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quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

segunda-feira, 20 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Escrevi há pouco tempo um artigo dando conta de alguma bibliografia alusiva aos incidentes do Pidjiquiti e o historiador António Duarte Silva recomendou-me referências a outras obras, o que aqui se faz. As dúvidas e as questões em aberto prosseguem. Terá sido Rafael Barbosa o instigador junto de um dos patrões que conduziu a greve? 

O que levou o PAIGC a arvorar-se como responsável encapotado pelos acontecimentos, quando, como é sabido, viveu numa apagada entre 1956 e 1959? Em que medida é que se pode falar de massacre se, como abonam os testemunhos presenciais, e documentos de indiscutível rigor, que referem o descontrole absoluto depois das cenas de pancadaria travadas entre estivadores e forças da ordem? E de acordo com os números lançados por várias proveniências é extremamente difícil, mais de 60 anos depois, vir a encontrar documentos probatórios do número de mortos e feridos, já que não há contabilidade fiável para os mortos e feridos levados pelo Geba.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível

Mário Beja Santos

O meu amigo António Duarte Silva, conceituado historiador da Guiné-Bissau, chamou-me a atenção para a amplitude da bibliografia existente sobre os incidentes do Pidjiquiti, também conhecido por Massacre do Pidjiquiti, há muitos trabalhos repetitivos, casos há em que se urdiu a lenda, se exibem números de mortos e feridos sem qualquer comprovativo, houve aproveitamento dos acontecimentos para o colar ao arranque do PAI (sigla anterior a PAIGC), isto quando Rafael Barbosa insistiu que o líder dos grevistas era membro do Movimento de Libertação da Guiné.

 O autor de "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, dá-nos uma impressiva síntese do descontentamento dos homens que faziam o serviço do porto, cargas e descargas, marinheiros do cais, contramestres e cozinheiros. Era o mundo do trabalho que abarcava as embarcações de nove firmas armadoras de diferente calado, estes homens tinham de fazer igualmente o trabalho de estiva. 

“Os salários eram concertados anualmente pelas casas comerciais e a exigência de uma nova melhoria de salários havia sido apresentada em fevereiro, tendo obtido a promessa de estudo de pretensão. A preparação da greve coube aos capitães dos barcos; a exigência de aumento dos salários assentava na dureza das condições de trabalho e no custo da alimentação”.

Em 31 de julho, os trabalhadores constataram que não havia qualquer aumento, considera-se ter havido fracasso nas negociações posteriores com o gerente António Carreira na manhã de 3 de agosto. Os manifestantes, maioritariamente Manjacos, comparecem numa concentração pelas 14 horas, vão devolver os barcos. Interveio o Patrão-Mor da Capitania, tudo falha, o gerente da Casa Gouveia, António Carreira, chama a polícia, um contingente dirigiu-se ao porto, trocam-se palavras e o subchefe da polícia é agredido depois de ter esbofeteado um dos marinheiros que aparecem munidos de remos, paus, barras de ferro e arpões. Seguem-se disparos da PSP e forma-se um piquete que trava o avanço dos manifestantes abrindo fogo: tiros, lançamento de granadas lacrimogéneas e perseguição dos grevistas que fogem em direção ao cais. O padre Henrique Pinto Rema fará publicar no jornal "O Arauto" que houve de 13 a 15 mortos.

Já aqui se fez referência ao relatório confidencial do Comandante da Defesa Marítima que vem publicado no Livro III dos Fuzileiros – "Crónica dos Feitos da Guiné", por Luís Sanches de Bâena, Comissão Cultural da Marinha, 2006. 

Voltando ao trabalho de Duarte Silva, ele refere que os feridos e os cadáveres foram transportados sob vigilância militar para o hospital e a casa mortuária. No dia seguinte, o administrador do concelho de Bissau contatou um dos capitães, Mestre Ocante Benunte, este apresentou-lhe as cinco condições dos grevistas para retomarem o trabalho. Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso publicam os sete telegramas enviados pelo Governador ao Ministro do Ultramar, vem em "Os Anos da Guerra Colonial", Quidnovi, 2010. Encetam-se conversações, fizeram-se novas contratações, depois retomou o trabalho e em 11 de agosto estavam em funcionamento 30 num total de 53 lanchas. 

O historiador Leopoldo Amado é taxativo dizendo que o PAI “não teve, pelo menos diretamente, uma ação ou influências decisivas nas ações que viriam a desembocar em Pidjiquiti”. Como seria de esperar, o descontentamento, a greve dos estivadores, aquela quantidade de mortos e feridos que cada um contabiliza à sua maneira, serão apresentados como um marco histórico, para o PAIGC passava-se da agitação nacionalista à fase superior da luta de libertação nacional.

António Carreira, que antes de ser sócio-gerente da Casa Gouveia tivera outras e variadas andanças (capataz de estradas, aspirante dos correios e telégrafos, aspirante do quadro administrativo, secretário da circunscrição civil e administrador da circunscrição civil, tudo na Guiné entre 1921 e 1954) e que se tornou persona non grata e acusado de autor moral da mortandade declarou em entrevista, passados quase vinte anos, que “os governantes da Guiné-Bissau têm-se manifestado hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiquiti em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora eu não me sinto com nenhuma responsabilidade direta no caso (…) O que para mim se apresenta curioso é que nunca tivessem apontado para os autores materiais do caso: o comandante militar, o comandante da polícia, e os restantes agentes do governo de então, na altura em que eu era um simples gestor comercial”. 

Para conhecer a obra prolífica de Carreira, recomenda-se a leitura do livro "António Carreira, Etnógrafo e Historiador", por João Lopes Filho, Fundação João Lopes, Cidade da Praia, 2015. Em "As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, Tinta-da-China, 2018, há um trabalho de Sílvia Roque que praticamente nada mais adianta sobre o que até agora se escreveu. Luís Cabral, antigo Presidente da República, escreveu no seu livro "Crónica da Libertação", Edições Jornal, 1984, que o comportamento de Carreira foi de irredutibilidade, o que desencadeou a greve.

Depois da carga policial, vários grevistas e simpatizantes nacionalistas foram detidos. A autora escreve que o aumento de salários já teria sido aprovado pela CUF. Também refere que o trabalho forçado, após a II Guerra Mundial, passara a ser substituído pelo trabalho assalariado, baseado em salários muito baixos. A autora não deixa de se enredar na especulação, escrevendo: 

“Os acontecimentos do Pidjiquiti constituíram uma expressão real de uso excessivo de violência sem possibilidade de defesa, com requintes de teatralização desse excesso. São exemplos disso a referência a um comandante militar que teria atirado sobre cada uma das cabeças que se refugiaram no mar ou ao facto de apenas a corajosa reivindicação das mulheres junto do Palácio do Governador ter impedido que os corpos fossem queimados, conseguindo que fossem restituídos às famílias”.

Amílcar Cabral apresentará estes incidentes como um momento de viragem, será uma das consignas de toda a propaganda da guerra de libertação. Durante anos após a independência, os incidentes do Pidjiquiti tiveram um lugar relevante na consolidação do PAIGC enquanto personificação da nação, os anos foram gradualmente apagando das gerações mais jovens a simbólica do Pidjiquiti. E a comunicação também mudou, como mostra Sílvia Roque: 

“Durante as celebrações de 2014, enquanto Domingos Simões Pereira desafiava os guineenses para a criação de um museu em honra e memória de todos os resistentes, o secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores da Guiné afirmava que os atrasos nos pagamentos de salários punham em causa a realização dos sonhos dos mártires do Pidjiquiti”

 Confirmava-se a simbologia da desilusão.

"Lutas Laborais nos Primórdios da Guerra Colonial", por Jorge Ribeiro, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2018, debruça-se sobre o Pidjiquiti, as novidades do texto são mínimas. Associa-se diretamente o conflito laboral com António Carreira, dá-se uma analogia entre Carreira e o Coronel Carlos Gorgulho, responsável pelo massacre de Batepá, em S. Tomé e Príncipe, a 3 de fevereiro de 1953, ambos após estes desmandos horrendos foram retirados para Lisboa. 

O texto refere o avanço da Companhia estacionada no quartel-general armada com Mauser K98, mas quem avança para o cais do Pidjiquiti são os efetivos da PSP, empunhando espingardas LEE ENFIELD 7.7. Perde-se o controlo da situação, segue-se a carga de soldados e polícia.

“Para esta página da história da Guiné foram imprescindíveis a acção e o comportamento do Comandante dos Civilizados, Capitão José Manuel Severiano Teixeira, louvado e condecorado após o 25 de Abril pelos serviços prestados em África; e do governador da colónia, Capitão de Fragata António Peixoto Correia que, no fim da sua comissão na Guiné, foi chamado por Salazar para o cargo de Ministro do Ultramar”.

O autor refere a disparidade dos números indicados por Rafael Barbosa, Amílcar Cabral e Luís Cabral: Rafael diz ter visto e contado 52 corpos retirados das águas do Geba; Amílcar Cabral referiu 24 mortos e 35 feridos; Luís Cabral 24 mortos e 37 feridos graves. Mais tarde, Aristides Pereira e o próprio Luís Cabral atualizaram o número em 52 mortos.


quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Das suas andanças pelo Arquivo Histórico Ultramarino, António Carreira catou alguns documentos que haviam escapado ao grande pesquisador que foi o Padre António Brásio, autor de uma notável coletânea (5 volumes, de 1342 a 1650) dos melhores repositórios sobre a área dos rios de Guiné e Cabo Verde. "Estudados detidamente, pensei logo em divulgá-los, com anotações e comentários, alguns deles em edição fac-similada. Só que nenhuma instituição cultural e/ou científica se mostrou interessada em fazê-lo. Não é de estranhar. É a eterna contradição que caracteriza a sociedade portuguesa designadamente no campo da cultura. Apregoa-se insistentemente a existência de Centro de Estudos Africanos destinados a apoiar e a orientar este tipo de investigação; mas salvo uma ou outra exceção não o podem fazer dada a posição de apagada e vil tristeza em que vivem. Daí que a investigação de campo e o estudo e a publicação dos seus resultados se confine, em regra, a tarefas individuais de uns tantos maduros e destituída de apoios das instituições estatais e privadas". E António Carreira fez edição de autor, temos hoje livro raríssimo, obra que faz falta em qualquer desses Centros de Estudos Africanos, pôs na capa um dragoeiro, cuja goma ou resina foi utilizada durante largos anos na farmacopeia. Como ele escreveu: "Como se fala agora com tanta insistência na proteção da natureza, parece que ela deve ser objeto de medidas especiais que impeçam a sua destruição".

Um abraço do
Mário



O dom de investigar, o dom de saber comentar:
António Carreira, aquele historiador sempre indispensável


Mário Beja Santos

A obra intitula-se Documentos para a História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira, Edição do Autor, 1983. Explica a razão da publicação: “Divulgação de documentos de grande interesse para o conhecimento da ação dos portugueses na costa ocidental africana nos anos de 1600 até final de 1700. Eles mostram as vicissitudes por que passaram os contratos de arrendamento de tratos e resgates, e as falcatruas cometidas pelos contratadores, falcatruas essas facilitadas pela impossibilidade do Governo controlar os negócios; e de outro lado, o contrabando de escravos e a desenfreada concorrência comercial de Franceses, Ingleses e Holandeses, por vezes apoiada na guerra de corso, visando pôr termo às atividades dos portugueses na costa a partir do Cabo Verde até à Serra Leoa”. É uma documentação úbere de informações de tempos e lugares em que a presença portuguesa esteve permanentemente em causa, tanto pela hostilidade de estrangeiros como pela guerrilha dos autóctones. O estudioso tem acesso a relatórios, cartas, pareceres, regimentos, despachos que permitem conhecer a agressividade dos régulos em torno da Praça de Bissau, os problemas alfandegários, a situação comercial na região, contratos de arrendamento, regimento do presídio e alfândega de Farim, reclamações dos comerciantes contra as taxas de direitos.

António Carreira foi um investigador modelar, encontrava nos arquivos manuscritos e sabia comentá-los como ninguém. Veja-se como ele introduz a questão do termo Rios da Guiné, que era a expressão mais utilizada na documentação antiga, precedeu o uso da expressão Guiné, mas sempre com sentido indefinido, fazia parte da área da jurisdição da Capitania de Cabo Verde, cujo governador entregava regimento ao capitão mor de Cacheu, o regimento de 1614 recomendava: a difusão da religião católica através da catequização dos gentios; a fiscalização da navegação e do comércio de e com os estrangeiros, impedindo a venda de escravos, de cera, de marfim e de ouro; impedir por todas as formas a entrada em Cacheu de algodão proveniente da Gâmbia e de outros pontos; exercer o controlo dos preços de compra dos escravos. Carreira comenta que os princípios de que os capitães mores, feitores e ouvidores dos rios de Guiné de estarem subordinados ao Governador das ilhas de Cabo Verde não tinha significado efetivo e real.

Aborda depois o investigador topónimo Guiné que designava uma larga zona sem limites compreensíveis. E recorda que o Padre Baltazar Barreira em carta escrita em Santiago a 1 de agosto de 1606 procurou esclarecer assim os limites da Guiné: “Esta parte de África que os portugueses propriamente chamam Guiné começa no rio Senegal e corre pela costa até a Serra Leoa, obra de 180 léguas de norte a sul”. Viajando no tempo, Carreira dá-nos conta dos ciclos económicos enquanto se apertava o cerco à presença portuguesa até que se chegou a uma situação, que precede as decisões da Conferência de Berlim em que a nossa presença na Senegâmbia era constituída por as praças e presídios de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Fá, Bissau e Guinala. Estas praças e presídios, também designadas por feitorias, estavam instaladas nas margens dos rios, em limitados espaços formando pequenos povoados de comerciantes europeus, filhos da terra (grumetes) e mestiços cabo-verdianos, espaços ocupados mediante licença das autoridades tradicionais, contra o pagamento de renda anual (a daxa). Refere o autor a história destas feitorias, o aparecimento da primeira Fortaleza de Bissau, construída em 1696, a história das diferentes companhias comerciais de vida breve, a gradual presença portuguesa a partir do século XIX, observando Carreira que da soberania portuguesa só se deve falar a partir de 1915, dando-nos o contexto das turbulências vividas no solo continental por quase todo o século XIX: em 1840 eclodiu um conflito entre Fulas e Mandigas, que levou à derrota destes últimos e as guerras sucessivas que assolaram o Alto Geba, no Gabu e no Forreá. Lançara-se entre 1842 e 1845, no Quínara, a cultura da mancarra, que se mostrou florescente, mas com a guerrilha que se intensificou a partir de 1876, tudo se perdeu. E o autor não deixa de enfatizar que a chamada Guiné portuguesa é uma figura política e jurídica surgida da Convenção Luso-francesa de 1886.

Temos depois o rol dos documentos do século XVII, o autor chama à atenção para a incapacidade organizativa da Coroa em afastar ou punir a concorrência, limitava-se a estabelecer contratos de exploração por administração direta por vários anos; mostra igualmente o autor a existência de conflitos entre o Governador de Cabo Verde e os agentes do rei nos rios; e assim chegamos ao relato do feitor da Fazenda Real, em Bissau, José António Pinto, caminhamos para o final do século XVIII, dá-nos conta da situação nas praças e presídios, veja-se a pungente descrição que ele faz do presídio de Geba:
“O pequeno número de que se compunha a sua guarnição são negros, pardos e alguns brancos, tanto uns como outros ali são mandados degredados por tremendos crimes, os quais são brancos já não conservam sentimentos alguns da sua cor nem de costumes europeus vendo que ali são degradados por toda a vida, continuam em dar exercícios aos seus diabólicos costumes, roubando armazéns de noite. Sargentos, furriéis e cabos são da mesma natureza, brancos, negros, pardos, ladrões e facínoras, de forma que como sequazes dos soldados não só não há respeito, mas quando o pretendem ter, opõem-se-lhe e rebelam-se os culpados que ficam sem castigo (…)”. É extensa a denúncia, dá-nos depois a descrição do porto de Bissau, das ilhas de Cabo Verde e sua guarnição militar, refere a Fazenda e o negócio da panaria e da purgueira, refere as ilhas e as forças militares.

A obra de António Carreira faz-se acompanhar de muito texto em fac-simile, dos documentos aludidos dá por inteiro o regimento da Alfândega de Cacheu de 1797, temos igualmente um apenso documental com requerimentos, nota de emolumentos, reclamações, lista de navios chegados a Bissau no final do século XVIII.

Obra de indiscutível interesse para quem pretende estudar estes séculos da nossa precária presença naqueles pontos da costa ocidental africana.

Fortaleza do Cacheu
Planta da Praça de S. José, Bissau, 1864
Interior da Fortaleza de S. José da Amura, cerca de 1925
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Por mão amiga tive acesso a este livro que surgiu no seguimento da exposição "O Museu Etnográfico Nacional: Trinta anos de História", inaugurada no Museu de Bissau em setembro de 2017. Tem imagens esclarecedoras do património que resistiu a várias depredações, espoliações e destruições. Recordo sempre o orgulho que senti no Museu Metropolitano de Nova Iorque quando numa vasta sala dedicada à Arte Africana li uma ficha de um colecionador famoso, da família Rockfeller, dizendo, com sincero entusiasmo, que tinha comprado peças artísticas das etnias Bijagó e Nalu e que as considerava do mais genial que lhe fora dado ver. Portugal possui igualmente um rico património da Arte Guineense, bom seria que se fizesse uma recolha de peças de valor indiscutível, elas estarão sempre associadas à presença portuguesa e à veneração que tal arte nos merece e merecerá.

Um abraço do
Mário



Conhecer o Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Não há ninguém que tenha feito comissão na Guiné que não conheça este edifício, no nosso tempo era Museu da Guiné e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, reunia uma preciosa coleção de património etnográfico, o impulso inicial coube a Avelino Teixeira da Mota, então colaborador direto de Sarmento Rodrigues, e nas mesmas instalações funcionava o importantíssimo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa responsável pela publicação colonial mais relevante: o Boletim Cultural, ainda hoje incontornável. E havia uma biblioteca, nesse espaço ocorreram conferências que tiveram projeção. Com a independência, extraviou-se muita coisa, nos anos 1980 o museu foi transferido ali para os lados do INEP e em 2017 voltou ao edifício primitivo que já cumprira outras funções, como Ministério dos Negócios Estrangeiros e Direção-Geral da Cultura. Para comemorar o regresso, em 15 de setembro de 2017 foi inaugurada uma exposição intitulada “O Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História”, associaram-se diferentes parceiros, desde o Instituto Camões, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Embaixada de Espanha em Bissau, organismos da Universidade de Oxford e outros. O catálogo foi publicado em 2018 e permite ao leitor ficar com uma ideia do que é hoje o acervo museológico, depois das diferentes provações que terá sofrido, não esquecer que durante a guerra de 1998/1999 perderam-se objetos e muitos documentos, perdas tão irreparáveis que quando o visitei em 2010 e fiz entrega de um presente de todas as cartas da então Província da Guiné, na escala de 1 para 50 mil, o então Presidente do INEP, Dr. Mamadu Jao, agradeceu-me comovidamente, nada existia de tão substancial. Depois da guerra, houve tentativas de reparação, lembro a reconstituição de imensas imagens graças à Fundação Mário Soares, que deu origem à exposição “Raízes”, que então visitei no Bairro da Ajuda e que ainda hoje se pode adquirir na Fundação Mário Soares a preço simbólico. A exposição de 2017 revela o que se tem feito na digitalização de imagens e como se têm procurado superar os danos terríveis da guerra e dos esbulhos.

Este volume, com texto em português e castelhano mostra imagens do passado, havia um catálogo-inventário da secção de etnografia do Museu da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota estimulara muitas doações, fizeram-se estudos, a etnografia da Guiné apareceu em populações de grande difusão, lembro, a título de exemplo, A Arte Popular em Portugal, da Verbo, que teve a responsabilidade de orientação de Fernando Castro Pires de Lima, há muitos elementos etnográficos guineenses em Portugal, basta visitar a Sociedade de Geografia de Lisboa ou acompanhar as atividades do Museu Nacional de Etnologia. Há ainda documentos à venda, alguns deles preciosos, produzidos pela Junta de Investigações do Ultramar. Lembro que António Carreira produziu um belo trabalho sobre panaria cabo-verdiana e guineense e que Rogado Quintino é autor de uma obra etnográfica de valor indiscutível sobre a prática e utensilagem agrícola na Guiné, bem como Fernando Galhano publicou outra obra relevante intitulada Escultura e Objectos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu Etnológico.

Este livro que acompanha a exposição de 2017 descreve trabalhos de pesquisa ao longo das últimas décadas e mostra imagens de grande importância sobre a escultura Nalu e Bijagó, como o pássaro Koni Nalu, a máscara Nimba, os espíritos Bijagós, a cabeça de vaca, obras representativas do que há de melhor na escultura guineense. Temos imagens da tecelagem, os famosos panos de pente, onde a etnia Manjaco ocupa um lugar à parte, imagens sobre aldeias, para podermos confrontar o habitat das diferentes etnias, como organizam as cozinhas, as dependências, como se processa a construção das casas, se possuem pinturas murais.

Lê-se nesta obra que os melhores tecelões são Papel e Manjaco, embora as peças comumente consideradas mais genuínas – por respeitarem toda a tecnologia tradicional, sejam da tecelagem Fula. “Os tingidos e sobretudo os panos Manjacos, com fios de várias cores que desenham padrões específicos, são adquiridos e acumulados pelas mulheres, para oferecer em funerais ou em intercâmbios matrimoniais. A produção de algodão, a cardagem e a fiação perderam importância na Guiné-Bissau após a destruição das variedades tradicionais provocada pela tentativa colonial de introduzir a cultura de algodão para exportação, que também falhou depois da independência. Hoje a maioria dos fios usados em tecelagem são importados e de fabrico industrial. O tingimento dos panos continua a ser praticado artesanalmente pelos Saracolé”.

O livro contempla o trabalho em ferro, as artes agrícolas, os instrumentos musicais onde primam os instrumentos de corda como a korá, os de percussão, caso do tambor falante e o xilofone designado por balafon, a cestaria e olaria, onde se distinguem magníficos trabalhos de balaios de palmeira de leque, os jogos de criança, a multiplicidade de manifestações religiosas que vão desde a “forquilha de alma” Manjaco, a edificação de mesquitas, as indumentárias cerimoniais. Em capítulo à parte releva-se a arte Nalu onde os objetos escultóricos aparecem em rituais e danças. Temos igualmente os lugares com paisagem e património, com destaque para a Fortaleza de Cacheu e há numerosos vestígios da presença militar portuguesa, ponho ênfase na lápide onde se escreveu: “A Ti, Deus único e Senhor da Terra, oferecemos estas gotas de suor que nos sobraram da luta pela Tua palavra eterna, soldados da CART 1613”.

Há igualmente uma secção que privilegia a cultura nacional, pois um Museu Nacional de Etnografia tem não só a missão de documentar a diversidade étnica de um país mas também de colaborar na consolidação da identidade nacional, as imagens de dança balética ou carnavalescas são elucidativas de um mundo pós-colonial. O livro encerra com a notícia do seminário de Museologia que se realizou em 1989 e mostra mais de 130 imagens de objetos do atual Museu Etnográfico.

Seria muito bom que um dia se pudesse expor na Guiné o acervo das coleções particulares e de diferentes museus portugueses. Não vi referidos os objetos de couro produzidos pela etnia Mandinga, lembro-me de ter comprado almofadas e vi à venda bainhas para espadas e outros artefactos. E recordo ter ido ao mercado de Bafatá adquirir ourivesaria, não vejo referência destes trabalhos no pós-independência. Deseja-se longa vida a este Museu Etnográfico e a mais intensa cooperação com Portugal, país que detém um património privilegiado.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...)