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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,

Aqui se continua a recensão do Sargento Lobato, prisioneiro em Kindia, Guiné Conacri, focada na edição de 1995. Ele é o prisioneiro de guerra que está na cela n.º 7, tem um longo ano de isolamento, descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier: 

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: 
Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2)

Beja Santos

Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

“A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”.

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

“Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”.

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

“Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”.

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

“Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”.


Major António Lobato no programa Prós e Contras, em 2007, com a devida vénia

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente. Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

“A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:
- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.”

No último texto iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.



A última edição que conheço desta obra data de 2014, DG Edições, Linda-a-Velha.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 6 de janeiro de 2020> Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
A narrativa do Major Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade.

Um abraço do
Mário


Um relato que se vai aprimorando de edição para edição:
Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1)


Beja Santos

António Lobato foi o mais longo cativeiro da guerra colonial. No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”.

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude transmontana em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia.  

“Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”.


Major António Lobato no programa Prós e Contras, em 2007, com a devida vénia

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

“Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”.


A última edição que conheço desta obra data de 2014, DG Edições, Linda-a-Velha.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11211: Notas de leitura (463): Lilison di Kinara, um artista de quem aqui não se fala; Liberdade ou Evasão de António Lobato (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Março de 2013:

Queridos amigos,
Mestre Braima Galissá pediu-me colaboração na elaboração de uma brochura sobre o korá.
Dentro da bibliografia que pôs à minha disposição, vem este belíssimo atlas, de que eu nunca tinha ouvido falar, é uma preciosidade, estou certo que a sua divulgação junto dos guineenses de Bissau e os que aqui vivem seria um excelente estimulante que levasse à constituição de grupos musicais com base nos instrumentos tradicionais, como o balafon e bombolom.
A Casa da Guiné tem procurado dar o seu contributo, mas falta o dinheiro.
Este livro merecia ser reeditado como instrumento exemplar da multiculturalidade.

Um abraço do
Mário


Um artista de quem aqui não se fala: Lilison di Kinara

Beja Santos

Numa tentativa de encontrar mais elementos sobre o korá, fui até à biblioteca da Gulbenkian, mexi em muitos ficheiros, quase que fiz perder a paciência a vários funcionários, nada de korá mas duas surpresas me foram oferecidas: saber que existe um artista guineense polivalente, Lilison di Kinara, e andei às voltas com um livro magnífico, “Escultores e Objetos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu de Etnologia do Ultramar”, por Fernando Galhano, edição da Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

Lilison di Kinara aparece numa coletiva lusófona na Galeria Municipal Gymnásio, 2003. A sua ficha curricular é motivo de assombro. Nasceu em Bolama, de 1977 a 1980 cursou grafismo, fotografia, serigrafia, xilogravura e escultura em Bissau; bolseiro da UNICEF, foi para Turim, em 1984; outro curso em Montreal, no Canadá onde também estagiou em televisão; bolseiro do Québec, realizou um seminário para jovens artistas plásticos guineenses, em Bissau, a partir daí o seu nome aparece sempre ligado a Montreal. Tem exposições individuais em Portugal, Guiné-Bissau e Canadá.

O seu nome verdadeiro é Januário Cordeiro, é músico e cantor. A sua música está inspirada nos ritmos locais da Guiné-Bissau. No Canadá dá espetáculos e edita em disco, acompanhado por guitarra. Os interessados encontrarão muitos elementos sobre Lilison de Kinara na internet. Chama-se particularmente a atenção para o visionamento do site: http://www.roymaj.com/pages/sectionphoto/artiste_lilison_dikinara.html bem como se reproduz um desenho de uma obra patente na exposição de Lisboa de Agosto de 2003.

O livro de Fernando Galhano é uma preciosidade gráfica, os objetos escultóricos são desenhados com esmero, reproduzem-se uma máscara da VACA BRUTO, obra plástica de artista bijagó, trata-se de uma cabeça de vaca, de madeira, pintada a preto, branco e vermelho. É de notar a parte que representa o cachaço ligado à cabeça por amarrações de fibras vegetais. E temos a escultura cultual Nhinte-Kamachol, talvez a obra mais requintada da arte Nalu, foi com muita satisfação que reproduzi na capa do meu livro “Mulher Grande”, uma escultura deste pássaro que afugenta os maus espíritos. O acervo do Museu Nacional de Etnologia alberga peças belíssimas da arte guineense, tal como a Sociedade de Geografia de Lisboa.




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Liberdade ou evasão: 
O mais longo cativeiro da guerra do Ultramar

Beja Santos

A seu tempo se fez uma recensão sobre um livro que tem conhecido notoriedade. A DG Edições publicou em 2011 a 4ª edição, aumentada, do livro de memórias de António Lobato, cujo avião se despenhou na região de Tombali em 22 de Maio de 1963, foi capturado, ferido e levado para a prisão de Kindia, na República da Guiné Conacri. Para além da importância de um depoimento de alguém que se recusou trair a Pátria, o texto do então sargento Lobato é de importância obrigatória para quem estuda a guerra da Guiné. Nele encontramos observações sobre a criação da Base Aérea nº 12, os primeiros seis meses de operações com aviões e o estado da evolução da guerrilha logo nos primeiros meses do conflito armado.

Libertado em Novembro de 1970, António Lobato reingressou na Força Aérea em 1971, tendo sido promovido por distinção. Entre 1971 e 1980 concluiu o curso de Estado-Maior na Escola Superior da Força Aérea. Passou à situação de reserva em 1981. O post-scriptum desta edição passa em revista o trabalho de António Lobato em Cabo Verde, a sua participação no 25 de Novembro e a sua visita à Guiné em 1999 e o seu encontro com Nino a quem ele muito provavelmente deve a vida, como ele escreve: “Apesar de ser do conhecimento público que o exercício do poder pelo ex-Presidente se caraterizou por uma certa violência, não pude evitar o sentimento de uma espécie de solidariedade para com ele – afinal, só estou vivo porque o chefe guerrilheiro “Kabi Nafantchamna” assim o quis há cerca de 47 anos. Ao ler uma das suas primeiras entrevistas à imprensa portuguesa, já exilado, não posso evitar uma reação espontânea de emotividade: Nino Vieira inclui-me na sua lista de amigos em Portugal”.

Caso não encontre o livro nas livrarias, sugere-se o contacto com a DG Edições ao cuidado de Daniel Gouveia, 933573704, email: daniel.gouveia2@gmail.com ou o site: danielgouveia.com.sapo.pt.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11200: Notas de leitura (462): Rosa no Pais das Flores da Luta, por Maria do Céu Mascarenhas (Francisco Henriques da Silva)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Lembrando a mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2)

René Pélissier

Um dos erros que um historiador não deve cometer, em absoluto, é o de a partir de uma dada situação num período preciso e generalizar conclusões. Cada mentalidade é uma ilha mais ou menos acolhedora ao leitor. Mário Beja Santos cultiva as relações humanas. É um autor que não nos vai ensinar muito sobre as operações militares. Ele não participa em grandes ofensivas. Não estará mesmo constantemente assediado pelos artilheiros cubanos do PAIGC. Vive num território onde a população não está ferozmente explorada por colonos brancos gananciosos, como em certas zonas de Angola ou Moçambique, o seu sector não é uma Disneylândia mas também não é o planalto dos Macondes nem a selva dos Dembos onde cada um sabe onde está o inimigo. Onde ele vive, há uma certa fluidez. O fator étnico, histórico e mesmo social deve ser sempre tomado em conta e nunca deve ser extrapolado à escala de todo um país em África. Uma das explicações da duração da resistência portuguesa à erosão nacionalista que, finalmente, a levará ao esgotamento, reside, apesar de tudo, no facto da guerra da Guiné ter sido conduzida no terreno por soldados oriundos de meios muito humildes, habituados à dureza da vida, e contra guerrilheiros ainda mais pobres do que eles, mas bem armados, cheios de esperança e bem aconselhados. Quanto aos portugueses, a sua esperança era a de regressar o mais rapidamente possível para junto dos seus entes queridos.

Nós estamos nos antípodas de uma guerra ultratécnica, de um lado, perante camponeses fanatizados (tipo Afeganistão e, mais longinquamente, o Vietname ou a Argélia) sem possibilidade de uma real aproximação humana, ao nível dos combatentes. Os portugueses estão condenados a perder, mas lentamente. E, sobretudo, esse sentimento está mais instalado na mente dos oficiais de carreira do que na superioridade esmagadora dos seus adversários. É uma guerra entre duas paciências.

De qualquer maneira, Mário Beja Santos é o autor que publicou mais livros sobre a Guiné: pelo menos cinco grandes volumes até ao início de 2013. E publicou-os através de editoras capazes de tocar um público numeroso. O mesmo não se pode dizer dos dois livros seguintes, seja qual for o valor literário ou documental destes títulos em apreço. Aqui, nós abordamos sem pudor uma questão delicada para um crítico, mas é preciso que fique claro. Para se vender bem um livro, é preciso que ele seja bem distribuído nas livrarias e que, no mínimo, haja bons contactos na comunicação social que permitam o conhecimento desta produção. Os autores-editores e os autores que pagam a um pequeno editor para que a sua obra seja publicada são, por vezes, bem-sucedidos a ganhar dinheiro quando apresentem um tema dito “do grande público”.

Infelizmente, as memórias da guerra colonial não fazem parte desse grande público, salvo honrosas exceções. O “grande público”, em todos os países, é um público de rebanhos que segue a moda ou em conformidade com o que se vê na televisão. Falar de Timor aquando dos massacres cometidos pelas milícias pró-indonésias era uma garantia de sucesso na época. Agora, seria sopa requentada numa panela velha: impensável! Ora, no contexto português atual, a guerra colonial da Guiné interessa a pouca gente, salvo precisamente os antigos combatentes, as suas famílias e os seus amigos. O que é insuficiente. Acresce, é preciso dizê-lo em muitos casos, os simples autores-editores não fazem nada para se fazerem conhecer, ou não têm meios para isso. Alguns limitam-se a dar algumas conferências em vilas de província, em reuniões de clubes, outros não ultrapassam o nível dos antigos camaradas das suas unidades militares, alguns mencionam um ISBN na ficha técnica mas não indicam o endereço ou as livrarias onde se podem fazer encomendas. Sei isto muito bem porque eu compro – ou muitas vezes procuro comprar – todos os anos dezenas de livros que as livrarias portuguesas não sabem mesmo aonde os encomendar. São livros fantasmas, desconhecidos das melhores bibliotecas estrangeiras e mesmo portuguesas. Ou sabe-se que eles existem, talvez, mas nunca lhes pomos a vista em cima.

O mínimo que devia respeitar um autor-editor seria fornecer nos livros e na publicidade à volta da sua obra, um endereço, seja postal, seja eletrónico, e responder aos potenciais compradores se ele não quer assegurar um serviço de comunicação aos raríssimos críticos que querem divulgar a obra. De igual modo, um jornalista ou um publicista deveria nas suas recensões dizer onde se pode obter a obra de que ele está a falar. Caso contrário, é amadorismo que revela uma ausência de confiança na qualidade do livro ou uma evidente falta de profissionalismo.

Pequeno ou grande, para mim, crítico e historiador, um livro desconhecido com uma tiragem de 300 exemplares tem o mesmo valor que um best-seller, se ele é original e me traz algo de novo, comparativamente ao que já foi publicado. Mas também é preciso saber que são muito raros os antigos combatentes que conhecem aquilo que já foi escrito, vai para uns três, cinco, dez anos antes, por um membro da sua própria unidade militar, a fortiori quando se trata de livros publicados por um autor que pertence a uma outra unidade. Cada um no seu pequeno cantinho faz, por conseguinte, a sua própria “cozinha” memorial, sem ir muitas vezes ao “restaurante” – uma biblioteca especializada, quero eu dizer – para comparar e verificar.

Compreendo que um avô queira deixar aos netos as suas memórias da guerra, dizer-lhes as experiências que teve, contar-lhe as operações nas quais ele talvez tenha participado, os seus estados de alma, as suas alegrias, a sua camaradagem com este ou aquele, mesmo os seus desesperos, a brutalidade do comandante, do inimigo, o seu horror face a crimes, os mortos, os hospitais, a rotina quotidiana, os seus medos, a imbecilidade de certos regulamentos, a sua indignação por o terem obrigado a deixar a sua aldeia ou o seu bairro, a vergonha de se ter sentido impotente ou manipulado, e mesmo – isto existe também nos textos de alguns antigos combatentes das tropas especiais – o seu sentimento de satisfação por terem pertencido a um corpo de elite e de se terem sentido “super-homens” durante alguns anos. Tudo isto é admissível, mas o que se destaca, sobre 10 ou 30 páginas, é a centésima versão da viagem para Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, é que este material está muito longe de ser indispensável. Ou então que o autor seja um verdadeiro talento no campo do romanesco.

Entre os livros recentemente recebidos sobre a Guiné, assinalaremos ainda António Lobato, Liberdade ou Evasão. O Mais Longo Cativeiro da Guerra, 4ª edição aumentada, DG Edições, Linda-a-Velha, 2011, 277pp., fotos a preto e branco. Este livro foi inicialmente publicado pela Editora Erasmo, 1995, 214pp. com fotografias, analisei-o longamente (cf. René Pélissier, Angola-Guinées-Mozambique, op.cit, p.372), porque é um livro-documento importante sobre o tratamento dos prisioneiros portugueses e sobre a natureza da guerra praticada pela Força Aérea, Lobato acidentou-se em 22 de Maio de 1963, no regresso de uma operação na Ilha de Como. Como eu então cometi uma imprecisão, retifico-a agora. O autor, sargento da Força Aérea, não foi abatido diretamente pelos guerrilheiros, o seu avião simplesmente foi tocado em pleno voo. Ele pedira a um piloto de um outro T6 para verificar se o seu trem de aterragem não estava destruído, o outro piloto passou sob o seu aparelho. E foi durante esta manobra delicada que o avião do seu camarada colidiu com a hélice do avião de Lobato, este ficou ingovernável, o seu camarada despenhou-se e morreu enquanto Lobato aterrou numa bolanha de Tombali. Perderam-se assim dois aviões no dia 22 de Maio de 1963, Lobato foi feito prisioneiro, espancado, ferido e encarcerado em condições muito duras na Guiné-Conacri. Será libertado em 22 de Novembro de 1970 no decurso da operação Mar Verde, os Comandos Africanos assaltaram a prisão e trouxeram todos os prisioneiros portugueses que ali estavam. Na presente atualização da sua narrativa, em Fevereiro de 1999, Lobato foi convidado pelo Presidente ex-inimigo, “Nino” Vieira recebeu-o em pessoa em Bissau, tinha sido “Nino” Vieira a impedir que ele fosse mais mal tratado do que já tinha sido, no início do seu cativeiro: daí a adição de novas páginas (pp. 247-250) sobre este episódio menor mas sintomático da reconciliação. Assim, é necessário possuir esta 4ª edição.

É igualmente recomendado que se procure um romance histórico que decorre praticamente ao mesmo tempo que A Viagem do Tangomau…, op.cit.

Pensamos que Guilherme Costa Ganança, O Corredor de Lamel, 68 Guiné 69, 2ª edição, Chiado Editora, Lisboa, 2012, 418 pp., fotografias a preto e branco, é um romance autobiográfico que vem na sequência de outro volume, igualmente romanceado, sobre o período imediatamente anterior. Trata-se de um alferes da Madeira, da sua companhia, dos seus problemas com a hierarquia, dos seus amores epistolares e sobretudo das operações em que ele intervém em Contuboel, Bula, Cabedu, Catió e, finalmente, a partir de Farim, o famoso corredor de Lamel, que deve ainda hoje evocar muitas recordações. Uma das diferenças da Guiné relativamente a Angola é que o território sendo pouco extenso e o PAIGC militarmente muito mais ativo que a FNLA e o MPLA (e, acessoriamente, a UNITA) havia poucos sectores onde os portugueses viviam em calma ou segurança, com a exceção de Bissau e quatro ou cinco cidades do interior, nos Bijagós, e nos Felupes, e, de uma maneira mais compacta, na região dos Fulas. Dito de outro modo, à intensidade dos combates, à dureza do clima e à morbidade em geral, seria necessário juntar a raridade de sectores tranquilos para onde se podiam enviar as tropas para recuperação das energias. Na Guiné não havia Sá da Bandeira, Lunda, Bié ou vilegiaturas urbanas. A inquietação era geral e nós ainda não lemos uma só narrativa onde os soldados desmobilizados se tenham vindo a instalar na Guiné, situação que foi frequente em Angola e Moçambique. Era um Purgatório para todos e um Inferno para a maioria. Mesmo os ultrapatriotas ou os super-homens autoproclamados dos comandos, dos páras e dos fuzileiros só tinham em mira um objetivo: a peluda. Como é evidente, com o passar dos anos e com a juventude já no passado longínquo, certos autores não querem mais do que rememorar – seletivamente – os raros momentos em que eles estavam otimistas, mas se dispuséssemos de um corpus completo de todos os livros publicados pelos antigos soldados da Guiné, poder-se-ia estabelecer uma grelha de análise fina onde certamente se poderia constatar que as más recordações são mais frequentes que as reminiscências felizes. E isto ainda mais no Exército, em especial nos açorianos e nos madeirenses que foram enviados para a Guiné nos últimos anos da guerra.

Em última análise, todos estes autores (uma centena) não tiveram nem têm uma memória tão compassiva face aos guineenses como Mário Beja Santos que deve ter sido o alferes (1968 a 1970) mais atento à sorte dos seus homens, velhos e desesperados, vendo em que decrepitude caiu a Guiné, tal como ele a visitou em 1990, 1991 e 2010. Ele resumiu o quadro através de uma expressão fúnebre: “um buraco na escuridão” (p.509).

Tantos mortos, tantas esperanças para ter que ver um antigo coronel do PAIGC mendigar-lhe um saco de arroz.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

sábado, 19 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9924: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (54): Mesmo com um atraso de 4 anos, farei chegar a vossa mensagem a meu pai, Joseph Turpin (Iracema Turpin)



Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > 7 dde Março de 2008 > Último dia do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Mensagem do Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, para  o nosso camarada da FAP, hoje major piloto reformado, António Lobato, que esteve prisioneiro em Conacri, sete anos, de 1963 a 1970.

Vídeo (melhorado) (1' 36''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes.



Imagem à esquerda: capa do livro do António Lobato, Liberdade ou Evasão. Amadora. Erasmos, 1995


1. Mensagem da nossa leitora Iracema Turpin, da Guiné-Bissau:

De: Iracema Turpin
Data: 17 de Maio de 2012 15:02
Assunto: Joseph Turpin

Boa tarde:

Antes de mais agradeço a sua publicação que veio elucidar um pouco mais sobre o PAIGC de hoje comparado com o tempo de luta.


Apesar de já terem passado alguns anos desde a publicação do video referente aqui disponível:

27 de setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça) (*)

 Farei chegar ao meu pai a sua mensagem.

Mais uma vez obrigado pelo gesto e vontade que demonstrou em que fosse do conhecimento dele que "a carta chegou a Garcia". (**)

Sem mais agradeço desde já a sua atenção.
Cumprimentos
Iracema Turpin
________________

Notas do editor:

(*) Trata-se de um pequeno vídeo (1' 36''), gravado por mim em Bissau, no Hotel Palace, no último dia do Simpósio Internacional de Guileje, em 7 de Março de 2008. 
As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo.

Joseph Turpin, um dos históricos do PAIGC, pediu-me para mandar uma mensagem para o nosso camarada António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 faz uma aterragem de emergência em 1963, na Ilha do Como.

Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à sua libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde.

"Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta.

Turpin recorda a seguir os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade...

"Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos atrás, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. "Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao teu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada...

O Joseph Turpin insistiu comigo para entregar pessoalmente ao António Lobato esta mensagem. Infelizmente só em setembro de 2008, seis meses depois é que tive oportunidade de divulgar o vídeo no nosso blogue esperando que ele acabasse por chegar ao conhecimento do seu destinatário.

Não tinha, ma altura, como continuo a não ter, nenhum contacto pessoal com o António Lobato, nem sei se ele nos lê, pelo que não posso garantir ao Joseph Turpin que "a carta chegou a Garcia".

Na altura, enviei, para o António Lobato, da minha parte, e da parte dos demais editores, bem como de toda a nossa Tabanca Grande, uma palavra de respeito, camaradagem, solidariedade e apreço. Quanto ao Joseph Turpin, também nunca mais tive notícias dele... Da conversa havida em Bissau, recordo-me de ele me ter dito o seguinte:

(i) O Élisée Turpin era seu tio e foi um dos fundadores do PAIGC;

(ii) O Amílcar Cabral, em Conacri, ficava originalmente em casa do pai do Joseph;

(iii) Os Turpin eram uma família de comerciantes;

(iv) Não falavam português, mas francês - o próprio Joseph aprenderia  o português mais tarde...

Na minha simples qualidade de mensageiro, espero que "a carta tenha chegado a Garcia", neste caso, ao conhecimento do Lobato. Por outro lado, é gratificante saber que a filha do Turpin localizou-nos, viu o vídeo e vai transmitir a notícia ao pai... Mesmo que se tenham passado quatro anos, o que é muito na nossa nova galáxia ...

Posso entretanto concluir: (i) que o Joseph Turpin está vivo (Mantenhas para ele, votos de boa saúde e longa vida!); (ii) que somos lidos/vistos na Guiné-Bissau e em toda a parte; e (iii) que o Mundo é Pequeno e a nossaTabanca... é Grande!... 

Obrigado, Iracema. E viva o povo irmão da Guiné-Bissau!


quinta-feira, 26 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8331: O Alenquer retoma o contacto (6): Velhas recordações (Armando Fonseca)

1. Mensagem de Armando Fonseca* (ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64), com data de 25 de Maio de 2011:

Caros amigos da Tabanca Grande
Cá estou de novo com um grande abraço para todos os camarigos e em especial para os editores destes magníficos trabalhos que decerto lhes ocupa muito do seu tempo, que poderia ser utilizado em outras digressões mas, como diz o velho ditado, quem corre de gosto não cansa.


O Alenquer retoma o contacto (6)

Velhas recordações

Li ontem mesmo os depoimentos da senhora enfermeira Arminda Santos**, e isso trouxe-me à ideia velhas recordações. Como disse anteriormente, muito do tempo que passei na Guiné foi a fazer segurança ao aeroporto de Bissalanca e lembro-me perfeitamente da chegada dos DOs e dos helicópteros com feridos vindos do interior, mas o que mais me chamou a atenção foram duas descrições que ainda hoje relembro com emoção.

Quando o F86 se despenhou no fundo da pista, eu estava lá. Toda a assistência se deslocou de imediato para o local, bombeiros e corpo médico, não esquecendo os curiosos, e, quando todo o mundo procurava o piloto dentro do avião que já se encontrava em chamas, apareceu ele, que tinha saltado momentos antes do embate, a sair de dentro de um monte de terra mexida que provinha das obras de ampliação da pista. Esta ampliação permitiria receber aviões comerciais a jacto, que antes das mesmas não dispunham de espaço de manobra. Então, todo empoeirado e um pouco combalido, foi socorrido pela equipa de saúde enquanto os bombeiros acorriam ao incêndio a fim de evitar uma possível explosão.

Também quando os dois T6, um dos quais pilotado pelo sargento Lobato***, se despenharam e em que o outro piloto, um Alferes recém-chegado, foi encontrado junto dos destroços do avião, não havendo mais notícias do sargento Lobato. Eu vivi de perto esse episódio, até me lembro de o seu pai se ter deslocado à Guiné para tentar ir ao Senegal para ver se tinha noticias de seu filho. Entretanto o tempo passou, a esposa apareceu vestida de escuro e para nós, que assistíamos de fora, convencionou-se que ele estaria morto.

Qual não foi o meu espanto quando anos mais tarde vejo na televisão a chegada do sargento Lobato a Portugal, agora graduado em tenente, o que me causou algum conforto por saber que afinal ele não tinha morrido.

Caro camarigo Vinhal e outros, se acharem que este meu depoimento tem algum interesse em ser publicado muito bem, caso contrário ignorem-no.

Despeço-mo com mais um grande abraço para toda a tabanca.
Armando Fonseca (O Alenquer)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8109: O Alenquer retoma o contacto (5): O ataque de 23 de Março de 1964 a Sangonhá (Armando Fonseca)

(**) Vd. poste de 23 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8314: Tabanca Grande (286): Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos, ex-Ten Grad Enf.ª Pára-quedista, 1961-1970

(***) Vd. postes de:

26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3244: Bibliografia de uma guerra (32): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Carlos Vinhal)
e
7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6945: Notas de leitura (145): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7179: (In)citações (16): Os irmãos Turpin, José e Eliseu, "verdadeiros filhos da Guiné" (Luís Graça)

Há dias ouvi pela rádio RFI, uma entrevista de José Turpin (irmão de Elysée Turpin, co-fundador do PAIGC) que falava de Cabral dizendo:

- Quando ele chegou a Conacri, escondido sob o pseudónimo de Abel Djassi, e onde eu e mais outros camaradas já nos encontrávamos, rapidamente se impôs como líder, não pela força mas pela sua integridade moral e força de convicção. Foi ele que nos unificou sob uma única liderança política e estratégica, antes dele, os "verdadeiros" Guineenses pavoneavam-se por aí, perdendo seu tempo em discursos patrióticos e disputas pueris por mulheres (prostitutas, provavelmente).

Cherno Baldé (*)


Comentário de Luís Graça (foto à esquerda, em Bambadinca, 1969):

Meu caro Cherno, conheci o José (ou Joseph) Turpin em Bissau, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) (**).

Fiz, inclusive, um pequeno vídeo com um depoimento dele, com uma mensagem de saudação destinada ao António Lobato, o hoje major piloto aviador reformado que foi prisioneiro do PAIGC durante 7 anos em Conacri... Nunca cheguei a saber se o António, que é minhoto de Melgaço (se não me engano),  teve conhecimento do vídeo, que de resto está disponível em You Tube > Nhabijoes.

Embora tivesse sido breve a nossa conversa, fiquei com uma boa impressão deste homem em cuja casa, a dos pais que eram comerciantes, se acolheu Amílcar Cabral (aliás, Abel Djassi), quando veio, da clandestinidade,  para Conacri, creio que  em 1960. Nessa altura o Joseph (hoje, José) nem sequer falava (ou falava muito mal o) português, segundo depreendi da nossa conversa no Hotel Palace, em Bissau... A sua admiração por Amílcar terá começado aí...

Como aqui, neste blogue, já o disse em tempos,  o José pediu-me para gravar e mandar uma curta mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador português, cujo caça-bombardeiro T6 fizera uma aterragem de emergência, na Ilha do Como, em 1963.

Feito prisioneiro por camponeses e entregue ao PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à sua libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde, como todos sabem. (***)

Gostei da autenticidade, da simplicidade e da sinceridade deste homem:

- Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim... - são as primeiras palavras deste histórico do PAIGC, na altura, nos anos 60, a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. (O irmão, o Elisée ou Eliseu, nascido a 23 de Maio de1930, viveu sempre em Bissau onde foi guarda-livros da Casa Gouveia, entre 1958 e 1964, e depois gerente da ANCAR, até 1973, nunca tendo particiapdo directamente na luta armada).

Nesse curto vídeo, o José Turpin recordava os momentos em que, por diversas vezes, visitara o nosso camarada António Lobato na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que, afinal, revelavam o melhor da nossa humanidade...

- Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade...

José Turpin agradecia, por fim, ao Lobato as palavras de apreço com que ele se referira à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua dura experiência de cativeiro. Agradecia também o exemplar do livro que o Lobato lhe mandara e que ele leu, com muito interesse. Diz ainda, no vídeo, que ficara sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato.

- Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau - são as últimas palavras, deste homem afável, e de grande estatura moral, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada.

Como eu gostava, Cherno Baldé, que este homem se juntasse a nós, aqui, na Tabanca Grande. Ele é seguramente um "verdadeiro filho da Guiné", independentemente das circunstâncias do nascimento (julgo que os dois irmãos nasceram na Guiné-Bissau, indepentemente de os pais, comerciantes,  viverem ou terem vivido em Conacri).

Que será feito do José Turpin, hoje ? E do seu irmão, Elisée Turpin (hoje com 80 anos) (**) ? E dessa mulher extraordinária, que é a Carmen Pereira, outra "verdadeira filha da Guiné", em 7 de Março de 2008, que também conheci na altura e que é visita, sempre que vem a Portugal, da casa da Júlia e do Nuno Rubim. (Aliás, as duas mulheres são primas).

Cherno, se souberes notícias do José o Eliseu não o conheço pessoalmente), dá-lhe um grande abraço meu e transmite-lhe o meu convite para ingressar na nossa Tabanca Grande.E, já agora, que estamos em maré de mantenhas, dá também um abraço ao Cadogo Pai, membro da nossa Tabanca Grande.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7176: (In)citações (20): Os verdadeiros filhos da Guiné (Cherno Baldé / José Belo)

(**) Vd. entrevista dada por Elisée (ou Eliseu) Turpin ao portal Notícias Lusófonas  > 20 de Janeiro de 2003 > Pai de duas nacionalidades foi assassinado há 30 anos , de que se reproduzem, com a devida vénia,  alguns dos excertos mais significativos:

(...) Quando se assinala o 30º aniversário da "partida" do "pai" [, Amílcar Cabral,] das nacionalidades da Guiné-Bissau e Cabo Verde, as certezas da memória "esmagam" as dúvidas sobre a orquestração do assassínio do guerrilheiro. Apenas a especulação aponta possíveis cenários para o que se passou naquele dia [20] de Janeiro [de 1973], mas a memória de Elisé Turpin, um dos "camaradas" de Amílcar, permite seguir, com assinatura, os mais importantes momentos da "gestação" da independência da Guiné-Bissau.
 
Após a longa batalha de 11 anos travada pelos guerrilheiros liderados por Cabral e quase três décadas de independência, foram muitos os heróis que ficaram esquecidos num "canto da história" da Guiné-Bissau, permanecendo Amílcar como o regaço onde todos se recolhem.
 
Foi por "convicção" que, logo após a independência, EliséeTurpin se retirou para o seu "canto da história" e é para "ajudar a, finalmente, cumprir o ideal de Amílcar Cabral" que agora, com 72 anos de idade, regressa através de um passeio pela memória.
 
"Não há futuro possível - para a Guiné-Bissau - sem os ecos do passado a marcar o passo da história", considera Turpin, e é com essa convicção que, na sua casa, a 50 metros da sede do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), situada na Praça dos Heróis da Liberdade da Pátria (ex-Praça do Império), em Bissau, activa a memória.
 
Elisée Turpin conta, enquanto fundador do PAIGC ao lado de "mais cinco camaradas: Amílcar e Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes e Júlio Almeida", o que foram os primeiros passos desta organização política que viria a ser o pilar central da "libertação da Guiné-Bissau".  Mas há ainda outro "pormenor" que enfatiza o papel de Turpin na criação do PAIGC: "Sim, posso ser considerado como o único indivíduo que esteve na fundação do partido e que era genuinamente cidadão guineense. Os outros eram todos filhos de pais cabo-verdianos".

O surgimento do PAI (Partido Africano para a Independência), depois transformado em PAIGC na Guiné-Conacri, acontece "por vontade e iniciativa de Amílcar Cabral", então jovem engenheiro agrónomo regressado dos estudos em Portugal, em 19 de Setembro de 1956.  Antes do surgimento do PAI, havia na então Guiné portuguesa muitas outras organizações ou movimentos de tendência nacionalista que aspiravam à libertação do país.  Tudo no seguimento dos ventos da libertação que sopravam nas outras províncias coloniais, sobretudo as províncias vizinhas do território da Guiné-Bissau: Senegal, Gana e Guiné-Conacri.

"Mas, verdade seja dita, o PAI foi de longe a organização melhor estruturada, conseguindo rapidamente granjear a simpatia dos rapazes da altura, que encontraram em Amílcar pensamento e personalidade, o estandarte que secretamente procuravam para poder seguir", diz Turpin com um leve, mas mal disfarçado, ar de orgulho por ter vivido estes momentos ao lado do mítico guerrilheiro.

Tudo começou com "um simples clube de futebol (não se recorda do nome) do qual faziam parte os fundadores do partido" e que rapidamente foi transformado num "espaço de consciencialização dos moços da altura para uma ideia de libertação do país".

"Lá partíamos nós, com as coisas do futebol à frente, mas com as coisas da libertação da Pátria atrás, dos lados, por cima, por baixo ... cada vez mais, cada vez mais conscientes do pontapé certeiro que estávamos a dar na História", diz Turpin.  Iniciativas deste tipo já aconteciam no Senegal, para onde muitos dos guineenses se deslocavam em visitas familiares, sobretudo Turpin, que, então, tinha familiares na administração pública em Dacar (capital).

Com tudo isso, cita de memória, Cabral dizia: "Olhem que os portugueses nos estão a enganar com alguns privilégios que dão a um grupo reduzido de indivíduos, enquanto a grande parte da população é explorada e maltratada".

"Devemos avançar para a independência", defendia Cabral, ainda citado por Turpin, mas acompanhava sempre esse desígnio com a exigência de uma "independência negociada". Ou seja: "Com diálogo. Sem violência".  Cabral era um "profundo cultivador do diálogo e da tolerância", frisa, admitindo algumas saudades desta forma de estar nos dias de hoje.

Chegado a este ponto do "escorrer" das memórias, Elisée Turpin fala também da polémica que é, na Guiné-Bissau, quase da idade do PAIGC: Quem foram, de facto, os fundadores do partido?

Sobre a história da dúvida de quem foram os fundadores do partido responde um dos eleitos: "Havia muitas pessoas com as quais Cabral vinha mantendo um relacionamento mais ou menos próximo mas, no acto da fundação do partido, Cabral fez uma selecção de pessoas da sua inteira confiança".

"Não se podia expor muito ao risco da PIDE (...) desconfiar da nossa actividade", recorda. "Todos nós éramos funcionários públicos na altura. Cabral era engenheiro agrónomo, Júlio Almeida, prático agrícola, Fernando Fortes, aspirante nas alfândegas, Aristides Pereira, chefe de administração e eu era guarda-livros", diz, aliviado, como que dando por sepultada a dúvida sobre este assunto.

"Lembro-me que, após a fundação do PAI, a PIDE quase que não saía do nosso encalço. Sabia que estávamos “contaminados” com o “vírus” dos movimentos de libertação, que se tinha já instalado noutras paragens de África. Mas, graças a Deus, sempre soubemos esconder os nossos propósitos", adianta.  No início, diz, "começámos (1956/57) logo os trabalhos de mobilização com os Balantas (a mais representativa etnia da população guineense) de Brá e Portegol, e ainda na região de Mansôa".

Fingiam que iam caçar coelhos e perdizes, mas a caçada era outra: "Aproveitávamos para falar com os rapazes sobre os propósitos do partido". Isto é, mobilizar a juventude para seguirem para os campos do partido na Guiné-Conacri". 

Nesse trabalho de mobilização a favor do PAI os "camaradas" contaram com a ajuda de portugueses que estavam contra a ditadura fascista de Oliveira Salazar, alguns liberais, outros revolucionários do PCP que estavam na Guiné, "como é o caso de José Tomás Pires, Fortes Teixeira, Filipe Pomba Guerra, o próprio chefe do posto da polícia, de nome Liberato (...) todos estavam do nosso lado, só que de forma bem disfarçada".

Houve mesmo um administrador português que, na altura, só não prendeu Amílcar Cabral porque não quis, pois sabia muito bem das suas actividades "subversivas" e um dia chamou Cabral à sua residência, conta Turpin, para lhe dizer: "Rapaz, sei tudo o que andas a fazer mas não te prendo porque gosto muito de ti. Vê lá no que te metes".  Esse administrador era Diogo José Pereira de Melo [e Alvim, e não Antunes, como por lapso consta no portal , governador da Guiné entre 1954 e 1956].

O objectivo primeiro e último do partido de Cabral foi sempre a independência da Guiné que, ainda segundo Turpin, dizia: "Se a independência tiver que passar por um partido marxista, então vamos tê-lo".  E foi o que foi. Mas Cabral fazia também a distinção entre ter "um partido de cariz marxista e ser marxista", o que "ele mesmo dizia - o próprio Turpin o ouviu afirmar -, no princípio, que não era".

O contacto de Elisée Turpin com Cabral esfriou muito quando ele decide transferir a base do partido para Conacri, onde decidiram mudar a denominação do partido de PAI  [, Partido Africano da Independência,] para PAIGC.  "Eu não participei na luta armada, ou seja, nos tiros. Não porque não quisesse, o facto foi que achei que podia ser útil ao partido estando cá para outras tarefas, tais como a mobilização de outros camaradas", frisa.  E acrescenta, arredando qualquer hipótese de ser encarada a afirmação como uma justificação: "Fui eu quem trouxe de Dacar aquele que foi o primeiro instrutor dos guerrilheiros guineenses em Conacri, o comandante Luciano Ndaw. Esse senhor já tinha feito a tropa colonial portuguesa e, portanto, sabia bem da poda".

"A minha ligação a Cabral resumiu-se à estadia dele em Bissau. Depois da sua partida para a Guiné-Conacri praticamente deixamos de nos corresponder. Passei a falar mais com o irmão dele - Luís Cabral (...) - e com Rafael Barbosa que na altura era responsável pela chamada «zona zero» de mobilização, hoje a capital do país", Bissau.

"Não posso falar muito do partido depois da independência porque, praticamente, desliguei-me, mas uma coisa sei: o partido que Cabral e nós fundámos queria mais de que isto que hoje temos. O nosso sonho era transformar a Guiné numa Suíça de África, pois julgávamos, e eu continuo a julgar, que o país tem potencialidades para tal", diz em tom de desafio às "novas gerações". (...).

[ Fixação / revisão de texto / destaque a cor: L.G.]

(***) Tenho um exemplar do livro escrito pelo António Lobato, Liberdade ou evasão: O mais longo cativeiro da guerra (Amadora, Erasmos, 1995), com a particularidade de ter duas dedicatórias, belíssimas. 

Uma, escrita pelo punho do Miguel Pessoa, que me ofereceu um exemplar que tinha a mais em casa, e que diz esta coisa singela, mas que me tocou, como camarada: 

"Ao Luís Graça, do Miguel Pessoa, alguém que, felizmente, não precisou de escrever um  livro assim. Jun 2009."... 

E, a propósito, vai daqui um grande Alfa Bravo para o Miguel e um beijinho ternurento para a Giselda, que ontem fizeram anos de casados e andaram pelas "minhas terras" da Lourinhã, antes de seguirem, hoje, para o almoço de convívio da Tabanca do Centro, em Monte Real... Que sejam (e)ternamente felizes o Miguel e a Giselda... e que levem para o régulo Joaquim Mexia Alves e demais convivas da Tabanca do Centro os nossos votos de amizade e camaradagem.

A outra dedicatória é do autor e reza assim: 

"A quantos me amam ou odeiam, sem que eu dê por isso; a todos os que amo, sem nunca lhes ter dito; àqueles de quem gosto e que acredito gostarem de mim, (...)".

Do livro do Lobato, tomo a liberdade de transcrever este excerto:

“(...) O comportamento deste homem [o chefe dos sentinelas, Koda, de etnia balanta,] não pode servir de exemplo para qualificar os outros guerrilheiros do PAIGC e muito menos uma parte dos seus responsáveis. 

De entre estes, merecem especial referência Fidelis Cabral, Aristides Pereira, Joseph Turpin e o Tio Lourenço, não só pela sua moderação, sensatez e sabedoria, mas sobretudo pela força do humanismo que deles emana e se repercute em quantos, por razões comuns ou mesmo contrárias, se encontram à mercê das suas decisões. São os homens bons do presente, mas sem dúvida também os do futuro,

"Uma vez por outra , um deles vem falar comigo e procura tranquilizar-me. Joseph Turpin, que passa a maior parte do seu tempo no Cairo, em representação do partido, diz-me que o Papa intercedeu por mim junto do Arcebispo de Conakry, Monsenhor Tchidimbo, o que certamente terá resultados práticos. Mas o tempo vai passando e nada acontece.

"Fidelis, um advogado formado em Portugal, procura convencer-me das razões da sua luta, do respeito e amizade pelo povo português. Afirma que, após a independência, não pretendem ligar-se a ninguém, mas que se isso tivesse de acontecer, só poderiam continuar com os portugueses” (…) (Lobato, 1995, p. 168)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6945: Notas de leitura (145): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,


Há páginas muito curiosas neste testemunho do Major Lobato. Pena é que não tenhamos o seu relato mais detalhado da Guiné, entre 1961 e 1963. Dá que pensar o que era a implantação do PAIGC no Sul, logo em Maio de 1963. E sente-se o amadurecimento de um resistente numa prisão tenebrosa, num estatuto infame de criminosos de guerra.


Um abraço do
Mário


Major António Lobato, o mais longo cativeiro da guerra colonial

Beja Santos

Alistou-se na Força Aérea como voluntário, em 1957. Embarcou para a Guiné, em 1961. Em 1963, em consequência de uma colisão entre dois aviões, depois de uma operação na ilha do Como, foi feito prisioneiro pelos guerrilheiros do PAIGC. Começava um longo cativeiro que só iria terminar com a operação Mar Verde, em finais de 1970.

O seu relato intitula-se “Liberdade ou Evasão” (Editora Ausência, 2001). É um documento de real importância: fica-se a saber a implantação do PAIGC no sul da Guiné, logo no primeiro ano da luta armada, a sua mobilidade até à República da Guiné; as ambiguidades de ser prisioneiro de guerra e de viver em silêncio, sem poder comunicar com a família e com o país; temos acesso a conversas com dirigentes do PAIGC e o que deles pensa o prisioneiro; acima de tudo, o testemunho da tragédia do isolamento, o modo como se procura ultrapassar o abismo de viver rodeado de outros camaradas, num cocktail com presos do regime de Sékou Touré.

A despeito de diferentes contradições (como aquela de estar plenamente informado sobre a ditadura de Sékou Touré quando é enclausurado na Maison de Force de Kindia com o rótulo de criminoso de guerra, ele, sargento Lobato, que dizia nada saber de política) é um documento que de longe regista as múltiplas dores e sofrimentos de estar preso em terra alheia, sem nunca vacilar diante das propostas de desertar ou mancomunar-se com o inimigo. É um relato por vezes minucioso, confessional, dá pormenores relevantes sobre a vida em campo de concentração.

Vejamos o que diz do seu encontro com Nino Vieira, pouco depois da sua captura na região de Tombali:


“Sentado no tronco seco de uma velha árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de kaki verde-escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de corno pendurado ao pescoço por uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, de que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”. 

Metido numa prisão em Boké, manifesta o nojo pela degradação a que sujeitam o ser humano:

 “A luz que a grade filtra é agora um pouco mais intensa do que ontem, à minha chegada. Sento-me na cadeira-cama em que dormi e fico a olhar a parede em frente, a menos de meio metro do meu nariz… Não tem qualquer cor definida, está cheia de nódoas indecifráveis, de sulcos cavados no reboco, de matéria que sobre ela deve ter sido projectada, que aderiu à superfície e solidificou com o tempo: sangue?… escarros?… fezes?… É uma parede suja, muito suja, uma daquelas paredes de calabouço que só conhecemos através da imaginação dos romancistas”.


Começam os interrogatórios, é perguntado sobre o regime político em Portugal, o que é uma república unitária e corporativa, o que é que ele pensa sobre a guerra colonial. Depois encontra Otto, um cabo-verdiano, ex-radiotelegrafista da Aeronáutica Civil que trabalhou com ele no aeroporto de Bissau. Otto leva-o até junto de guineenses que se juntaram ao PAIGC. E escreve, sentenciador:

“Os pobres guineo-portugueses fitam-me com um ténue sorriso nos lábios gretados pelo calor e pela subnutrição e naqueles olhos esbugalhados pela surpresa, lê-se a esperança longínqua de um regresso à terra-mãe, ao doce chicote do colonizador que durante quinhentos anos lhes garantiu a banca fresca, pão, água e alguma aprendizagem técnica, científica e cultural”. 

Transferido para Conacri, é de novo interrogado: a guerra que Salazar faz em África é justa? O que sabe sobre as prisões políticas em Portugal, explique-nos a organização da PIDE, o que pensa da conferência da Adis-Abeba, quer trabalhar com o general Humberto Delgado? Nega a responder, recusa colaborar, vai direitinho para a Maison de Force de Kindia. Assim se inicia a longa etapa da sobrevivência, é um prisioneiro posto à disposição não se sabe bem de quem e como. Vai sofrer estados de revolta, sentir as entranhas corroídas pela angústia.

Um homem da Guiana, ali preso por roubo, oferece-se para mandar uma mensagem até à família. É tocante o que escreve, a revelação dos seus sentimentos. Temos depois um dos pontos mais altos do seu relato, a descrição da vida do Forte, a situação dos degredados, os seus gritos, a observação que faz para ver se pode fugir, a luta contra os percevejos, os exercícios de ginástica. Começa a receber encomendas por via da Cruz Vermelha, recebe as visitas de Amílcar Cabral, inabalável, recusa colaborar. Depois tenta fugir. É interessante comparar a sua descrição com aquela que fez o alferes Rosa, e que já aqui publicámos no blogue. Ajuíza positivamente o comportamento de dirigentes do PAIGC como Fidelis Cabral, Aristides Pereira ou Joseph Turpin dizendo que são homens bons, moderados e sensatos.

Até que chegamos a 22 de Novembro de 1970, a operação Mar Verde. Refere o seu encontro com o capitão tenente Alpoim Calvão e a partida de Conacri. E, por fim, as peripécias da chegada a Portugal e a sua amargura quanto a atitudes e comportamentos de oficiais da Força Aérea, que o desiludem. Termina o seu relato citando Emanuel Mounier: “Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão”.

Chegara a hora de recomeçar a vida, vencida estava a duríssima etapa de sobrevivência, anos e anos a viver à beira do desespero (*).

Este livro passa a pertencer à biblioteca do blogue.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6941: Notas de leitura (144): Amílcar Cabral Documentário (Mário Beja Santos)

(*) Relacionado com este poste,  vd. 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(...) Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo.

Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correio, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como .

Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. "Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta.

Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... "Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. "Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada...(...)

terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4330: Bibliografia de uma guerra (44): Memórias de um Prisioneiro de Guerra, de António Júlio Rosa (M. Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Abril de 2009:

Carlos e Luís,
Conforme o combinado, fiz a recensão do livro do António Júlio Rosa para a nossa bibliografia.

Com abraço,
Mário


Memórias de um prisioneiro de guerra

Beja Santos

As três guerras em que participámos em África, entre 1961 e 1974, não só definiram a identidade do país que hoje somos como deixaram marcas indeléveis nos que combateram, nos que se estropiaram, nos que vieram traumatizados pelas diferentes manifestações de horror que qualquer guerra comporta. Porque matamos, vemos e ouvimos morrer, porque fechámos os olhos ao nosso camarada que exalou o último suspiro ao nosso lado ou, mais remotamente, porque ficámos prisioneiros ou alguém desapareceu à nossa volta e veio a ficar refém do inimigo. Tivemos poucos prisioneiros de guerra e as suas histórias devem ser conhecidas.

António Júlio Rosa, nascido em Abrunhosa-a-Velha, povoação do conselho de Mangualde, parte com vinte anos para Mafra, tem o sétimo ano de liceu, vai frequentar o curso para oficiais milicianos. É um jovem tímido que regista a magnificência do Convento de Mafra, vai ao cinema da vila ver os filmes musicais de Giani Morandi, sentiu gosto na preparação física, no fim da recruta foi para Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, tirar a especialidade. Também não desgostou da atmosfera do quartel, da actividade física e das marchas finais. Em Vendas Novas fez 21 anos. Depois, é colocado em Leiria, no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 4.

Em Outubro está mobilizado para servir na Guiné, embarcará no dia 10 de Dezembro de 1967 no “Alfredo da Silva”. Em 3 de Fevereiro, de 1968 cairá nas mãos de uma força atacante do PAIGC que viera flagelar Bissássema, perto de Tite. O relato deste calvário constitui as “Memórias de um Prisioneiro de Guerra”, por António Júlio Rosa, Campo das Letras, 2003.

É um depoimento que cativa pela sua singeleza e simplicidade, é um abrir do coração para relatar páginas de um tempo vivido entre a ignomínia e a expectativa de um regresso a Portugal. Trata-se de um relato comedido, de quem teve tempo suficiente para ajustar a contabilidade de um tempo paradoxalmente vazio, onde se montava a engrenagem de uma fuga e se esperava um quase milagre de um regresso, fosse qual fosse o pretexto.

António Júlio Rosa foi em rendição individual, foi bem acolhido pelo Batalhão de Tite, gostou do seu Comandante de Companhia, o Capitão Miliciano Costa, juiz de profissão. Começou a descobrir a guerra local, os riscos, os usos e costumes, fez os primeiros patrulhamentos, até que chegou a hora de ocupar Bissássema. Recebeu como missão ir com o seu pelotão e mais dois de milícias (um de Tite e outro de Empada) conquistar e ocupar Bissássema, então ocupada pelo inimigo.

Ocupar Bissássema não parecia ser muito difícil. Tratava-se de uma tabanca de onde as forças do PAIGC tinham desaparecido sem deixar rasto, os 70 homens entraram sem problemas e logo começaram a construir abrigos e planear um sistema defensivo, durante dias foi um enorme movimento de enxadas, pás e motosserras, já que era bastante grande a área para defender. Pela meia-noite começou um ataque do PAIGC, meia hora depois o tiroteio parecia ter acabado. Foi esperança de pouca dura, pois logo a seguir começou um novo ataque, a força do PAIGC entrou dentro do quartel lançando granadas e semeando o pânico. Abalado com a explosão de uma granada, António Rosa e dois soldados foram apanhados à mão. Na madrugada do dia 3 de Janeiro de 1968 ele passou a prisioneiro de guerra e levado para a Guiné-Conacri.

Primeiro, o estupor da captura, a confusão de partir dentro do mato denso, o chegar a uma base inimiga e ser fechado numa pequena casa de mato. Depois, os primeiros interrogatórios, António Rosa ainda tenta ocultar o posto, será depois denunciado pela carteira com o bilhete de identidade militar que levava no seu saco de campanha. Em seguida, uma nova marcha passando por diferentes acabamentos, novos interrogatórios, em que o prisioneiro vai descobrindo que os guerrilheiros recebiam apoios dentro das povoações onde operavam as tropas portuguesas.

Ele escreve: “O Vicente, um dos chefes da base, mostrou-nos, como muito orgulho, tabaco Marlboro e sabonetes Lux que a irmã lhe tinha enviado nos últimos dias da povoação de Tite. Aquela sua irmã era esposa do Jamilo, o proprietário do único café existente na povoação da sede do meu batalhão. Se enviavam encomendas, também era certo, mas não sabido, que forneciam todo o tipo de informações acerca da nossa tropa. Naquele teatro de guerra, como é que poderíamos saber quem nos apoiava verdadeiramente?”.

Novas marchas forçadas, os prisioneiros vêem à noite a iluminação de quartéis portugueses nesta região Sul, atravessam o corredor de Guilege, terão percorrido cerca de 200 km a pé em 6 dias, atravessaram a fronteira, subiram para uma camioneta e chegaram a Boké. É aqui que conversam com Nino, então comandante da zona Sul, e daqui partiram para Conacri onde foram recebidos por Amílcar Cabral. Mais tarde, partiram daqui para a prisão de Kindia onde o alferes Rosa vai encontrar Lobato, um piloto da Força Aérea que ali estava há 4 anos como prisioneiro.

Foi assim que começou a vida de cativeiro, com tempos mortos, algum ódio e muita hostilidade dos guardas. O alferes Rosa conhece o furriel Vaz. Será com Vaz e Lobato que Rosa vai começar a gizar um plano de evasão. Kindia era uma prisão para gente considerada perigosa. Os três começam a estudar as possibilidades de se evadirem, pensaram em fugir de avião, furtarem uma viatura, fugir a pé. Os dias passavam lentamente, havia tempo para ponderar todos os pormenores para ter sucesso em alcançar de novo a Guiné. E em 3 de Março de 1969 o plano de fuga é posto em prática. Inicialmente, tudo correu muito bem, internaram-se na floresta, passaram perto de aldeias, comeram fruta, viveram todas as privações possíveis. Ao fim de 6 dias, foram capturados. Desta vez não foram para Kindia mas para Conacri. Inicia-se agora um novo período (de vinte meses) de cativeiro.

Novos ódios, novos interrogatórios, chegam notícias da família, António Rosa vem a saber que já não é filho único, acabara de nascer um irmão. António Rosa regista no meio deste tratamento duríssimo a boa educação de Vasco Cabral que sempre os tratará com cortesia, em todas as circunstâncias. Na noite de 21 de Novembro de 1970, no decurso da operação “Mar Verde”, os prisioneiros portugueses na Guiné-Conacri irão ser libertados e transportados em navios de guerra até aos Bijagós e daqui para Bissau. Farão a viagem num avião militar DC6 até Lisboa.

Segue-se o regresso a Abrunhosa-a-Velha, mais tarde em Mangualde António Rosa irá leccionar Educação Física e depois tirará o curso de professor no Instituto Superior de Educação Física. Irá efectivar-se na Escola Secundária D. Dinis.

António Rosa exerceu o dever de memória. Ele e todos os outros prisioneiros que participaram em experiências de amargura e elevado conflito, merecem-nos esta narrativa de um sofrimento que não pode ser iludido ou ignorado.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4269: Agenda Cultural (11): Ciclo de Encontros Guerra Colonial: Realidade e Ficção - Alverca do Ribatejo (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3936: Bibliografia de uma Guerra (43): 14.º Volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (V. Briote)

sábado, 27 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guileje > 7 de Março de 2008 >

Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). 

As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo. Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correia, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como (*). 

 Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. 

"Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. 

 Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... 

"Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... 

Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. 

"Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao teu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada... 

 O Joseph Turpin insistiu comigo para entregar pessoalmente ao António Lobato esta mensagem. Infelizmente só agora tive oportunidade de o divulgar no nosso blogue (*), esperando que ele acabe por chegar ao conhecimento do seu destinatário. 

Não tenho, por outro lado, nenhum contacto pessoal com o António Lobato, que só vi uma vez, por ocasião da estreia do filme-documentário As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes. Espero, ao menos, que  alguém possa garantir, ao Joseph, em Bissau, que "a carta chegou a Garcia".

Para o António Lobato vai, da nossa parte, da minha e dos meus editores, bem como de toda a nossa Tabanca Grande, uma palavra de respeito, camaradagem, solidariedade e apreço.

Entretanto, da conversa que tive em Bissau, com o Joseph Turpin, recordo-me de ele me ter dito o seguinte: 

(i) O Élisée Turpin era seu tio e fundador do PAIGC (**); 

(ii) O Amílcar Cabral ficava originalmente em casa do pai do Joseph em Conacri; 

(iii) Eles eram uma família de comerciantes; 

(iv) Não falavam português, mas francês - o próprio Joseph aprendeu o português mais tarde... 

 Vídeo (1' 36''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes.

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 Notas de L.G.: 

 (*) Vd. poste de 26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3244: Bibliografia de uma guerra (32): Liberdade ou Evasão (Carlos Vinhal) 

 (**) Vd. poste de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)