele morar em Faro, não o conheço. Mando-lhe daqui um forte abraço extensivo a toda a Tabanca. 

Eduardo Estrela.

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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 22 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21383: Notas de leitura (1309): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte III (Luís Graça): a conquista da Ponta de Jabadá, em 29/1/1965, importante posição na defesa do rio Geba

(...) Recorde-se que, no meu tempo (1969/71), haveria (, quando havia!) um médico por batalhão. E que ficava no "bem bom" da sede do batalhão, a trabalhar na "psico", nunca ou raramente saindo para o mato em operações... Era mais médico "civil" do que "militar",,, O mesmo se aplicava ao furriel enfermeiro... (Estamos a falar do tempo de Spínola, em que aumentaram os efectivos militares e o país não tinha médicos suficientes para mandar para a guerra; por outro lado, a política "Por uma Guiné Melhor" absorvia uma grande parte dos recursos sanitários das Forças Armadas.)

Aqui, nesta época [, 1964/65], no tempo ainda da malta do caqui amarelo, há um médico para cada 150/160 homens (=1 companhia), e que dorme no mato, nos mesmos buracos dos "infantes"... E participa em operações, como a conquista da Ponta de Jabadá! (...)


(**) Vd. poste de 18 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11724: Os nossos médicos (50): Os batalhões que passaram pelo setor de Farim tinham um número variável de médicos, de 1 a 4... Quanto ao HM 241, era só... o melhor da África Ocidental (Carlos Silva, 1969/71)

(...) BCav 490 - 1º Batalhão sediado em Farim, 1964/65. Pois na sua HU consta na data do embarque 4 médicos adstritos às unidades. a saber:

CCS - 1 médico
CCav 487 - 1 médico
CCav 488 - 1 médico, Jumbembem do qual existe 1 foto no meu site
CCav 489 - 1 médico Cuntima

Nota: Não sei se os outros 2 médicos estavam em Farim, há aqui camaradas tabanqueiros desta Unidade que podem esclarecer. (...)

(...) BCaç 2879 (1969/71) - 5º Batalhão sediado em Farim. Já referi no post anterior. Apenas 1 médico integrou o Batalhão, embora no sector pelo menos durante um ano lá estivessem estado 2, um em Farim e outro em Cuntima. (...)

(***) Último poste  da série> 3 de julho de  2020 > Guiné 61/74 - P21132: Os nossos médicos (88): Fernando António Maymone Martins, especialista de cardiologia pediátrica, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1968/70

Guiné 61/74 - P21396: Blogues da nossa blogosfera (141): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (52): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.




 GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS)

ADÃO CRUZ

Bigene - O nosso Corpo Clínico




O que está do meu lado esquerdo, de barbas, é o furriel Pimentinha, meu furriel enfermeiro, que ainda hoje me telefona uma a duas vezes por ano. A sua profissão, antes de vir para a guerra, era electricista, electricista do Hotel Estoril-Sol. Pois, meus amigos, transformou-se num excelente parteiro e melhor puericultor. Leu e releu a minha sebenta de obstetrícia e deixava os bebés todos perfumadinhos e polvilhados de pó de talco, o que fazia a delícia das mães.

Duas histórias sobre o Pimentinha:

Primeira:
Um dia de madrugada, apareceu uma parturiente com uma apresentação de pelve, isto é, com o bébé a nascer de rabito em vez da cabeça. É um parto difícil e perigoso. Tentei, quanto sabia, algumas manobras, o mais suaves possível, mas não fui bem sucedido. Virei-me para o Pimentinha e disse: - meu caro Pimentinha, logo que comece a raiar a manhã, peça uma evacuação “Y” (urgente) de helicóptero, para levar esta mulher para Bissau, e fui-me deitar. Algum tempo depois, entra o Pimentinha no meu quarto, dizendo cheio de entusiasmo: - sr. Dr. o catraio já está cá fora. Com muito jeitinho lá consegui tirá-lo.


Segunda:
O Pimentinha ia de avioneta a Bissau, acompanhar um soldado que tinha um enorme hidrocelo (líquido nos testículos). Logo pela manhã, a avioneta, um Dornier levantou voo e meio minuto depois estatelou-se no solo. Felizmente não morreu ninguém, apenas o piloto fracturou uma vértebra. A carlinga da avioneta passou a ser a casota do nosso macaco.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21376: Blogues da nossa blogosfera (140): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (51): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21395: Blogpoesia (698): "Tanque sob a ramada", "Folhas de Outono" e "A minha costeira à porta de casa", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


Tanque sob a ramada

Corria incessante a fonte fresca.
A ramada era um dossel onde o sol não atravessava.
Melhor sítio para passar a tarde não havia.
Um banco de pedra ao lado.
Que belas tardes ali passava.
Que ricas férias!...
E, quando o Avô José vinha era ainda melhor.
Tinha vivido por perto as guerras entre miguelistas e dom pedro.
Sabia de cor as histórias todas.
Passaram-lhe perto.
A história do incêndio criminoso da casa dos padres em Santa Quitéria.
Os olhos reluziam-lhe de entusiasmo.
Encontrara quem o gostava de ouvir…


Berlim, 26 de Setembro de 2020
12h39m
Jlmg


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Folhas de Outono

Uma a uma caem silenciosas as folhas secas.
Cobrem de amarelo o chão verde dos relvados.
Preanunciam tristes a chegada do inverno.
Findou seu reinado de ostentação nos toucados do arvoredo.
Se preparam consternadas para o destino da sua morte.
Mais um pouco e virá a neve branca.
Ocultas, esperarão sua destruição e transformação em húmus.
Enquanto a natureza dormirá a sono solto.
É o devir constante e lento do tempo ao ritmo das estações.
O devorador insaciável das vidas que aspiram à eternidade por vocação.


Berlim, 25 de Setembro de 2020
19h24m
Jlmg


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A minha costeira à porta de casa

Antes do alcatrão
Não foi fácil.
Eu vi.
Alisou-se o caminho.
Vieram camiões de granito das pedreiras esmigalhado.
Cobriu-se de cascalho.
Uma cobertura de saibro seco o revestiu.
Um cilindro de pedra repassou-lhe a superfície inúmeras vezes, até ficar liso.
Borrifou-se de água para sedimentar.
Com o vir das chuvas ficava totalmente firme.
Depois, era um regalo percorrer aquele caminho carregado de buracos e de lombas.
Desde a estrada até à capela de Pedra Maria.
Até servia para jogar a bola...


Berlim, 25 de Setembro de 2020
17h49m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21375: Blogpoesia (697): "Passos perdidos", "O abraço" e "O convite", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 26 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21394: Nota de leitura (1310): "38ª Companhia de Comandos, 'Os Leopardos': a História": João Lucas (coord. lit. ), Porto, Fronteira do Caos Editores, 2018, 322 pp. - Parte I (Luís Graça)



Dedicatória ao editor do blogue, Luís Graça: "Para o amigo Luís Graça, que não não tendo escrito esta história, também faz parte dela. Um abraço do Luís Mendes."



Capa do livro (1º edição, junho de 2018)


1. Saiu já a 2ª edição, em maio de 2019, do livro com a história da 38ª CCmds, "Os Leopardos", que contou com a coordenação literária João Paulo Lucas, e a colaboração, como autores,  dos "leopardos" Victor Pinto Ferreira, Franscisco Gonçalves Domingos, António Mendes da Silva e Amílcar Mendes. 

Prefácio de Raul Folques (pp. xix-xxii), introdução de Vitor Manuel Pinto Ferreira (pp. 1-9), antigo comandante da 38º CCmds, cap inf cmd. 

Posfácio de Francisco Gonçalves Domingos (pp, 245-251), antigo alf mil cmd da 38ª CCmds. 

É ilustrado com cerca de 170 fotografias, infografias e cópias de documentos. Total de páginas: 322 (1ª edição, 2018).

É um edição cuidada, com boa mancha tipográfica, a cargo da Fronteira do Caos Editores, com sede no Porto. Preço de capa: 16 € (1º edição, junho de 2018, esgotada).

A 38ª CCmds tem página oficial aqui. Ver nomeadamente a síntese histórica da atuação dos "Leopardos" no CTIG (1972/74).

Sinopse:

"Esta gloriosa sub-unidade de Comandos, possui um palmarés impressionante e é com orgulho que ostenta no seu guião a condecoração, da Medalha Militar da Cruz de Guerra de 1.ª Classe (colectiva). Ainda e bem revelador do enorme esforço operacional a que foi chamada, chora onze caídos no Campo de Honra pela Pátria que em todas as suas cerimónias recorda e homenageia.

Recordar uma história tão rica em episódios onde a dedicação e o heroísmo ombreiam com a abnegação e o espírito de sacrifício foi, para mim, um exercício exaltante pois tive o privilégio de no Batalhão de Comandos da Guiné (BCmdsG) ter podido comandar operações em que a «Tremenda 38» tomou parte, cumprindo sempre de maneira distinta as missões que tinha de levar a cabo. 

Lembro, especialmente, o seu desempenho na Operação Galáxia Vermelha no Cantanhez Sul, onde um seu Grupo de Combate enfrentou, em inferioridade numérica, uma unidade do PAIGC, numerosa, bem armada e equipada que, emboscada, iniciou a acção com total surpresa. A reacção das NT, pronta, determinada e valorosa, obrigou o IN que sofreu pesadas baixas, a retirar em debandada." )Excerto de Raul Folques, Prefácio, p. xx).

O coordenador, João Paulo Lucas, é um antigo militar paraquedista, nosso amigo do Facebook. Em dia de anos, do Amílcar Mendes, um dos coautores do livro, já aqui deixo  o seguinte comentário:

"Amílcar, bravo leopardo, da 38ª CCmds: foste dos primeiros camaradas da Guiné a honrar-nos com a tua presença na Tabanca Grande... Tens 7 dezenas de  referências no nosso blogue. E a tua companhia outras tantas.

"Ainda não te agradeci publicamente o exemplar, autografado, que me enviaste, do livro com a história dos Leopardos, heróis de Guidaje e de outras batalhas...Duplos parabéns, pelo livro, que tem uma forte marca tua, e pelo teu aniversário. Muita saúde e longa vida, que os bons irãs te protejam!... Luís Graça

"PS - Uma completa recensão do livro "38ª Companhia de Comandos, 0s Leopardos" está na forja... Preciso apenas de um pouco mais de tempo e vagar"...

Na realidade esta é a primeira parte da minha leitura pessoal deste livro, que tem muito de coletivo,  e sobre cujo "making of" temos que começar por  citar as justas palavras do coordenador literário, João Lucas, na badana da contracapa:

(...) Foi fácil, para mim, antigi militar Paraquedista da Força Aérea Portuguesa, também habituado àquilo que foi o desempenho das Tropas Paraquedistas nos Teatros de Operações da Guiné, Angola,  Moçambique e Timor, aceitar o desafio de compilar este livro, de o fazer 'nascer'.

"Tal tarefa foi facilitada pela qualidade superior da 'matéria-prima' posta à minha disposição e pela colaboração infinita e dedicada do General Pinto Ferreira, do Amílcar Mendes, do Mendes da Silva, e dos demais militares da 38 Companhia de Comandos da Guiné. Os meus agradecimentos. Foi um imenso prazer e honra trabalhar com gente desta estirpe" (...)  

(Continua)

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Guiné 61/74 - P21393: Os nossos seres, saberes e lazeres (412): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Impunha-se uma visita cuidada ao Centro Interpretativo do Barroco, em Arcos de Valdevez. A Igreja do Espírito Santo foi muito bem escolhida, marca perfeitamente todo o espírito da Contra-Reforma, severidade e austeridade por fora, pompa e esplendor no interior. Somos riquíssimos em Barroco e Rococó.
A Europália Portugal, em 1991, foi um grande sucesso. Lembro-me das filas enormes à porta do Museu Real de Belas-Artes, em Bruxelas, para visitar a exposição O Triunfo do Barroco. Houve também outras exposições de estrondo, somos detentores de um património que a generalidade dos laboratórios universitários já tinham deitado fora, os instrumentos científicos do século XVIII, e as exposições de Arte Oriental e Africana foram altamente representativas, mas nada se comparou ao Barroco, à magnificência da arte religiosa e às carruagens da Embaixada que o rei D. João V enviou a Roma. Pois o Alto Minho também possui um património incomparável, como aqui se exemplifica.
E regressou-se a Ponte de Lima, desta feita a visita foi à Casa de Nossa Senhora d'Aurora, um portento património e com jardim assombroso, como também aqui se mostra.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (8)

Mário Beja Santos

Numa frase curta, numa síntese regada de sinuosidades e pontos divergentes, ir-se-á com o Barroco (na pintura, na escultura, na talha, na arquitetura e nas artes decorativas), foi um estilo que se instituiu depois do Renascimento e das modalidades do maneirismo, irá prolongar-se até ao século XVIII, e as suas linhas exuberantes ganharão um novo alento com um estilo denominado Rococó. É um período artístico de cerca de dois séculos que terá nomes de autores que ainda hoje são dominantes na cultura portuguesa de obras fundamentais no nosso património. Basta referir Josefa d’Óbidos, a Igreja da Madre de Deus, a Igreja de Santo António (Lagos), a escultura de Machado de Castro, o Convento de Mafra… E quando chegamos ao século XVIII, a região minhota dá cartas valiosas, Braga, Viana do Castelo e vários pontos do Alto Minho. E assim chegamos a esta paragem com enormíssimo interesse, a Rota do Barroco parte de Arcos de Valdevez e que agora se estende ao Alto Minho. E assim entro no Centro Interpretativo do Barroco, sediado na Igreja do Espírito Santo, em Arcos de Valdevez.

Arcos de Valdevez é porta de entrada deste roteiro do Barroco no Alto Minho, e não é por acaso, possui elementos notáveis do Barroco e do Rococó, sobretudo na vertente religiosa. A Igreja do Espírito Santo acolhe o Centro Interpretativo do Barroco, houve para ali um investimento municipal de cerca de um milhão de euros, supõe-se mesmo que esta viagem pode ultrapassar a área geográfica dos dez concelhos do Alto Minho, uma vez que a arte barroca da região está presente na Galiza e em Minas Gerais, no Brasil. O roteiro alicia para visitas do maior interesse, caso do Convento de Mosteiró, em Valença, a Capela das Malheiras, em Viana do Castelo, bem como a Capela da Boa Morte, na Correlhã, em Ponte de Lima, e o Santuário da Peneda, em Arcos de Valdevez. Entra-se na igreja, começa o assombro, estas obras falam mais que um milhão de palavras.



Atenda-se à magnificência do altar, a Confraria do Espírito Santo não se fez rogada e abriu os cordões à bolsa para que esta construção fosse de arromba. Por fora é tudo singelo, em granito, foi utilizado na estrutura principal, nos cunhais, cimalhas e lintéis, o próprio lajeamento que circunda o templo é em granito. A fachada foi reconstruída no século XIX, tem já traços marcadamente neoclássicos. O interior recebe a luz natural por dez janelas naturais, cinco a sul e cinco a norte, seguramente que se pretendeu que toda esta riqueza brilhasse, com toda a pompa, ao contrário do exterior. Veja-se a imagem seguinte.


Não há palavras, parece que todos os comentários não têm o poder de alcançar toda a simbologia que esta arte espelha, nos elementos escultóricos, contempla-se uma joia exaltativa do Espírito Santo e a vista é logo atraída para a sacristia onde somos todos recebidos com uma peça extraordinária alusiva ao Pentecostes, tudo sobre a forma de um altar. Inesquecível.







E regressa-se a Ponte de Lima. Sempre com o intuito de ver para compreender, levei na bagagem uma edição de 1985 das Seleções do Reader’s Digest intitulada Por terras de Portugal, orientada e coordenada por Maria Clara Mendes, doutora em Geografia Humana. Entra-se no casco histórico a caminho da Casa d’Aurora, e toma-se nota do que ela escreveu já sobre o século XVIII: “Nas primeiras décadas deste século ressurgem as casas de burgueses e fidalgos, e no espaço muralhado sobressaem o edifício da Câmara, o Paço dos Marqueses, a Igreja-matriz e os quarteirões definidos pela Calçada dos Artistas, Rua Formosa e Largo de Delfim Guimarães. Nas ruas estreitas entre a Rua do Postigo e a Porta do Souto o casario adensa-se. Os arrabaldes estão já definidos. A actividade industrial foi animada pela fundação de uma fábrica de tecidos de linho e algodão, a Sociedade Económica de Bons Compatriotas Amigos do Bem Público (1779-1786). Mas no fim do século a panorâmica é bem diferente”. Houve demolições, foi o caso da muralha, a atividade mercantil e agrícola levou D. Pedro IV a autorizar a realização das Feiras Novas. Em 1875 foi criado o Banco Agrícola, Comercial e Industrial de Ponte de Lima, e deste período datam a abertura das Alamedas de S. João e de Nossa Senhora da Guia, por ali corre desafogado e calmo o Lima. Mas eu vou em sentido contrário. A visita à Casa d’Aurora, tem o seu quê de peregrinação. Conheci Manuel d’Aurora através do meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, foi este querido amigo que me pedia insistentemente para lhe ler as obras do 3.º Conde. Aí vou eu à Rua do Arrabalde N.º 90.



A Sr.ª D. Rosário teve a gentileza de interromper os seus afazeres para me mostrar ao pormenor o interior desta casa senhorial, um deslumbramento de valores, de memórias, até de interseção de culturas. O outro pretexto da visita era o jardim, ele consta do Roteiro das Camélias. É um jardim à francesa, parece datar do tempo em que a casa foi reconstruída entre 1714 e 1730. O bucho é vistoso, o arvoredo variado, irei ver num nicho barroco com fonte Nossa Senhora d’Aurora, no centro do jardim um belo lago e uma imponente araucária.




Ao longo do ano, qualquer visitante tem vegetação à sua espera, mas quanto a flores por aqui pululam rosas, azáleas, dálias e camélias, mas também rododendros e magnólias. As cameleiras são antigas, há para ali uma criptoméria japónica de grande beleza. O folheto da Casa de Nossa Senhora d’Aurora refere algo que não se visitou, os quatro hectares da floresta, onde pontificam carvalhos, castanheiros, pinheiros, cedros e azevinho espontâneo. Pois ficará para a próxima, outra maré, o marinheiro será o mesmo…

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21373: Os nossos seres, saberes e lazeres (411): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21392: Parabéns a você (1872): Amílcar Mendes, ex-1.º Cabo Comando da 38.ª CComandos (Guiné, 1972/74) e António Medina, ex-Fur Mil Art da CART 527 (Guiné, 1963/65)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21384: Parabéns a você (1871): Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16 (Guiné, 1964/66)

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21391: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLIV: Jaime Frederico Mariz Alves Martins, maj grad inf (Oeiras, 1936 - Guidaje, 1973)

  






Cor inf ref Morais da Silva


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual acima], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]

Sobre o major graduado de Infantaria  Jaime Mariz, temos várias referências no nosso blogue.

Guiné 61/74 - P21390: Manuscrito(s) (Luís Graça) (192): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - II (e última) Parte











 









Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > Vindimas > 18 e 19 de setembro de 2020  > Foto galeria


Fotos (e legenda) : © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 




 

 Vídeo (2' 45''): You Tube > Luís Graça (2020)


 


 

 1. Segunda (e última) parte do texto sobre as vindimas, originalmente publicado no blogue A Nossa Quinta de Candoz, em 30 de outubro de 2005. (*)





por Augusto Pinto Soares (Gusto)

(Continuação)

II. A vindima é agora, nos tempos que correm, um ritual mais técnico, sem o sabor bucólico e festivo doutros tempos, sem o mesmo esforço, a mesma "freima". (*)


A marcação da vindima é já feita em função do grau de maturação das uvas, da disponibilidade do pessoal da casa (poucos chegam) aos fins-de-semana. Já não há festa – também já não há os convidados citadinos para assistir e tudo se processa de uma forma mais racional.

Porque as videiras estão armadas em bardos baixos – portanto mais expostas ao sol –, porque as operações da poda verde (espoldra ou desladroamento, desponta, desparra ou desfolha) permitem uma melhor exposição dos cachos de uvas, a colheita é mais fácil e célere. Rapidamente os cestos (agora de plástico) ficam cheios e o seu transporte para a adega é de imediato feito através do tractor.

Agora – os tempos são outros! – a plantação é de videiras de uvas brancas originando vinho branco de bica aberta. O verde tinto é mais complicado de trabalhar, mais complexo, mais demorado e com menos aceitação e saída, a não ser localmente.

Na adega as uvas são imediatamente esmagadas com a desengaçadora, jorrando o mosto assim obtido para uma dorna e de imediato para as cubas de aço, onde é  feita a sulfitação apropriada, aí repousará até à sua defecação nas próximas 24 a 48 horas para depois iniciar a sua fermentação.

 A prensagem, um pouco mais demorada, pois a prensa hidráulica – que até uma criança pode facilmente accionar – precisa de algum tempo para esmagar o mais possível o cangaço. Contudo ao fim de algumas horas – ao início da manhã seguinte – já estará pronta para ou levar mais uma carga ou ser limpa.

Os repastos (pequeno almoço, almoço, jantar e merendas) são mais triviais, mais avantajados. Já incluem sobremesa, café e digestivos.

O mosto já está nas cubas à espera de um novo ciclo – agora o ciclo do vinho – as alfaias estão limpas e arrumadas, os cestos já estão lavados.

Terminou a vindima! O ciclo da videira chegou ao seu fim.

A nossa vida já começa a contemplar muitos ciclos completos da videira.

Amanhã começará outro.

Texto: © Augusto Pinto Soares (2005)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 24 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I

Guiné 61/74 - P21389: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (20): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Foi de facto um dia excecional, um patrulhamento a Mato de Cão deu origem a uma viagem insólita, dois Unimog saíram de Missirá, em Canturé prosseguiram até Mato de Cão, passeio inédito, há perto de dois anos que era trilho abandonado, para contentamento do PAIGC todo aquele enorme percurso que começa no Jugudul avança para Porto Gole, depois Enxalé, S. Belchior, lá em cima é Missirá e depois Gambiel (antes da guerra prosseguia-se até Geba e Bafatá, só que a ponte foi destruída), não tinha circulação rodoviária. Naquele dia abriu-se exceção, houve surpresa no Enxalé, deve-se ter pensado que ia começar uma operação de monta. Jamais me satisfez a circunscrição do Cuor, tínhamos com Enxalé o mesmo dispositivo do PAIGC em comum, nunca foi utilizada a cooperação, que houvera no passado, basta ouvir os depoimentos do João Crisóstomo, dois anos antes era a mesma unidade militar que se espraiava entre Porto Gole, Enxalé e Missirá. Não interessa agora proferir sentença, mas pesava-me muito um conceito burocrático de cada um na sua quinta, era uma quadrícula medonha que fazia perder a visão de conjunto e que, paradoxalmente, contribuía para que as forças do PAIGC pudessem andar a dizer que havia quase tudo em zonas libertadas.
São águas passadas, já não movem moinhos.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (20): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse, muitíssimo obrigado pela leitura atenta que tu fazes aos meus apontamentos e às imagens que te envio. Observas que há a fotografia em que estou de braço dado com Nhamô Soncó, a mulher de Quebá Soncó, meu colaborador como guia e picador, também na imagem. Fazes-me a pergunta sobre o que escrevi no reverso: no dia em que visitámos o Enxalé, para surpresa de uns, temor de muitos, e alegria de alguns. Como não incluí tal viagem no relato das peripécias dos primeiros meses, faz todo o sentido que te relate um dia que foi festivo, turístico, humanamente enriquecedor. Como tu sabes, o Cuor depende diretamente de Bambadinca. Quando fiz a observação que tenho o mesmo grupo de guerrilha como o Enxalé, e parecia-me que com ele devia cooperar, mais não fosse em patrulhamentos conjuntos, deram-me aquela resposta sacramental que não passa de um atavio burocrático: o Enxalé depende do Xime, não interfira. É absurdo, olho para o mapa, sei onde está a hostilidade, não tenho condições militares para fazer este tipo de operações sozinho, é a mesma hostilidade de que sofre o Enxalé, vivemos em compartimentos distintos. E uma noite, tendo recebido a notificação para estar em Mato de Cão pelas nove da manhã, passaria um comboio de navios de Bambadinca para Bissau, tomei a decisão de a seguir à passagem das embarcações rumar em direção ao Enxalé, ou seja, em vez de fazer 25 quilómetros ida e volta, fazer 50, tudo por estrada. Tinha nessa altura duas viaturas em bom estado, ambas com guincho, o que significa que se houvesse uma avaria, uma delas viria rebocada. Convoquei os furriéis, anunciei-lhes a viagem, pedi para ficarem, levaria um pelotão reforçado, rádio, bazuca e morteiro e dilagramas. Pedi para que todos fossem com abastecimento de água, rações adequadas para os muçulmanos. Conversei depois com os motoristas dizendo-lhes que as viaturas deviam partir atestadas e que levaríamos um suplemento de combustível nos jerricãs, não fizeram comentários.

Minha adorada Annette, o que tem graça nessa fotografia é que a Nhamô está convencida que vamos em direção a Bambadinca, aperaltou-se para ir visitar as irmãs, nem minimamente sabe que vamos a Mato de Cão. Quando se tirou a fotografia já um grupo de picadores partiu com a alva, irão picar até Canturé a partir da Ponte de Sansão, chamei Nhaga Macque e Serifo Candé e disse-lhes que quando chegassem à curva de Canturé virassem à direita, era fundamental picar com muito cuidado aquele troço da estrada, qualquer coisa como quilómetro e meio, findo do qual uma estrada muito alcantilada desce à esquerda para Mato de Cão ou sobe à direita para Cancumba. Eles picariam à esquerda, íamos a Mato de Cão com viaturas, estavam proibidos de referir o itinerário a quem quer que fosse dentro de Missirá e mesmo aos outros picadores, a ordem para virar à direita em Canturé só seria dada em cima do evento.

Saímos, um dia de sol deslumbrante, um calor suportável, quem vai nas viaturas não supõe que vamos a Mato de Cão, é a primeira vez que ali se chega transportado, não há ninguém que ignore a sina que é tudo a pé, por caminhos ínvios, há mesmo um momento da jornada, nos dias muito acalorados, em que se anda a penar, pisando terra empoeirada, mesmo que se leve um calçado cuidado e as calças bem presas com as fitas, toda aquela laterite feita pó de talco sobe até ao tronco, incomoda que se farta, mais a mais a paisagem parece lunar com aqueles cogumelos de baga-baga que parecem não ter fim, felizmente que no termo deste purgatório se atravessa Chicri com o seu frondoso palmar e continuando por caminhos ínvios, sempre a evitar emboscadas, chega-se ao Planalto de Mato de Cão. Hoje é diferente, vira-se à direita em Canturé, há risada geral, a Nhamô e os outros civis estavam convencidos que iam a Bambadinca, não escondem a deceção, ou até o momento em que perguntaram se podiam ir a pé para Finete, havia para ali umas Mauser, fui perentório, iríamos todos juntos.

Os picadores fizeram o seu bom trabalho, os Unimog iam a uma velocidade constante, e assim chegámos à estrada que segue em paralelo o Geba, uma calmaria sem igual, os militares gralhavam, iam felizes, menos canseira, todos sentados como se viajássemos em autocarros de carreira. Pouco tempo após a nossa chegada, e disposto o dispositivo em segurança, passou o comboio de embarcações, acenos de ambos os lados, e nisto digo para o condutor da frente, Mário Dias Perdigão, conhecido por o Xabregas, agora levas-nos ao Enxalé, há uma coluna que vai a picar à frente. A tropa Fula e Mandinga rejubilava, há anos que não se fazia aquele itinerário, aliás, viam-se restos sinistros de pneus destroçados por minas, contavam-se histórias de mortos e feridos, a viagem prossegue, atravessa-se a bolanha de S. Belchior, é um dó de alma ver tanto terreno fértil ao abandono, o Geba quase beija a estrada, avisto um casario ainda de pé, casas esventradas, seguramente far-se-ia aqui comércio antes da guerra, a coluna de picadores vai bem à frente, quem vai confortavelmente sentado nem lhe passa pela cabeça que serão eles a picar no regresso, em três ou quatro pontos sensíveis, entenda-se, não iremos estar no Enxalé a não ser coisa de meia-hora para cumprimentos, quer-se regressar lesto, não dar condições a que venha por aí um bi-grupo armar uma cilada.

Eu quero que a minha amada saiba que é um dia encantador, é evidente que os condutores vão tensos, não me canso de conversar com o Xabregas, ele não me olha de frente, vai com as mãos pregadas ao volante e os olhos pespegados na estrada. E infletimos em dado momento para o Enxalé, se fôssemos em frente iríamos parar a Porto Gole, é uma estrada tão bela, lembra o itinerário entre Finete e Canturé, os poilões e os cajueiros foram sabiamente implantados, não sei quando, só sei que dão uma sombra aprazível, a coluna de picadores já chegou a Enxalé, a tropa e o povo recebem-nos na Porta de Armas. Cumprimento o camarada que se apresenta, está contente mas intrigado, será que vem por aí alguma operação, por que carga de água a gente do Cuor vem de visita ao Enxalé? Dou resposta descontraída, viemos só conhecer os camaradas, topo que toda a gente de Missirá já anda nos cumprimentos, já se chega ao cúmulo de haver gente acocorada frente às cabaças cheias de arroz e mafé, o camarada alferes é gentil, pergunta-me se pode mandar assar uns frangos, agradeço, digo que não há condições, comeremos uma bucha no regresso, a minha tropa branca resmunga, mais uns minutos não fariam mal a ninguém, mas a decisão está tomada, vamos todos beber um copo, entrego umas notas ao Teixeira para pagar uma rodada no bar, converso com o camarada alferes sobre coisas vagas e genéricas, ele leva-me a visitar o quartel e a tabanca, mostra-me mesmo a picada que leva até ao fundo, ao porto onde se abastecem, podendo mesmo viajar até ao Xime. É uma beleza fascinante, todo aquele caminho da picada, verde luxuriante até se afogar nas águas do Geba.

Olho para o relógio, já passa da uma da tarde, convoca-se quem anda em cumprimentos e até visitar familiares, os dois Unimog posicionam-se para o regresso, despeço-me do camarada alferes, agradecido pela hospitalidade, é um regresso em que já não vejo ninguém apreensivo, há imensa conversa sobre quem se encontrou, a própria Nhamô já viaja com menos tensão no rosto, e assim chegamos a S. Belchior, peço ao Xabregas para acelerar, é uma estrada boa, a primeira e única novidade de que por ali passámos e que não éramos desejados na região de Madina foi ouvirmos umas fortes morteiradas em nossa direção, era de presumir que o PAIGC local estava confundido com semelhante viagem, pois não é impossível ir até Madina de viatura.

Pois bem, minha adorada Annette, chegámos a Missirá sem qualquer aborrecimento, será passeio que não se repetirá, infelizmente, não deixei de informar mais tarde o comando de Bambadinca de tal itinerância, houve a advertência de que não se deve sair em circunstância alguma da quadrícula, até parece que você não tem muito que fazer, deixe o turismo para os outros. Foi tudo isto que se passou, o tal dia em que fomos de Missirá ao Enxalé e regressámos. Por mim, teria estreitado a cooperação com aquele destacamento, nem pensar, clamaram os meus superiores. Resignei-me, de facto eu tinha muito que fazer, os patrulhamentos à volta do Geba certificavam a existência de colunas de lá para cá e de cá para lá. Vai começar um período com tempestade de fogo. O terror paga-se com terror. Foi assim que aconteceu. Penso, mon amoureuse, que fica tudo explicado sobre a fotografia. E termino com uma boa notícia, já comprei o teu bilhete para passares comigo as férias de Natal aqui, estou entristecido por teres que regressar a 3 de janeiro, tu não podes imaginar a falta que me fazes, a solidão em que me deixas.

(continua)

Enxalé

Imagem de um documentário do realizador Sana Na N’Hada, dedicado aos Bijagós

O monumento dedicado ao V Centenário da Descoberta da Guiné, Porto Gole, imagem do nosso blogue

Festa Felupe, fotografia de Lúcia Bayan, com a devida vénia

Era neste ponto que vínhamos montar a segurança aos barcos, trata-se de Mato de Cão
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21369: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (19): A funda que arremessa para o fundo da memória