quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21913: Tabanca Grande (513): Os últimos cinco camaradas de armas que ficam no talhão dos que da lei da morte já se libertaram: João Cupido (nº 831), Mamadu Camará (nº 832), Manuel Amaral Campos (nº 833), Marcelino da Mata (nº 834) e Paulo Fragoso (nº 835)


João Cupido (1936-2021), natural de Mira
ex-cap mil art, CCAÇ 2753, 
"Os Barões do K3" (1970/72) (*)



Mamadu Camará (c.1940 - 2021), 
ntural da Guiné-Bissau, 
ex-sold 'comando', 
 Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 
1966/70,  e 2ª CCmds Africanos, 
Bissau, 1970/74)
(**)


Manuel Amaral Campos (1945-2021), 
natural de  Vieira do Minho,
ex-Sold Rec Inf , 
CCS/BART 1913 (Catió, 1967/69) 
 (***)



Marcelino da Mata (1940-2021),
natural da Guiné-Bissau,
ten cor inf, reformado, (****).
Tem cerca de meia centena 
de referências no nosso blogue.




Paulo Fragoso (c. 1947-2021), 
natural de (ou residente em) Lisboa,
ex-Sold At Inf , CCAÇ 2616 (Buba, 1969/71) 
(*****)

Fonte: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné (2021)

1. Vários antigos combatentes da Guiné, nossos camaradas de armas, tombaram, recentemente, vítimas da pandemia de Covid-19 que está a ser o maior desastre sanitário  e demográfico do séc. XXI, tal como  o foi a pneumónica ou "gripe espanhola" em 1918/19. Ou a epidemia de cólera de 1833, em plena guerra civil.

Sabemos da morte de alguns, aqui já evocados no nosso blogue, na série In Memoriam, por camaradas, membros da Tabanca Grande, que os conheceram, que com eles combateram, ou quem conviveram nas nossas Tabancas. Só nas últimas semanas foram cinco. Recordeamos acima  os seus nomes, por ordem alfabética.

Outros mais  terão morrido,  sem o sabermos, vítimas de Covid-19 ou de outras doenças, nestes dois terríveis meses do ano de 2021.Todos estes nossos cinco camaradas, enquanto antigos combatentes no TO da Guiné, entram a título póstumo para a Tabanca Grande, sendo  devidamente lembrados no respetivo talhão, que dedicamos justamente àqueles de nós que "da lei da morte já se foram libertando", pelo lhes atribuímos os seguintes lugares, à sombra do nosso poilão, respeitando a ordem alfabética: 

João Cupido, nº 831; Mamadu Camará, nº 832; Manuel  Amaral Campos, nº 833; Marcelino da Mata, nº 834: e Paulo Fragoso. nº 835.

O último poste da série "Tabanca Grande", foi o P21875, de 9 do corrente (******).

Que Deus, Alá e os Bons Irãs nos protejam.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:





Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quinta.


5 - DORMIR COM O INIMIGO

Conhecia-os bem, porque passavam, de vez em quando, pelo nosso aquartelamento de Mampatá, a caminho do mato, sempre que as operações decorriam na área do sector atribuído à nossa companhia. A sua companhia era de intervenção, o que significava que não tinha apenas uma área fixa à sua responsabilidade operacional, mas intervinham às ordens do comando do batalhão, ora num subsector ora noutro. Era na verdade uma companhia muito prestigiada e com uma atividade operacional muito intensa a Companhia de Caçadores n.º 18, designada por nós a CCaç 18, a que aqueles dois furriéis pertenciam.

A maioria dos seus militares era natural da Guiné, e só a minoria composta pelo capitão, quatro alferes, 1.º sargento, alguns furriéis e uns tantos cabos especialistas, eram oriundos da então chamada metrópole portuguesa. Mas estes dois furriéis que viajavam comigo num batelão de mercadorias, em pleno rio Grande de Buba, eram guineenses de pele bem escura. E se nos conhecíamos de Mampatá e até de encontros fortuitos em Aldeia Formosa, durante aquelas longas horas entre Buba e Bissau, com escala na ilha de Bolama, falámos de tudo, mas especialmente da guerra e das previsões que dela faziam aqueles dois meus camaradas de armas. Sim parecia-me que entre nós os três havia muito em comum, embora não deixasse de considerar que eles estavam no seu solo e no seio da sua cultura.

Ambos eram manjacos, um dos grupos étnicos não islamizados, combatentes do exército português, tal como eu. Os três iríamos desfrutar de um mês de férias, eu em Medas-Gondomar, eles em Bissau. Pelo que tenho presente nenhuma reserva mental se interpunha entre o meu pensamento e as ideias que exteriorizava sobre aquele conflito sugador de bens, ávido de sacrifícios e predador de vidas. Parecia-me, pelo lado de ambos, algum desconforto na impossibilidade de me dizerem tudo o que lhes ia na alma. Sentir-se-iam eles de consciência absolutamente tranquila, cientes de que lutavam dentro do seu território contra, pelo menos, uma parte do seu próprio povo? Ou criam naquela ideia, utópica para uns, realizável para outros, de uma Guiné integrada num espaço pluricontinental e pluricultural, beneficiando da proteção de uma metrópole europeia capaz de assegurar a formação de quadros técnicos e apoio na construção de infraestruturas, num território delas tão carente? Mas como poderia Portugal, então sob um regime de ditadura, garantir a uma ou a todas as suas parcelas dispersas pelas mais diversas geografias, um governo autónomo resultante de uma escolha democrática?

Um era o Furriel Baticã, do outro já se me varreu o nome da memória, mas ambos me pareciam apreensivos quanto ao seu futuro, vestindo uma roupagem que não lhes assentava na perfeição. Mesmo assim, no decurso daquela viagem até Bissau, muito aprendi da sociologia da Guiné, dos usos e costumes, dos dialetos, do comércio esclavagista, do fluxo demográfico da Guiné para Cabo Verde e, posteriormente, da migração de cabo-verdianos para a Guiné.

Desembarcados em Bissau, combinámos beber umas cervejas no Café Bento, logo ali à direita, no início da avenida mais importante da capital guineense, onde daríamos os últimos retoques à conversa e nos despediríamos. E foi assim, na despedida, que os dois camaradas da CCaç 18 me convidaram para passar, na casa que tinham na cidade, os dois ou três dias que teria que esperar pelo meu embarque para o Porto, via Lisboa.
A casa era modesta, para os padrões europeus, mas boa no contexto da Guiné. Num amplo quarto estavam dispostas meia dúzia de camas de ferro ladeadas por uma mesinha de cabeceira. Tudo muito sóbrio num chão de cimento coberto aqui e ali por esteiras de confeção artesanal.

Naquela casa entravam e saiam, continuamente, familiares e amigos dos meus anfitriões, aceitando com naturalidade e até simpatia a minha presença. Por certo todos estavam informados de quem eu era. Pela minha parte sentia-me à vontade, mais seguro até do que se estivesse num local onde predominassem militares de pele clara. Bissau começava a ser um local pouco seguro, a que chamávamos a Saigão da Guiné, sobretudo desde o ataque, com foguetões, ao aeroporto.

Mais tarde, depois das férias que correram vertiginosamente na metrópole, e regressado ao mato, reencontrei estes hospitaleiros camaradas guineenses e até ao fim da comissão tive oportunidade de lhes reafirmar a minha gratidão pela forma simpática como me receberam em sua casa onde passei dois ou três agradáveis dias, num bairro onde só se viam pessoas de pele escura.
Alguns anos depois da independência da Guiné, vim a saber, com algum espanto, que o Furriel Baticã, foi integrado no governo do PAIGC, ao contrário de muitos outros guineenses que foram fuzilados por terem integrado as Forças Armada Portuguesas. Posso então dizer que dormi na casa do inimigo.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

Guiné 61/74 - P21911: Historiografia da presença portuguesa em África (252): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A importantíssima tese de Carlos Lopes prende-se com o mundo Mandé e Malinké que ascende ao poder numa ampla região geográfica onde cabem a Gâmbia, o Senegal, o antigo Casamance, áreas do Futa-Jalo e parte essencial da Guiné-Bissau, entre outras. Houvera a queda do Estado do Gana devido à invasão dos Almorávidas que levou ao aparecimento do Império do Mali, no século XIII. Os Mandinka vinham do Império do Mali e invadiram a Senegâmbia e fundaram o Kaabú, com destaque para o povo Malinké. Este reino de cuja extensão já se falou, irá ter o seu centro político em Kansalá, situado na atual região norte do Gabú, Guiné-Bissau. Os Mandinka eram poderosos, maleáveis na administração, não hostilizavam frontalmente o animismo. Irão ser confrontados com a ascensão Peul ou Fula, serão estes os novos senhores mas, segundo Carlos Lopes, jamais se perdeu a coesão geográfica e cultural do Kaabunké com consequências que ultrapassam a lógica dos atuais países independentes da região.

Um abraço do
Mário


A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (1)


Mário Beja Santos


"Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, continua a ser o estudo mais completo sobre o que terá sido o Cabo Malinké, com incidência na historiografia da antiga colónia portuguesa, e como exercício da interdisciplinaridade que deve existir nos estudos africanos, de leitura obrigatória. Afinal, de que trata? Diz o autor tratar-se de uma investigação aprofundada sobre a história do Kaabú, uma estrutura política Mandinga da Alta Costa da Guiné que sobreviveu a todas as tempestades da África medieval e unificou os povos de “Rios de Guiné durante seis séculos, do século XIII ao século XIX”. E adianta: “Foi em 1972, no Congresso de Estudos Mandingas em Londres, que tomámos conhecimento das primeiras comunicações sobre o que viria a constituir uma grande descoberta para inúmeros historiadores: o Kaabú, os Mandingas do Oeste, os verdadeiros herdeiros do Império do Mali e da época gloriosa de Sunjata Keitá. O Kaabú foi um Estado unificador de todas as etnias da região, e as suas diversas áreas de influência expandiram-se e abrangeram a cultura de toda a região do Sudão Ocidental. Para o conhecimento das relações de poder existentes no passado longínquo da Guiné-Bissau, mas também da Gâmbia, de Casamance, do Senegal Oriental e do Futa-Jalo guineense, é necessário interpretar as características dos Kaabunké, o alcance da sua civilização e, acima de tudo, a unificação ou conjugação interétnica por eles levada a cabo”.

Definido o propósito do trabalho, o autor pronuncia-se sobre as diferentes fontes (tradições orais, fontes árabes, fontes portuguesas, fontes francesas e outras. Analisa o conceito de etnia, nação, Estado, sociedade e Mansaya, sente-se a complexidade de definir a etnia, mais fácil é encontrar o conceito de nação, que pressupõe um sentimento de solidariedade intergrupos na base dos mesmos princípios que os do conceito do grupo étnico, mas a nação carece de um espaço de expressão maior e de uma estrutura a que se chama Estado. O Estado no caso do Kaabú possuía uma estrutura política onde existia uma diferença entre governador e governado, a Mansaya, expressão de um poder estatal. “As Mansaya, criação Malinqué, foram o modelo de organização política mais importante do Sudão Ocidental, porque se adaptaram a uma estrutura produtiva assente num volume de trocas relativamente reduzido e de longa distância. Nas Mansaya, o poder tinha uma forte conotação clânica, e os direitos de sucessão eram geralmente respeitados. A Mansaya tinha um sistema de poder por representação das diferentes camadas sociais, adoptaram um modelo e um aparelho ideológico que aliava a fé animista a certas aquisições do Islão, nas quais o Kaabú introduziu um sistema de governo com modificações substanciais, como a sucessão matrilinear”. São equacionados grupos linguísticos (Sérèr), os Diola, Felupe, Baiote e muitos outros, como o Pajadinca, o Cassanga, o Brame, o Manjaco, o Balanta, o Beafada, o Bague, o Bijagó, o Nalu e o Fula, etnias e línguas que gravitavam no espaço Kaabunké com a língua Mandé.

Como situar a geografia Kaabunké? O autor responde: “O espaço geográfico onde se desenvolveu o Kaabú, é um conjunto ecológico homogéneo, ou melhor, integrado. Caracteriza-se pela existência de grandes rios (Gâmbia, Casamance, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo) e dos seus afluentes que descem em cascatas do Futa-Jalo até ao mar. Um estudo minucioso de algumas fontes dos séculos XV e XVI demonstra-nos que os navegadores chegados a esta região a distinguiam claramente do Norte da Gâmbia, devido à quantidade de chuvas, à sua duração e ao calor que fazia no interior do território”. Havia boas condições de navegação, a composição do solo permitia a rizicultura de tarrafo, os cursos de água constituíam um forte ponto de atração. O ouro que Bambuk e provavelmente da zona do Geba/Bafatá desempenhou um papel importante no papel da região. Há historiadores que não escondem os aspetos limitativos ligados à geografia, como o próprio autor observa: “Muitos historiadores consideram que esta região era uma espécie de beco sem saída do mundo Mandinga, pois não passava do ponto extremo ocidental do Império do Mali, longe dos eixos comerciais trans-saarianos. É certo que permitia a expansão até ao Atlântico, o que pouco servia o Mali propriamente dito. O isolamento relativo desta região – bloqueada para lá do Futa-Jalo – em relação ao Mali pode explicar a necessidade sentida no interior deste espaço de uma maior relação entre as diferentes estruturas económicas e, evidentemente, políticas. O Kaabú teria, assim, sido o intérprete deste desejo ou necessidade de desenvolver uma dinâmica mais independente”. Carlos Lopes discreteia em torno de um conjunto de lendas e socorre-se do Tratado de André Álvares de Almada para nos procurar dar um quadro do que era o Kaabú nos séculos XIV e XV. Citando outros autores, Carlos Lopes conclui que o Kaabú dos séculos XIV e XV é ainda uma província – Farim – do Mali, que é a referência de toda esta região; e diz que as fontes escritas refletem a importância do comércio exercido pelos reinos na zona de influência do Kaabú, acrescentando que a influência cultural do Kaabú nos leva a aceitar a ideia de que se tratava primordialmente de um espaço de alianças entre vários clãs, grupos de interesse, sobretudo Malinqué, não era pois um Estado forte, centralizador e com controlo territorial. Fala-se depois se Kansala era efetivamente o centro do poder, enuncia-se a estrutura social Kaabunké que incluía aristocracia, homens-livres, homens de casta e os escravos e agrupamentos étnicos dominados, tudo altamente desenvolvido no seu trabalho, tal como o espaço estatal, político e guerreiro.

Temos agora o espaço de trocas, e aqui Carlos Lopes releva as fontes portuguesas, qual a natureza das trocas, sobretudo nos reinos da costa. E adianta o seguinte: “O comércio de longa distância do Kaabú partia dos pontos de tráfico de escravos na costa, através dos Rios do Sul, passava pelas feiras de escravos e mercados de tradição antiga não longe da costa, depois pelo Futa-Jalo, e dirigia-se por fim para o Alto Níger. A rede tinha uma base no Kaabú, mas estava muito mais disseminada, constituindo-se as feiras como pontos de redireccionamento. Existia de facto um mercado longínquo centrado na troca desigual". Carlos Lopes desenvolve a noção de espaço cultural e linguístico, cita autores portugueses e estrangeiros, conclui que o espaço cultural e linguístico Kaabunké conheceu a sua primeira expansão no século XVII, é dado como um espaço homogéneo, predominando o Wolof a norte do Gâmbia e um território sob influência Malinké, do Gâmbia até à Serra Leoa. A questão religiosa é a mais complexa, no espaço Kaabunké coexistiam o animismo e o Islão, tinha tido um importante vetor de penetração no Sudão Ocidental. Quando os portugueses chegaram à Guiné defrontaram-se com este desidrato religioso, toda a história da missionação na Guiné tem que ser percebida pela hostilidade do clima, pela falta de comunidade apoiante das missões, pelo pequeníssimo nome de missionários, tudo somado a política de conversão não funcionou. O aspeto mais curioso do Cristianismo na Guiné é de que presentemente ele está a conhecer um crescimento sem precedentes face aos séculos anteriores.

Não se pode falar no Império do Cabo, mas sim numa constelação de reinos dependentes do Mansa-Bá. O controlo territorial europeu era praticamente nulo. Os portugueses apenas se dedicavam ao comércio. Mesmo quando o Kaabunké entrou em desagregação completa, em pleno século XIX, a presença portuguesa preferiu a neutralidade nas horríveis guerras do Forreá, fez o possível e o impossível para não se imiscuir perante os invasores Fulas e a reação dos Beafadas. Para terminar, resta dizer que havia uma profunda unidade natural da região, a generalidade dos investigadores assim o afirma. Seja como for, a administração Kaabunké, que tinha a concentração do poder na aristocracia, era muito maleável, procurava o melhor entendimento possível com os soberanos africanos. É neste contexto, e sendo o Kaabunké também um império traficante de escravos que os portugueses constituíram uma feitoria no Cacheu e no fim do século XVIII estavam implantados em Bissau. “Não se pode falar de administração portuguesa na Senegâmbia meridional ou na região dos grandes rios, antes do século XIX, como fazem os historiadores portugueses. Porém, é interessante saber que existiram tentativas, sem grande sucesso, para instaurar uma administração junto das cidades portuárias”.

(continua)
Mapa com Mansa Musa
A New & Correct Map of Negroland and Guinea - G. Rollos c.1770
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21883: Historiografia da presença portuguesa em África (251): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21910: Parabéns a você (1933): António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo e Cantacunda, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21892: Parabéns a você (1932): Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21909: Notas de leitura (1341): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte I - O direito, o dever, o prazer... e a dor da memória (Luís Graça)


FERREIRA, José Pardete - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.

1. O ex-alf mil médico , José Pardete Ferreira 1941-2021), membro da nossa Tabanca Grande,  que, infelizmente,  nos deixou há um mês (*), escreveu, por volta dos seus 60 anos de idade, um livro que eu acho notável (**), e que se pode classificar como um misto de narrativa histórica e de autobiografia, uma e outra, ficcionadas. 

O autor chama-lhe "romance", mas no subtítulo aparece a expressão "novas crónicas da Guiné, 1969/71". O arco temporal da acção   é maior, abarcando, no essencial, a década de sessenta e de setenta (até ao 25 de Abril), com dois acontecimentos marcantes de que o autor foi, ele próprio, protagonista, a crise académica de 1962 e a mobilização, em fevereiro de 1969, para o teatro de operações da Guiné, como médico militar (ia fazer  28 anos em 15 de fevereiro de 1969, e no dia 6 tinha acontecido o desastre de Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé).

O "making of" do livro terá durado cerca de 2 anos e foi partilhado pelo poeta, livreiro, amigo e  vizinho de Setúbal, de origem açoriana, Manuel Pereira Medeiros (1936-2013), que também assina o prefácio,  sob o pseudónimo literário de Resendes Ventura. 

Do livro diz o prefaciador que é "um confessado momento de divertimento" (...): "quem conhece Pardete Ferreira,  reconhece-o bem neste seu livro" (p. 7).

Ao rever, também com o autor, os anos sessenta, ele evoca  "o direito, o dever e o prazer da memória, mas acrescenta-lhe a "dor". De facto, "não era para a dor que estávamos preparados" (p. 8), Nós, a geração nascida com ou após a II Guerra Mundial, e que irá fazer a guerra colonial.

E se não tivesse havido a "guerra colonial", pergunta Resendes Ventura ? O que teria feito de e por Portugal a geração de sessenta ?

É uma pergunta meramente teórica, "bizantina", daquelas "tipo sexo dos anjos", que não tem resposta. Na História não há "ses"... Mas  esta geração, a da guerra colonial,  isso sim, tem de "exercer o direito  e o dever de memória" (p. 8).

Uma questão que no virar do milénio parecia fazer ainda mais sentido, face à dificuldade em se " saber o futuro".

Por seu turno,  na introdução ao seu livro, o autor diz que tentou "descrever analiticamente ou analisar descriticamente o que foi o conjunto dos anos sessenta e setenta" (p. 11).

E começa por exigir que se respeite a geração de combatentes, a sua (e nossa) geração que mal ou bem fez a guerra colonial. E respeitar não é erigir memoriais (em ferro, em pedra, em bronze...) como sobretudo o "conceder  aos combatentes do Ultramar o estatuto de cidadão a tempo inteiro" (p. 12).

Não foi isso que aconteceu, no pós-25 de Abril, acrescentando o autor, de forma sarcástica, a seguinte explicação: 

"A Nação exigiu a esta geração o dever do pagamento do Imposto chamado serviço militar obrigatório", para logo a seguir atirá-lo à cara, "com uma escarradela de reprovação e desprezo" (p. 12).

Mas vamos às personagens que animam os 24 capítulos da obra, tantos quantos "o número médio de meses de uma comissão de serviço militar, por imposição" (p. 16).

No essencial são duas as personagens principais cujos destinos se vão cruzar na Guiné,  em 1969/71, nesta narrativa cuja classificação não cabe nos clássicos géneros literários. São eles o Paparratos e o João Pekoff, o primeiro,  um  soldado comando da 105ª CCmds [leia-se, 16ª CCmds, 1968/70],  o segundo, um  "estudante activista de 1962" e depois médico no CAOP (de fevereiro a junho de 1969) e no HM 241 (até ao princípio de 1971).

Sobre o primeiro, falaremos com mais detalhe numa próxima nota de leitura. Mas aqui  fica uma primeira apresentação sumária (pp. 18/19);

(...) “O Gabriel ou Paparratos era um rapaz simples das nossas aldeias, filho de um casal de trabalhadores rurais, que partilhava o seu tempo na escola, nas brincadeiras com os seus inúmeros irmãos e companheiros, no ajudar dos pais e na serventia ao sacristão. Sabia ler e escrever, desconhecendo-se ao certo qual o nível real de instrução que conhecia.

" O contacto com a rude dureza da vida ensinara-lhe a humildade e, provavelmente mais a generosidade do que a valentia. Esta, já a mostrava nas rixas no povoado ou nos campos, em dias de festa da aldeia ou no turbilhão domingueiro que quebrava a monotonia repetitiva do labor quotidiano”.  (...) 

"O ir às sortes foi uma festa (...).  "Uns meses mais tarde, chamado à vida militar, não se fez rogado (...) .

(...) Ofereceu-se  para servir nos Comandos (...). No final do treino foi um dos contemplados com a boina e com o crachá que o faziam distinguir como comando. (...) Pela primeira vez, na sua ainda breve vida o Gabriel se sentiu gente. (...)


BI Militar do alf mil méd José Pardete Ferreira, 
de que o João Pekoff é um "alter egi"

No livro do J. Pardete Ferreira, é notória a parecença  de determinadas situações narradas com "factos e feitos" ocorridos  no TO da Guiné neste periodo: por exemplo, a retirada de Madina do Boé (estava o autor a caminho do CTIG); a  morte dos 3 majores no "chão manjaco" em abril de 1970; a invasão de Conacri (Op Mar Verde), em 22 de novembro de 1969; ou a captura, o evacuação e o tratamento no HM 241 do capitão cubano Peralta (Op Jove).

Daí que não repugnasse  ao autor a ideia de  que este livro fosse  um misto de "romance" com uma vertente "histórica" e outra "autobiográfica" (p. 16).

O Paparratos é, no entanto, uma figura mas ficcionada e "estereotipada" do que o João Pekoff, afinal, um "alter ego" do autor. Mas no final, e para os devidos efeitos (incluindo legais), J. Pardete Ferreira adverte que qualquer semelhanca com a realidade (nomes, figuras, locais, factos, datas, etc., descritos) é "pura coincidência"... Enfim, um velho truque de defesa de qualquer escritor de ficção...

Talvez tenha interesse para o leitor, e nomeadamente o leitor do nosso blogue, saber o seguinte, em traços largos, sobre o autor José Pardete (e o seu "alter ego"  ou heterónimo, João Pekoff);

(i) é lisboeta, nascido em 1941, em plena II Guerra Mundial; 

(ii) vai morrer na véspera de completar os 80 anos, vítima da pandemia de Covid-19;

(iii) filho único, mora, com os pais, no Bairro das Colónias;

(iv) frequenta, desde cedo, o Café Colonial,  que ainda hoje existe, na Av Almirante Reis, aos Anjos (naugurado em 1934 foi tertúlia e café de estudantes, transformado em pastelaria em 1978, hoje Café Pastelaria Colonial); 

(v) passa pela Mocidade Portuguesa e a JEC, enquanto estudante de liceu, e depois  pela Acção Católica, a  JUC e a Pax Romana - Movimento Internacional de Estudantes Católicos, enquanto estudante de medicina;

(vi) pratica desporto de alta competição na CDUL e no Sporting  (onde é, nomeadamente,  guarda-redes nas equipas de andebol)...

(vii) além de cirurgião, especializa-se mais tarde em medicina desportiva...


2. A preocupação maior,  na época, era "o medo de não terminar os estuds e seguir para África" como comandante operacional, de G3 na mão. ou seja, como alferes miliciano atirador de infantaria... (p. 48). E, naturalmente, o cenário mais temido era o da Guiné.

Concluído o curso de medicina, fará em 1968 o COM em Mafra, "com um frio de rachar" (p. 48). E a IAO, no Minho, integrado num batalhão, que admitimos possa ter sido o BCAÇ 2861, mobilizado pelo BC 10, Chaves, que desembarcou em Bissau em 11/2/1969. Deve ter passado,  antes,  seis semanas (!) no Hospital Militar Principal, um curto estágio de preparação para a sua difícil missão na TO da Guiné.

Chegado a Bissau, "saí logo do meu Batalhão e segui para o CAOP" [, que ainda não era o CAOP1], em Teixeira Pinto,  juntando-se ao Fernando Maymone Martins. [No  livro "O Paparratos", trata-se do  alferes milicano médico Moisés Mendes, que exerce também as funções de autoridade de saúde no "chão manjaco" (pp. 31/32)].

"O João Pekoff não tinha grande formação política" (p. 47), apesar de ser um dos "atores"da crise académica de 1962  (e sobretudo  sua testemunha privilegiada e, ao mesmo tempo,  um crítico da liderança estudantil em Lisboa)... 

Delicioso é o retrato que ele faz faz de alguns dos históricos dirigentes  do movimento estudantil dessa época, e de que falaremos em nota posterior: não é difícil descobrir por detrás do pseudónimo Ernesto Figueira, estudante de medicina,  figura o futuro psiquiatra Eurico Figueiredo, ou do  João Santos, estudante de direito, o futuro presidente da República Jorge Sampaio. Ambos frequentavam, tal como o João Pekoff, o Café Roma, junto à Praça de Londres, na Av de Roma (pp.  23 e ss). 

Aliás, interessante também é  "a ronda dos cafés" (pp. 81 e ss.), uma reconstituição do roteiro histórico dos cafés de estudantes e tertúlias da Lisboa dos anos 50, 60 e 70 (até ao 25 de Abril). Haveremos de cá voltar.`(***)

(Continua)


Guiné > Região do Cacheu > Chão Manjaco > 1970 > CAOP > A caminho de uma acção psico-social

Foto (e legenda): © José Pardete Ferreira (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Legendagem do José Pardete Ferreira, completadas por notas nossas, entre parênteses retos, em mensagem com data de 26 de junho de 2011 ("Desfazendo suposições") (***)

(...) Há já alguns anos esta fotografia foi publicada no nosso blogue. Com a força que a minha presença na foto atesta, posso descrever:

De esquerda para a direita:

(i) Major Pereira da Silva (Sherlock Holmes dos bigodes) [, no livro "O Parratos"..., é o major Peres Sousa, de alcunha o Sherlock Holmes,  pp. 41 e ss.];

(ii) [Por detrás do Major, um ] Capitão Miliciano, cujo nome não me lembro, vindo do Pelundo ou de Có, substituir o Capitão Barbeitos [, cmdt da CCAÇ 2366, que esteve em Teixeira Pinto até 27 de maio de 1969, sendo então substituída pela CCAÇ 2585, que teve dois comdts: Cap Inf António Tomaz da Costa e Cap Mil Grad Inf António Camilo Almendra];

(iii) Marinheiro, manobrador do Zebro, [, a navegar no Rio Mansoa, ] com os dois motores Mercury de 40 CV cada, uma bomba para a época;

(iv) Tenente Coronel Pinheiro, 1º Comandante do BCaç [2845, Teixeira Pinto, 1968/70] que dava a logística ao CAOP [, no "romance", é 

(v) Capitão Comando Jorge Duarte de Almeida (abatido no quartel do Batalhão de Infantaria da GNR por um cabo "pirado da mona" - diz-se - mas... uns anos mais tarde; possuidor de linda voz (...) [, era o comante da 16ª CCmds, 1968/70, a que pertencia o "Paparratos", no romance, a "105ª CCmds", pp. 41 e ss, sendo o seu comandante  o capitão Dias Anjos]; 

(vi) [E, por fim, em primeiro plano, à direita,] este vosso camarigo, qual Ícaro renascido das cinzas, visto que num dos postes me confundiram com o Alferes [Mil Cav Op Esp, Joaquim João Palmeiro Mosca], que foi morto com os Majores;

(vii) [Fotógrafo, que obviamente não aparece na fotografia, o] 2º Comandante do BCaç da Logística [, BCaç 2845,], Major Guilhermino Nogueira da Rocha [, no "romance", o major Neves Rico, p. 106].

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(...) O Paparratos é uma divertimento sério, supera as situações caricatas e cómicas, na senda da literatura de humor, que se perde na noite dos tempos, comprova que muitas vezes o que se diz a rir é para reter em todo o horizonte da amargura, a sisudez pode ser troça e não é difícil provar que há muito Paparratos que serve de carne para canhão.

É o prazer da memória e, insiste-se, não se conhece um fresco tão vigoroso sobre o meio estudantil universitário daqueles longínquos anos 60. (...)



Guiné 61/74 - P21908: In Memoriam (396): João [Domingues da Rocha] Cupido (1936-2021), ex-cap mil art, CCAÇ 2753, "Os Barões do K3" (1970/72), e ex-presidemente da Câmara Municipal de Mira, aqui evocado pelo seu irmão, e também antigo combatente, Mário Cupido


Diário de Coimbra, 2 de fevereiro de 2021


1. Mensagem de Mário Cupido, irmão de João Cupido e, também ele, ex-combatente:

 
Date: segunda, 15/02/2021 à(s) 23:21
Subject: Óbito de João Domingues da Rocha Cupido 


Boa noite

Desculpe antes de mais a ousadia de o contactar sem o conhecer e ainda por cima nestas circunstâncias.

Chamo-me Mário Cupido e sou irmão do falecido  (*). Tive ontem acesso à "Tabanca Grande" através dum colega amigo da Murtosa que esteve convosco na Guiné e comigo numa União de Cooperativas Leiteiras com sede em Aveiro (Lacticoop). 

Também eu fui combatente no ultramar mas em Angola como comandante de pelotão num Batalhão de Cavalaria que escolhi na qualidade de voluntário para não cair no CPC como o meu irmão (o que lhe deu cabo da vida). 

Sendo o melhor classificado do curso de Operações Especiais de Lamego iria estar condenado a dar algumas recrutas para acabar de novo em Mafra. Assim à 2ª recruta optei por escolher o batalhão com um comandante tido como exigente (Duarte Silva,  da Cavalaria de Santarém) e que ia para Angola onde já tinha estado e deixado namorada (hoje minha mulher). 

Houve algum tempo em que o João estava na Guiné, eu em Angola e ainda outro irmão (que também ainda está vivo) no norte de Moçambique em simultâneo. Pobre mãe !.... 

O João só tinha um filho que é arquitecto no Porto e a mulher está acamada na Associação de Idosos de Mira onde eu integro a Direcção. Naturalmente tentei ajudar o meu sobrinho numa hora tão difícil e garantir o mínimo de dignidade das cerimónias em tempo tão complicado. Mas penso que conseguimos com a prestimosa colaboração das Instituições por onde ele tinha andado como a Câmara Municipal (a Bandeira Municipal esteve a meia haste), os Bombeiros Voluntários, Filarmónica, Grupo Coral e Caixa de Crédito. 

E ele deve estar contente depois de tanto ter sofrido com a incúria e desleixo que vão marcando este país que tão mal trata quem tão bem o serviu.

Agradeço o vosso empenho e atenção. Fico muito contente por saber que ainda há quem tem coragem de recordar e divulgar um tempo passado que não deve ser ignorado nem escondido. Parabéns e Obrigado. (**)

Para vosso conhecimento remeto publicação do óbito no Diário de Coimbra [, de 2 do corrente]. Fico por Mira ao vosso dispor.

2. Comentário do editor Luís Graça:

Caro Mário, caro camarada:

Fico-lhe muito grato pela sua mensagem, evocando a memória carinhosa do seu mano. Ao publicá-la, sem a sua expressa autorização, juntamente com o recorte que me mandou, espero ter interpretado bem a sua intenção. Mas em qualquer altura posso eliminra o poste, se o Mário o achar inconveniente ou inoportuno.
 
O Mário não só acrescenta algo mais sobre o João como também acaba por nos contar, em termos breves, a odisseia da família Cupido, transformando-a nós numa pequena homenagem à vossa família que chegou a ter  três filhos, ao mesmo tempo, em três teatros de operações diferentes da guerra do ultramar/guerra colonial. Os nossos filhos e netos devem poder conhecer esse período da nossa história.

Tudo o que temos feito para manter viva a memória dos nossos camaradas que passaram pelo TO da Guiné (, sem esquecer Angola, Moçambique,Índia,Timor..), entre 1961 e 1974, ainda vivos ou que já tinha morrido, não é muito. De facto, temos, a nossa geração, "o direito e o dever de memória"... E o nosso blogue é isso, a partilha de memórias, sem juizos de valor e sem a contaminação, tanto quanto possível, da atualidade política dos nossos países (Portugal, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, etc.).

Transmita, por favor, ao resto da família o sentimento de pesar pela perda de mais um camarada da Guiné, cuja memória eu gostaria que perdurasse no nosso blogue. E nessa medida eu ia pedir, a si ou ao seu sobrinho, para nos mandar, digitalizadas, algumas fotos do álbum da Guiné do nosso capitão João Cupido. Não tive o prazer de o conhecer pessoalmente, embora contemporâneos na Guiné (eu, em 1969/71, ele em 1970/72) mas basta-me a justa evocação que dele faz o meu camarada, membro da Tabanca Grande, o "barão do K3" José Carvalho.

Dou conhecimento deste mail aos três "barões do K3" que nos honram, com a sua presença, no blogue da Tabanca Grande: além do José Carvalho, o Vitor Junqueira e o Francisco Godinho

Um alfabravo (ABraço) fraterno, Luís Graça 

PS - Tenho em Mira parentes, longínquos, os Maçaricos, que terão saído daqui, de Ribamar, Lourinhã, no séc. XIX. E o engº Domingos Maçarico, vosso conterrâneo, também é membro da nossa Tabanca Grande. Esteve na Guiné em 1967, tendo sido aí gravemente ferido e evacuado para Lisboa.

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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"


Guiné > Região do Oio > K3 > 1973 > O José João Domingos: paragem da coluna para Farim

Foto (e legenda): © José João Domingos  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


22 - AS COLUNAS PARA FARIM E GUIDAJE

A partir de outubro passamos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com passagem em Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia independente de açorianos (ou madeirenses) que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada.

Em novembro ou dezembro, uma das colunas estendeu-se a Guidaje. Lá fomos andando, um bocado receosos, porque uns meses antes tinha sido um fim do mundo naquela zona. Até Binta tudo correu bem mas, a partir daí, as coisas complicaram-se porque o comandante do esquadrão das Panhard, com justa prudência, exigia um carro rebenta minas com um rodado semelhante ao daqueles veículos. O rodado da Berliet que desempenhava tal função não cobria o rasto daqueles carros. Vai não vai, anda não anda, e lá foi um Unimog a desempenhar a função.

Pelo caminho, metia respeito observar os sinais dos combates ocorridos em maio de 1973, quando ainda estávamos na Metrópole, com várias viaturas militares consumidas pelo fogo, perto da picada. Mas, enfim, lá chegámos a Guidaje sem contratempos.

Enquanto nos instalavamos fomo-nos apercebendo do estado psicológico de grande desânimo em que se encontravam os camaradas ali colocados, apesar de seis meses passados sobre a ocorrência. Mostraram-nos um dos abrigos onde teriam morrido vários camaradas, as valas onde também morreu gente e, mais impressionante, as campas de algumas das vítimas das flagelações e combates que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram.

Estivemos até tarde à conversa, ouvindo camaradas a contar as situações horríveis por si vividas, contadas de forma dorida, não para impressionar periquitos, antes buscando uma palavra de ânimo e solidariedade de outros que, mais novitos e não tendo passado por situação semelhante, estavam ainda com alguma força psíquica para os animar.

De manhã cedo, o regresso, que tardou porque quem tinha a incumbência de fazer a segurança não estava para isso. Conversa e mais conversa, lá chegaram a um consenso, mas fiquei com a impressão de que segurança não houve, apenas sorte, mais uma vez.



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23 - OS ENGRAXADORES

Nas deslocações a Bissau tinha por hábito frequentar o café do Bento, 5.ª Rep, embora também fosse, por vezes, ao Império e à Ronda.

Mal o cliente se sentava na esplanada apareciam miúdos guineenses a oferecer os seus préstimos, de engraxador de sapatos ou de fornecedor de mancarra.

No caso dos engraxadores, se o cliente estava recetivo, acordava-se o preço, conforme fossem sapatos ou botas o calçado a engraxar. Se o cliente não queria o serviço o garoto mantinha-se perto dos sapatos, normalmente com bastante pó, e, como quem não quer a coisa, ia passando a escova num dos sapatos e insistindo na prestação do serviço que o eventual cliente ia rejeitando. Porém, quando este olhava para os pés verificava que um dos sapatos estava bastante mais limpo que o outro e acabava muitas vezes por contratar a engraxadela.

Um exemplo concreto de que a necessidade aguça o engenho.


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24 - AS OSTRAS DE BISSAU

Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21906: In Memoriam (395): O Marcelino da Mata (1940-2021) que eu conheci, em Teixeira Pinto, em finais de 1972, e depois em Cufar, no Natal de 1973, e fui reencontrar na Tabanca da Linha (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)


Foto nº 1

Tabanca da Linha > Cascais, Alcabideche, Cabreiro > Adega Camponesa > 17 de outubro de 2013 > O António de Abreu a ler, ao Marcelino da Mata, a entrada do seu "Diário da Guiné", relativa a Cufar, 26 de dezembro de 1973 (. reproduzida abaixo).



Foto nº 2

Tabanca da Linha > Cascais > Guincho > Restaurante Oitavos > 17 de julho de 2014  > Da esquerda para a direita, Mário Fitas, Marcelino da Mata e António Graça de Abreu.

Fotos (e legendas): ©  Manuel Resende (2021).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de hoje, às 18h00,  de António Graça de Abreu, ex-alf mil,  CAOP 1,Teixeira PintoMansoa e Cufar (1972/74). 

Conheci Marcelino da Mata (aqui na foto nº 2,  de chapéu com os ex-combatentes Mário Fitas e eu, em 2014) na Guiné, em operações na Caboiana, em finais de 1972, e no Cantanhez, na acção Estrela Telúrica, no Natal de 1973.

Nesta última, no sul da Guiné, vi-o chegar à pista de Cufar, nos hélis que foram buscar os comandos ao mato, após dois dias de combates e destruição, exausto, enlameado, coberto de suor e sangue. Com os seus comandos africanos Marcelino da Mata, a quem o PAICG tinha morto o pai e uma irmã, era um militar impressionante, terror dos guerrilheiros, era uma excepcional máquina de guerra.

Reencontrei-o nos almoços dos antigos militares da ex-Guiné que engrossaram a Tabanca da Linha, em Cascais e no Guincho. Vai outra foto com ele, eu a ler-lhe a passagem de Cufar, 26/12/1973,  do meu livro "Diário da Guiné", que lhe ofereci [, e que se reproduz abaixo].

Marcelino da Mata era, aos setenta e muitos anos, um homem afável, sereno, comedido, orgulhoso de ser português. Hoje, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, esteve no seu funeral. (*)

Que descanse em paz. (**)


2. Excerto do Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura, de António Graça de Abreu (Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2007, pp. 175/176)


Excerto  das pp. 175/176 (com a devida vénia...)

 
Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente, presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressamos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca Vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38º fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade.

Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros...

No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os hélis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato.

Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um héli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação este tipo de operações era impossível. Durante estes dias, os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. E impressionante o potencial de fogo de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí, as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
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Nota do autor:

Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, coord., "Os Últimos Guerreiros do Império", Editora Erasmos, Amadora, 1995, pp. 195-213.

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21888: In Memoriam (393): Marcelino da Mata (1940 -2021), ingloriamente morto por tiro traiçoeiro da Covid-19 (Ramiro Jesus, ex-fur mil 'comando', 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73; Manuel Resende, régulo de A Magnífica Tabanca da Linha)

Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.


4 - A VACA

Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.

Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.

Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.

Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.

Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!

Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.

Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.

Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.

Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.

No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.

Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.

Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.

Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)