Mostrar mensagens com a etiqueta Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 3 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Não é usual alguém, mesmo solidário com amigos antigos combatentes, e com livro já publicado sobre a guerra colonial, pretenda homenagear aqueles jovens que andaram em diferentes teatros de operações, recolhendo múltiplos depoimentos, aliás não esquece em In memorium o José Eduardo Reis de Oliveira, que era para nós o Jero, de saudosa memória, temos aqui algumas histórias pícaras, tudo rescende ao feitiço africano, mesmo quando a narrativa está focada em dor e sofrimento. Uma iniciativa que nos merece muito respeito.

Um abraço do
Mário



Quando o escritor se arvora em recolector de guerras alheias

Mário Beja Santos

É, acima de tudo, uma antologia de muita escuta e camaradagem, um ajuntamento de pequenos textos elaborados por antigos combatentes nos três teatros de operações. Há narrativas assinadas sob pseudónimo, por vontade dos seus autores. São lembranças de uma juventude sofredora, observa o recolector, que tanto deu a Portugal sem regatear, sem nada exigir em troca: "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques, Edições Vieira da Silva, 2023. Iremos aqui cingirmo-nos aos relatos que se prendem com a Guiné, encontrei inclusive um nosso confrade, Belmiro Tavares.

Abre as hostilidades Carlos Matos Oliveira, capitão miliciano, recorda o telefonema de António Silva, cabo-enfermeiro da CCAV 1617/BCAV 1897, é telefonema que se repete pelo S. João, vem a propósito da operação Espadeirar, que se realizou no Oio em 23 de junho de 1967, quem comandava a operação era o capitão Alarcão, da CCAV 1616. Chegaram a um objetivo que era a base de Cã Quebo, na região do Oio; não houve resistência, encontrou-se uma pistola CESKA e duas granadas, seguiram pelo trilho que levaria à estrada Mansabá-Bissorã, aqui começaram os problemas, veio fogo de morteiros, o capitão foi ferido, o radiotelegrafista atingido mortalmente, sem que fosse avistado pelos camaradas, ficando no terreno com o rádio e os códigos; o autor foi ferido por um estilhaço de rocket, o enfermeiro dava-o como morto, respondeu-lhe com um palavrão. Lá se pediu ajuda à aviação. E remata a sua recordação dizendo que voltaram a Cã Quebo mais duas vezes, de lá saiu com estilhaços num braço e nas costas.

Augusto Silva, que foi alferes miliciano, vem contar o que passou com as formigas, não ficamos a saber em que lugar se deu a ocorrência, o que interessa é que houve uma emboscada durante um patrulhamento e o comandante do pelotão, o alferes Saldanha Antunes, ordenou que se abrigassem atrás de ninhos das formigas bagabaga; finda a emboscada, por ali andava o alferes Antunes aos berros com as ferroadas dolorosas das formigas nas partes íntimas…

A história seguinte remete-nos para a CCAV 5398, assina um tenente-coronel com as letras A. A., a unidade militar estava sediada entre Bafatá e Gabu, o comandante, capitão Crispim Malaquias acompanha uma força que vai fazer um patrulhamento ofensivo, perto do Senegal, começam a chover as morteiradas, quem abriu fogo está bem municiado, foi necessário pedir apoio aéreo, quando surge o Fiat, o piloto pede referências pois diz só haver dezenas de gazelas em fuga, há um soldado que solta um palavrão, é nisto que o piloto viu a saída do morteiro da força do PAIGC e foi até lá largar umas bombas, antes de se retirar para Bissau quis saber quem é que lhe tinha chamado uma certa insolência, semanas mais tarde haverá um encontro e o piloto dirá a quem o imprecou: “Deixa lá, a tua sorte é que eu não sou casado”.

Segue-se uma história intitulada A mão de vaca, tem a ver com uma unidade estacionada no Boé, aquela gente andava tão faminta de uma comida caseira quando um grupo veio de férias logo se lançou em busca de almoço, a ementa era escassa mas todos se sentiram feliz a pedir mão de vaca, e assim se conta:
“O odor da comida quase pronta já chegava ao nosso olfato e passados momentos a única empregada de mesa do restaurante depositava os três pratos pedidos de mão de vaca, e que era como descrevo: uma mão de vaca inteira em tamanho natural com os dois dedos do animal voltados para nós e que ultrapassava os limites da travessa-prato, tendo como acompanhamento uma pequena mão cheia de feijão branco. A surpresa foi tal que boquiabertos ficámos, sem palavras, mas passados minutos lá nos atirámos ao petisco que acabou por nos saber muito bem.”

Entra em cena agora o nosso confrade Belmiro Tavares, estamos em finais de abril de 1966, uma companhia é enviada de Bissau para Farim totalmente desarmada, ir-se-á recordar com bom humor do uso do capacete em toda a atividade operacional, alguém será salvo pelo seu uso e fala-se na madrugada de 3 de dezembro de 1965, a missão era na zona de Sanjalo, alguém se apresentou sem capacete, o alferes reponta, o cabo radiotelegrafista regressa devidamente equipado, há tiroteio pelo caminho, resultam três feridos que serão recambiados para Bissau de helicóptero, é no regresso que o cabo radiotelegrafista mostra ao alferes o capacete com um sulco com certa de quatro centímetros de comprimento e um milímetro de fundo, afinal o capacete salvava vidas.

Não falta uma história de amor, quem assina é J. Monteiro, furriel miliciano. Houve para ali uma patrulha acidentada, ao atravessar uma zona de palmeiral e bananal, uns babuínos faziam grande algraviada, atirava todo o tipo de projetos, não faltavam dejetos. Lá chegaram a uma tabanca e pediram água para se lavarem. Entra em cena uma menina de vinte anos, apresentada como uma beleza serena e africana, de pele castanha e com uns olhos enormes, vivos e muito pretos. A menina deu-lhe para a paixão e disse ao furriel que ele tinha que ir lá mais vezes pelo caminho dos macacos para ela o lavar. Paixão correspondida, passaram a viver juntos com discrição. Houve despedida sem rancores, despeitos ou mágoas:
“Dei-lhe o meu fio de ouro com um crucifixo de pendente, para que sempre se recordasse de mim. Coloquei-lhe no anelar da mão esquerda uma aliança de ouro que comprei em Bissau. Passados estes anos todos, continua viva dentro do meu coração, e quando faço oração peço a Deus que esteja feliz na sua Guiné.”

Belmiro Tavares foi engenheiro de pontes improvisado, o Capitão Tomé Pinto mandou reconstruir a ponte de Genicó, antes de partir para cumprir a missão andou a fazer uns gatafunhos, fizeram-se duas “cavas” de cerca de vinte centímetros de profundidade, derrubaram-se umas palmeiras, cujos troncos foram cortados à medida da largura do ribeiro, feita a ponte arranjou-se uma “placa de sinalização” a avisar que havia perigos de morte, ora colocaram-se ali umas granadas para fazer estragos, explosão houve, nunca mais os guerrilheiros, até ao fim da comissão da CCAÇ 675 procurou destruir a dita ponte de Genicó.

Esta antologia de narrativas alheias tão ternamente recolhidas termina com um conjunto de poemas de Carlos Miranda Henriques e de Augusto Silva. Uma bonita ideia, recolher depoimentos e fazer-nos recordar.


Belmiro Tavares
____________

Noita do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23140: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte II: Histórias pícaras: (i) Os matraquilhos e a astúcia do capitão; (ii) Uma heli-evacuação e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota; (iii) As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião


Guiné > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 > A ganadaria da "companhia do quadrado"..

Fonte: Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira: "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)" (edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.). Com a devida vénia... (*)

1. Eis  algumas histórias,  já aqui contadas em 2009, pelo José Afonso (ex-fur mil, 3º Gr Comb, foto à esquerda), sobre o cap Salgueiro Maia e os demais bravos da CCAV 3420 (Bula, 1971/73). (**)


(i) Os matraquilhos e a astúcia do capitão

 Quando a Companhia de Cavalaria embarca em Lisboa, leva já consigo a sua 1.ª receita: um jogo de Matraquilhos que em 6 dias de viagem esteve sempre ao serviço. Trabalhava de dia e noite sem parar. Foi um bom Fundo de Maneio. 

Quando chegámos a Bula, o mesmo jogo foi posto em frente do alçado da caserna dos soldados da Companhia, continuando ali a dar a receita pretendida.

Talvez vendo a fonte de receita que ali tínhamos, o Comandante do Batalhão   [BCAÇ  2928] pede a Salgueiro Maia que mande retirar dali os respectivos matraquilhos, pois estavam em local central do Batalhão e não davam muito bom aspecto.

Não se tendo conseguido nessa altura demover a tomada de posição do Comandante do Batalhão, lá tiveram que ir os Matraquilhos para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard. Aqui a receita era insignificante já que os homens eram muito menos, e também nem sempre o pessoal da Companhia ou Batalhão se deslocava cerca de 300 metros para jogar matrecos.

Salgueiro Maia tinha de arranjar maneira de os matrecos regressarem à origem. Como o Batalhão tinha falta de padeiros e os dois da Companhia estavam emprestados ao Batalhão, Salgueiro Maia vai dar a volta ao Comandante, dizendo que, com a falta de pessoal que tinha, necessitava dos padeiros da Companhia para alinharem para o mato. Levava já na manga a hipótese de deixar os padeiros onde estavam e, como contrapartida, os Matraquilhos regressarem ao Batalhão e colocados nas traseiras da caserna.

A esta proposta o Comando do Batalhão cedeu e uma vez mais Salgueiro Maia venceu.


(ii) Uma heli-evacuação  e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota

Quando a 28 de Novembro de 1971, um elemento da Companhia acciona uma mina, ficando sem uma perna e outro elemento também ferido, ambos do 3.º Grupo de Combate,  é solicitada a evacuação por via aérea para o Hospital de Bissau.

Ao chegar o helicóptero, sai dele uma enfermeira que,  ao ver o soldado Santos sem roupa,  diz que assim não leva o ferido. Para ser socorrido, utilizaram-se os restos das calças para fazer garrotes à perna e ao braço. E com tiras da roupa seguram-se alguns pensos que tapam feridas menores. O homem estava nu.

Para satisfazer o pedido da enfermeira, foi pedido ao enfermeiro que tinha uma camisola interior vestida para que a tirasse e com ela tapasse o soldado ferido.


(iii) As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião

Em Abril de 1972 aos elementos da Companhia que estavam no período de descanso, Salgueiro Maia pede voluntários para ir ao Km 13 da Estrada Bula – S. Vicente onde o 1.º Pelotão da Companhia estava emboscado e necessitava de apoio devido a um grupo de Balantas, que vinha do Senegal onde tinha ido roubar vacas, ter caído no campo de minas e algumas vacas andarem na estrada. Assim vão elementos da CCAV 3420 até ao local.

São apanhadas 2 vacas que são carregadas numa GMC. Satisfeitos os elementos da Companhia, com Salgueiro Maia à frente entram em Bula, gritando:
- Queremos carne.

À entrada do Batalhão   [BCAÇ  2928]  está o Comandante que manda parar a coluna de 4 viaturas. Quando se pensava que ia dar um louvor aos voluntários, houve-se uma reprimenda do Comandante por a tropa vir a fazer muito barulho e, dá ordens para que a coluna entre na sede do Batalhão (a CCAV 3420 era uma Companhia de Cavalaria independente mas de reforço ao Batalhão de Infantaria). Toda a actividade mais perigosa era desempenhada pela 3420.

Contrariando as ordens do Comandante, Salgueiro Maia manda avançar a coluna para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard 2641 que ficava aí a 300 metros do Batalhão pois, era ali que as vacas iriam ser comidas. Ao regressar ao Batalhão o Comandante dá ordem a Salgueiro Maia para que entregue as vacas porque diz ele que todo o material capturado ao IN tem de ser entregue ao Batalhão. Salgueiro Maia diz então que as vacas não foram capturadas, mas sim oferecidas e que foi o pessoal da Companhia que as foi buscar estando de descanso e o Batalhão não mandou sair nenhumas forças.

Mais diz Salgueiro Maia:
- As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião.

José Afonso (2009)

 (Continua)


[ Revisão / fixação de textos  e títulos, paar efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
__________

Notas do editor:

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




domingo, 7 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21864: (In)citações (181): Em memória de José Eduardo Reis Oliveira (1940-2021) (Belmiro Tavares, ex-alf mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Lisboa > Hotel Dom Carlos Park > 14 de Outubro de 2009 > Da direita para a esquerda, o dono da casa, o empresário hioteleiro Belmiro Tavares, o seu querido amigo e camarada JERO, e os editores do blogue Luís Graça e Virgíno Briote. 

A foto foi tirada, para mais tarde recordar, pelo sr. Pereira, recepcionista do hotel. A máquina era do JERO. (É assim que ele era conhecido por todo o lado, ainda ontem na Praia da Areia Branca encontrei um velho amigo do meu pai, das lides futebolísticas, e nosso antigo vizinho, na Lourinhã, Abílio Russo, que há mais de meio século foi para Alcobaça, onde casou... Vive hoje em Salir do Porto, concelho das Caldas da Rainha, mas quando lhe falei no JERO, disse-me logo quem era... Era o homem mais conhecido do Oeste, garantiu-me o velho Abílio Russo)

A foto foi publicada aquando da entrada do Belmiro Tavares, em 1/11/2009, para a Tabanca Grande (*)

Foto: © José Eduardo Oliveira (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017,  606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]


1. Texto, enviado em 4 do corrente, por  Belmiro Tavares Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com 65 referências no nosso blogue:

 

Em memória de José Eduardo Reis Oliveira (o nosso mui estimado JERO)

por Belmiro Tavares


Acabávamos de entrar no mês de maio de 1964 quando começaram a apresentar-se, no RI 16, em Évora, com destino aos quadros da CCaç. 675 os chamados “especialistas”. Até fins de abril daquele ano, a CCaç 675 dispunha apenas de “operacionais”, os homens das espingardas. 

Nos dias que antecederam o embarque e, um pouco a conta-gotas, apresentaram-se: médico, enfermeiros, telefonistas, telegrafistas, cozinheiros, condutores, pessoal da manutenção, o “cifra” (operador cripto), etc.

Entre estes especialistas, um destacava-se pelo seu porte e pela esmerada educação, o furriel enfermeiro José Eduardo Reis Oliveira que viria a ser largamente conhecido por JERO, o acrónimo formado pelas iniciais do seu nome.

Não recordo se, durante os dias que antecederam o embarque e durante a viagem, a bordo do
navio Uíge, até Bissau, houve alguma conversa entre nós, além do serviço estritamente militar. Na verdade, ele estaria assoberbado com os seus equipamentos de primeiros socorros e eu tinha a meu cargo o acompanhamento de cerca de 40 homens o que me daria água pela barba.

O primeiro contacto entre nós, fora de serviço, terá ocorrido em Bissau, quando o Oliveira me encontrou numa esplanada a escrever uma carta ou um aerograma (uma simpática invenção do MNF – Movimento Nacional Feminino ,) que circulava, sem selo, em todo o território nacional. De chofre, ele atirou:

- Ó meu alferes! Não se preocupe, porque faltam apenas 716 dias para o fim da nossa comissão!

Pretendia o nosso companheiro esclarecer que 14 dias já tinham passado… sem complicações assustadoras. Ainda não tínhamos entrado na guerra propriamente dita e 14 dias estavam já vencidos.

Entrámos na quadrícula de Binta (uma aldeia a norte do Cacheu, a 16 km de Farim e sensivelmente à mesma distância de Guidage, junto à fronteira com o Senegal) no dia 29 de junho de 1964.

Os primeiros dias foram passados a… arrumar a casa:

  • Resguardar os materiais inerentes a cada grupo (o Oliveira teria a seu cargo todo o material de enfermagem e não só);
  • Montar uma rede de arame farpado em redor do aquartelamento com alarme anti-intrusão – garrafas vazias penduradas nos arames;
  • Abrir valas em redor do quartel com picaretas mal-enjorcadas;
  • Construir abrigos para sentinelas.

Entretanto o nosso mui ilustre capitão preparava, secretamente, o nosso “batismo de fogo” e o JERO, tal como nós, meteu-se numa “camisa de sete varas”! era aquilo a que tínhamos direito!

Debaixo de bem nutrido fogo (havia ali mais de 160 armas automáticas a disparar em fúria – cerca de 80 eram nossas e as restantes pertenciam aos adversários 
 –  chamei o enfermeiro de serviço, o JERO, para socorrer um 1º cabo que levara um tiro no baixo ventre; o enfermeiro seguiu-me e cumpriu cabalmente o seu dever. Ocorreu então um diálogo trágico entre o sinistrado e o enfermeiro. O ferido desabafou:

- Ó meu furriel! Eu nunca vou ser um homem normal!

O Oliveira tentou deitar água na fervura, alegando:

- Ó rapaz! Isso não é nada de grave! Vais de helicóptero para o hospital, em poucos dias estás de volta e … pronto para outra!

O enfermeiro cumpriu o seu dever, procurando acalmar o sinistrado; ninguém sabia a extensão ou a gravidade do ferimento… só se via sangue.

Outras situações mais ou menos graves ocorreram até que, no dia 5 de agosto, o nosso capitão foi ferido. O Oliveira estava lá, embora os primeiros socorros tenham sido prestados pelo enfermeiro Martins (o Rato). Quando o avisaram do acidente, o Oliveira correu com a maca ao encontro do nosso capitão; cerca 1 km separava o grupo da frente das viaturas.

Os adversários devem ter-se apercebido que algo nos correra mal e logo se apressaram a montar uma emboscada na berma da estrada que estava pejada de abatises. Iniciado o regresso, em marcha lenta, logo sofremos uma das mais duras emboscadas de toda a comissão. Indevidamente, a coluna auto parou e os condutores saltaram das viaturas; o nosso capitão ordenou ao JERO que alertasse os oficiais para abandonar a zona de morte; mas ninguém o ouvia. 

Tudo acabou melhor do que esperávamos porque os adversários devem ter sofrido algo de tão grave que, inesperadamente, deixaram de nos atormentar e o nosso capitão lá seguiu de helicóptero para o hospital.

O Oliveira participou em muitos outros casos semelhantes mas… nem só de armas vivem os homens.

O Oliveira, além de profundamente educado e respeitador, era um cumpridor nato das ordens que recebia do seu chefe, o nosso médico, o saudoso, Dr. Martins Barata, de quem o JERO era o braço direito ou talvez mais do que isso. 
 
De seguida, sem alarde e sem dureza, convencia (principalmente pelo exemplo) os enfermeiros a cumpri-las também. Nunca foi visto a barafustar com os cabos enfermeiros porque o JERO não dava motivos para tal: respeitava para ser respeitado – os grandes chefes são mesmo assim!

Fora das horas de serviço ele não era diferente; estava disponível para tudo, a qualquer hora. Há uns anos, ele segredou-me, com certo orgulho:

 – Durante  a nossa comissão, eu estive sempre em todas as frentes!

Era a mais pura das verdades! Além de, como alegámos, ter sido um bom combatente, era um enfermeiro de alto coturno e distinguiu-se também na ocupação de tempos livres:

  • Participou ativamente na criação de nomes para os arruamentos dentro do nosso aquartelamento e na elaboração das respetivas placas: Av Capitão de Binta;  Av do Aeroporto; Av Marginal com indicação de zona de banhos e de pesca; Av Pathé Baldé, em memória do nosso saudoso guia; Av 4 de Julho – Lenquetó – destruímos aquela povoação e tivemos logo o nosso “batismo de fogo"; Largo “Tomada de Pastilha”, frente à porta da enfermaria – esta foi totalmente da sua lavra;
  • Construímos duas pistas de aterragem e ele continuou sempre na linha da frente;
  • Foi um entusiasta da construção do nosso campo de futebol – nunca se soube ao certo se se tratava de um campo de pontapé na bola onde aterravam helicópteros ou se era um heliporto onde se praticava futebol;
  • Criámos as “aulas regimentais” e o Oliveira era um dos ensinadores.

Para confirmar aquele adágio: “não há regra sem exceção” – nós pusemos a funcionar uma “horta comunitária”; o JERO não participou nessa obra porque… ele não tinha raízes campesinas. Foi o único desvio!

No pós-guerra, sempre colaborou ativamente nas nossas reuniões anuais, quer na elaboração das cartas-convite quer a escrever endereços nos envelopes quer ainda a cobrar o valor do repasto. Pela primeira vez que uma confraternização ocorreu fora da grande Lisboa, foi por sugestão sua e teve lugar em Alcobaça, a sua terra natal; na verdade ele colocou a fasquia demasiado alta, criando inibições.

Participou na colocação de lápides nas sepulturas dos nossos mortos, quer os da guerra quer na daqueles que partiram depois do regresso.

Agora temos… a cereja no topo bolo: o José Eduardo escreveu um diário de guerra onde narra com arte e engenho a nossa atividade durante o 1º ano, na Guiné. É sem sombra de dúvida uma obra extraordinária não só pelos feitos que descreve mas pela forma sublime como os narra.

Aqui, “passamos a bola” ao Dr. M. Beja Santos que fez a recensão daquela obra ímpar que, para nós, tem um valor inestimável. Vejamos o que o Dr. Beja Santos nos legou como “juiz independente”, manifestando a sua surpresa e admiração pela obra invulgar mas também pelo autor. O Dr. Beja Santos referiu:

 “O José Eduardo era um enfermeiro miliciano que foi responsável por uma singularidade histórica: escreveu o Diário da C. Caç. 675, referente ao primeiro ano de comissão. Todos os exemplares são numerados e têm carimbado o termo confidencial; o “capitão do quadrado” escreveu, em ressalva, que “este Diário contém matéria classificada que, como tal, não pode ser do conhecimento de todas as pessoas”.

“O Diário do JERO passou a ser um bem patrimonial, por mérito próprio, pelo desvelo do autor em tudo quanto escreve, refugiando-se num semianonimato, compendiando meticulosamente os atos de um coletivo que deixou memória pelo espírito de corpo e pela sua mentalidade, lá prás bandas do Cacheu”.

“O JERO, ao coligir todos os dados do seu Diário, queria apenas registar um período de uma gesta coletiva anónima; escreve para as gentes da C. Caç 675 e não para nós. Também por essa razão de pura discrição, o autor já então revelava os seus primores de carácter”.

“Nas paredes da secretaria, onde o JERO escrevia, descortinávamos vários amuletos e roupas de alguém que, um dia, teve maus encontros com a tropa de Binta e… morreu (?)… de susto; a decoração completa-se com a seguinte frase elucidativa: - Nem com mezinhos se safam!”:

“Sobre a mesa do capitão encontrava-se a seguinte frase: Vitória é sinónimo de vontade”.

“Afinal”, lembra o recensor, “as surpresas continuam a surgir nesta literatura que, durante décadas, jazeu nos arquivos dos protagonistas”.

“Gostei muito do Diário do JERO pela autenticidade e pela camuflagem da escrita. Publicitar este Diário no blogue, anunciá-lo a quem estuda e guerra da Guiné é um grato dever; surpresa mais gratificante não podia ter!”


Acontece que, já neste milénio, o Oliveira lançou um segundo livro, Golpes de Mão’s; pretendia que fosse o segundo volume do seu Diário; terá sido – com todo o mérito – mas muitos factos de elevado interesse (dizemos nós) continuavam esquecidos!

Um outro marco relevante da sua vida é uma carta que o nosso amigo escreveu à sua querida mãe – que Deus já levou! – onde ele coloca a descoberto a sua esmerada educação, o profundo amor à sua mãe, o seu puro portuguesismo e a sua profunda Fé no Deus “que tudo criou e tudo gere”!

Creio que não será necessário acrescentar o que quer que seja acerca do HOMEM que agora nos deixou; falta apenas dirigirmo-nos aos seus familiares e amigos (relevo especial para os seus companheiros da CCaç. 675) que todos perderam imenso com esta surpreendente partida inesperada. 

Eu perdi um amigo de todas as horas, o amigo incondicional; éramos “unha com carne” e, em simultâneo éramos confessor e confessando.

Malvado vírus que ceifou a vida dum amigo de quem tanto esperávamos, ainda.

Repousa em paz! O nosso bom Deus terá guardado para ti um lugar à sua direita, pois será esse o lugar dos filhos que sempre trilharam o caminho sublime que Ele lhes traçou!

Belmiro Tavares (**)

_____________


(**) Último poste da série > 30 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21825: (In)citações (180): Fotogaleria do José Eduardo Oliveira (JERO) (1940-2021), enquanto membro da efémera Tabanca de São Martinho do Porto (2010-2012) (Luís Graça)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Estamos no início das atividades do BCAV 490, o bardo relata os primeiros sinistros, feridos na ocorrência de uma mina anticarro. É coloquial e íntimo, não esquece os nomes, é um cronista sentimental. E flui a memória para esse manancial inesgotável de relatos de minas como de emboscadas. Pois neste exato momento lê-se o cartapácio "A Nossa Guerra", dois anos de muita luta, o histórico da CCAÇ 675 redigidos por dois eméritos confrades do blogue, o Belmiro Tavares e o JERO, aproveita-se aquele dia nefasto de 28 de dezembro de 1964 em que o Furriel Mesquita exalou o seu último suspiro, e como a Companhia do Capitão do Quadrado prontamente reagiu. A associação não é fortuita, em toda esta narrativa de Belmiro Tavares e JERO se fala no Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro e em Unidades da BCAV 490, eram próximos.
Aqui fica a minha homenagem às perdas que ambos tiveram.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (12)

Beja Santos

“Cumprindo a sua missão,
a 489 alinhava.
Feriu-se um rapaz nosso amigo,
quando a mina rebentava.

Muitas escoltas fazia
o José Pombo Cordeiro.
Quem para Bissorã saiu primeiro
foi a 3.ª Companhia.
Nesse tempo não havia
terroristas nesta região.
Passaram-se 18 dias então
e malvados ninguém viu
e a 487 os substituiu
cumprindo a sua missão.

O tempo vai-se percorrendo
e no mês de Outubro estamos
e todas as coisas que passamos
eu aqui vou escrevendo.
Todos nós fomos sofrendo.
Para isso alguém nos mandava.
Em Mansabá me preparava
para os terroristas deixar de ver
e para me vir render,
a 489 alinhava.

Em Bissorã se encontrava
o nosso Capitão Romeiras
e com as suas boas maneiras
a missão desempenhava.
De noite ou de dia mandava
a rapaziada para o castigo,
em busca do inimigo,
mas pouca vez o viram,
e, quando numa emboscada caíram,
feriu-se um rapaz nosso amigo.

Na última viatura ia
o Joaquim António Machado
que pelo ar foi levado
quando a mina explodia.
Ali se feriu o Francisco Maria
que no terreno se deitava
e o 314 gritava
com um ferimento muito forte.
Viu ali pertinho a morte
quando a mina rebentava.”

********************

Com estes feridos e minas, a memória voou para os livros que se têm escrito sobre a CCAÇ 675, contemporânea do BCAV 490. Muito se tem escrito sobre a tropa chefiada pelo Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, também conhecido pelo Capitão de Binta. Esta unidade chegou em 1964 à região de Binta, então as forças do PAIGC e as populações que ele arregimentava movimentavam-se com total liberdade nesta quadrícula. No seu livro “A Nossa Guerra, a história da Ccaç 675”, Belmiro Tavares, de colaboração com José Eduardo Reis de Oliveira, edições dos autores, maio de 2017, fazem um histórico, um misto de diário, de agenda, de considerações soltas, sobre a sua presença em Binta e a amizade que ficou até aos dias de hoje. É impressionante a movimentação operacional que desenvolveram a partir de junho de 1964, limpeza das estradas cheias de abatises, destruição dos locais de residência das forças do PAIGC, emboscadas, golpes de mão, operações em Sambuiá, a abertura de estrada para Farim e igualmente para Guidage, havia jornal de caserna, acompanhamento médico para gente que vinha do Senegal. Tudo se lê e deixa-nos empolgados ao ver a consideração desmedida, a confiança incondicional que toda a Companhia depositava no Capitão do Quadrado. Combatiam e faziam obras de beneficiação, procuravam ajudar as populações, dava-se aulas regimentais para superar o analfabetismo de um conjunto de praças, tiveram dias memoráveis e dias nefastos.
Quanto a estes, ele relata um drama vivido em 28 de dezembro de 1964, é uma descrição pormenorizada e contextualizada:
“Sabíamos, por informações colhidas no Senegal, que os guerrilheiros de Sambuiá não queriam lá mais população não-combatente para beneficiarem de mais liberdade de movimento. Mantinham a população nas aldeias limítrofes, prometendo-lhes a segurança necessária; assim seria mais fácil prevenir-se, sempre que a tropa de Binta se aproximasse. Nós éramos os únicos a apoquentá-los.
Tudo foi feito para não denunciar a nossa presença, naquelas paragens: camuflagem, aproveitando as zonas de vegetação mais densa ao longo do rio e sem provocar ruídos desnecessários.
Apesar dos nossos esforços, eles aperceberam-se das nossas movimentações, dispararam sobre nós e obtiveram a nossa resposta no mesmo tom, mas com melhor pontaria; perseguimo-los e fizemos três prisioneiros, vários feridos e alguns foram abatidos.

Sem a surpresa habitual, não seria aconselhável atacar Udasse, já fora de horas. Iniciámos o regresso a Sansacutoto; pouco depois das 12 horas, as viaturas iniciaram a marcha rumo a Binta com todos os operacionais a bordo; seriam umas 12h30, quando o rebentamento medonho, um estrondo anormal, fez parar a coluna; toda a gente saltou para as bermas da estrada, tomando posição uns metros fora da via. O que mais preocupava era não saber claramente o que tinha acontecido; ninguém queria acreditar que se trataria de uma mina anticarro; a coluna era constituída por 10 viaturas e o espaço entre elas era demasiado grande; a primeira viatura e a última, devido à poeira, estavam separadas por cerca de mil metros. Lá à frente, os guerrilheiros, emboscados ao longo da estrada, desencadearam uma violenta emboscada. Os nossos atiradores responderam na máxima força e em breve fizeram calar as armas adversárias. Lá na frente, uma grossa coluna de fumo espesso e assustadoramente negro subia pelos ares; via-se uma viatura que, ardendo, se desfazia em chamas; havia feridos, mas lá atrás não se sabia quantos nem a gravidade das lesões.

Em murmúrio, foi passando a dolorosa notícia que uma minha potente explodira debaixo de um Unimog, provocando vários feridos; logo surge a nova e mais brutal e atroz: há um morto, o Furriel Mesquita, natural de Famalicão.
O nosso médico, Dr. Martins Barata, tal como por vezes acontecia, naquele dia acompanhou a tropa no mato. No meio daquele desastre, ele foi de uma utilidade extrema. Com tantos feridos, ele e os enfermeiros não tinham mãos a medir. Foi logo pedido um helicóptero e duas avionetas; como a nossa pista ainda não se encontrava devidamente operacional, as avionetas aguardaram em Farim que o helicóptero chegasse com os feridos e o morto.
Depois de um jantar mal deglutido e sem vontade, o enorme capitão reuniu com os seus colaboradores mais directos; nem uma palavra sobre o que acontecera naquele malfadado dia; aparentemente eram águas passadas, mas uma dor imensa, tristeza infinita estavam notoriamente espelhadas nos seus olhos. Agora, o essencial era recuperar o ânimo da rapaziada, moralizar aquela gente”. 

Como se disse, trata-se de uma descrição minuciosa, lista-se o morto, os sete feridos em combate, fala-se do Soldado Atirador António Filipe que enquanto esteve internado no Hospital Militar Principal concluiu o quinto ano liceal, o que lhe proporcionou um emprego na Mague, onde trabalhou até à reforma, ficara com uma incapacidade de 77%. Houvera comportamentos de bravura, abarcando praças europeias e guineenses.
A tropa pôs-se logo em movimento, partiram na manhã seguinte para uma emboscada. “Pretendia-se demonstrar ao inimigo que não era um desaire que nos quebrava o ânimo, embora aquele contratempo fosse tremendamente doloroso e marcante; não seria facilmente esquecido; ainda hoje, volvidos mais de 50 anos, quando relembramos aquele dia, a voz fica embargada e a alma dilacerada. Pela primeira vez, com todos os operacionais no mato, o excelso Capitão de Binta ficou no quartel; quando saíam dois pelotões… ele estava sempre ao nosso lado; mesmo quando saía só um grupo de combate, ele quase sempre nos acompanhava. Com uma dor de alma inimaginável”.

(continua)

Aguarela do pintor Manuel Botelho, viatura destruída por uma mina anticarro, coleção de Mário Beja Santos.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19659: Notas de leitura (1166): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Recomendo vivamente a leitura da obra assinada por Belmiro Tavares e JERO. Não se pode ficar insensível à fidelidade, à camaradagem e solidariedade que estes homens mantêm entre si, extravasa encontros regulares, entreajudam-se, procuram-se depois da natural diáspora em que no fim da comissão (1966) muita gente procurou dar outros rumos à vida. Toda a documentação sobre a Companhia de Binta é motivo de estudo: como fora possível chegar a tanto abandono aquele ponto da região norte, tão sensível, já que Guidage era um quase ponto de fronteira, ali perto passava um corredor por onde as forças do PAIGC iam até Sambuiá e depois ao Morés?
Pode-se avaliar que havia um certo equilíbrio de armamento entre guerrilheiros e contra guerrilheiros; e estão aqui os dados flagrantes da condição de milhares de guineenses forçados a abandonar as suas tabancas para não serem colhidos entre os dois fogos e permanentemente intimidados pela guerrilha; e ressalta uma história sublime, a relação com o Capitão do Quadrado, momentos há, na leitura deste cartapácio, e nos outros livros que têm a ver com Tomé Pinto e os seus homens na Guiné em que somos forçados a reconhecer que muitas vezes a realidade é mais potente e grandiosa que os voos da imaginação, em literatura memorial.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (3)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a general; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do general Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

O fôlego, o ritmo da escrita do primeiro ano da comissão, vai conhecer quebras acentuadas na narrativa do segundo ano. A primeira condicionante é de que um homem não é de ferro, era inteiramente impossível manter aquela passada vertiginosa em limpezas de estrada, acolhimento das populações em fuga, fazer patrulhamentos ofensivos, operações e colunas de reabastecimento a Guidage. A segunda passará com uma alteração logística de tomo, a CCAÇ 675 é forçada a manter um pelotão em Guidage, começa a história do cavalo do inglês, o devaneio de que se pode fazer o mesmo com muito menos.

Fazem-se colunas, volta-se a Sambuiá, mantêm-se as batidas constantes. Na nota do diário de 12 de maio de 1965 lembram-se os três mortos, o que se passou, a frescura física já não é a mesma, a vida operacional vai-se mitigando, entenderam os autores apresentar uma galeria de retratos dos que mais se sobressaíram, uns mais desenvoltos ou desenrascados, outros introvertidos, são notas ternas sobre o Lua, o Aguardente, o Engrácia, o Moreira, o Eurico, o Vendas Novas, e muitos outros. O médico da Companhia também tem honras de destaque. O diário é mais sóbrio, resumido, aliás começam a aparecer súmulas mensais. O moral da tropa é oscilante, por motivos fúteis surgem quezílias. Um dos narradores, Belmiro Tavares, conta a morte do Nascimento que pisara uma mina antipessoal. Em Guidage, aconteceu algo de tétrico, fugira um prisioneiro, alguns soldados do pelotão espancaram até à morte o soldado Fó Gomes, houve decisão do tribunal militar. A guerrilha não perdeu totalmente a iniciativa, em agosto de 1965 ataca Guidage. O Capitão do Quadrado volta de férias e logo a seguir parte para fazer o curso do Estado-Maior, o novo Comandante é o Tenente Cruz. Partiu o BCAV 490, chegou o BART 733, vão começar os contenciosos com o Major Azevedo. Chegou a luz elétrica a Binta, as batidas e patrulhamentos entre Binta e Guidage são constantes, há consciência de que o PAIGC quer aumentar a perturbação com a afluência das populações que abandonam o Senegal e que pretendem acolher-se ao setor de Binta. Nisto, explode uma bomba numa festa em Farim, mortos e feridos aos montes, a maioria crianças e mulheres. Um velhinho Dakota faz várias viagens por essa noite para recolher os feridos às centenas. A PIDE executa prisões, o gerente da Sociedade Comercial Ultramarina em Farim, um madeireiro, o bailarino, um chefe do grupo de milícias, mas também funcionários da Administração de Farim, do Centro de Saúde, da Central Elétrica. Volta-se a Sanjalo, há notícias de um acampamento clandestino. Segue-se a história do soldado Joaquim Lopes Henriques que ficou com um braço esfacelado, uma história que ficou para a vida inteira. Crescem as tensões entre a CCAÇ 675 e o Major Azevedo. E assim se chega a 1966. Já não há diário, há resumos mensais, suspira-se pelo final da comissão. Recorda-se com saudade o soldado n.º 108 Mamadu Bangoran, um Fula valoroso, comportara-se heroicamente retirando das chamas vítimas de uma mina anticarro entre labaredas e ferros retorcidos, não temendo a explosão do depósito de gasolina, retirou todo o material de guerra que por ali se espalhava. O Capitão do Quadrado chamou-o para o elogiar e Bangoran que era um muçulmano heterodoxo pediu licença a Tomé Pinto para se embebedar.

A CCAÇ 675 passou à disponibilidade em 4 de maio de 1966 mas está viva da costa, as páginas finais deste cartapácio relatam encontros, episódios pessoais, lançamento de livros, gente que se dispersou pelas sete partidas do mundo, falecimentos, doenças. Todos os acontecimentos à volta do Capitão do Quadrado são pretexto para ajuntamento dos seus homens, caso do lançamento da sua biografia que ocorreu em Lisboa em abril de 2016. O álbum fotográfico completa a obra. Foram dois anos de muita luta, escrevem insistentemente os autores, e dizem concretamente porquê. Mas o que sobressai, o que ficará para todo o sempre é um caso particular de devoção ao Comandante de Companhia, isto para já não esquecer aqueles primeiros meses de turbilhão que transformaram a região de Binta de corredor livre do PAIGC num caso de êxito de contraguerrilha, e por isso se percebe muito bem a ligação inquebrantável entre o Capitão do Quadrado e os seus devotados militares.
____________

Nota do editor

Poste anteriores de:

25 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
1 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19639: Notas de leitura (1165): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19639: Notas de leitura (1165): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Este cartapácio é uma obra de paixão. Não há memória, em toda a literatura da guerra colonial, de uma devoção tão sentida por um coletivo ao seu capitão, são-lhe tecidos todos os encómios, é temerário e visionário, sábio e previdente, líder de tal envergadura jamais abandonou ao longo de mais de meio século, a consideração dos seus subordinados. É tocante ver-se a agenda dos encontros, a entreajuda, a presença nos eventos dos filhos de quem já morreu, divulgação de notícias de quem está a merecer cuidados e precisa de ser acompanhado.
E lendo de fio a pavio o cartapácio assimila-se o que foram os horrores do início daquela guerra, os casos de jogo duplo, um deles será contado no episódio seguinte, como se procurou arredar a guerrilha, ela recuou mas não desesperou, e a comissão da CCAÇ 675 decorreu ainda numa fase em que o Senegal não se comprometera a fundo em deixar passar homens e armamento, e este era cada vez mais sofisticado.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (2)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo Enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a General; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

A CCaç 675, se atendermos à vertigem da atividade operacional dos primeiros meses, impôs-se pelo espírito ofensivo, pondo os guerrilheiros a respeito, limpou os caminhos, encetou obra em Binta, todo e qualquer local pertencente ao setor foi vasculhado. Área delicada, no entanto: muita população fugira para o Senegal, estava sujeita às ameaças do PAIGC, vinha cultivar, digamos que em terra de ninguém, aí se encontravam com as patrulhas de Binta, angústia como esta era possível nos primeiros anos de guerra, e em muitos pontos da Guiné. O primeiro ano da comissão espelhou essa capacidade ofensiva que foi sendo creditada nos guineenses que tinham fugido para o Senegal. No segundo ano da comissão, são frequentes os relatos de guineenses que se apresentam em Guidage intencionados para refazer as suas vidas na Guiné, confiam na Companhia do Capitão do Quadrado.

Com uma mão na espada, a outra no arado, combatia-se e procurava-se pôr Binta num brinquinho, a par das aulas regimentais, atendimento sanitário de populações da Guiné e do Senegal, e muito mais. Andam num virote, nesse primeiro ano, irão várias vezes à península de Sambuiá, percorrem Sanjalo, Ufudé, Fodé-Siráia, Genicó Mancanho, muitos cuidados entre a bolanha de Cufeu e Guidage, limpa-se a estrada de Farim a Binta, percorre-se Cansenha, Caurbá, os autores são incansáveis a dar-nos pormenores: golpe de mão a Canicó, os ferimentos do temerário Capitão de Binta, que andava sempre em movimento, vai-se a Lenquetó e Temanto, percorre-se a estrada até Bigene, emboscadas, patrulhas, nomadizações, destroem-se acampamentos precários, ruma-se a Banhima, faz-se ação psicossocial na fronteira, narram-se dramas de toda aquela população entalada entre dois fogos. Mesmo desalojado, o PAIGC não deixa de atribular a vida da CCAÇ 675, com abatises, queimando pontões, flagelando à distância.

Há um jornal de parede, nele em 8 de dezembro de 1964, alguém homenageia a sua mãe, aqui fica um fragmento:
“Nas circunstâncias actuais da minha vida, que por ser dura e difícil, mais maturidade me vai dando, em que melhor aprecio a formação que me deu, grato me é registar o amor, a personalidade, a pureza da minha querida Mãe que, diariamente, com as suas orações e as suas notícias, com as suas palavras amigas, me vai dando coragem para encarar com resignação cristã, esperança e optimismo, a separação, as dificuldades de uma guerra em terreno primitivo e selvagem.
É principalmente numa numerosa família como a constituída pelos 160 elementos de uma Companhia, que vivem em comum, que damos conta do que significa para cada um de nós a sua Mãe. Nos momentos mais difíceis, no perigo, na dor, na doença, um apelo mudo, a que nos agarramos com força, parte dirigido a quem nos deu a vida.
Num dia como este, em que todas as Mães sentem à sua volta todo o carinho dos filhos, eu, cá de longe, rendo-lhe o preito da minha estimada, da minha admiração.
Deus permita que continue assim, por muitos anos, a tornar felizes todos os que vivem perto de si. Transmita à minha querida Avó os parabéns, por ter dado ao mundo tal filha.”

Este quinhão de memórias também destaca aspetos facetos, brejeirices, comicidades. Havia o 1.º Cabo Enfermeiro António Martins a quem os habitantes das aldeias senegalesas chamavam Dr. Martins.
Fazia-se acompanhar pelo Soldado Machado que sentia ganas de ser enfermeiro. O Martins dava-lhe a bolsa para carregar, um grande saco de lona, o Machado seguia-o docilmente.
Eis o episódio:
“Com o andar do tempo, o Machado começou a fazer curativos e até dava injecções aos nativos. Um dia, acabadas as consultas, o Martins conferiu o material de serviço, verificou que faltava uma agulha de seringa e fez o reparo ao Machado: ‘Falta aqui uma agulha!’.
O Machado esbugalhou os olhos, concentrou-se, deu uma palmada na testa, e saiu, correndo, em direcção à bolanha que marcava a separação entre a Guiné e o Senegal, abeirou-se de uma das últimas mulheres que haviam sido tratadas, levantou-lhe a saia e sacou-lhe do traseiro a agulha que ela levava ali espetada. Sempre a correr, voltou ao quartel e eufórico informou o Dr. Martins: Está aqui a agulha que faltava.”

Este outro episódio ocorreu no dia 18 de julho de 1964, houve patrulhamento ofensivo em Sanjalo, a tropa estafada seguiu-se para Quenejara, novo combate, esfalfados, pediram ao telefonista para que insistisse com as viaturas a chegarem rapidamente, o telefonista avisa que o informaram que estão prestes a sair, o capitão manifesta o seu descontentamento:
“- Diz-lhes que eu mando tudo bardamerda! O telefonista, um alentejano castiço que carregava nos ‘rr’ teve vergonha de usar aquela zombaria em frente do seu capitão, fazendo uso do seu sotaque, transmitiu via rádio: 
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste está muito chateado! 
- Não estou chateado! Mando tudo bardamerda! 
O telefonista repetiu aquela mensagem um tanto envergonhado: 
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste manda tudo borrdamerrrda!”

Um primeiro ano de arromba, passou-se meio século e estes cronistas passeiam-se permanentemente por esta região de Binta e não vacilam em dizer que a Companhia do Capitão do Quadrado não tinha rival. Esfalfaram-se, surgiram mortos e feridos e muitos doentes, o Capitão do Quadrado irá partir para fazer um curso do Estado-Maior, o BCAV 490 parte, surgirão problemas com a unidade que os vem render, as relações Farim-Binta vão ser muito tensas.

(continua)
____________

Notas do editor:

Poste anterior de 25 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19630: Notas de leitura (1164): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (79) (Mário Beja Santos)