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terça-feira, 30 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17410: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (5): A petição "Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios", foi admitida (Inácio Silva, ex-1.º Cabo Ap AP da CART 2732)



1. Mensagem do nosso camarada e meu particular amigo Inácio Silva (ex-1.º Cabo Apontador de Armas Pesadas da CART 2732, Mansabá, 1970/72), fundador e editor da página Relembrar para não esquecer, com data de 24 de Maio de 2017:

Caro Carlos Vinhal!

Espero e desejo que estejas de saúde, bem como a Dina.
Este e-mail é para te pedir um favor: que faças eco no blogue de és um dedicado e assíduo editor, da entrega na Assembleia da República, da Petição que, a 08-01-2011, foi lançada através do sítio Petição Pública.
O link para o blogue onde dei a notícia é este: http://guerracolonial.blogs.sapo.pt/.
Podes utilizar a informação a teu belo prazer.
Dá notícias.

Um abraço.
Inácio Silva


A petição "Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios", foi admitida e tem o n.º 309/XIII/2.ª

É com o sentido do dever cumprido que venho anunciar que fiz a entrega oficial da petição "Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios", no passado dia 17/05/2017, que durante muito tempo esteve a decorrer no sítio "Petição Pública".

Foi possível obter mais de 4500 assinaturas, preenchendo as condições para a mesma ser debatida pelos grupos parlamentares que, certamente a irão analisar e encontrar uma solução que venha ao encontro das nossas expectativas, conforme o que nela é preconizado.

Muito já foi falado e, até, legislado, sobre os direitos dos (ex)-combatentes e os deveres do Estado mas, até hoje, não foi feita justiça aos que partiram para a guerra, para terras longínquas, hoje independentes, numa função de "serviço militar obrigatório", em defesa e representação de Portugal. Não obstante, pedimos o mínimo que consideramos justo, com simplicidade e clareza, porque, sabemos muito bem que os tempos são de vacas magras e há uma enorme dívida para todos os portugueses pagarem.

Só espero que o "petróleo branco", designado por lítio, de que Portugal é uma potência mundial, venha a dar uma ajudinha a isto tudo e torne mais fácil a decisão política.

Para conhecimento de todos, aqui está a carta que me foi enviada pelo Sr. Presidente da Comissão de Defesa Nacional.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7703: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (4): "Eu servi a minha Pátria. É justo que a minha Pátria reconheça isso" (Cândido J. R. Pimenta)

Vd. também poste de 11 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7591: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (1): Meta, recolha de 4000 assinaturas (Inácio Silva)

(...) Agora, é só esperar que obtenhamos um mínimo de 4000 assinaturas, para, de seguida, enviar a petição aos Órgãos do Estado a que se destina: Assembleia da República e Governo.

Se pensarmos que, só nas guerras de África, foram mobilizados cerca de 900.000 militares, ficaria muito satisfeito que se obtivesse 1% de adesões.

Agora poderei dizer que a "bola" está do nosso lado. É necessário chutá-la e marcar golo na outra baliza! (...) 

sábado, 18 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17154: O Ten Cor Cav António Valadares Correia de Campos que eu conheci (3): Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art, MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72, nosso coeditor


Guine > Região do Óio> Mansabá > CART 2732 (1970/72> 28 de novembro de 1971 > Interior do quartel: O Carlos Vinhal (à direita) com o o Dias, Fur Mil Mec Auto.

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal  (2014). Todos os direitos reservados. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954) >  Escala 1/50 mil > Detalhe: Posição relativa de Mansabá e Manhau... A norte fica Farim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


1. Texto, recebido a  3 de novembro de 2006, há mais de 10 anos, da autoria de Carlos Vinhal,  ex-fur mil art, Minas e Armadilhas,  CART 2732, Mansabá (1970/72), nosso coeditor, e publicado sob o poste P1325 (*)

(...) Sobre nosso Coronel de Cavalaria António Valadares Correia de Campos (**), vou contar um episódio onde eu e ele fomos intervenientes.

Em 10 de Agosto de 1971 chegou a Mansabá a CART 3417, companhia independente como a nossa, para fazer o seu IAO connosco. Faziam alguma instrução no quartel e acções de patrulhamento e emboscadas no mato. A princípio integrados em pelotões da CART2732, em fase mais adiantada, sozinhos.


O Major Cav Correia de Campos, 
Comandante do COP 6

O Comandante desta Companhia [CART 3417] era um capitão muito jovem, daqueles que a determinada altura começaram a proliferar pela Guiné em virtude do desgaste dos capitães mais velhos e com algumas comissões de serviço em teatro de guerra.

No dia 28 de Agosto de 1971, pela manhã, saíram para o mato acompanhados por alguns elementos do Pelotão de Milícias 253, para uma zona não muito distante, mais propriamente para a zona da Bolanha de Manhau, a leste de Mansabá.

Por volta das 13 horas dirigia-me eu à messe para almoçar, quando o então Comandante1 do COP 6, Major Correia de Campos, encontrando-me na parada, me ordenou para eu avisar o oficial de piquete de que era preciso organizar imediatamente uma coluna auto para ir a Manhau e que o furriel de Minas e Armadilhas deveria ir também.


O Comandante da CART 3417, vítima de uma mina A/P 

na bolanha de Manhau, em 28 de Agosto de 1971

O Major Correia de Campos acrescentou que o comandante da CART 3417 tinha pisado uma mina antipessoal, precisando de evacuação urgente e que havia mais minas detectadas, pelo que era preciso neutralizá-las. Informei-o que era o meu pelotão que estava de piquete e que eu mesmo era o furriel de Minas e Armadilhas. Disse-lhe também que iria providenciar no sentido de que as suas ordens fossem cumpridas imediatamente.

Organizada a coluna, prontamente ele subiu para a viatura da frente. De pé, ao lado do condutor, com uniforme não camuflado e com os galões nos ombros, viajou até ao local para recolhermos o ferido e para eu me inteirar da quantidade de minas a neutralizar. O dia estava cinzento, caía uma chuva miudinha incessante e o percurso foi feito em picada por zonas de alto risco de contacto com o IN e de alta probabilidade de aparecimento de minas anticarro. Nem mesmo assim ele se protegeu da intempérie e das possíveis vistas do IN.

Chegados, deparámos com o capitão já assistido pelos enfermeiros da sua companhia. Tinha já a perna garrotada e estava a soro. Vociferava contra a sua falta de sorte e estava visivelmente nervoso. O caso não era para menos. Era muito novo e tinha sido ferido logo na sua primeira comissão de serviço no Ultramar.

Como se pode depreender, o moral das tropas estava muito em baixo. Foram sujeitos à mais dura provação. O seu comandante tinha sido, cedo de mais, vítima da guerra. Não estavam em condições de continuar a instrução daquele dia pelo que iriam regressar connosco.

Organizou-se a coluna de regresso ao quartel. O nosso Major e o sinistrado vieram na minha viatura. O percurso foi feito devagar para evitar solavancos exagerados.

O capitão recolheu à enfermaria para ser devidamente tratado e esperar por um heli para o evacuar para o HM 241. Eu fui aprontar o meu equipamento para voltar a Manhau, a  fim de rebentar as minas detectadas e trazer de volta os militares da CART 3417. A chuva continuava e a fome apertava, mas o dever obrigava.

Em Manhau rebentei três minas antipessoais e regressámos trazendo connosco o pessoal da 3417. Cerca das 15h00 pude comer qualquer coisa, requentada, só para não ficar em branco.


Uma coluna auto até ao HM241, em Bissau e, regresso a Mansabá: um pesadelo de 200 quilómetros

Cerca das 17h00 veio a ordem do nosso Major Correia de Campos para evacuar o comandante da CART 3417, em coluna auto, uma vez que a chuva não abrandava e os helicópteros não tinham condições para levantar.

O melhor que puderam, os enfermeiros acondicionaram o capitão numa das viaturas, para que a viagem de quase cem quilómetros até Bissau (!), debaixo de chuva intensa, se tornasse para o ferido o menos penosa possível. Só pedíamos a Deus que não tivéssemos nenhum contacto com o IN até Mansoa, porque então seria o bom e o bonito. Já bastava a chuva para complicar. O estado geral do sinistrado não era o melhor, porque já tinha passado bastante tempo desde a triste ocorrência. As horas de sofrimento físico e psicológico somavam-se.

Lá nos pusemos a caminho em marcha moderada, convencidos de que só iríamos até Mansoa. O normal seria as tropas dali continuarem até Bissau, mas não. Constatámos que não estava prevista nenhuma coluna, pelo que com muita resignação, espírito de sacrifício e altruísmo, continuámos nós a viagem até ao HM 241 onde chegámos cerca das 18h30. A viagem não se pôde fazer em velocidade elevada para não fazer sofrer ainda mais o ferido.

Voltámos tão rápido quanto possível, porque a noite já ia alta. A chuva que nos tinha acompanhado até Bissau, continuou até Mansabá.

Voltando ao senhor Coronel Correia de Campos, quem sou eu para enaltecer a sua figura? Sei apenas que era chamado para as situações mais complicadas no CTIG. A determinada altura deixou o comando do COP 6 [, em Mansabá,]  para assumir o comando noutra zona complicada da Guiné onde a sua presença era mais necessária.

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art Minas e Armadilhas
CART 2732
Mansabá, 1970/72
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1325: Memórias de Mansabá (7): O Comandante do COP6, Correia de Campos, e as Minas na Bolanha de Manhau (Carlos Vinhal)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17097: Brunhoso há 50 anos (12): As casas e as gentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rua de Brunhoso


1. Em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez falando sobre as casas e as gentes.


Brunhoso há 50 anos

12 - As casas e as gentes

Em Brunhoso há ruas inteiras onde não vive ninguém, nem passa vivalma. Nas Fontainhas a maior parte das casas de todas as ruas estão vazias, sem vida, fechadas e somente guardam recordações de gente que partiu há décadas para fugir a uma vida de muito trabalho, sacrifícios e privações.
Nas outras zonas da aldeia, sobretudo as menos centrais, o panorama é idêntico, vêem-se casas simples e pequenas que nos primeiros anos da diáspora para terras de França, os chefes de família, quando o dinheiro lhes começou a sobrar para esses “excessos”, procuraram melhorar em comprimento ou altura para dar mais conforto às suas famílias numerosas. Depressa se deram conta de que essas soluções em espaço e conforto não eram o que procuravam.
Com o tempo e mais poder económico, passaram a construir ou comprar casas maiores na aldeia e também, por vezes, por influência dos filhos já mais crescidos, na vila ou nas grandes cidades. Dispersas pelo casario, igualmente desabitadas, ou com um ou dois habitantes nostálgicos ou resistentes ao vendaval dos tempos que tem dispersado as gentes para muitos destinos, vêem-se as casas dos lavradores “remediados”. No geral reconhecem-se por terem, no primeiro andar da frontaria, duas janelas e ao centro uma porta com sacada. Tal como a “casa grande” da D. Adelaide, que já retratei nestas crónicas, são casas construídas na mesma época, com um estilo mais moderno, embora mais modestas e menos espaçosas.

 Casa de lavrador remediado

Ainda existem algumas casas em ruínas, ao estilo antigo, com escaleiras (escadas em Trás-Os-Montes, tal como na Galiza) exteriores, de pedra, com varandas de madeira. Nas décadas de sessenta e setenta, quando todos abandonavam a aldeia à procura de melhores condições de vida, os lavradores fizeram um derradeiro esforço, que as condições sempre débeis duma agricultura de subsistência em decadência acelerada pela saída dos seus melhores trabalhadores, lhes permitiram, para garantirem aos filhos alguma instrução e a possibilidade de procurarem também fora da aldeia alguma hipótese de futuro. Foram enviados para seminários, onde o ensino era muito mais barato mas sendo os padres demasiado exigentes e os seminários claustrofóbicos, a maior parte deles pouco se demoravam por lá. Foram depois mandados para colégios o que obrigou os pais a um esforço financeiro acrescido.


Casas antigas com escaleiras e varanda

Os lavradores, para aguentar esse esforço pouco habitual no passado, venderam terras por bom preço aos emigrantes, desejosos por adquirir esses bens, quando já tinham amealhado muito dinheiro. Um mau investimento de que se irão dar conta brevemente, quando descobrem que o seu trabalho duro e mal pago era afinal a mais valia dessas terras e sem a força do seu trabalho não tinham rentabilidade. Tiveram porém um prazer enorme em serem proprietários de hortas, olivais e grandes terras de cultivo que tinham trabalhado tantos anos para outros e que passavam a ser deles e nessa transmissão de bens eles sentiram-se renascer e crescer em poder e auto-estima.

Hoje, mesmo que muitas dessas terras estejam incultas, como a maioria das da aldeia, são propriedades deles, a terra passou a estar mais dividida e quem viveu e cresceu no meio dela tem sempre a esperança que nalgum futuro dos seus descendentes ela volte a tornar-se produtiva e útil.

Os baldões da vida e da fortuna pelos caminhos do Mundo levaram-os a uma análise e compreensão dialéctica das relações económicas e sociais muito diferentes da que tinham quando estavam limitados ao pequeno mundo onde nasceram e foram criados, sem horizontes ou aspirações para além de um trabalho duro para garantir a sobrevivência. Passaram a ser proprietários de boas casas e de terras, deixaram de ser humildes e passaram a exigir a quota de dignidade a que todos os homens têm direito. Por sua vez os velhos lavradores, os que duramente trabalhavam as terras muitas vezes também pagando jeiras a trabalhadores sem terras, morrem após esse derradeiro esforço de garantir algum futuro aos filhos, depois de verem que a terra já não lho podia garantir. A morte deles antecede o abandono progressivo dos campos e a morte anunciada há décadas dessa agricultura tão antiga que com poucas variantes reproduzia a agricultura das antigas civilizações do Mediterrâneo, do tempo de Jesus Cristo, dos romanos, dos gregos, dos antigos egípcios e outros. Amaram essas hortas, esses campos de trigo e centeio, os olivais, os sobreirais, os lameiros e regadas (campos de pasto) com o mesmo amor com que amaram as suas mulheres, os filhos, os netos, os pais e os avós, porque eles, como Xamãs da terra-mãe, estiveram sempre ligados aos seus mistérios, à sua renovação, ao milagre das colheitas do trigo, do centeio, do azeite, do vinho, das batatas e do linho.

Havia uma relação profunda entre o respirar da Terra ao ritmo das estações do ano e a vida destes homens dificilmente traduzível em palavras, porque a Terra não se exprime por palavras e os lavradores sempre na sua companhia habituaram-se a ser parcos no seu uso. A relação primordial do homem, aquela que mais o humaniza é essa relação que estabelece com a natureza e com os seus elementos. Com a morte deles e com o fim dessa agricultura milenar, perderam-se milhares e milhares de páginas, nunca escritas, de sabedoria, sobre essa comunhão tão estreita entre os homens e a natureza. Isto poderia levar-nos a fazer considerações sobre a agricultura moderna, mecanizada, intensiva, híbrida, de laboratório, industrializada. Para não alongar demasiado esta crónica deixo isso à reflexão de cada um.

A casa grande que se retrata, reproduz uma casa de lavrador rico construída na primeira metade do século XIX. Desse século havia outras casas grandes, talvez cinco, propriedades dos lavradores ricos, que tinham anexas ou próximas as lojas do gado, os palheiros, as curraladas e por vezes as casas dos criados, quando não dormiam na loja dos animais. Essas casas grandes, de paredes de xisto cobertas com cal, com mais de um metro de largura, foram construídas num estilo incaracterístico, somente com a preocupação de serem espaçosas e sólidas. Duas dessas casas recordo-me que foram transformadas e em parte modernizadas para um estilo mais actual.


Casa de lavrador rico

Curralada de lavrador rico, de 1817

Outras duas foram demolidas por compradores que construíram casas novas nesse espaço. Quem as construiu e quem primeiro as habitou, é hoje uma incógnita pois a história não escrita da terra, aquela que se transmite pelo falar das gentes de geração em geração, diz-nos que todas as famílias de grandes proprietários de terras que dominaram a aldeia a maioria dos anos do século vinte eram originárias doutras povoações mais ou menos distantes.

 Casa antiga

Quando eu era criança ainda, conheci a família dos Pereiras, dois irmãos e uma irmã, mais velhos do que os meus pais, que não deixaram herdeiros, de quem se dizia que eram os descendentes da família mais rica de Brunhoso. Ao tempo eram lavradores modestos, muito discretos, educados e duma delicadeza extrema no trato com toda a gente. Dos antepassados deles se dizia que com uma lapada (o mesmo que pedrada) de um homem, se percorria toda a área agrícola da freguesia sempre a atingir uma propriedade deles.

Terá havido um padre Coelho, homem muito rico, dono da "Casa das Feiticeiras" que pelo seu estilo senhorial penso que terá sido construída pelos Távoras, e que a família dele terá adquirido quando essa família poderosa caiu em desgraça. Com a morte do padre nos finais do século XIX sem deixar herdeiros, os seus bens terão sido adquiridos (ou herdados?) pela família Neves Ferreira, originária da aldeia de Castelo Branco.

Fala-se também da família Brás, outros grandes proprietários, com raízes antigas na aldeia, que terão vendido à família Felgueiras e a outras famílias, sendo o mais conhecido, por ser o mais recente ainda com algum poder económico, que terá já morrido nas primeiras décadas do século vinte, o João Brás, que acabou por vender a quase totalidade dos bens que restavam da família. As causas que provocavam a ruína dessas família ricas, que levou a que tivessem que vender todos os bens a famílias provenientes doutras freguesias do concelho terão sido as seguintes: má administração, jogo, dificuldade em escoar os produtos agrícolas, envelhecimento ou indolência das novas gerações habituadas a viver sem trabalho e sacrifícios. A administração dessas casas agrícolas sabe-se que nem sempre era exemplar: no geral esses lavradores ricos não exerciam outra actividade agrícola a não ser supervisionar o trabalho dos outros, serviço de que por vezes encarregavam feitores. Os filhos e os outros descendentes também raramente sujavam as mãos no trabalho da terra. Tinham que sustentar os filhos e a restante família que no geral nada produzia, tinham que pagar e alimentar criados e criadas e ainda pagar a muitos trabalhadores que contratavam para as colheitas e outros serviços.

 Rua de Brunhoso

O escoamento dos produtos agrícolas nalguns anos era difícil e pouco rentável. O jogo de cartas a dinheiro, antes de Salazar tomar o poder era uma autentica praga disseminada entre os povos do interior, que destruía casas e fortunas. Salazar com leis drásticas e uma fiscalização muito rigorosa acabou com esse vício. O ditador, que sempre teve como um objectivo nacional que o país fosse auto-suficiente em produtos agrícolas através da criação dos Grémios e das Federações Agrícolas garantiu também o escoamento da maior parte dos produtos agrícolas com algum lucro, com bastante nalguns anos, para os lavradores.

O trabalho na lavoura a baixo custo, garantiu-o pela ausência de sindicatos, salário mínimo e segurança social. Aproveitou para tal o vazio laboral que tinha herdado da Monarquia e da Primeira República, reforçado com alguma vigilância discreta sobre possíveis tentativas de alteração da ordem vigente. Os grandes lavradores e até os médios conseguiram ter mais rentabilidade e estabilidade económica durante o Estado Novo enquanto os trabalhadores sem terra nada beneficiaram com essa política.

Francisco
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rio Sabor


1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta à sua série Brunhoso há 50 anos, desta vez para nos falar do Crasto, da Fraga do Poio e do Rio Sabor.


Brunhoso há 50 anos

11 - Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor

No lugar do Crasto, que ocupa uma colina fronteira à aldeia, identificada na fotografia, segundo a memória transmitida por muitas gerações ao longo dos séculos, que se confunde com a lenda, terá existido uma povoação romana. Quando eu era mais novo vi lá algumas vezes pedaços de telhas que os lavradores desenterravam ao lavrar as terras.

O Crasto, que dominava toda a paisagem em redor numa lonjura de vistas variável, a menor nunca inferior a dois quilómetros e a maior superior a 50, era um sitio estratégico para os seus habitantes se precaverem e poderem defender de ataques surpresa de possíveis invasores, nos tempos em que as guerras de conquista e reconquista eram constantes. Existe em muitas povoações e nalgumas denomina-se “Castro” pois são palavras com a mesma raiz etimológica e significado. Era um lugar fortificado num sitio estratégico, entre os povos romanos ou pré-romanos. Hoje está morto e enterrado debaixo do pó da terra que os ventos transportam e que se foi acumulando ao longo de centenas de anos, tendo os lavradores lavrado essa terra que o cobre para semear trigo e onde algumas árvores foram crescendo, semeadas pelas aves e pelo vento. A sua forma cónica e a proximidade da aldeia, associada à lenda doutras eras, dá-lhe uma beleza um pouco familiar, misturada com uma certa nostalgia de um passado desconhecido.


 Duas perspectivas do Lugar do Crasto

Com a progressiva pacificação da Península depois da ocupação dos romanos, invasões dos bárbaros, os Suevos, os Vândalos e os Visigodos, e das invasões dos muçulmanos, provavelmente ainda muito antes do inicio da nacionalidade, a povoação terá sido construída no lugar onde hoje se encontra, um sitio mais baixo, entre colinas, mais protegida dos ventos frios e agrestes do Inverno e do inferno dos calores estivais. Uma planície mais verdejante, entre pequenos montes e colinas, onde nascem os ribeiros, mais abrigada dos ventos e das intempéries.

Já longe da aldeia, passando pelos montes de sobreiros e entrando na zona das oliveiras, quando os terrenos começam a descer em declive na direção do Rio Sabor, encontramos a Fraga do Poio, um monumento natural que marca a paisagem pela sua dimensão. A Fraga do Poio é um enorme penhasco de xisto com cerca de 300 metros de altura e com uma largura, na base, superior, formando um penedo, que impõe a sua presença em toda a paisagem em redor, como se fosse uma enorme catedral de pedra erguida em tempos antigos a um Deus da Terra menos omnipotente e mais próximo dos mortais do que o Deus dos Céus que, na sua ânsia de poder, quis ser Deus dos Céus e da Terra. Sinto dificuldade em definir o sentimento que os brunhosenses sentiam e sentem em relação a essa fraga gigante: respeito, temor, veneração, exaltação, vaidade, orgulho? Talvez um pouco de tudo isto mesclado com a simplicidade e a naturalidade que foram sempre características dos meus conterrâneos.


 Vistas da Fraga do Poio

Sem saírem da povoação, tinham à vista o Crasto que lhe povoava a imaginação dum passado de gentes que confundiam com romanos e mouros, mais mouros que foram os últimos a passar por lá e dos quais alguns resquícios da memória coletiva conservavam lembranças difusas envoltas em lendas.

Descendo por caminhos ou carreiros de terra batida, em direcção ao rio Sabor, a três quilómetros, podiam debruçar-se de cima da Fraga do Poio e apreciar as vistas do rio serpenteando no vale, a cerca de dois quilómetros, brilhando como prata em dias mais claros de sol ou como chumbo em dias mais escuros de inverno .

 Panorama a partir da Fraga do Poio

Hoje para quem o vê e admira, o Sabor parece um rio grande, que a barragem a jusante, perto da foz, converteu num enorme lago de águas paradas que irá aumentar ou baixar o seu volume conforme as necessidades das barragens hidroeléctricas do Rio Douro, no seu caminho para a Foz do Porto, em direcção ao Atlântico. O Sabor não será mais aquele rio furioso e selvagem dos Invernos chuvosos do Nordeste ou calmo e com tão pouca água no Verão, que se deixava atravessar a vau nalgumas partes do seu percurso. Com a construção da barragem, o Sabor deixou de estar ao serviço dos habitantes das aldeias das suas margens, cada vez mais desertas, para se transformar num rio moderno para produção de electricidade para os grandes burgos. Entrou na era da globalização tal como a maioria dos habitantes de Brunhoso e das outras terras pequenas atraídos pelas grandes cidades do país e do estrangeiro, que ainda antes da construção da barragem já o tinham abandonado .

As pessoas crescem e fazem-se na contemplação do meio ambiente em que são criadas e é ele que que lhes vai ajudar a moldar o carácter e a personalidade. O Crasto, a Fraga e o Sabor irão marcar para sempre as gentes de Brunhoso. A colina arredondada e elevada do Crasto, tão perto da povoação, com vestígios doutro povoado mais antigo, deu-lhes uma dimensão difusa da longevidade que transportam os séculos e da história que os homens escreveram quando se espalharam pela terra. A Fraga do Poio, erecta, firme e imutável na sua consistência e rigidez de pedra, com milhões de anos, dá-lhes a ideia confusa e mal assimilada, das medidas e dum tempo astral, quando tempo e distâncias se confundem e se transformam em crenças que a pouca ciência ou a ignorância dos homens não conseguem decifrar.

O rio Sabor, antes da construção da barragem, suave e transparente no Verão, cheio, escuro e apressado no Inverno, vai dar-lhes a beleza fluída e envolvente ora calma e transparente no Verão, ora furiosa e temerosa no Inverno, da água, essa mãe primordial que tanto cria, alimenta e afaga os outros elementos, como os destrói na sua passagem impetuosa.

 Rio Sabor

Há cinquenta anos, quando Brunhoso ainda estava povoado de gente a viver num mundo mais difícil, primitivo e antigo, os seus habitantes formaram pois o carácter sob a influência da colina do Crasto que lhes deu o sentido do passado e da história, da Fraga do Poio que lhes transmitiu dureza e algum sentido de grandeza, do rio Sabor que lhes deu outra dimensão da beleza e da vida.

É tão difícil utilizar as palavras mais apropriadas para definir a luta e a comunhão entre a natureza e esses antigos habitantes da história de Brunhoso, que antecedeu a minha partida para a Guiné.

Peço desculpa, se a emoção, de quem ainda viveu parte dessa história, lhe dificulta a razão e lhe prejudica a objectividade e imparcialidade.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 18 de Outubro de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal, Brunhoso, há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

10 - As casas

As primeiras fotografias procuram retratar parte dos muros que formam um círculo, dentro dos quais havia uma casa antiga e grande e outros edifícios anexos, que ainda conheci em ruínas há já mais de cinquenta anos, na rua do Fundão. Hoje da casa e das dependências agrícolas nada resta e o terreno onde os edifícios estavam implantados está invadido por silvas e fenanco (feno alto).

O homem que está junto do prédio é o seu actual proprietário, o meu amigo Joaquim Cordeiro, mais conhecido por Joaquim Passarinho, que a comprou aos seus últimos herdeiros há cerca de trinta anos.



O Joaquim Passarinho é um monumento vivo da aldeia pela sua energia e pelo trabalho incansável que tem desenvolvido ao longo de mais de sete décadas, em todas as áreas da agricultura ao serviço das casa grandes e das mais modestas e como emigrante em Espanha e em França. Lá fora em trabalhos duros, como muitos dos seus conterrâneos, ganhou muito dinheiro que aplicou totalmente na compra de prédios urbanos e rústicos da aldeia, passando a trabalhar na casa agrícola que formou tendo melhorado muitos terrenos com plantações e outros benefícios. Herdou a altura, a energia e a alcunha do seu pai o Ti João Passarinho que trabalhou quase até à hora da morte, já depois dos 80 anos.


O meu amigo Joaquim, também conhecido por Jacob, sendo um efabulador com uma imaginação sempre activa ao comprar as ruínas desta casa grande, ele que viveu na infância e na juventude, quase paredes-meias com ela, numa casa pequena e pobre, terá talvez pensado construir nelas um grande castelo que assombrasse as gentes das redondezas, tal como Luís da Baviera, esse rei sonhador que construiu aquele enorme Castelo de Neuschwanstein, castelo de duendes e fadas, num penhasco dos Alpes Bávaros.
Há homens que têm sonhos tão loucos e grandiloquentes, que podem nunca os ver realizados, mas são felizes enquanto convivem com eles.

A minha imaginação tinha dificuldade em preencher aquele espaço de casario em ruínas enorme e murado. Tal como eu, as gentes da aldeia, que também não conheciam a sua história, nem os seus moradores que se adivinhavam ricos, teriam a mesma dificuldade em compreender aquelas paredes mortas e abandonadas ao vento, ao sol e à chuva, e talvez por isso deram-lhe o nome de “Casa das Feiticeiras”. Naqueles verdes anos, ainda a navegar entre o sonho e a realidade, embora descrente de fadas, feiticeiras e zângãos, sentia que havia uma magia fantasmagórica naquele espaço abandonado, formado por esses muros altos e por essas construções em ruínas, onde as almas dos seus mortos esquecidos pareciam querer falar connosco. Constava-se que as feiticeiras saíam algumas noites, a desoras e gostavam de fazer bailes nessa casa grande, decrépita e abandonada ao luar ou na escuridão da noite.

Sendo conhecida como "Casa das Feiticeiras", era uma denominação que as pessoas aceitavam, sem procurarem outra, já que pelo mistério que infundia, se coadunava bem com o seu aspecto.

Na “troça” de pedra que encima o portão da entrada, sustentada por “ombreiras” de grandes pedras de xisto, consta uma data que só se consegue ler se subirmos próximos da inscrição já que está muito enegrecida pela passagem dos anos. Na inscrição, bem nítida, para quem se aproxima, utilizando uma escada, está a data de 1698 (MDCXCVIII) em algarismos arábes. Com a maior parte do muro exterior ainda em pé, penso que é a edificação mais antiga da aldeia. Desconhece-se quem a terá construído ou quem habitou esse enorme casarão que mais parecia uma fortaleza com muralhas tão altas, sabe-se apenas que o seu último proprietário terá sido o Sr. João "Lagoa" Ribeiro, viúvo de uma senhora de apelido Neves Ferreira, que o teria herdado dos seus pais. É muito duvidoso que essa família o tenha construído pois é voz corrente na terra que era originária doutra aldeia que dista 20 quilómetros de Brunhoso. Dessa família ainda há descendentes na aldeia embora não haja ninguém que tenha herdado esse apelido porque o último dos seus antepassados varões morreu há mais de 60 anos, solteiro e sem filhos.

A casa grande retratada na foto que se segue, foi mandada construir na década de 40 do século passado pela Dona Adelaide das Neves Ferreira, a última descendente conhecida dessa família que conservava ainda esse apelido. Era irmã do último Neves Ferreira que ainda terá vivido com ela ocasionalmente alguns anos.


Recordo-me desta senhora como de uma castelã nos seus domínios pois ela, que era solteira, vivia sozinha com as criadas, nessa casa imensa um pouco semelhante às casas solarengas que os nossos “brasileiros” ricos mandaram construir no início do século vinte. A casa foi construída por um lendário pedreiro de Brunhoso, de apelido Moredo, depois de ter regressado ainda novo do Brasil, para onde voltaria novamente alguns anos após a sua construção para garantir o sustento e o futuro dos seus onze filhos. Com muito trabalho, génio, conhecimentos adquiridos e com a ajuda dos filhos, esse pedreiro, quase analfabeto, fundou em S. Paulo uma firma de construção e importadora e exportadora de pedras, sobretudo mármores e granitos, de projecção internacional.

A Dona Adelaide era uma mulher afável, elegante e tão alta que os conterrâneos se referiam a ela com a alcunha de “A Longa”. Alguns mais antigos ouviram aos seus pais que na juventude se terá perdido de amores por um moço de lavoura da casa e quando a família lhe proibiu esse devaneio amoroso, jurou que nunca casaria com outro homem.

Nesses tempos antigos, apesar de muitas leis, muitos tabus e proibições, a atracção entre os sexos, sempre levou alguns enamorados/as mais fogosos e aventureiros a não respeitar essas barreiras e a entregaram-se a esse sentimento, por vezes transformado numa paixão tão violenta que apelava à comunhão de corpos e almas. A literatura fala-nos de muitas dessas paixões impossíveis por vezes trágicas, sendo a mais emblemática a de Romeu e Julieta.

Essa sociedade antiga, quase medieval de terratenentes, tinha regras próprias, muito rígidas sobre o amor, as paixões e o casamento. O amor era um bem somente transacionável e permitido entre os membros da mesma classe, com o mesmo poder económico e social. Quando eram homens ricos ou filhos de ricos atraídos pelas “criadas” (empregadas domésticas) , ou outras mulheres “pobres”, solteiros ou já casados muitas vezes conseguiam estabelecer ligações com essas mulheres, à revelia dos bons costumes e da família, muitas vezes ilegais, outras vezes adúlteras, segundo as leis da igreja e segundo a lei civil, que o tempo e o sentido prático das gentes, se encarregaria de "legalizar".

Quando eram mulheres ricas atraídas por criados de lavoura ou de uma classe económica mais baixa, raramente originavam relações esporádicas ou duradouras, dado o estatuto de inferioridade de que a mulher gozava que lhe dava pouca liberdade e autonomia.

Não casou, teve uma vida longa a ministrar conhecimentos de costura, tear, bordados e outros conhecimentos práticos às raparigas da aldeia.
Tratava também do arranjo da igreja, das capelas e dos santos, nesse tempo ocupações próprias para sublimar as frustrações das mulheres solteiras da sua condição social, privadas das alegrias próprias de quem constitui família. Ainda garoto entrei algumas vezes nessa casa grande, que me despertava bastante curiosidade, na companhia de um sobrinho neto da proprietária que por ironia do destino, continua ainda solteiro, tal como a tia-avó e vive sozinho nela, já restaurada e com algumas alterações no seu interior.

Há outras casas na aldeia que merecem um passeio, uma reflexão sobre o seu passado, as transformações que sofreram, o seu estado de conservação e os seus moradores mais antigos ou actuais.
Percorro as suas ruas que são também ruas do meu passado, as pedras que piso e as que se erguem em altura, com tanta história para contar, estão cada vez mais caladas porque as vozes do povo são pouco audíveis, o chiar dos carros de bois são um som que se perde no tempo e na distância e o chilrear dos pássaros cada vez mais monótono parece uma sinfonia triste.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

domingo, 14 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Foto: Com a devida vénia à Câmara Municipal do Porto


1. Em mensagem do dia 11 de Agosto de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos das Amizades e Memórias que o tempo vai apagando.

 
AMIZADES E MEMÓRIAS QUE O TEMPO VAI ESFUMANDO

Já quase no final da minha caminhada, no Parque da Cidade do Porto, fui abordado por um cavalheiro, que vinha em sentido contrário, que me perguntou educadamente pela minha naturalidade. Eu disse-lhe qual era e ele disse-me que se lembrava de mim depois muitos anos já passados, talvez cinquenta e cinco, e que eu o tinha iniciado na aprendizagem da língua francesa, e para minha surpresa começou a contar em francês: un, deux, trois, quatre, cinque...

Era um homem afável, de estatura média, que denotava além de uma boa dieta alimentar, cuidados físicos para manter a forma. Quis corresponder à simpatia demonstrada por ele e ao apelo que fazia à minha memória, mas para meu desgosto e dele possivelmente, não me fazia lembrar ninguém do meu passado.

Para avivar a minha memória ele disse-me que me tinha conhecido na Vila, na casa de uma tia dele, irmã da mãe, casada com um alfaiate onde eu estava “ aboletado”, foi o termo que ele usou, quando eu estudava no colégio. Eu teria catorze ou quinze anos e ele, pela diferença de idades de que falamos depois, teria sensivelmente metade da minha idade.

Ele, numa tentativa de acordar a minha memória adormecida, ainda me disse que era o Emílio e que a mãe dele se chamava Luísa.
Tinha seguido a carreira militar, tendo entrado na Academia Militar onde ainda estava quando aconteceu o 25 de Abril e a independência das colónias. Atingiiu o posto de coronel, actualmente já está reformado.

Eu que por um preconceito comum na nossa sociedade, justificado ou não pelo comportamento dos oficiais superiores, distantes e autoritários por formação, ou deformação, profissional mesmo quando abandonam a vida militar, fiquei muito sensibilizado por ver um coronel despir a farda militar, calçar as sapatilhas e vestir os calções de garoto, para me cumprimentar, a mim que sou um civil desalinhado e sem condecorações, e fui oficial miliciano por um acidente da história. Falámos doutras circunstâncias das nossas vidas e despedimo-nos com um até breve, numa próxima caminhada no Parque da Cidade, que ele também frequenta com assiduidade.

Abandonei o Parque da Cidade pesaroso e consternado por não ter correspondido às expectativas dessa amizade prolongada, que eu esqueci e que esse menino, hoje coronel reformado, conservou para sempre. Pus-me a contar em francês, nessa língua que eu sempre amei, como quem reza, a pedir perdão pelas falhas da minha memória traiçoeira.

Nas horas e nos dias seguintes procurei forçar a minha memória relapsa, para me abrir caminho através do nevoeiro dos dias cinzentos, dos dias tristes e dos dias escuros do meu passado. A revelação aconteceu e voltei a rever esse rapazinho, simpático e curioso, que me adoptou como o irmão mais velho, com mais conhecimentos do que ele, pois já estudava francês, uma outra forma de falar com palavras diferentes. Palavras tão diferentes que ele iria inscrever na memória para a vida inteira, associadas a esse adolescente de catorze anos que lhe tinha dedicado alguma atenção e era tão alto como o pai dele.

As crianças gravam para uma vida inteira nas folhas brancas da sua alma os conhecimentos que elas misturam com os afectos que recebem dos pais, dos avós, dos irmãos e dos amigos .

Tudo é real menos os nomes do coronel reformado e da mãe dele. Para ele e para a mãe, que recordo como uma senhora simples, simpática e delicada e que ainda é viva, conforme ele me contou, desejo uma longa vida com muita saúde.

Este episódio, na falha de memória que assinala, é semelhante a outros que me têm acontecido nos últimos anos quando comecei a despertar com nostalgia na procura dos meus velhos camaradas e amigos da Guiné. Alguns que eu tinha esquecido e não consigo lembrar, lembram-se de mim com pormenores que eu já tinha esquecido.
Um deles com quem convivi diariamente pelo menos dois meses e que encontrei num almoço da companhia 44 anos depois, cumprimentou-me com muita familiaridade e eu disse-lhe que nunca o tinha conhecido. Ele disse-me que se lembrava bem de mim e que eu nesse tempo usava bigode. Não me lembrava de alguma vez ter usado bigode. No ano seguinte, noutro almoço ofereceu-me uma fotografia onde estávamos os dois entre outros oito ou dez a jantar e eu com um bigode, que não era de cavalaria mas de infantaria para não renegar a minha Arma.
Noutro caso sou eu que me lembro muito bem de um alferes de outra companhia que reforçou a minha durante dois meses, que dormiu no meu quarto durante esse tempo, com quem tive uma boa relação de amizade. Para meu desgosto, ele apagou-me completamente da memória sem se dar conta pois ele era um bom camarada e acredito que pela vida fora conservou as boas qualidades que lhe reconheci, quando jovem.

Ao camarada do destacamento de fuzileiros com quem falei por telefone este ano, e que me disse que se lembrava bem de mim, das muitas refeições que fizemos na messe, não tive coragem de lhe dizer que não me lembrava nada dele e menti-lhe.

Enfim quando estivemos em África, ao tempo na chamada província portuguesa da Guiné, não trouxemos a imagem de elefantes vivos, que já não havia, nem a sua memória prodigiosa. Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo das granadas e das bombas e pelo matraquear das metralhadoras.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2016 Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), traz-nos a segunda parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 9 - O Ciclo do Pão (2)

Depois das ceifas ou em parte em simultâneo, era necessário fazer o transporte dos molhos de trigo que os ceifeiros tinham juntado em "rilheiros" nas terras já despidas de cereal e cobertas de restolho áspero. Começava a “acarreja” assim se chamava essa grande operação do transporte dos molhos de trigo e centeio para as eiras do Prado e outras eiras particulares, para serem trilhados ou malhados.

Os lavradores normalmente iam dormir às terras, com o gado, para a primeira carrada estar nas eiras ainda antes do nascer do sol, aproveitando o calor das noites e a luminosidade dessas alvoradas de Verão. Por esse ou por outros motivos cheguei a dormir muitas vezes no campo nessas noites quentes de verão, tendo por luz somente o céu estrelado que cobria a terra com um manto de estrelas que brilhavam como se o Universo tivesse renascido.

Os carros eram carregados, como diziam os lavradores, com "pousadas", conjunto de quatro molhos, e havia muito rivalidade nessas cargas, quer pela melhor aplicação da técnica utilizada, quer por carregarem mais, sinal de animais possantes e bem treinados.

Devido a esse peso, os carros "chiavam”, assim se dizia e, para que isso não acontecesse, primeiro porque o eixo aquecia muito e podia arder com a fricção, e também porque se andassem nas estradas, mesmo municipais, poderiam ser multados, untava-se o eixo e as "estreitouras" com sabão caseiro ou com borras de azeite.

Logo ao inicio do alvorecer, dessas manhãs claras de Verão, com o sol ainda escondido atrás dos montes, os lavradores, os filhos ou os criados de lavoura regressavam numa primeira viagem com os carros carregados de trigo ou centeio, numa marcha lenta que enchia os ares dessa música continua e arrastada, produzida pela fricção das rodas, que parecia um lamento transformado em sinfonia, que desagradava às autoridades policiais, mas não desagradava às gentes da aldeia. À medida que os dias iam passando, as medas nas eiras iam crescendo em largura e altura, algumas imponentes como grandes pirâmides, e outras mais ou menos modestas de acordo com a riqueza em terras de cultivo de cada um. Eu, como de resto os meus irmãos, na adolescência, só começávamos a ir à acarreja, quando o meu pai achava que já tínhamos músculos nos braços para poder atirar, com uma espalhadoura, os molhos para os carros, onde o irmão mais velho ou alguém os acomodava. Na década de cinquenta esse trabalho seria feito por um criado de lavoura, que se "justava" anualmente no dia de S. Pedro, e por um trabalhador que era chamado à jeira. Eu e os meus irmãos, à medida que íamos crescendo, como no geral os filhos dos lavradores menos abastados, íamos fazendo todos ou quase todos os trabalhos agrícolas. Depois das ceifas, o trabalho mais duro das colheitas, de que o nosso pai nos poupava com trabalhos menores, como distribuir água aos ceifeiros ou levar-lhes as refeições nos alforges em cima da burra, voltávamos a ser novamente trabalhadores activos no primeiro plano das actividades agrícolas. A acarreja seria uma tarefa de quinze dias, mais ou menos, em que animais e homens andavam num rebuliço constante que começava logo nesses alvoreceres de verão, suspendia-se durante as horas de maior calor, para recomeçar outra vez à tarde. As eiras do Prado eram um grande espaço de relva próximo da aldeia, propriedade da Igreja (Fábrica da Igreja, como se denominava), onde todos os que não tivessem uma boa área de terreno, uma cortinha ou um prado, próximo da aldeia, podiam trilhar ou malhar os cereais. Fora da época das colheitas era um terreno de pasto, destinado a burros e outros animais de carga, aproveitado sobretudo pelos mais pobres que não tinham “lameiros” (o mesmo que prados) onde os pudessem levar a pastar. Todos os grandes lavradores, cinco ou seis, tinham eiras próprias para fazer as debulhas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta os cereais ainda eram debulhados, tal como acontecia com as ceifas, pelo processo tradicional e histórico, igual aos dos antigos povos de lavradores da bacia mediterrânica, com recurso ao trilho e à trilha.

O trilho, aparelho para debulha do cereal, é uma espécie de estrado de madeira, compacto e com algum peso, com lâminas de ferro em forma de faca fixados na parte inferior. Puxado pelo gado na eira, com o condutor em cima do trilho, para maior pressão sobre o cereal tirado das medas, e previamente espalhado, depois de cortados os ”vincelhos” dos molhos. Os vincelhos, com que os ceifeiros atavam os molhos de cereal na ceifa, faziam-se atando o próprio cereal pelas espigas de forma a não se soltarem. Havia sempre um garoto que ia no trilho com uma cortiça em concha, para aparar as fezes dos animais.

Trilho
Com a devida vénia a Capeia Arraiana

As lâminas de ferro separavam o grão da espiga e cortavam a palha.

A Trilha, em tudo igual aos trilhos, mas em vez de metal, tinham seixos cravados na madeira e usavam-se, sobretudo nas lentilhas e tremoços.

Depois da malha o trigo (ou centeio) era junto em parvas, compridos montículos com pouca altura, para fazer a separação da palha e do grão, com a ajuda do vento, utilizando pás próprias para esse efeito. Depois de separado o cereal da palha, era metido com as rasas ou rasões nos sacos de linho grosso com a capacidade de cerca de cinquenta quilos cada um. No fim do dia os sacos seriam carregados nos carros de bois e transportados para as despensas dos lavradores, muitas vezes despejados em tulhas a aguardar o transporte para o celeiro, situado à beira da estação dos caminhos de ferro de Mogadouro. A palha era também carregada nos carros que eram providos de grandes cancelas para puderem transportar mais quantidade, e levada para os palheiros e curraladas. As curraladas eram recintos grandes que alguns lavradores tinham, onde guardavam as alfaias agrícolas, a palha, o feno e nalguns casos também os animais de trabalho.

Os mais pobres ainda utilizavam os malhos ou, "manguais", para todo o tipo de cereal, primeiro porque a colheita era pequena, segundo porque os trilhos eram caros para as suas posses.

Malhar o centeio
Com a devida vénia a Quinta do Lagar da Moira

Parte do centeio era sempre malhado pela força dos homens com os malhos, preservando o caule inteiro, chamado colmo, muito útil para fazer albardas, belfas, encher os xaragões (colchões de colmo, já que outros não havia) e para chamuscar o pelo dos porcos nas matanças, durante o inverno. Nesse tempo havia uma aldeia no concelho de Freixo de Espada-à-Cinta, chamada Fornos, a cerca de 30 kms de Brunhoso, onde os telhados da maioria das casas eram cobertos de colmo. Outras iguais havia nas zonas serranas e mais afastadas, tanto nas Beiras como em Trás-Os-Montes.

A debulha era o epílogo do longo ciclo do pão, o culminar de uma grande jornada onde todos estavam presentes: os homens, as mulheres, os pais, as mães, os filhos, os patrões, os trabalhadores, os novos, os velhos. A gente de Brunhoso saía toda de casa para ajudar nas malhas, o final das colheitas do cereal. Em casa só ficavam as mulheres dos lavradores e algumas ajudantes a fazer comida, pois era necessário alimentar todo esse exército de trabalhadores que estavam nas eiras a tratar do grão e da palha. A comida era abundante tal como tinha sido a dos segadores nas ceifas. Havia uma algazarra própria dos grandes acontecimentos, com todo esse povo de homens e mulheres, sujos do pó do cereal e da palha, a trabalhar debaixo desse sol tórrido de Agosto, ou sentados em longas mesas improvisadas com trigo ou centeio a comer as melhores comidas que as patroas sabiam fazer e a beber o vinho “precioso” da colheita do patrão ou comprado para os lados de Miranda do Douro. Eram dias de grande convívio, trabalhava-se muito, mas falava-se, gracejava-se, comia-se bem, bebia-se bastante. O que recebiam desses dias de trabalho além do vinho e da boa comida, do prazer dessa convivência alargada, era um agradecimento dos lavradores que se confundia com a caridade cristã, de alguns alqueires de trigo ou centeio, ou pães já cozidos que em tempos posteriores de mais necessidade lhes dariam para eles e para os filhos e alguns sacos de palha, para alimento dos burros. Era pouco mas esse pagamento ancestral dessa ajuda por comida e por alguns benefícios futuros certos ou incertos, era muito antiga, tão antiga que os mais velhos já não sabiam se tinha sido instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, na Galileia, que era terra de trigo. Tinha uma vizinha, mãe de muitos filhos, boa mulher, muito faladora e sociável que não perdia um dia de colheitas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta, do século passado, era eu garoto, e recordo-me ainda das debulhas serem feitas da forma que descrevi atrás, somente por homens e animais. Talvez ainda antes de meados dessa década surge a malhadeira uma grande máquina que por processo mecânico, movida inicialmente por um motor a gasóleo e posteriormente por um tractor, separa a palha do grão, saindo a palha já moída por uma abertura larga e o grão por outras aberturas mais estreitas onde havia sacos de linho a encher, vigiados por trabalhadores.

Malhadeira
Com a devida vénia a Paisagens de Trá-os-Montes

O primeiro tractor agrícola surge em Brunhoso, disso recordo-me ainda bem, a meio dessa década e quando foi levado ao lavrador que o comprou para demonstração, com arados e outros acessórios provocou grande sensação e juntou muita gente, pequena e grande sobretudo do género masculino.

Nunca me esqueci era um David Brown, grande e azul .

Tractor David Brown 900 de 1957
Com a devida vénia a The David Brown Tractor Club

Passados alguns anos, já na década de sessenta, irão entrar na aldeia as ceifeiras debulhadoras, máquinas agrícolas, uma espécie de grandes tractores, que se deslocam às searas e fazem toda a ceifa e a debulha à medida que cortam o cereal, que irão alterar radicalmente as formas ancestrais de ceifar e transformar as searas em grão e em palha. As primeiras ceifeiras da região, eram do chamado GRÉMIO DA LAVOURA, instituto do estado que fomentava o cultivo dos cereais, quando vieram para esta região já eram usadas, vinham do Alentejo, onde já eram consideradas pequenas e obsoletas. Com a introdução das ceifeiras-debulhadoras, os antigos ceifeiros passam a ser meros espectadores desse progresso tecnológico onde não havia lugar para eles. Provavelmente será uma das causas, associada a outras, da debandada em massa, a salto, desses trabalhadores para França e para essa Europa das nossas ilusões, depois das Índias, das Américas e das Áfricas. Os homens querem jeiras, querem trabalho e ele cada vez escasseia mais.


A agricultura sujeita a variações de produção provocadas pela seca, a chuva excessiva, as trovoadas o granizo e outras causas naturais pelo que os povos de agricultores procuraram sempre a protecção de entidades sobrenaturais para se protegerem de todas essas calamidades.

A palavra cereal vem de Ceres, a deusa romana da agricultura da colheita e dos grãos.
Ceres, generosa na essência e na forma, é bela sem sofisticação, serena e natural como uma flor silvestre.
Tem outras representações de acordo com os gostos e a sensibilidade dos seus adoradores ou artistas. Eu imagino-a tal como a descrevi.

Ceres é também um símbolo da fertilidade e da vida tal como a sua irmã da mitologia grega a deusa Deméter.
Quando o Império Romano declara o cristianismo como sua religião oficial, no século IV dC, através o imperador Teodósio, as competências de muitos deuses e deusas da antiga religião politeísta são atribuídas pela Igreja a santos e santas.
S. Isidoro, um santo espanhol, é o protector dos lavradores, quase desconhecido no Nordeste Transmontano onde no geral se pedia auxílio a Santa Bárbara, virgem e mártir, protectora das trovoadas e doutros males associados como aguaceiros fortes e o granizo.
A festa à Santa Bárbara, nesse tempo antigo, ainda antes da "fuga" dos trabalhadores para a Europa, era celebrada no segundo domingo de Setembro, quando as colheitas já estavam feitas com o cereal e a palha recolhidos. Era um tempo em que se podiam lançar os foguetes sem o perigo de incendiar as searas ou as medas de trigo e era a ocasião de agradecer à Santa os resultados das colheitas do ano.

Francisco Baptista
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Nota do editor

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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16258: Brunhoso há 50 anos (8): O Ciclo do Pão (1) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos, desta feita com a primeira parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 8 - O Ciclo do Pão (1)

Na década de cinquenta do século passado, que é até onde a memória me consegue transportar na minha viagem ao passado, Brunhoso vivia de uma agricultura rudimentar que pouco diferia da agricultura praticada pelos antigos egípcios, gregos, romanos e outros povos mediterrânicos.

Era uma agricultura, sem recurso a máquinas que se baseava na utilização intensiva da força humana e dos grandes animais domésticos: bois, vacas, gado muar e asinino. A tecnologia mais avançada que utilizava, para além da charrua, era o arado e o carro de bois de que já se vêm em gravuras do antigo Egipto do tempo dos faraós. A charrua com funções semelhantes às do arado, era toda em ferro, mais pesada portanto e com uma relha maior que rasgava a terra com mais profundidade e conseguia lavrar em solos mais duros, que veio como tal permitir aumentar a área de cultivo possibilitando o desbravar de muitos terrenos incultos. A charrua é considerada um avanço tecnológico da Idade Média, que terá sido mais difundida após a revolução industrial da Europa com a criação de fábricas metalúrgicas que as fabricavam em série como acontecia na fábrica de Tramagal no Ribatejo, donde eram as que eu conheci, nesses tempos. Para além da melhoria tecnológica que representou a invenção da charrua, terá havido, como é natural outras melhorias que a marcha dos tempos sempre traz, como melhores selecções de sementes, um melhor conhecimento dos solos e a criação de melhores adubos para os tornar mais férteis. Um adubo muito utilizado e publicitado por paredes de vilas e até aldeias, nos anos cinquenta e algumas décadas subsequentes era o famoso "Nitrato do Chile".

Charrua do Tramagal
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Depois das sementeiras em fins de Setembro, meados de Outubro, conforme o tempo o permitisse, novo ciclo do pão recomeçava. O lavrador nunca tinha descanso e a terra, essa deusa antiga, exigia dele uma atenção e um trabalho constante. O meu amigo Joaquim "Passarinho", já com 86 anos, diz muitas vezes que a “fazenda” (conjunto das propriedades agrícolas de que o lavrador tinha que pagar anualmente a décima nas repartições da Fazenda Pública) gosta de ver o dono. Para preparar as terras para as sementeiras do próximo ano, os lavradores começavam logo a decrua, que era a primeira lavra com as tais charruas de ferro da fábrica de Tramagal, puxadas por juntas de bois, vacas, mulas ou machos que rasgavam a terra cheia de ervas e restolho já ressequido. O tempo da decrua, que decorria no Outono, que por não haver colheitas, era uma estação do ano triste e temida pelos trabalhadores da terra, pois antes da apanha da azeitona que só começava em Dezembro as jeiras eram escassas.

Venda do Pinheiro - Publicidade ao Nitrato do Chile em azulejo
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A “vima”, que era a segunda lavra, fazia-se normalmente na Primavera, nos meses de Março, Abril e Maio. Não havia muito rigor nestas datas pois tanto a decrua como a vima dependiam muito das condições atmosféricas que podiam trazer tempo seco ou chuvas e condicionavam as fases da preparação dos campos de cultivo. Podia até acontecer que se fizesse alguma decrua na Primavera por não ter havido condições para fazê-la antes, nesses casos a vima seria já mais próxima da sementeira.

Alguns lavradores, quando a vima era feita logo no inicio da Primavera, “escardavam” também os campos, que era uma última lavra que tinha por objectivo arrancar as ervas daninhas que entretanto tinham crescido. Um dos sinónimos de escardar é eliminar os cardos, que nalguns terrenos cresciam em abundância.

As sementeiras começavam em Setembro e acabavam em Outubro. As sementeiras eram pois feitas ao entrar o Outono, nesse tempo de paz em que duração dos dias e das noites se equilibravam e o sol enviava raios mais oblíquos com um calor suave que iluminavam a terra com uma claridade que alargava mais os horizontes, quando as folhas caducas dos castanheiros, das parreiras e de outras árvores e arbustos de folha caduca, na despedida, se iam transformado em tonalidades suaves de verde, castanho, amarelo, rosa e vermelho. O tempo das sementeiras era um tempo que se adequava ao meu temperamento e sensibilidade. Um tempo calmo, ameno e em que os horizontes de montanhas se alargavam e tornavam mais visíveis, fazendo crescer os sonhos em evasões imaginárias.

Nesse tempo tínhamos uma junta de bois e uma junta de vacas. O meu irmão mais velho lavrava com a junta de bois e eu com a junta de vacas, enquanto o meu pai semeava o trigo. De manhã ao sair de casa a minha mãe como de costume, dava-nos o saco da merenda, feito de linho ou estopa, com o pão, presunto, toucinho, chouriço, por vezes queijo ou frango. Lembro-me desses dias de sementeira como de solenidades místicas com homens e animais empenhados no mesmo esforço comum, sendo o nosso pai o “Xamã” que "espalhava" o cereal (trigo ou centeio) com ar sério e compenetrado. Pelo meio-dia, por ordem dele, parávamos e escolhíamos uma sombra para merendar. Nunca esqueci um dia, teria 16 ou 17 anos, em que fizemos a sementeira duma terra do Zimbro. Há dias ou momentos que recordamos para a vida inteira sem sabermos explicar o porquê desse registo. A mim tem-me acontecido algumas vezes ao longo da vida. Desse dia de sol esmaecido, de fins de Setembro, recordo quase tudo com uma fidelidade fotográfica. Além da visão dos homens e dos animais e das suas tarefas até recordo o sabor do toucinho que fazia parte da merenda. Não me lembro de ter comido um naco de toucinho como aquele. Depois de ter sido curado pelos frio seco de Inverno e resguardado do calor intenso de verão na despensa fresca do rés-do-chão, o toucinho estava curado e feito, como um bom vinho, que afinal até lhe fazia companhia no mesmo lugar. Talvez tudo isto me tenha acontecido por ter experimentado a bênção da terra que o lavrador recebe quando comunica com ela, eu que era um lavrador sazonal, de tempos de férias.

Normalmente as terras ficavam de "POUSIO", pelo menos um ano. Não havia nenhum pacto de regulação de zonas, no entanto, para acautelar o pastoreio dos animais, os lavradores procuravam andar na mesma folha que os outros, embora houvesse quem assim não fizesse, se não tivesse alternativa. Isto significa que metade dos campos cultiváveis da aldeia estavam cobertos de cereal enquanto os da outra metade, de pousio, estavam a ser preparados para as próximas sementeiras.

Depois das sementeiras o trigo e o centeio tinham uma gestação de nove meses, tão demorada ou mais como as dos filhos dos lavradores, pois as colheitas só seriam feitas nos meses de Junho ou Julho do ano próximo. As searas iam crescendo lentamente, passado um mês não teriam mais de um palmo. Chegados os frios de Dezembro ou Janeiro, um pouco mais crescidas para poder suportar as geadas e a neve desses meses. Um provérbio muito conhecido, a experiência acumulada dos lavradores tinha tantos provérbios mensais e anuais, que este era mais um a juntar aos outros: “Cresce o trigo debaixo da neve, como o carneiro debaixo da pele”.

Com a chegada da Primavera ainda com muitas chuvas mas com mais sol a aquecer os campos de trigo e centeio, as searas iam crescendo e ondulando ao vento em aguarelas de tons de verde sobre verde. Pelos fins de Maio os campos de cereal iam adquirindo uma cor aloirada, sinal de que o grão e a palha estavam quase maduros e prontos a ser colhidos. Com as ceifas, que conforme o tempo atmosférico, teriam lugar nos meses de Junho e Julho, começavam os trabalhos que durante três meses congregavam o esforço de todos os homens e muitas mulheres da aldeia.

Olho para trás, para esses tempos antigos, e revejo esses homens, alguns ainda adolescentes, a andar ligeiros, curvados sobre a terra, cada qual com três assucadas, com a seitoura na mão direita, a ceifar o trigo e centeio, horas e horas debaixo desse sol transmontano de Julho que abrasa a terra como o fogo do inferno. Tenho recordações que são como flaches da memória e volto a ver esses quinze segadores, nesse dia quente de Julho, na Cortinha das Maias, todos magros e curtidos pelo sol e pelos ventos, com o suor a cair do rosto em pingas de água, como se fossem lágrimas. Os mais experientes revezavam-se ainda na tarefa de “atar” sempre difícil e dolorosa, ainda mais dolorosa que segar. Era preciso que alguém fizesse esse trabalho difícil com responsabilidade e, ao mesmo tempo, que os “molhos” fossem todos mais ou menos iguais entre si. Os segadores além de cada qual assumir uma responsabilidade individual pelo acompanhamento na marcha ritmada das assucadas tinham também a responsabilidade colectiva de fazer um trabalho perfeito mesmo que para isso alguns tivessem que se sacrificar mais. Eu, era o filho do patrão, que tinha por missão um trabalho bem mais leve que era distribuir água, que transportava num cântaro de barro, a quem dela necessitasse.

CEIFEIROS - Painel de azulejos policromos, pintado por Eduardo Leite segundo cartão de Dórdio Gomes, produzido na Fábrica da Viúva Lamego, Lisboa. Átrio da Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja. 
Com a devida vénia ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora

 As refeições eram os únicos momento de descanso que tinham durante todo o dia. Gostava de as fazer com eles, sempre abundantes e com boa qualidade para repor as energias gastas e compensar o organismo do esforço despendido:
Cerca das 9,30, comíamos sopas de pão centeio que levavam alho, colorau e azeite rijado. Os homens agrupavam-se cinco ou seis, de volta de uma caçarola, munidos de uma colher para comer esse repasto matinal. Gostava muito dessas sopas que a minha mãe só fazia para os segadores.
Ao meio-dia era o almoço que podiam ser batatas guizadas com carne de borrego ou carneiro;
Às quatro da tarde era a merenda, que podia constar de toucinho, queijo, saladas de alface e tomate, e às oito horas, já em casa do patrão, o jantar que muitas vezes era bacalhau cozido ou guisado com batatas.

Nesses tempos em que a dureza do trabalho era sentida por quem a prestava e era bem visível para quem a pagava geralmente todos os lavradores tratavam os trabalhadores com boas comidas, melhores até, falo dos lavradores médios, do que aquela que comiam diariamente eles e as suas famílias, em suas casas.

Todas as refeições acompanhadas de algum vinho pois era consensual, entre os trabalhadores, que o patrão que dava pouco vinho não prestava.

Os principais cereais que se semeavam em Brunhoso, que cresciam e amadureciam ao mesmo tempo, por vezes lado a lado, eram o trigo e o seu meio irmão o centeio, mais escuro e considerado menos nobre, como se fosse um bastardo do mesmo pai, mas apesar disso com um porte mais altivo. Tanto com um como com o outro as nossas mães faziam os grandes pães cozidos em grandes fornos aquecidos com lenha de giesta e esteva, que se conservavam quinze dias em óptimas condições, guardados nas despensas das casas. Lembro-me da minha mãe, afogueada pelo esforço e pelo calor, depois de ter metido todos esses grandes pães no forno, os abençoar, fazendo o sinal da cruz, na sua entrada, com a mesma pá com que os tinha metido. O pão era esse alimento sagrado que nunca devia ser pousado doutra forma que não fosse aquela em que assentou quando foi cozido, que quando deixávamos cair um pedaço ao chão tínhamos que o beijar, que não se devia estragar ou usar em brincadeiras.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16190: (In)citações (92): Uma troca trágica (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

1. Mensagem de 20 Maio de 2016, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):


UMA TROCA TRÁGICA

Há cerca de cinco anos entrei numa confraria gastronómica, irregular, já que embora os seus associados se juntem para almoçar, todas as quartas-feiras, em restaurantes que vão variando, num raio de alguns quilómetros, com epicentro em Leça da Palmeira, não obedecem a nenhuma formalidade ou obrigação dessas confrarias existentes por esse país fora. Não há sede, não há estatutos, não há lugar ao pagamento de quotas, nem jóia de entrada, não há órgãos impostos ou eleitos, não há trajes próprios. Entra-se nela por uma porta larga, que nos abre qualquer um dos seus frequentadores, e a partir daí passamos a ter direito a frequentá-la quando quisermos e a levar os amigos que entendermos. Terá sido formada há algumas décadas por profissionais de um grande hospital, médicos, enfermeiros, técnicos, administrativos e outros amigos do exterior. Todos amantes da boa comida, da boa bebida e da “jolda” que é o convívio divertido e um pouco excessivo que as mães, as irmãs, as namoradas e esposas sempre censuraram nos jovens ou nos mais velhos, porque não querem entender esse aspecto “deles” que os afasta delas, e faz parte da sua natureza irrequieta, que se prolonga pela vida fora, que os junta em folguedos, que vão variando com a idade, onde as raparigas ou as mulheres não cabem. Talvez reminiscências dos tempos pré-históricos, quando eram caçadores e longe dos povoados e das mulheres, comiam à volta da fogueira o primeiro javali que caçavam. Os “Bandalhos”, nossos ilustres camaradas da Guiné, alguns tais como eu, sócios da Tabanca de Matosinhos, outros independentes, que eu estimo, respeito e admiro celebram e encenam muito bem essas festas.

Desse grupo inicial só já restam três, um técnico, um administrativo com mais de setenta anos e um empresário com quase noventa. O último médico, um camarada com grande sensibilidade poética e totalmente integrado no espírito do grupo pelas suas vivências passadas e recentes, morreu há seis meses, quando já todos pensávamos que tinha ultrapassado uma doença grave que o tinha atacado. Os outros foram saindo, a maior parte também empurrados pela morte, que a todos nos há-de levar para o mundo das trevas e do esquecimento ou para o céu, reservado aos crentes e felizardos. Dentre os amigos que o frequentam ou por já lá passaram, identifico, entre outros, dois médicos, um arquitecto, um técnico de engenharia, dois mecânicos, um chapeiro, dois motoristas, dois comerciantes com lojas abertas na baixa do Porto, o dono de um ginásio, dois enfermeiros, seis funcionários públicos, pequenos empresários, um lavrador, um padre, um cangalheiro, um antigo jogador de futebol, africano de Angola, um polícia, dois guardas-fiscais e um pequeno empresário analfabeto. Há um camarada da Guiné que afirma que em 1966 ele e outros estiveram perto de apanhar à mão o próprio Amílcar Cabral.

Dentre todos o mais assíduo é o amigo Figueira, que também poderia ser Nogueira, Cerejeira, Oliveira, Pereira, pelos seus hábitos de poupança, que por brincadeira, alguns (eu incluído) classificam de sovinice, pois todos esses nomes podem esconder antepassados judeus. O Figueira, um dos três fundadores que restam desta tertúlia, viúvo há dez anos, foi na vida adulta Chefe de Serviços nesse grande hospital. Justiça lhe seja feita, será poupado mas não é sovina, pois a casa dele está à sempre aberta a todos para prolongar o convívio depois dos almoços e tem sempre, nozes, figos, queijinhos ou outros acepipes para acompanhar um copo de vinho que ele oferece da garrafeira dele, ou que alguém leva. Por vezes, para festejar os anos de alguém ou outro acontecimento, os almoços são mesmo feitos, por alguns “cozinheiros” do grupo, na casa dele.

Pela sua simplicidade, naturalidade, boa disposição, bonomia e amizade, que sabe repartir sabiamente com todos, é muito apreciado e estimado e dá muita coesão a esse grupo anárquico, que não tendo um dirigente se revê no carácter e nas qualidades morais desse amigo que nunca quis ser director, sargento, capitão, general ou presidente de junta.

Para além das grandes propriedades agrícolas que herdou dos pais, herdou também o sentido do dever, da honra, da palavra e a fé religiosa de um católico praticante e tradicional, cumpridor de todas as obrigações religiosas inerentes, sem nunca pôr em causa as verdades e dogmas da Igreja.

Não gosta de ler ou escrever, a televisão aborrece-o tal como a internete, tendo bastante habilidade manual, gosta de fazer alguns arranjos ou trabalhos de carpintaria, serralharia, de agricultura, em que foi criado, ou outros.

Com a idade a balançar entre os setenta e os oitenta, o que ele aprecia sobretudo é o convívio com os amigos e com as pessoas em geral, sem ser exigente em relação à riqueza ou à pobreza dos seus semelhantes, ou à condição social mais baixa ou mais elevada, é também muito tolerante em relação aos defeitos e manias de cada um. Frequenta outra confraria mais formal, que me parece reunir “os ilustres” duma grande freguesia, essa com sede, na qual mensalmente se reúnem para almoçar. É convidado ainda de uma outra confraria internacional ainda mais elitista, onde as senhoras dos importantes da sociedade gostam de mostrar os vestidos, os casacos, as carteiras e sapatos que estão na moda, e que nos passeios e banquetes que organizam, fazem uma recolha de dinheiro para ajudar os pobrezinhos de todo o mundo. Em festas anuais, S. João, Carnaval, Passagens de Ano e outras, junta-se muitas vezes com as famílias dos grandes lavradores do Porto e dos arredores, em grandes jantares de convívio.

Para além dos almoços de grupo, vou também almoçar uma vez por semana a sós com ele, pelo prazer da sua companhia e porque sei também que nessas horas sente muito a solidão em que ficou com a morte da sua companheira. Entre cinco e oito euros encontramos tascos ou restaurantes que servem uns almoços razoáveis com tudo incluído, outras vezes até cozinhamos em casa dele. Muitas vezes juntam-se ainda um ou dois amigos. Gosto de falar com ele sobre as coisas simples da vida como por exemplo os trabalhos agrícolas que fazíamos na nossa adolescência e juventude. Eu, filho de lavradores “remediados” de Trás-Os-Montes e ele filho e mais tarde genro, de lavradores abastados de duas grandes freguesias de Matosinhos.

A “Maínça” era, ainda assim se conserva, uma veiga extensa, de terra funda, onde não falta sequer um riacho que a atravessa, que além de milho, vinho, batatas, couves, feijões e outras hortaliças, produzia tantas cebolas e cenouras que ele, outro irmão e quatro trabalhadores contratados, passavam dias e dias a lavá-las e arranjá-las para serem transportadas diariamente em carros de bois para o mercado do Bolhão, no Porto, numa viagem que só na ida demorava mais de uma hora. Mais tarde a Câmara do Porto proibiu a circulação de carros de bois na cidade e o pai dele viu-se obrigado a comprar uma carrinha para fazer esse transporte.

Há algum tempo, num desses almoços, os dois a sós, falámos das andanças que ainda garotos tínhamos que fazer por terrenos distantes da povoação e os medos que isso provocava, pela solidão, por vezes agravada pelas trovoadas e outras vezes pela escuridão nocturna. Eu confessei que tive que fazer um grande esforço mental e psicológico para me adaptar a essas situações e vencer esses medos. Ele, que só raramente era sujeito a essas situações pareceu-me que nunca os conseguiu dominar razoavelmente. Talvez tenha sido por isso que eu aproveitei para lhe fazer uma pergunta que nunca lhe tinha feito sobre a tropa e a guerra do Ultramar.

Em resposta ele disse-me que no inicio de 1963 foi convocado para fazer a recruta e como não tinha dado as habilitações literárias que lhe poderiam ter dado acesso ao curso de sargentos milicianos, foi como soldado para o Regimento de Infantaria de Viana. Pela sua educação e pelo seu espírito cordato, que não terá passado despercebido aos seus superiores, depois da recruta e da especialidade foi colocado na secretaria do regimento, durante muito tempo a fazer, segundo disse, as ordens de serviço e outros trabalhos afins. Entretanto ao saber que iria ser mobilizado para Angola, falou com outro soldado do ano de 1962, que se prontificou a ir no seu lugar, a troco de cem contos que os seus pais disponibilizavam. Nesse tempo cem contos era uma grande quantia de dinheiro que daria para construir uma casa ou comprar um apartamento, portanto representavam um começo de vida aliciante para um jovem com poucos recursos. Na altura própria, os cem contos foram pagos ao seu camarada que acabou por embarcar para Angola no seu lugar.

Pelo conhecimento que tenho dele, atrevo-me a afirmar que ele teve realmente muito medo da guerra do ultramar e a sua estratégia, ao não dar as habilitações literárias, foi no sentido de conseguir, no caso de ser mobilizado, a troca mais barata, que seria sempre entre soldados, possivelmente já com o apoio dos pais. Penso ainda que só revela este facto da vida dele quando confrontado com uma pergunta directa sobre a sua vida militar, além do mais porque as consequências foram trágicas para o camarada que fez a troca. Segundo afirmou, um outro camarada disse-lhe que esse jovem que teve a ambição honesta de ganhar cem contos para um começo de vida mais desafogado, morreu numa emboscada, no território dessa Angola imensa, no norte, no leste ou no sul, não sabe precisar. Disse-me por fim que terá mesmo morrido pois, palavras dele “cheguei a escrever-lhe uma carta e nunca obtive resposta”. Conhecendo a sua religiosidade, penso que ainda hoje se continua a lembrar dele nas orações que faz ao Deus dos cristãos.

Cá ou lá, todos tivemos medo. Dos que nunca embarcaram nos cais dos lenços brancos do adeus, alguns fugiram, outros desertaram, outros pagaram para ser substituídos, como este meu amigo. Dos que partiram, ainda houve alguns que desertaram e outros que se mutilaram, outros aguentaram por vezes com os nervos à flor da pele, outros tiveram premonições de morte e morreram, outros tiveram falsas premonições de morte e regressaram, outros morreram em grande sofrimento, outros sem um ai deixaram cair a cabeça no meio do mato ou do capim e adormeceram para sempre. Eu, que estive lá, não julgo ninguém, a psicologia da guerra e dos medos é uma matéria difícil para compreensão e análise de um qualquer curioso.

Gosto muito do meu amigo Figueira e gostaria também de saber que o camarada que o substitui em Angola ainda será vivo e feliz no meio dos filhos e dos netos, na casa que tinha construído algures com cem contos. A nossa vida com o passar de alguns anos marca o início da nossa morte que se vai anunciando logo após a juventude pelo envelhecimento físico, com o aparecimento de rugas, cabelos brancos, as calvícies mais ou menos acentuadas, com entradas à frente, ao meio da cabeça (parece uma coroa de padre) como no meu caso ou carecas quase totais, os órgãos internos vão enfraquecendo com a progressão dos anos e nós vamos disfarçando essas falhas com remédios e mezinhas no silêncio sigiloso dos consultórios médicos. As marcas das nossas falhas, dos nossos êxitos, das nossas fraquezas, da nossa energia, dos nossos erros, dos nossos crimes, das nossas virtudes, dos nossos pecados, dos acontecimentos fastos e nefastos ficam registados na página branca da nossa alma e irão adoçar ou atormentar a nossa vida futura. Não sei avaliar em que medida a morte desse nosso camarada, que morreu numa emboscada em Angola, ficou registada na memória espiritual do meu amigo Figueira, mas atendendo à bondade e humanismo do seu carácter, é natural que o tenha marcado com uma cicatriz que ainda magoa.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)