quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23275: (In)citações (206): Maria Ivone Reis (1929-2022), a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci, em 1967, no Porto (Rosa Serra)

A então ten enf pqdt Ivone Reis,
em Cacine, 12/12/1968.
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



1. A Maria Ivone Reis (1929-2022) deixou-nos, há dias, aos 93 anos (*). 

Era a decana das 46 enfermeiras paraquedistas 
que passaram pelos palcos da guerra do ultramar / guerra colonial, tendo feito parte do 1.º curso de enfermeiras paraquedistas, realizado em Tancos, no BCP, em maio, junho, julho e agosto de 1961, 
o curso das célebres Seis Marias que eram,
 além dela, a Maria Zulmira André Pereira (1932-2010); a Maria Arminda Pereira (n. 1937); a Maria de Lourdes (mais conhecida por "Lourdinhas"); a Maria do Céu (Policarpo); e a Maria da Nazaré (falecida em 9/5/1984). Do grupo inicial de onze voluntárias, só terminaram o 1.º curso, com sucesso, estas seis Marias.

A nossa camarada e amiga Maria Arminda (Santos pelo casamento) passa agora a ser a veterana deste grupo de mulheres excecionais, cuja história de vida deveria ser melhor conhecida de todos nós, portugueses. De qualquer modo, já temos sobre elas (e feito por elas), o livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, coordenado pela Rosa Serra (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp.).


No nosso blogue temos, além disso, mais de 130 referências com o descritor "enfermeiras pára-quedistas". E uma série específica, intitulada "As nossas queridas enfermeiras paraquedistas" de que se publicaram até à data 33 postes (**).

Por sugestão do Miguel Pessoa, que é casado com outra querida amiga e camarada nossa, a Giselda (Antunes, apelido de solteira), decidi republicar este depoimento da Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão  sobre a Ivone Reis que ela conheceu no Porto, em 1967,  quando andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP.

A Rosa é muito mais nova, fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968, e graduada em alferes enfermeira paraquedista. Passou à disponibilidade em 1 de março de 1974 e tem sido, com a Maria Arminda e a Giselda,  uma das mais mais ativas e profícuas autoras de textos sobre a história das enfermeiras paraquedistas e as suas protogonistas. 

Este depoimento (poste P5971) é um bom retrato do perfil humano e psicoprofissional da nossa saudosa Maria Ivone Reis. Aproveitamos, entretanto,  para suprir um lamentável lapso nosso: o seu nome já há muito, desde 2009, deveria figurar na lista alfabatética dos membros da Tabanca Grande. E estávamos convencidos que sim, que lá figurava. Entra agora, a título póstumo, sob o nº 862.  Saibamos honrar a sua memória.


 A Ivone  Reis, a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci

por Rosa Serra


Nós, aqueles que a conheceram e que com ela conviveram em diferentes períodos da sua vida, por diversas razões, não a esquecem e no meu caso pessoal tenho bem presente quem foi a Ivone, como sempre a vi e o que eu aprendi com ela.

A Enfermeira Ivone pertence ao grupo das 6 Marias, nome pelo qual ficou conhecido o 1.º curso de Enfermeiras Pára-quedistas portuguesas feito em 1961.

Foi ela que contactou as futuras candidatas, residentes na Cidade do Porto, que em 1967 tinham pedido por escrito à Força Aérea informações sobre cursos para Enfermeiras Pára-quedistas. Foi a Enfermeira Ivone a primeira a deslocar-se ao Porto para conhecer as 4 interessadas na candidatura ao curso, onde eu estava incluída.

Mais tarde, eu, já Enfermeira com boina verde na cabeça, estive em várias comissões com ela. Fazíamos uma grande diferença de idade; eu muito novinha, a Ivone uma senhora cheia de sabedoria e experiência. Logo percebi tratar-se de uma pessoa de princípios e moral muito vincados, nem sempre de fácil contacto, porque o seu grau de exigência era muito elevado, não só para quem estava à sua volta, mas para com ela mesmo.

Não se lamentava do seu cansaço nem de quem a magoasse com qualquer atitude menos simpática; mas também não se inibia de chamar a atenção sobre tudo o que eu ou outra enfermeira qualquer pudéssemos fazer e que ela considerasse pouco correcto, ou até mesmo deselegante.

Fazia gosto e não se poupava a esforços para que todas nós fossemos um exemplo de profissionalismo impecável, cumpridoras de normas militares sem deslizes, posturas e atitudes que se destacassem, de forma a sermos admiradas como grupo.

No meu caso pessoal percepcionei logo na primeira comissão que fiz com ela, a sua forma de estar e o seu rigor no desempenho da sua actividade como enfermeira em ambiente masculino e de guerra.

Várias vezes ela me chamou atenção por pequenas rebeldias insignificantes e atitudes que eu tomava, como entrar no helicóptero para ir fazer uma evacuação com o casaco de camuflado pendurado num ombro, de bolsa de enfermagem no outro e de t-shirt branca; era sabido que quando regressasse logo me dizia do perigo em usar a t-shirt em pleno mato pois tornava-me um alvo bem visível, além do aspecto pouco alinhado no uso do uniforme militar a bordo de uma aeronave.

Eu dizia-lhe para ela não se preocupar, porque eu era um alvo que não interessava a ninguém; e, quanto ao desalinho do casaco pendurado no ombro, um dia respondi-lhe que só o fazia porque tinha calor, não pelo clima da Guiné, que até era “fresquinho”, mas se calhar por estar a entrar em “menopausa” e ela esboçou um sorriso e respondeu-me:

− A menina gosta muito de brincar.

Eu nunca levava a mal o que ela me dizia, apesar de eu ser mesmo uma periquita ao lado dela; sempre soube apreciar as suas qualidades profissionais sobretudo em termos de organização e de uma verticalidade e sentido de dever pouco comuns, mesmo nessa altura.

Mais tarde, em Angola, as enfermeiras colocadas em Luanda viviam num apartamento de um edifício da Força Aérea, destinado a alojar militares e suas famílias. O ambiente era bem mais calmo que o da Guiné, o que nos permitia termos fins-de-semana, irmos à praia, convivermos mais tranquilamente com a comunidade civil ou com famílias de militares.

A Enfermeira Ivone sempre alinhou comigo nas horas de lazer, tal como respeitava se eu não a convidasse para ir comigo quando eu saía com um grupo de amigos ou familiares meus que lá se encontravam na época.

Em Angola eu estava colocada no BCP 21 e ela na Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea. Normalmente eu ia para o Batalhão com farda n.º 2 (saia, camisa e eventualmente blusão) e, claro, boina verde na cabeça. Um dia resolvi colocar num dedo um anel com uma pedra grande verde, que dava um bocado nas vistas; quando ela me viu sair com semelhante adereço, fardada, olhou para o dedo e com ar de espanto diz-me:

−  A Rosa esqueceu-se que está fardada? 

Eu respondi não e acrescentei:

−  Não me diga que não é giro… condiz mesmo bem com o verde da boina. − E  ia mostrando o dedo e dizendo: 
− É lindo, até devia estar orgulhosa de uma Enfermeira Pára-quedista estar assim tão gira.

Ela respondeu-me:

−  Nem por isso −  e virou-me as costas. Acredito que se foi rir às escondidas.

Mais tarde comentámos uma série de peripécias deste género que se passaram connosco e fartámo-nos de rir, e com aquele jeito típico dela, depois destas lembranças e passados tantos anos, acabava por dizer:

−  A menina era muito brincalhona, nunca consegui zangar-me consigo.

Estou a contar estes episódios porque sempre percebi que, por trás daquele ar rigoroso dela, estava uma mulher mais tolerante do que parecia, com uma capacidade de organização espantosa, uma noção de ética muito apurada, muito trabalhadora; e nunca a vi fazer uma crítica desagradável ou fofoqueira de ninguém e nem gostava que as pessoas que a rodeavam o fizessem.

Ao longo de todos estes anos mantive sempre contacto com ela, o que me permitiu tomar conhecimento de um espólio fantástico que ela foi recolhendo dos sítios por onde passou e organizando ao longo dos anos, tendo em vista a divulgação da história das Enfermeiras Pára-quedistas de quem ela tanto se orgulhava e que sempre se preocupou em não deixar cair no esquecimento. Foi sempre um bom exemplo para mim.

Rosa Serra

[Seleção / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(**) Vd. a lista completa dos postes da série;

11 de janeiro de  2015 > Guiné 63774 - P14140: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (33): A minha homenagem a essas grandes mulheres Portuguesas (Abel Santos)

6 de janeiro de 2015 > Guiné 63774 - P14123: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (32): A morte da camarada Enfermeira Paraquedista Celeste Costa (Giselda Pessoa)

12 de dezembro de 2012 > Guiné 63774 - P10791: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (31): "É a Céu!", diz a Rosa Serra... Quanto ao resto, "tudo foi possível naquelas terras de África"...

9 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9168: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (30): Cerimónia de homenagem e comemoração dos 50 anos de incorporação das primeiras Enfermeiras Paraquedistas na Força Aérea Portuguesa (Miguel Pessoa)


3 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8990: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (27): Missão à Índia (II parte) (Maria Arminda)

1 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8976: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (26): Missão à Índia (I parte) (Maria Arminda)



28 de setembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7046: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (22): O Largo do liceu, em Bissau, onde moravam as enfermeiras pára-quedistas (Miguel Pessoa)


31 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6505: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (16): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (3): Maria Zulmira (Rosa Serra)


29 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

27 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6478: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (13): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (1): As 11 candidatas (Rosa Serra)


20 de setembro de  2009 > Guiné 63/74 - P4979: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (11): Fartote de hortaliças (Giselda Pessoa)

11 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4318: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (10): Ivone Reis, Anjo da Guarda na Guiné, Angola e Moçambique (António Brandão)

7 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa)

14 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4181: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (8): A dar ao Ambu (Giselda Pessoa)

14 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P4029: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (6): O anjo da guarda do Zé de Guidaje (Giselda Pessoa)

8 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3999: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (5): Justamente recordadas no Dia Internacional da Mulher

7 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3994: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (4): Uma civil, e transmontana de Sabrosa, na tropa (Giselda Pessoa)

(***) Último poste da série > 18 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

(****) Vd. postes de:


13 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)

Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Maio de 2022:

O Zamith Passos, de há cinquenta e dois anos é um homem e um amigo que eu estimo e considero especialmente. Ele como furriel e eu como alferes, comandámos o 2.º pelotão da CCaç 2616, o melhor que pudemos, conjugando as experiências e conhecimentos de um e do outro.
Depois de anos sem contactos pela turbulência da vida, há alguns anos que nos reencontramos como velhos amigos e camaradas para lembrar as longas caminhadas pelo Chinconhe, pela Bolanha dos Passarinhos, outros locais arborizados, quentes e húmidos, pelo bar de sargentos e oficiais e outros locais que nunca esqueceremos.

Ele tem sido o organizador, nos últimos anos, dos almoços da Companhia. Convocou mais um que se realizou no passado dia 7 de Maio, na esplanada de um restaurante em Lisboa, na Zona da Expo/98, com boas vistas sobre o rio Tejo. O anterior, em que não pude estar presente, foi antes da pandemia em 2019 e estiveram presentes mais de cinquenta pessoas, entre ex-militares e familiares. Este ano havia somente 30 comensais, alguns foram morrendo, como o Paulo Fragoso, vítima de covid (meu grande amigo. Trocamos muitas mensagens e telefonemas), outros estão adoentados, outros menos sociáveis e mais recolhidos pelos três anos deprimidos, em que temos vivido.

Entre os camaradas, esteve também o General Pezarat Correia, distinto militar do 25 de Abril, do Conselho de Revolução, com obras relevantes editadas, de índole histórico e político-militar, doutorado pela Universidade de Coimbra, convidado por ter sido o Major de Operações do Batalhão 2898, a que pertencia a nossa companhia.
Gostei de me ter distinguido com um grande abraço, quando, através do Zamith Passos me identificou, não por feitos militares, mas por ter lido um artigo do livro "Cartas de Amor e de Dor" da escritora Marta Martins Silva, que ele prefaciou em que me dá um elogio tão grande, que eu só consigo justificar pela amizade e camaradagem pelos militares que comandou.

Buba > Eu e o Zamith Passos
Um abraço entre camaradas
Aspectos do convívio


Prefácio de Pedro Pezarat Correia no livro “Cartas de Amor e de Dor”, de Marta Martins da Silva; pp 17 e 18:

É nas cartas de alguns graduados, oficiais e sargentos milicianos, como Lobo Antunes, Francisco Baptista, Beja Santos, Graça de Abreu, Bação Leal, que aquela tomada de consciência é mais expressiva. A correspondência de Bação Leal tornou-se icónica: “Estou farto deste carnaval de cadáveres […] a única porta é o suicídio”. Não se suicidou, mas viria a morrer em operações em Moçambique. Francisco Baptista, quando em Março de 1970 embarcou para a Guiné, ia já “plenamente convencido da inutilidade dessa guerra”[2] António Graça de Abreu faz uma premonição reveladora de uma consciência avançada: “Aí em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra”. O contributo da luta dos movimentos de libertação para o que viria a ser o 25 de Abril, que ainda não está suficientemente estudado, é incontroverso.

[2] - Francisco Baptista, alferes miliciano, foi integrar a CCAÇ 2616 em Buba, que pertencia ao meu Batalhão, o BCAÇ 2892 com sede em Aldeia Formosa, no qual eu era oficial de operações, onde substituiu um alferes morto em operações, o que me permite confirmar inteiramente as situações que ele relata.

Agosto de 2021
Pedro de Pezarat Correia


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Os mortos sozinhos na capela (quem rezava por eles?)

Francisco Baptista embarcou para a Guiné a sentir-se "politicamente derrotado pois estava plenamente convencido da inutilidade dessa guerra", pelo que os dois anos de comissão foram-lhe muito penosos. "Antes da minha partida, tinha bem a noção das mortes que ocorriam nas três frentes da guerra, pois, pouco tempo antes, tinha estado durante três meses no Quartel-General de Lisboa, para onde eram comunicados diariamente os mortos. Os mortos da Guiné, um, dois, três, por dia - por vezes mais -, eram sempre em maior número. Tendo em conta o número de mortos, fiz um cálculo e, segundo as leis da probabilidade, achei que teria mais hipótese de regressar com vida do que o seu contrário, mas com cálculos ou sem eles os transmontanos que eu conheci não fugiam à guerra, pelo contrário; os rapazes que tinham emigrado, a salto, para a Europa, vinham todos à inspecção militar e a "dar a tropa", conforme expressão deles, muitas vezes já casados e com um grande prejuízo financeiro", começa por dizer Francisco Baptista.

As probabilidades estiveram efectivamente do lado de Francisco, que partiu para a Guiné no dia 19 de Março de 1970, no navio Alfredo da Silva, integrado na Companhia de Caçadores 2616 do Batalhão de Caçadores 2892. Ele voltou com vida, mas nem todos tiveram essa sorte. "Os momentos mais difíceis para mim, como para os outros, eram a morte de camaradas. Foi difícil, ainda dói, a morte do Albano, tão bom camarada, a morte do furriel Ferreira, éramos amigos, a morte de dois soldados milícias africanos, ao meu lado, sendo eu o responsável por essa força de combate", partilha.

Era impossível não sentir, mesmo quando - e foi o caso de Francisco - se nasceu nuyma aldeia do interior, "com costumes ancestrais onde a morte era tão natural como a vida". "Lembro-me de ir desde criança, ainda antes mesmo da idade escolar, aos funerais dos meus primos aina meninos, muitas vezes a ajudar a levar as urnas para o cemitério. Com dez anos assisti à morte do homem que mais amei, o meu avô paterno, lembro-me de tudo, da da minha mãe e das outras mulheres à volta da cama dele, da minha avó paterna a rezer orações antigas, que só ela conhecia, da respiração ofegante dele e do estertor da morte. O meu avô, o meu grande amigo, quis-me dizer como morre um homem, para eu saber enfrentar a morte com coragem. Na minha memória afetiva guardo esse dia com saudade mas sem mágoa, e com a mesma naturalidade como outros dias que passei com ele a regar a horta, ou à noite, nos serões da lareira". Mas na guerra a morte não era tão natural.


Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pág. 262

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O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado. Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.

Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir. Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros acidentes noutros quartéis.

Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na Guiné.

Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o tipo de acidentes.

O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas. Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da miséria e da grandeza dos seus semelhantes.

Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem a crescer.

Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais, em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos outros não estava a ser correcto em relação o Albano.

Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à "venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom homem e um lavrador dos melhores.

Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão (dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.

Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias, primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.

Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os mortos.

As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé. Como dizia o poeta Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e que no final o entrega e recomenda aos deuses.

Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.


(Francisco Baptista, texto publicado a 21 de março de 2014 no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pp. 263 e 264

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Com textos meus, editados no Blogue do Luís Graça e com outros textos, editei um livro que tem este e muitos outros textos, sobre a minha vida na Guiné e em Brunhoso, uma aldeia pobre de Trás-os-Montes, onde nasci e me criaram.

No próximo dia 19, irei com alguns camaradas do Porto, ao almoço da Tabanca da Linha, que tendo como Régulo, o camarada Manuel Resende, cada vez ganha mais fama pelos bebidas e cozinhados que revigoram o corpo, aquecem a alma e ajudam a criar um alegre convívio, que todos os ex-combatentes da Guiné apreciam.

Tal como eu dois outros camaradas levaremos livros , eu já li os três e gostei muito, experiências diferentes, estilos diferentes, mas todos interessantes.

Abraço
Francisco Baptista


Eis as capas dos livros:
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P23273: Historiografia da presença portuguesa em África (317): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fica provado que estes Anais do Conselho Ultramarino ajudam a provar e comprovar o que era a Senegâmbia Portuguesa neste período do século XIX: aquisições de território, a precariedade da vida nas praças e presídios, uma colónia sem fronteiras e com tensões permanentes. Leia-se com atenção o que escreve o capitão Ventura ao Visconde de Sá da Bandeira em 1857 e confirme-se o que era a vida em sobressalto, as benesses dos arrematantes das alfândegas que por sua vez pagavam ao Exército, o estado deplorável de quase tudo, e a imagem de uma Guiné potencialmente fértil mas muito esquecida pela governo de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial.

E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê? Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não-oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial.

Deixamos para este último trabalho referência a dois documentos, o primeiro tem a ver com a Ilha das Galinhas e o seu possuidor, tem a data de 1830, o segundo é assinado por José Ventura, Capitão do Exército, é dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira, ministro da Marinha e Ultramar e a sua data é 1857. O primeiro documento esclarece as condições ajustadas entre o rei de Canhabaque, Damião, e Joaquim António de Matos, pelas quais este último toma conta da referida ilha (posteriormente, Joaquim António de Matos ofereceu a Ilha das Galinhas à Coroa. A Ilha das Galinhas é cedida em junho de 1828, no mês seguinte Matos mandou construir uma propriedade de casas. O rei Damião, como doador, ficou obrigado a fazer saber a todos os reis de Canhabaque e das diferentes ilhas dos Bijagós que dera a referida ilha a Matos.

E seguem-se aspetos curiosos que merecem registo. “No caso de ataque de qualquer gentio vizinho, será obrigado (como fica desde já) o dito rei Damião a repeli-lo com os seus soldados e vassalos, auxiliando o novo possuidor por toda a maneira a que não seja invadido, obrigando-se Joaquim António de Matos a fornece-lo de bala e pólvora a defender, no caso de desinteligência, o que Deus não há de permitir. Obriga-se mais o dito rei Damião a não consentir que estrangeiro algum possa em qualquer ponto da dita ilha fazer casa e estabelecer-se, e a repelir por meio de força qualquer tentativa para esse fim; declara-se que são ingleses, franceses e espanhóis os estrangeiros. Sendo de costume, no tempo de inverno, passarem alguns gentios de outras ilhas à dita ilha para lavrarem terrenos, e montear elefantes, de ora em diante o farão com permissão do novo possuidor; havendo, como há, muitos elefantes na ilha, os dentes dos que se matarem, metade fica pertencendo ao rei Damião e a outra metade a um novo possuidor; o novo possuidor, depois de obter a licença de Sua Majestade, obriga-se a mandar construir uma capela e ter um padre zeloso no serviço de Deus e d’El Rei”. Lavrou-se esta declaração que aparece assinada pelo tabelião José Francisco da Serra, assina o rei Damião e juntam-se o nome de várias testemunhas. Dado em Bissau em 9 de março de 1930.

Décadas depois, o Capitão Ventura dirige-se ao Visconde de Sá da Bandeira: “Tendo servido na Guiné Portuguesa por espaço de quatro anos e meio, sendo Governador de Cacheu e Comandante do Destacamento de Artilharia de Primeira Linha em Bissau, tenho a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência alguns esclarecimentos acerca daquelas nossas possessões, por saber o quanto Vossa Excelência se interessa no aumento e prosperidade das colónias do Ultramar”. Reconheça-se que o Capitão Ventura é pragmático e não faz redondilhas, a saber: em Cacheu é importante a substituição da paliçada por muro de pedra e cal; o quartel do destacamento, estava coberto de palha deve ser telhado para maior solidez e conservação; é telegramático a explicar a economia de Cacheu: o seu maior e principal comércio consiste em arroz, cera e couros, que os negociantes vendem aos ingleses, franceses e norte-americanos, em troca de outras fazendas, tais como tabaco, pólvora, aguardente e outros; no distrito de Cacheu a abundância de boas madeiras para a construção de navios; em Bissau acha-se em péssimo estado o cais do desembarque, e a casa de alfândega ainda não foi edificada; retoma uma matéria que outros iam enfatizando quanto ao funcionamento da alfândega: o sistema de serem arrematados os rendimentos das alfândegas da Guiné tem produzido desfalque para os interesses da Fazenda e bastantes lucros aos arrematantes, seria da maior conveniência para o Governo que as ditas alfândegas fossem administradas por conta do Estado; no rio Grande de Bolola, dado o facto de haver muitas feitorias, conviria que se estabelecesse um posto fiscal; tinha sido decretado aumento de vencimento para a tropa que serve na Guiné só que a medida não fora posta em execução; as igrejas de Bissau, Geba, Cacheu, Farim e Ziguinchor tinham párocos, mas os padres das igrejas de Farim e Ziguinchor achavam-se em Cacheu devido às reparações nas respetivas igrejas, convinha que se concluíssem os reparos necessários para não privar aqueles povos do culto divino.

E muito curioso é o final da exposição do Capitão Ventura, vale a pena reproduzi-lo na íntegra:
“O clima de Guiné é mau, e muito principalmente no tempo das águas, que é de maio a novembro. Os europeus que para ali vão servir sofrem bastante na sua saúde, e quase sempre ficam padecendo do baço, fígado e outras moléstias interiores, sendo eu também um dos que muito padeci; contudo, tendo bastante regularidade de vida, abstendo-se da cacimba que tanto mal causa de noite, e do ardente sol, quanto as circunstâncias o permitirem, isto logo no começo da sua residência naquele clima, porque passado certo espaço de tempo, se adquira estar, por assim dizer, aclimatado, julgo que se pode existir sem grande receio, procurando fugir na prática de quaisquer excessos sempre ruinosos.
É o que posso informar por alguns conhecimentos que ali adquiri dos costumes daqueles povos e das suas necessidades, sentido não poder fazer igual informação pelo que respeita a algumas das ilhas do arquipélago pela pouca residência que nelas tive, o que melhor poderão fazer indivíduos que ali tenham residido e permanecido por mais tempo”
.

É patente que o investigador e o curioso não perdem tempo em folhear demoradamente estes Anais do Conselho Ultramarino.

Guiné Portuguesa, mapa do século XIX, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Bissau, José Luís de Braun, 1780, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Rio Grande de Bissau, Planta da foz, desde a ponta de Bambe até à ponta de Balantas, com o ilhéu dos Pássaros, ilha de Bissau e Ilhéu do Rei, José Luís de Braun, 1778, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23272: Parabéns a você (2067): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23268: Parabéns a você (2066): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Nova Lamego, Geba, Madina do Boé, Beli e Bolama, 1963/65)

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23271: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (24): Cacheu, restos que o império teceu... - Parte I


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Uma das 16 peças de artilharia que defendiam a entrada do rio Cacheu.

"Os trabalhos de recuperação do antigo forte colonial foram desenvolvidos de Janeiro a Março de 2004, com recursos da ordem de cem mil Euros, disponibilizados pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA). Visando assegurar a sua utilização como área de lazer e cultura, além de promoção do turismo, foram promovidas a reurbanização de seu interior, onde foram instalados diversos equipamentos de lazer e recolocadas as estátuas dos navegadores portugueses Gonçalves Zarco e Nuno Tristão, os primeiros europeus a atingir as costas da Guiné, no século XV. Nas antigas edificações de serviço foram instaladas uma biblioteca e salas de convívio." (Fonte: Wikipedia)


Fpto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > "O forte, de pequenas dimensões, apresenta planta na forma de um rectângulo, com 26 metros de comprimento por 24 metros de largura, com pequenos baluartes nos vértices. As muralhas, em pedra argamassada, apresentam cerca de quatro metros de altura por um de espessura. Encontrava-se artilhado com dezasseis peças. O Portão de Armas, com mais de um metro e meio de largura, é o seu único acesso." (Fonte: Wikipedia)


Foto nº 2 > Guiné -Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI)    > Hoje funciona como depósito de alguma estatuária colonial... como é o do que resta da estátua, em bronze, do governador Honório Barreto... Veio de Bissau, ficava justamente no centro da Praça Honório Barreto, perto do Hotel Portugal, hoje Praça Che Guevara.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Restos da estátua de Teixeira Pinto, o "capitão-diabo" ...Estátua, em bronze, da autoria do professor de Belas Artes, o escultor Euclides Vaz (1916-1991), ilhavense. Encontrava-se no  Alto do Crim, antigo parque municipal, onde agora está a Assembeleia Nacional. (*)

 

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) >   O que resta da estátu, também em bronde, do Nuno Tristão:  erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446), a estátua ficava no final na Av da República, hoje, Av Amílcar Cabral... Esta artéria, a principal avenida de Bissau no nosso tempo, vinha da Praça do Império ao Cais do Pidjiguiti, tendo no final a estátua de Nuno Tristão; no sentido ascendente, ou seja, do Pidjiguiti para a Praça do Império, tinha à esquerda a Casa Gouveia, por detrás da estátua, e mais à frente, à direita, a Catedral.


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) >  Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau,  frente à ponte cais de Bissau...


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial do Estado Novo, o pedestal na ponte cais de Bissau (agora vazio) da estátua do Diogo Gomes ainda lá estava em há meia dúzia de anos, tal como a inscrição, um exerto do canto VII dos Lusíadas, "Mais mundo houvera"... 

O pedestal é obra do Gabinette de Urbanização do Ultramar (GUU). A estátua, entretanto removida em 1975 para o forte do Cacheu, deve ser da autoria do escultor Joaquim Correia, autor de monumento análogo que ainda hoje está de pé na cidade da Praia, Cabo Verde. 

Esta e outras estátuas (Honório Barreto, Nuno Tristão, Teixeira Pinto) faziam parte de "um escrupuloso programa de 'aformoseamento' do espaço público", integrado nas comemorações do 5º centenário do desembarque de Nuno Tristão. na altura do governo de Sarmento Rodrigues (1945-48). 

No entanto, a colocação das estátuas destas figuras históricas da colonização só será efetuada na segunda metade da década de 1950 [Vd. Ana Vaz Milheiro - 2011, Guiné-Bissau. Lisboa, Círculo de Ideias, 2012. (Coleção Viagens, 5), pp. 32-33].

Obrigado ao Patrício Ribeiro, o "nosso último africanista" que resiste, desde 1984, à usura (física e mental)  do tempo, da história, dos trópicos, no país, a Guiné-Bissau, que ele escolheu para viver e trabalhar,  e que se lembra, de vez em quando,  de nós e realimenta as nossas "geografias emocionais"  do tempo de soldadinhos de chumbo do Império... 

As fotos acabaram de chegar, ainda estão frescas, mas há mais para uma segunda parte. (***). O Patrício diz-me,  sempre dsicreto e  lacónico, que "sim, todas a fotos, foram tiradas no domingo passado, em Cacheu onde estive a trabalhar. Umas são  sobre o porto do Cacheu e outras sobre a "fortaleza do Cacheu". 

Eu que não sou especialista em arquitetura, muito menos militar e colonial, confesso que são sei distinguir um forte, uma fortaleza e um fortim...Com cerca de  624 metros quadrados de área total, e muros "altos de 4 metros", aquilo parece-me mais um "castelo de areia" do meu tempo de praia, quando eu era menino e moço e construía "castelos de areia"... Mas, enfim, lá cumpriu a sua missão, mal ou bem, não podendo nós, todavia, esquecer que o seu passado "esclavagista"  como tantos outros pontos da costa africana ocidental... 

PS - Patrício, fico feliz por teres trabalho (tu e os teus "balantas"), mas preocupado por teres de trabalhar ao domingo, como, de resto, muito boa gente... Em primeiro lugar, também precisas de descansar. Por outro, não respeitando o Dia do Senhor, ainda corres o risco de seres transformado, como o ferreiro, em "dari" (o nome afetuoso que os guineenses chamam ao nosso "primo" chimpanzé). Nestas coisas, é bom estar com Deus, Alá e os bons irãs...

2. Faça-se a devida pedagogia destas fotos, para os iconoclastas de todo o mundo, e de todos os quadrantes político-ideológicos, mas também para os nossos "saudosistas do Império", leitores do nosso blogue...  Aproveito para citar um comentário do nosso querido amigo Carlos Silva (a quem desejamos rápidas melhoras), e que é um dos nossos camaradas que melhor conhece (e ama) a terra e a gente da Guiné-Bisssau (****):

(...) "A estátua de Teixeira Pinto estava situada no Alto de Crim, onde actualmente está situada a Assembleia Nacional.

O monumento com o busto de Teixeira Pinto creio que situava-se na baixa de Bissau, próximo da catedral e foi inaugurado em 1929 pelo Governador Cor Leite de Magalhães. (...)
 
Quanto às estátuas que refere o Armando Tavares da Silva, presentemente estão as 3 dentro da Fortaleza do Cacheu. Pelo menos estavam em Abril de 2019, mas antes estiveram fora da fortaleza, mas próximo da mesma,  das quais tenho fotos dos anos 90 e de 2001 e de outros anos.

Falei com vários altos dirigentes, incluindo com o falecido Presidente Interino Manuel Serifo Nhamadjo sobre este tema e todos concordam que as estátuas fazem parte da História do país, mas não há vontade política para fazer seja o que for.

Para mim, os pedaços das estátuas estão lá na fortaleza de castigo e para lembrar o colonialismo.

E duas estátuas já foram à vida, a do Comandante Oliveira Mozanty que estava em Bafatá, da qual tenho fotos de 1997, toda partida, mas que já foi para a sucata, embora continue por lá o pedestal em granito preto com relevos e muito bonito.

A outra era a de Ulisses Grant, presidente dos EUA que arbitrou o caso de Bolama entre Portugal e os Ingleses. Esta também foi para a sucata." (...)


(***) Último poste da série > 7 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23238: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (23): Bafatá... e as nossas "geografias emocionais"

(****) Vd. poste de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21747: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (80): busto do capitão Teixeira Pinto, em Bissau, c. 1943 (Armando Tavares da Silva)

Guiné 61/74 - P23270: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte III

1. III Parte da publicação do texto de memórias intitulado "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte III


Com a Companhia de Comando e Serviços já quase toda no Pelundo por alturas do mês de setembro, fui mais o Médico e um Sargento para os Adidos. Por esta altura, eu já tinha reservado viagem de férias ao Continente. Aconteceu também, adoecer com sintomas de apendicite, e com os Médicos do Hospital Militar a querer que eu embarcasse o mais rapidamente para Lisboa de modo a poder aqui ser observado.

Logo em Bissau me deram uma injeção anti-inflamatória, e mal cheguei a Lisboa dirigi-me ao Hospital Militar Principal para ser tratado. Aproveitei também passar pelo Porto antes de ir visitar meus pais e demais família, ir medicar-me ao Hospital Militar desta Cidade onde por sinal havia realizado o meu estágio. Devo dizer ainda, que foi nestes dois Hospitais Militares que eu passei meu tempo antes de embarcar para a Guiné.

Nesta minha passagem pelo Porto, fiquei uma noite numa República chamada “Deixa cá Ver”. Nesta República passei muitas noites durante a minha permanência no Porto durante o meu estágio, convivendo com estudantes universitários de vários cursos e de várias regiões do País. Aqui assisti a muitos serões de debates políticos. Nela encontrava-se um jovem também de Foz Côa que era como um irmão para mim e eu para ele. Criados na mesma rua e cuja família se encontrava ligada à minha por laços muito fortes. Nunca esquecerei na minha vida o quanto ele me ajudou naquela época. Também tentei ser prestável aos frequentadores da República dando algumas injeções a quem por vezes necessitava. Fui muito acarinhado por todos.

Aconteceu nessa noite de passagem mais uma vez por lá vindo da Guiné, para se gerar discussão sobre a guerra. Verifiquei como as notícias eram destorcidas. Falaram-me em acontecimentos que não eram verdadeiros. Eu vindo da Guiné três dias antes, tive que fortemente os desmentir dizendo-lhes que aquelas notícias eram totalmente falsas. Foi difícil convencê-los. Para eles, já em 1969 a Cidade de Bissau encontrava-se cercada por todos os lados. Já bastante melhor das dores e febre que me traziam debilitado, fui descansar e continuar o meu tratamento em Foz Côa junto da minha família. Foi muito bom para mim ter vindo de férias naquela altura até porque sabia que logo que chegasse a Bissau, teria que apanhar escolta que me levasse para o interior Norte da Guiné e para a aldeia do Pelundo.

Passados os meus repousantes dias de férias e com o estado de saúde melhorado, lá apanhei o avião em Lisboa de regresso à Guiné.

Mal cheguei ao aeroporto de Bissau, um jipe esperava-me para me conduzir até ao Quartel dos Adidos onde uma escolta já se encontrava pronta para me levar, mais uns soldados que tinham vindo a Bissau à consulta externa bem como, mantimentos para as nossas tropas do Batalhão.

Cheguei ao Pelundo já ao fim da tarde. Ao contrário de Buba onde tinha estado quinze dias conforme já aqui referi, o ambiente aqui era diferente bastante calmo. Em Buba, só por duas tardes consegui ter algum descanso e confraternizar com companheiros militares, mas somente, dentro do arame farpado. Não tomei conhecimento de nada daquela aldeia. Ao contrário, ao chegar ao Pelundo vi logo à entrada da aldeia soldados confraternizando com jovens locais. É certo que para Buba fui de helicóptero que me deixou já dentro do Quartel e da mesma forma de lá saí para Bissau.

Como uma das minhas missões era fazer ação psicológica com a população, verifiquei que seria um bom lugar para o meu feitio e gosto de conviver e aprender os hábitos de vida daquelas gentes, iria ser bom.

Também só agora iria tomar conhecimento próximo com os militares da minha CCS e, da Companhia operacional 2886 do meu Batalhão que, juntamente com a Companhia de Comando, se encontrava no mesmo local.

Após deixar a minha bagagem no abrigo onde ficaria alojado juntamente com quase todos os Furriéis da CCS, fui até ao Posto Médico reencontrar-me com todos da minha equipa (Médico, Cabo Enfermeiro e Maqueiros).

Depois de os cumprimentar e deitar uma olhadela ao edifício que mais não era que um barracão um uma parte mais ampla que funcionava como sala de consultas e tratamentos e, ao lado, uma outra divisão separada com porta para o exterior que servia de armazém. No mesmo local e separados por uma ruela, ficavam as messes de Oficiais e de Sargentos e, num outro edifício, os quartos dos Comandantes (Major e Tenente Coronel).
 
Mais afastados, encontravam-se os alojamentos da Companhia operacional 86. Todos estes espaços se encontravam cercados com arame farpado tendo à sua entrada uma guarita com sentinela.
Separados por uma estrada que vinha desde o início da povoação, encontrava-se o novo Quartel ainda em construção, mas já com algumas funcionalidades.

Este quartel situava-se num amplo espaço plano com os abrigos à prova de morteiros nas paredes externas e espessura normal nas paredes voltadas para o interior do mesmo. Estes abrigos que a maioria eram os dormitórios de todos nós menos dos comandantes como já descrevi, circundavam o quartel em formato octogonal. Atrás com um espaço ainda considerável era cercado por arame farpado que, creio, porque nunca perguntei nem observei, que fosse eletrificado como acontecia em Buba.

Num destes abrigos e próximo da entrada do quartel, veio mais tarde a funcionar como Posto Médico. Nele dormiu o Médico desde a sua chegada até ao fim da Comissão.

Não resisti de, logo nesse fim de tarde e após o jantar, dar a minha primeira caminhada pela rua principal e juntar-me a um grupo de soldados mais um Alferes de origem cabo-verdiana que confraternizavam com jovens locais. Este Alferes que só lá conheci, era de apoio ao Comandante e detentor de todo o sistema de informações. Profissionalmente meu colega.

Logo no dia seguinte, apresentou-se-me uma jovem dizendo-me que seria ela a tomar conta da minha roupa. Nem tive hipótese de escolha. Disse-me que seria ela e mais ninguém e que já tomava conta da roupa do Médico, do Major e do Comandante e que só ela tinha autorização de entrar no Quartel buscar e trazer roupa. Todas as outras lavadeiras ficavam fora do arame farpado para receberem e entregarem roupa. Esta jovem de nome Judite tornou-se uma pessoa muito importante para mim durante toda a Comissão, e lhe serei toda a minha vida grato por tudo o que fez por mim, lhe devo o meu bom estado mental com que regressei daquelas paragens. A ela me referirei com mais pormenores na parte final desta minha narrativa.

Tive também a surpresa de ter um conterrâneo aqui em Pelundo e na Companhia 2886. O Adriano Sousa, natural da Freguesia das Chãs e Concelho de Foz Côa, era Soldado atirador dado não ter completado o quinto ano dos liceus. Estudou no Colégio de Foz Côa. Dado ele não ter feito parte das minhas amizades habituais em Foz Côa naquele tempo, e nos últimos anos eu tê-los passado fora de Foz Côa, não o conhecia. Ele, ao ouvir o meu nome abeirou-se de mim identificando-se. Construímos uma amizade até ao dia que Deus nos levar. O Adriano é testemunha de muitos dos meus factos que aqui transcrevo. Era meu confidente.

No momento que estou a escrever estas linhas, tenho meu coração triste ao tomar consciência da pequenez moral dos políticos responsáveis que o representam Portugal.
Acabei de assistir ao vídeo do funeral do militar Português mais condecorado do meu país de nome Marcelino da Mata. Desprezado no direito às honras merecidas que a Pátria lhe devia e, por aqueles que a representam, a Pátria que com sangue e lágrimas ele como nenhum outro soube defender. Não teve honras de abertura de telejornais, nem comunicados dos Estados-maiores e, principalmente, do atual Presidente da República.

A qualquer pé descalço afeto ao poder político, a bandeira é colocada a meia haste e decretado três dias de luto Nacional. Ao Tenente Coronel Marcelino da Mata nascido na Guiné, soldado Comando detentor da Torre Espada Lealdade e Mérito e mais cinco cruzes de guerra de 1.ª Classe por coragem demonstrada em combate, nem uma salva de tiros teve direito no momento do seu corpo descer à sepultura. Porém, seus companheiros de armas, brancos e negros, não o deixaram só e nunca será esquecido por muitos anos que passem. Honra à sua memória e que sua alma descanse em paz. Conheci-o um dia em Bissau.

Voltando à minha escrita sobre a minha passagem pela Guiné, direi que as minhas primeiras preocupações foram o verificar, as funcionalidades e existências do Posto Médico, conversar com o Médico sobre o meio em que nos encontrávamos e sobre todo o exterior que nos rodeava.

Quando o segundo Comandante ainda em Bissau soube da minha ida de férias à Metrópole, pediu-me para que no meu regresso à Guiné eu levasse de Portugal e, principalmente da minha terra, sementes hortícolas para criarmos uma horta nas periferias do Quartel. O objetivo era podermos ter vegetais frescos para serem utilizados na alimentação dos nossos militares, serem semeadas numa horta a construir no Quartel do Pelundo de modo a termos produtos verdes e frescos na alimentação senão para toda a tropa, mas, pelo menos, para as messes (Sargentos e Oficiais).
Entrada do aquartelamento do Pelundo
Foto: © António Teixeira (2011)

Assim fiz. Logo no segundo dia da minha chegada ao Pelundo, criei um pequeno canteiro junto ao Posto Médico onde semeei tomates e alfaces.
 
Como esta iniciativa havia partido do Segundo Comandante Major Pinho, ele foi logo nesse dia de manhã falar comigo. Primeiro, porém, pediu álcool para limpar o seu cachimbo duma forma que eu não gostei. – Dá-me álcool para eu limpar o cachimbo - disse-me ele. Eu respondi-lhe que não estava a ouvir nada. – Não ouves? – Voltou ele. Sou o teu Segundo Comandante. Eu, serenamente respondi-lhe que daquela porta para dentro era eu que mandava e, como tal, ou me pedia o álcool educadamente por favor ou não levava nada. Disse-lhe mais já um pouco fora de mim que, ficasse a saber, que não estava na tropa para ser criado fosse de quem fosse e, quando alguém me pisasse os calos, lhe responderia, f….-se que já me pisaste.

Estou a ver que me saíste uma grande encomenda – observou ele pedindo-me por favor algodão e álcool. Aproveitei logo para lhe comunicar que não iria tomar conta da dita horta. Mas tu és o engenheiro – voltou ele à carga. – Sou disse-lhe. Mas não quero contratos com o Comando. Chega-me os cuidados de saúde para os quais sou um dos responsáveis, continuei. Assim o fiz a partir daquele dia.

Logo nos primeiros dias da minha presença naquela localidade, aproveitei os momentos livres e após o almoço, fim de tarde e depois do jantar para familiarizar com a população local. Cedo me apercebi que a jovem que tomava conta da minha roupa possuía grande influência não só nos jovens, mas também nos mais adultos da população. Assim, comecei a socializar-me com todos eles. Para tal, comecei a juntar-me com ela e outros e outras jovens durante noites para ganhar a sua confiança e, também, eu começar a captar os seus hábitos e anseios e, acima de tudo, aprender frases do seu dialeto. Cheguei a permanecer fora do quartel até cerca da meia-noite em muitos os dias.
 
Comecei deste modo a conquistar amizades que me foram muito úteis até ao fim da minha estadia nesta terra, já que tinha duas missões a cumprir para com eles. Tratar da saúde e ensinar-lhes dentro do tempo que me fosse possível melhores técnicas agrícolas sempre que para tal me fosse solicitado.

Mensalmente, recebíamos medicamentos não só para os militares a meu cargo como também para a população da aldeia. Felizmente, durante toda a minha comissão pude utilizar na população medicação que era destinada aos militares porque para estes não foi necessária.

Durante toda a comissão levei muito a sério a minha missão. Sentia-me muito feliz quando percorrendo as ruelas do Pelundo as crianças se vinham agarrar às minhas pernas solicitando afetos. Os mais idosos me cumprimentavam baixando a cabeça e, passados poucos meses me beijavam as mãos. Sempre lhes ia dizendo que não fazia sentido aquela forma de afeto já que eu não fazia mais que o meu dever de cuidar deles com dignidade. Criei assim um ambiente saudável junto da população. Os gestos dos mais idosos me faziam lembrar meus pais que em Portugal não recebiam apoios e tratamentos de saúde que nós ali estávamos a proporcionar às populações locais. A este propósito, muitas e muitas vezes alguns militares graduados me faziam acusações de possivelmente, eu desviar medicamentos destinados às nossas tropas para os civis. Felizmente, foi possível tal poder fazer, já que não foram necessários para as tropas a meu cuidado.

Já quando me deslocava a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde que se encontravam junto ao Hospital Militar para resolver determinadas faltas de material, me perguntavam quais os contratos que eu tinha com o PAIGC, dado que as nossas colunas não sofriam emboscadas enquanto outras colunas de outros Batalhões eram atacadas no mesmo percurso. A minha resposta foi sempre a mesma. Porque eu tratava bem dos seus familiares.

Estas perguntas que me eram feitas tinham razão de ser, dado que não muitos dias antes, uma Companhia de Paraquedistas tinham sofrido uma penosa emboscada na mesma estrada que eu percorria e, semanalmente, escoltas do meu Batalhão eram feitas duas vezes. Alguns daqueles Paraquedistas foram tratados no nosso Posto Médico por mim e o Dr. Dinis Calado.
 
Talvez por isto, o Diretor do Serviço de Saúde em Bissau Dr. Bissaya Barreto, sempre que eu aqui vinha me chamava ao seu gabinete para falar comigo e me tratou sempre com muito carinho. Também não foi por acaso que uma fotografia minha foi colocada numa capa da revista do Exército, tratando um garoto, e com o título – Assim tratamos as populações.

Uma das particularidades que encontrei no Pelundo foi a existência de uma espécie de discoteca. Esta situava-se mais ou menos ao meio da aldeia e numa palhota. Possuía apenas a porta de entrada e uma janela que nem sempre se encontrava aberta.

Para este espaço, e durante os fins-de-semana e em dias alternados da mesma, as jovens e os jovens da aldeia se deslocavam à noite com o fim de se divertirem dançando ao som de um Gira-discos a pilhas. Quanto ao tipo de músicas, elas iam das africanas às brasileiras.

Eu comecei a frequentar assiduamente aquele espaço. Só não ia quando me encontrava adoentado ou por motivos de serviço ao Quartel. Muitos outros militares começaram a frequentar aquele lugar como o Médico (que eu o arrastei) e este sempre acompanhado pelo Alferes Tunes. O Médico ia para dançar e se divertir, mas o Tunes ia apenas para observar o ambiente. Também vários Furriéis da Companhia 2886 eram assíduos daquele espaço. Da CCS, tirando eu e o Médico e o dito Alferes, apenas os soldados para lá se deslocavam.

Verifiquei com certa admiração, como os e as jovens locais confraternizavam com os nossos soldados e alguns graduados como eu. A jovem que me cuidada da roupa ajudou-me a entrar naquele ambiente que não mais larguei durante todo o tempo que por lá me mantive.
O preço da entrada na discoteca era de dois pesos e meio, moeda local. Para nós, um preço acessível, mas para os jovens e alguns menos jovens da população local já lhes custava a pagar.

Este Alferes Tunes e eu, passados anos, viemos a viver perto um do outro no Concelho do Seixal. Resolvi com o bailarico, quebrar o stress dançando à noite sempre que me era possível.

A frequência na procura de cuidados de saúde pela população aumentava de dia para dia. Nos mais idosos eram frequentes as queixas de dores respiratórias e musculares. O clima quente e húmido contribuía para as pneumonias e dores reumáticas. A estes, com tratamentos injetáveis e em corpos pouco habituados a receber medicamentos, o seu efeito benéfico transmitia resultados a olhos vistos. Porém, com o decorrer do tempo, mesmo com muitas melhoras, lá estavam diariamente a pedir que lhes aplicássemos injeções, principalmente, vitaminadas. Cá miste Campingo diziam eles e elas.

Ainda nos adultos mais idosos, as doenças de pele e, em especial, as bilharzioses conhecidas também por elefantíases, muito difíceis de curar, tivemos pela frente.

O paludismo era uma doença complicada para todas as idades e para todos nós. No meu caso, felizmente que me passou ao lado. Sobre esta doença e sequelas nos militares escreverei mais à frente citando alguns casos mais especiais.

Continuando com os adultos, as doenças sexuais foram um bico-de-obra. Muitos casos tivemos, apesar das palestras preventivas que eram dadas aos militares informando-os dos meios preventivos que lhes seriam fornecidos sempre que nos fossem solicitados. Estes meios preventivos tanto eram fornecidos aos militares como a elementos da povoação, acaso nos fossem solicitados. As mulheres que se prostituíam tinham receio que o preservativo lhes ficasse dentro da vagina. Com tantas explicações que tive o cuidado de dar a algumas que conheci, verifiquei a pouca aceitação para obrigarem os seus clientes a usarem o preservativo. Pelo menos tentei dar-lhes conhecimentos de prevenção.

No caso das crianças, as otites foram os casos mais complicados que fomos tendo, derivado não só a falta de higiene como por fatores climatéricos. Como para estes casos era necessário a aplicação de antibióticos e como tal, a necessidade de regras na sua aplicação, o Médico resolveu o caso com a dissolução dos antibióticos em frascos de xarope até porque não possuíamos no quartel antibióticos próprios para crianças. Além deste drama, tivemos a dificuldade de comunicação com os pais das crianças, dado não entenderem bem o Português, e não muito habituados a terem assistência médica perto de casa.

Outro caso de saúde que me impressionou negativamente não só nesta localidade, mas também em quase todo o interior da Guiné, foi a desnutrição das crianças. Corpos muito magros e barrigas aventadas e umbigos excessivamente salientes.

O aventamento era provocado pelo tipo de alimentação com base no arroz e farinha de mandioca. O caso dos umbigos salientes tinha a ver com a falta de aperto com ligaduras após os partos.
Assim, nos primeiros meses todos nós, Médico, eu e Cabo Enfermeiro, mais os Maqueiros, procuramos aprender um pouco do dialeto local. Para isto, o convívio já descrito atrás, ajudou-nos muito nestas nossas tarefas.

A nível militar, fomos tendo uma certa acalmia, mas outras tropas que se movimentavam nas mesmas estradas já não tinham a mesma sorte como já atrás descrevi.
A minha aproximação com a população local foi dia após dia aumentando. Fui convivendo dia a dia mais não só com os mais jovens, mas também com mais velhos. Começaram aqui os meus problemas com as chefias do Batalhão que não viam esta minha atitude com bons olhos.

Em meados dos anos 70, o General Spínola mandou construir um Posto Médico e uma Escola Primária no Pelundo. Soube na altura que o mesmo aconteceu em muitos outros locais da Guiné. Esta Escola foi mobilada com o de mais moderno havia. Na terra onde nasci não tínhamos escolas iguais a esta. Assisti, como não podia deixar de o fazer, à sua inauguração. O General Spínola fez um discurso dirigido principalmente para o Régulo local não muito meigo para este, chegando a chamar-lhe traidor. Pouco tempo antes tinha acontecido o assassinato dos Majores. A meu lado tinha o chefe da Granja de Teixeira Pinto e, meu colega de profissão civil, que me ia comentando, dizendo que o General era maluco pois aquele discurso colocava-o em perigo ali mesmo.

(Continua)
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Nota do editor

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