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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22740: Notas de leitura (1394): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,

É uma terna surpresa, esta investigação de Marta Martins da Silva, uma viagem circundante pelas guerras do Império, as madrinhas de guerra vinham procurar aplacar a solidão daqueles jovens que procuravam amarras na comunicação com o mundo de onde provinham, alguém fora dos contatos estabelecidos pelos vínculos familiares ou um quadro afetivo de onde se sabia de antemão que vinham abraços de coragem, família e amigos situavam uma atmosfera de identidade, as madrinhas de guerra era outra coisa, propiciavam oportunidade de abrir portas a um mundo desconhecido, quem escrevia ignorava a vida do outro e numa espiral podia crescer a intimidade, a madrinha enviava dados da sua vida e prometia companhia a quem combatia lá longe. 

Marta Martins da Silva vai ao passado da I Guerra Mundial, exatamente como faz agora com livro recém-publicado e intitulado Cartas de Amor e de Dor, recordações íntimas e poderosas do Ultramar, Edições Saída de Emergência, 2021, de que mais tarde falaremos. Posso estar equivocado, mas não há relato tão belo sobre o desempenho destas mulheres anónimas como este livro que se revela um verdadeiro prodígio de História Oral.

Um abraço do
Mário



A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado

Mário Beja Santos

"Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes, Edições Desassossego, 2020, é um livro surpreendente, pela inovação da pesquisa, pela abrangência do tratamento da temática, pelas questões sociológicas que ousa levantar. E Carlos de Matos Gomes abre as hostilidades com um magnífico prefácio:

“É uma obra sobre as estratégias pessoais dos jovens portugueses feitos soldados para preservarem a corrente que os liga à origem, para resistirem às várias mortes, a física e a emocional. As madrinhas de guerra constituíram uma das amarras que permitiram ao mobilizado continuar a fazer parte da sua comunidade, enquanto ser social (…)

A correspondência trocada entre os militares portugueses e as suas madrinhas de guerra revela que aquela não era uma guerra que pudesse ser ganha por aqueles soldados. As primeiras cartas falam do cumprimento de um dever, de um tributo a pagar, mas, logo de seguida, do regresso, do vazio da missão que cumprem. Não se vislumbra nenhum sentimento de orgulho por estarem os militares mobilizados a contribuir para uma vitória ou para uma grande causa. As cartas manifestam, isso sim, preocupações com a sobrevivência, com o desejo que o tempo passe sem deixar grandes marcas (…) 

Da leitura das cartas subentendemos que a guerra também foi o pretexto para procurar uma companhia, um destino, um futuro. Umas vezes o resultado foi feliz, noutras nem tanto. Em muitos casos, os correspondentes e as madrinhas perderam o rasto um dos outros. Quando as promessas trocadas nos aerogramas não se concretizavam na chegada dos militares à metrópole, muitas madrinhas e muitos dos mobilizados acabaram por queimá-los e a outras recordações da guerra, como um adeus ao passado. Marta Martins Silva reconstrói com emoção parte dele”.

A primeira surpresa que a autora nos proporciona é falar-nos de um livro de um pioneiro da arqueologia, Coronel Afonso do Paço que escreveu o livro "Cartas às madrinhas de guerra", com data de 1929, e nos fala da guerra das trincheiras. E temos a história de um grupo de mulheres que incentivou esta forma de comunicação, os extratos que a autora nos oferece dão conta da evolução do estado de espírito do combatente Afonso do Paço, basta o extrato de uma carta de fevereiro de 1918:

“Se a madrinha soubesse o quanto nós sofremos nesta vida de trincheira!? Se pudesse imaginá-lo!? Diria que era uma vida inteira votada à dor e ao sofrimento, porque só de dor e sofrimento é feita a nossa vida na trincheira. Sofre-se de metralha que nos corta as carnes em paroxismo de dor. Sofre-se de gases que nos queimam o corpo, que secam as goelas, fazem espirrar como cabritos ou chorar como Madalenas. Sofre-se de frio, os pés na lama, a roupa pegada ao corpo, as articulações emperradas de reumatismo. Sofre-se de piolhos que nos roem a pele. Sofre-se na terra de ninguém rastejando sobre a lama ou cadáveres em putrefação”.

E daqui partimos para os aerogramas, em Jumbembém Manuel de Sousa vai contando o seu fadário, e vem logo a propósito conhecer a popularidade do chamado bate-estradas, grátis para um militar, a preço insignificante para as famílias, envolveu o Movimento Nacional Feminino (MNF), o Serviço Postal Militar, a TAP, os transportes marítimos. 

A dirigente do MNF, Cecília Supico Pinto, define a competência da madrinha: escreve ao afilhado pelo menos todas as semanas, procura ser sempre agradável, versando os assuntos que mais possam interessá-lo, escreve para o distrair. Porque, como nos recordou Carlos Matos Gomes, quem partiu para aqueles teatros de guerra a tudo quer resistir quando sentiu que quebrava uma ligação ao que lhe era matricial à sua terra, à sua família, à sua comunidade, aos seus projetos de vida. E a autora desenvolve habilmente a origem e o sucesso deste meio de comunicação, dá-nos o essencial do que foi o papel do MNF, como se chegava à madrinha de guerra, muitas vezes era graças às revistas mais populares da época, caso da Crónica Feminina, talvez o maior sucesso de todos os tempos em Portugal de uma revista de entretenimento. Um meio que permitiu enredos, aproximações que levaram à descoberta do amor ou que respeitaram à mera formalidade da ajuda que era pedida para distrair um militar.

E temos uma correspondência que permite conhecer o perfil de quem escreve, como vive, do que gosta, como ocupa o tempo, como trabalha. O militar responde, começa então respeitoso e vai-se desprendendo, pergunta se há namorado na costa, pede fotografia, umas vezes é comedido a descrever os horrores da guerra, outras vezes não tanto, trabalha na padaria, na manutenção de viaturas ou na secretaria, e não quer dar parte de fraco. 

Essa riqueza epistolar é-nos dada pela autora através de uma transcrição muito bem escolhida que intitula “Amor em tempo de guerra”, no fundo o triunfo dos aerogramas, tudo vai acabar bem, no altar ou na conservatória, com o copo-de-água possível. O primeiro contacto é sempre tocante, caso de Mário Silva para a menina Rosa Maria:

“Menina, você dizia-me que gostava de saber de onde eu era, pois eu sou de aí de perto, tão perto que pertenço à mesma freguesia. Sou natural de Vilarinho, mas já vivo fora da terra natal há 10 anos, estando os últimos anos como padeiro em Lisboa. Menina, quando me escrever, não se importava de me mandar dizer se é natural de Cacia e ao mesmo tempo agradecia que me trates por tu. Se por acaso a menina não se importasse podíamos escrever como madrinha e afilhado? Agradeço uma vez mais a atenção dispensada".

Nem todos os casamentos irão ocorrer pouco depois da chegada do jovem, a autora deixa-nos para o fim um amor de longa espera entre Maria do Céu Cadima e Fernando Paredes. A Maria do Céu nunca deu ao Fernando qualquer sinal de que queria ser mais do que a sua madrinha de guerra, nunca se ultrapassava a linha da amizade, o Fernando queria mais. A vida trocou-lhes as voltas, Fernando casou com Maria Olinda, sem nunca deixar de pensar na sua Céu. A mulher de Fernando adoeceu e morrer em 2010, pouco depois Fernando também adoeceu com linfoma nos ossos, chegou a ir viver para um lar, onde contava a sua antiga história de amor, os moradores, comovidos, encorajaram-no a encontrar-se com a amada. E como no romance de Gabriel García Márquez, "O Amor nos Tempos de Cólera", cinquenta anos depois, Fernando plantou-se à porta da Céu, ela disse que não mas aceitou reatar a amizade. O resto merece ser transcrito:

“Casaram a 13 de maio de 2015 pelo civil e a 1 de agosto passaram a morar os dois em Alfarelos, a terra do noivo. O casamento pela igreja fez-se a 7 de novembro, na Igreja de S. Martinho, em Montemor-O-Velho, a terra da noiva. A cerimónia teve guarda de honra dos Bombeiros Voluntários. Mas a felicidade que tardou a chegar para o casal não ficou durante muito tempo e por isso Céu não pôde ajudar Fernando a contar esta história, a história de um amor que venceu passado 50 anos com uma guerra pelo meio e muitas adversidades. ‘Só estivemos juntos um ano e meio, a Céu teve uma pneumonia e como tinha as defesas em baixo não resistiu a uma bactéria hospitalar. Foi um golpe duro depois de tanto lutarmos por este amor’, conta Fernando comovido. Céu, a fininha de voz doce que lhe disse naquele primeiro baile que não sabia dançar, morreu no dia 8 de janeiro de 2016. ‘Céu, eu nunca te vou esquecer’."

E com este ponto culminante finda um itinerário que é mar ignoto para as novas gerações, tudo parece inacreditável ter havido mulheres que escreviam a um desconhecido, por sugestão do Movimento Nacional Feminino, dando alento e por vezes lugar a declarações apaixonadas, algumas que chegaram ao altar.

É uma dádiva maravilhosa, a de Marta Martins Silva, pôr estas mulheres esquecidas em cena pela voz das próprias, acabaram por ser protagonistas de uma guerra que seguramente nada lhes dizia, cumpriram o seu dever e até por vezes encontraram amor para toda a vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22721: Notas de leitura (1393): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22588: (Ex)citações (393): Estas teses elaboradas sem reflexão e apreciadas por ignorantes, obrigam-me a vir ajudar a clarificar o que respeita aos militares dos Comandos (Cor Art Ref Morais da Silva)


1. Mensagem do Cor Art Ref António Carlos Morais da Silva, (Instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, Adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972), enviada hoje mesmo ao nosso Blogue:

Agradeço a publicação do meu comentário ao texto do Beja Santos porque excede o nº de caracteres autorizado.[*]

Abraço
Morais Silva




Estas teses elaboradas sem reflexão e apreciadas por ignorantes obrigam-me a vir ajudar a clarificar o que respeita aos militares dos Comandos.

Transcrevo pois os depoimentos do TenGen Sousa Pinto e do Cor Matos Gomes que não deixam dúvidas aliás há muito mais tempo esclarecidas pelo então 2º Cmdt do BatCmds/Guiné o hoje Coronel Glória Alves.



TRANSCRIÇÂO:

Título: Pronunciamento Militar do 25 de Abril de 1974

Sub Título: V Conferência do Núcleo Impulsionador das Conferências da Cooperativa Militar (NICCM)

Editor: NICCM

Coordenação e Revisão: Coronel António Carlos Morais da Silva | Transcrição de texto e Imagens: Ana Teresa Oliveira Marques | Design da capa: Coronel Sérgio Parreira de Campos

Impressão e Acabamento: ACD PRINT, S.A. Tiragem: 300 ex.

Depósito Legal: 375023/14 ISBN: 978-989-20-4761-4

Debate no final do Painel IV


Tenente-general Sousa Pinto


Sou o General Sousa Pinto, e atendendo a que o meu General (Mateus da Silva) e o Matos Gomes saíram de Bissau relativamente cedo, em relação à permanência em que Portugal ainda esteve em Bissau, eu gostaria de transmitir aqui testemunhos que me parece poderem ajudar a perceber como é que as coisas… como é que a transição correu na Guiné. A primeira questão é que, logo a partir do Verão em Junho ou Julho, agora não me lembro, o Matos Gomes falou nisso, um delegado do PAIGC, passou a estar em Bissau e a partir daí começaram a chegar elementos do PAIGC a Bissau. Eu era o Comandante da Segurança de Bissau, uma vez que a Polícia de Segurança Pública não tinha… perdeu toda a sua eficácia e eu comandava a Polícia Militar que foi reforçada. Demos instrução a um Batalhão de Cavalaria que entretanto tinha vindo para Bissau, de maneira que tinha bastante Polícia Militar sob o meu Comando. 

E entretanto chegou a Bissau o “Gazela”, o Comandante de uma das frentes, nomeado como Comandante da Segurança pelo PAIGC, portanto a partir de Julho e até Outubro, diariamente havia patrulhas mistas, entre a Polícia Militar e elementos do PAIGC que patrulhavam… Todas as manhãs eu reunia-me com o dito Gazela e combinávamos como é que esse dia ia correr, nunca houve o mais pequeno problema, nem com militares nem com civis. 

Um segundo testemunho que eu gostaria de dar, tem a ver com o seguinte, que em muita literatura que se tem publicado, está profundamente alterado. Foram postos à disposição dos comandos africanos os meios aéreos necessários para os transportar para Portugal, a eles e às famílias. Inscreveram-se para vir para Portugal cerca de trezentos elementos, não havia trezentos comandos africanos mas contando com as famílias…

Eu não me lembro do número, mas contando com as famílias eram trezentos e muitos. Foram reservados lugares para toda essa gente vir. É o comando africano, Capitão Sayegh, que sendo parente de alguns elementos do PAIGC se reuniu com eles no Senegal, e eles o convenceram que iriam fazer daqueles comandos africanos, a tropa de elite do PAIGC. E é o Sayegh que convence todos aqueles que já estavam inscritos a não virem. Eu assisti ao Governador Fabião a querer convencer o Sayegh que ele estava doido, ele que não impedisse quem quisesse vir, porque senão aquilo podia dar para o torto e as promessas podiam não vir a ser cumpridas. Todos eles desistiram, como se sabe vieram para Portugal aqueles que não tinham dúvidas, o Marcelino da Mata e mais três ou quatro, mas não é verdade que Portugal tenha tido qualquer coisa a ver com o facto de que eles não tenham vindo. Não vieram porque não quiseram e esse testemunho parece-me que também é importante porque há muito boa gente que pensa que as coisas não são bem assim. 

A terceira questão que eu queria testemunhar aqui que julgo que também não é do conhecimento geral, é o seguinte: Houve os acordos, houve os anexos, mas depois houve questões de pormenor que foram combinadas lá. Quando começamos a recolher as forças para Bissau, como sabem, a maior parte conhece a Guiné mas aqueles que não conhecem, Bissau por causa dos rios, era uma ilha, uma ilha grande mas era uma ilha. Não esquecer que as últimas Forças Armadas, que regressaram à metrópole, regressaram em Outubro, não me lembro agora a data mas na primeira quinzena de Outubro, 7, 8 ou 9 de Outubro (intervenções assistência). A independência tinha sido reconhecida, tinha havido cerimónias públicas com convites aos estrangeiros e tudo, a independência foi marcada para o dia em que fazia um ano da independência unilateral, portanto 17 de Setembro se não me engano (emenda da assistência) como? 24 de Setembro, portanto a Guiné já era independente, formalmente reconhecida por Portugal como independente e na ilha de Bissau ficou acordado com as forças do PAIGC, em acordo privado, digamos assim, acordo particular mas que foi cumprido, em que a Bandeira Portuguesa só seria arreada no dia em que partissem as últimas forças. Portanto a Guiné Bissau já era independente, reconhecida internacionalmente e reconhecida por Portugal e na ilha de Bissau, o Presidente da Câmara por exemplo, que já era um homem do PAIGC, a quem o Presidente da Câmara Português tinha entregue o poder no dia 24 ou até parece-me, uns dias antes da independência, mas a bandeira que estava na Câmara de Bissau continuava a ser a portuguesa até ao dia do embarque das últimas forças. Julgo que isto é pouco conhecido das pessoas e julgo que dá uma ideia de que as coisas não correram como às vezes as pintam. Era este o testemunho que eu queria dar.

********************

Coronel Matos Gomes

Ainda relativamente aos Comandos Africanos, a questão que o General Sousa Pinto colocou é exactamente assim, logo a partir de Maio, há elementos do Batalhão de Comandos Africanos que começam a ter ligações e contactos com elementos do PAIGC. É interessante também dizer que, e isto foi uma experiência que eu penso que é única no mundo, nunca houve um fenómeno de africanização da guerra tão intenso quanto se fez na Guiné e não há nenhuma Unidade parecida, nem nos Estados Unidos no Vietnam, nem nos franceses na Argélia, como aquele Batalhão de Comandos que combateu no estrangeiro várias vezes, com muito poucos quadros portugueses, três ou quatro, em situações de grande isolamento e sabendo nós, e sabíamos, que no Batalhão de Comandos Africanos havia muitos elementos com ligações fortíssimas ao PAIGC. No caso do Capitão Sayegh, ele tinha um irmão que era do PAIGC e a mulher também era. Um dos irmãos dele é actualmente professor numa universidade que existe em Bissau. O Alfredo Sisseco, era primo do Nino Vieira, o Sayegh era primo do Luís de Almeida Cabral, que depois foi Ministro. Portanto houve esse mecanismo e a crença, como aliás eu referi há pouco, em que todos nós estávamos convencidos que estes elementos se iam integrar na nova ordem. Houve sempre a intenção, num outro aspecto das negociações, que era, não foram negociados documentos, nem assinados documentos formais para definir o futuro desses militares. Esses documentos formais a partir do momento em que a Guiné fosse independente não tinham nenhum valor. O outro aspecto é que, se eu incluir a Carta dos Direitos do Homem, como aliás está praticamente incluída na Constituição da Guiné Bissau, não é isso que tem evitado esta série continuada, de quase de dois em dois anos, de golpes de Estado e de violência, portanto não são os documentos que fazem essas alterações. O que há ali, foi um pouco aquilo que eu referi desta teia de enganos, de má avaliação e que deu este resultado.
[...]

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Notas do editor

[*] - Vd. poste de 30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22548: (Ex)citações (392): Vamos lá pôr os pontos nos iii... “Exageros de Marcelino da Mata?“ (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879)

domingo, 12 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22538: (Ex)citações (391): Ainda não sabemos a proveniência da foto de capa do livro do TCor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África" (Guerra e Paz Editores, 2021), escolhida pela editora (António Bastos / Carlos Vinhal)


1. Há dias telefonou-me o camarada António Bastos para falar do livro "Os Números da Guerra de África" do Tenente Coronel Pedro Marquês de Sousa de quem é vizinho e amigo.
Em conversa com o TCor Marquês, inevitável era que o Bastos não falasse da fotografia[*] da capa do seu livro, ao que o autor respondeu não ser responsável pela sua escolha, e que até tinha pedido que omitissem o seu posto militar quando fizessem referência ao autor da obra. Que lhe mostraram o livro já tal e qual como foi publicado.

Disse-me também o Bastos que se lembrava de ter visto uma foto semelhante àquela numas das muitas obras que tem sobre a guerra de África. Pedi-lhe que se a encontrasse, ma mandasse para se pubilcar.

2. Passados poucos dias recebi esta mensagem do António Bastos:

Companheiro Carlos, bom dia,
Mediante a nossa conversa sobre as duvidas de onde saiu a foto para o livro "Números da Guerra de África" do nosso Camarada Tenente Coronel Pedro Marquês de Sousa. Foi do Diário de Noticias que lançou já há alguns anos, dos autores Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, o livro "Guerra Colonial", livro esse que tem esta foto. Eu penso que seja uma sequência do mesmo.
Carlos, como eu disse na conversa que tive com o Pedro, ele disse-me que sobre a foto da capa do livro não sabe onde a editora a foi buscar e também me disse que tinha dito à editora que não metesse o Tenente Coronel.

Penso que esclareci algumas dúvidas dos nossos camaradas.
Um abraço e muito obrigado.
A. Paulo


3. Como também coleccionei os fascículos que compõem o livro "Guerra Colonial - Angola - Guiné - Moçambique", fui em busca da famosa foto da capa do livro do TCor Marquês mas só encontrei a que o Bastos me enviou, que está na página 400 e que não é a mesma, embora tudo leve a crer que se trate de momentos temporalmente muito próximos, minutos talvez.
Podemos comparar e verificar que os militares em progressão são os "mesmos", a autometralhadora e os dois militares que a ocupam, idem, e que até a vegetação é a mesma.

Pormenor da imagem, reduzida a preto e branco, da capa do livro de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África: Angola, Guiné, Moçambique; mortos, feridos, armas e combates, custos, desertores". Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2021, 384 pp.). (Com a devida vénia ao autor e editora...) Foto (editada) da capa do livro "Os Números da Guerra de África".
Foto (editada) retirada, com a devida vénia, da pág. 400 de "Guerra Colonial", publicação em fascículos do Diário de Notícias, da autoria de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, e que tem a seguinte legenda: Exemplo típico de abertura de itinerário. Em primeiro plano, o "picador" - com a vara de detectar minas, protegido por uma secção à sua retaguarda e por outra no seu flanco. Atrás uma autometralhadora "Fox".
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 19 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22468: Fotos à procura de... uma legenda (154): A imagem da capa do livro de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África" (Guerra e Paz Editores, 2021)

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22530: (Ex)citações (390): o ouri (ou uril) de Madina Xaquili, um jogo de estratégia (Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Cherno Baldé)

terça-feira, 22 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22307: Agenda Cultural (773): Convite para ver a entrevista de Carlos Vale Ferraz a Mário Carneiro, no programa da RTP-África, Mar de Letras, onde o autor fala do seu romance "Angoche - Os fantasmas do Império", uma abordagem ao misterioso caso ocorrido há 50 anos na costa de Moçambique e ainda hoje não resolvido


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de 21 de Junho de 2021:

Minhas amigas e meus amigos,
Junto anexo o link de uma entrevista ao Programa da RTP "Mar de Letras" a propósito do romance "Angoche".
Há a realidade e há o romance. Eu procurei contar uma história verosímil a propósito deste mistério. Quem esteve por detrás do que aconteceu? Quem realizou? É o enredo e são as personagens. Se tiverem paciencia.

Entretanto recebam o cumprimentos do
Carlos Vale Ferraz.

O programa dura cerca de 30 minutos.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22246: Agenda Cultural (772): Convite para a apresentação online do romance "Angoche - Os fantasmas do Império", por Carlos Vaz Ferraz; Porto Editora, 2021

terça-feira, 1 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22246: Agenda Cultural (772): Convite para a apresentação online do romance "Angoche - Os fantasmas do Império", por Carlos Vaz Ferraz; Porto Editora, 2021



1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de 31 de Maio de 2021:

Minhas amigas e meus amigos,
Tenho o prazer de vos convidar para a apresentação do romance "Angoche - Os Fantasmas do Império", da Porto Editora.

Esta apresentação será feita online, através dos links que constam deste email. Terá lugar amanhã, dia 1 de Junho, das 21 às 22 horas. Será moderada pelo editor Vasco David, desenrolar-se-á sob a forma de uma conversa, com interrogações e dúvidas, entre mim e o comandante Carlos de Almada Contreiras, que fez parte de um dos navios portugueses envolvidos no bloqueio do Porto da Beira, em 1966. Será possível a intervenção dos assistentes.

Trata-se de um romance cujo enredo procura desvendar os interesses que estiveram na origem do que aconteceu ao navio mercante Angoche e à sua desaparecida tripulação, e, a partir dos interesses, chegar aos seus autores.
As personagens do romance são homens e mulheres envolvidos, como tantas vezes acontece, em situações que os ultrapassam.
As respostas a que cheguei são apenas deduções e premonições do que poderia ter acontecido.
A Porto Editora e eu estamos a procurar a melhor oportunidade para uma apresentação ao vivo, sujeita aos condicionalismos do tempo presente.

Aqui vos deixo os links para a apresentação do dia 1 de Junho:
Youtube - https://youtu.be/qXJkFzqA7Us
Facebook - https://www.facebook.com/PortoEditora/posts/4114022285301916
Facebook (evento) - https://www.facebook.com/events/2668635700093451/



Sinopse:

Nacala, 23 de abril de 1971. Um navio da Marinha mercante portuguesa parte desse porto moçambicano com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba). A bordo leva a tripulação e um civil, num total de vinte e quatro almas, bem como um importante carregamento de material de guerra destinado ao Exército português no Ultramar. No dia seguinte, de madrugada, um petroleiro encontra esse mesmo navio, de seu nome Angoche, à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo, como se de um navio-fantasma se tratasse. De imediato, a PIDE/DGS abre um inquérito. Os relatórios iniciais mencionam duas explosões, e as teorias para o que aconteceu surgem em catadupa. Não faltam presumíveis culpados a quem apontar o dedo, mas não há provas. Para adensar o mistério, na noite do desaparecimento do Angoche, uma portuguesa, que trabalhava num cabaré da cidade da Beira e é tida como amante de um oficial da Marinha, cai de um edifício. Suicídio ou assassinato, as circunstâncias da sua morte nunca são verdadeiramente esclarecidas, e a dúvida paira… Depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE/DGS desaparecem. A carcaça do navio, ancorado no porto de Lourenço Marques, acaba por ser afundada. Se testemunhas houve, não falam. Estes são os factos. A partir deles, Carlos Vale Ferraz constrói um romance puramente ficcional, embora essencial e certeiro, sobre moralidade e heroísmo; e onde se demonstra como a imagem de um país se pode construir, não de verdade e justiça, mas da glorificação dos seus mais vergonhosos feitos.


Com a devida vénia a Almedina
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22228: Agenda Cultural (771): Publicação do romance "Além do Bojador", de Manuel Fialho (nova edição reunida e revista), editado por Grupo Narrativa (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21644: Notas de leitura (1329): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos, 

A jornalista Marta Martins Silva está de parabéns, dá-nos de forma tocante a missão das madrinhas de guerra, tanto na I Guerra Mundial como nos teatros de guerra em África, nos tempos da luta de libertação das colónias. É uma obra que qualquer combatente pode e deve mostrar aos filhos e netos, seguramente alheios a este fenómeno de mulheres completamente esquecidas e que tiveram um papel exemplar no suporte moral de inúmeros militares. 

Já sabíamos muito sobre a história dos aerogramas e do Movimento Nacional Feminino, mas a autora, que recorre a uma investigação cuidada e apela ao testemunho lembra-nos fenómenos ímpares como o de Maria Estefânia Anacoreta que gravava as vozes das mães, mulheres e noivas e que se deslocava a África até encontrar os fiéis destinatários. Recolhe uma dimensão triunfal deste tumulto de aerogramas e outra epistolografia, quando tudo acaba no altar ou na conservatória. E com sinceridade diz a autora: 

"Cada vez que segurei no aerograma ou numa carta trocada entre um soldado e uma madrinha de guerra foi-me inevitável pensar na viagem que aqueles pedaços de papel tinham feito até chegar às minhas mãos, tantas décadas depois de terem sido lidos pela primeira vez pelos seus destinatários. Senti-me a espreitar, pelo buraco de uma pesada fechadura, a história daquelas pessoas que tinha à minha frente - e com a maior generosidade me permitiram fazê-lo - mas também a história de um país. "

Um abraço do
Mário



Madrinhas de guerra, a correspondência que ajudava a suprir a solidão

Mário Beja Santos

"Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes, Edições Desassossego, 2020, é um livro surpreendente, pela inovação da pesquisa, pela abrangência do tratamento da temática, pelas questões sociológicas que ousa levantar. 

E Carlos de Matos Gomes abre as hostilidades com um magnífico prefácio: 

“É uma obra sobre as estratégias pessoais dos jovens portugueses feitos soldados para preservarem a corrente que os liga à origem, para resistirem às várias mortes, a física e a emocional. As madrinhas de guerra constituíram uma das amarras que permitiram ao mobilizado continuar a fazer parte da sua comunidade, enquanto ser social (…) 

A correspondência trocada entre os militares portugueses e as suas madrinhas de guerra revela que aquela não era uma guerra que pudesse ser ganha por aqueles soldados. As primeiras cartas falam do cumprimento de um dever, de um tributo a pagar, mas, logo de seguida, do regresso, do vazio da missão que cumprem. Não se vislumbra nenhum sentimento de orgulho por estarem os militares mobilizados a contribuir para uma vitória ou para uma grande causa. As cartas manifestam, isso sim, preocupações com a sobrevivência, com o desejo que o tempo passe sem deixar grandes marcas (…) 

Da leitura das cartas subentendemos que a guerra também foi o pretexto para procurar uma companhia, um destino, um futuro. Umas vezes o resultado foi feliz, noutras nem tanto. Em muitos casos, os correspondentes e as madrinhas perderam o rasto um dos outros. Quando as promessas trocadas nos aerogramas não se concretizavam na chegada dos militares à metrópole, muitas madrinhas e muitos dos mobilizados acabaram por queimá-los e a outras recordações da guerra, como um adeus ao passado. Marta Martins Silva reconstrói com emoção parte dele”.

A primeira surpresa que a autora nos proporciona é falar-nos de um livro de um pioneiro da arqueologia, Coronel Afonso do Paço que escreveu o livro "Cartas às madrinhas de guerra", com data de 1929, e nos fala da guerra das trincheiras. E temos a história de um grupo de mulheres que incentivou esta forma de comunicação, os extratos que a autora nos oferece dão conta da evolução do estado de espírito do combatente Afonso do Paço, basta o extrato de uma carta de fevereiro de 1918:

“Se a madrinha soubesse o quanto nós sofremos nesta vida de trincheira!? Se pudesse imaginá-lo!? Diria que era uma vida inteira votada à dor e ao sofrimento, porque só de dor e sofrimento é feita a nossa vida na trincha. Sofre-se de metralha que nos corta as carnes em paroxismo de dor. Sofre-se de gases que nos queimam o corpo, que secam as goelas, fazem espirrar como cabritos ou chorar como Madalenas. Sofre-se de frio, os pés na lama, a roupa pegada ao corpo, as articulações emperradas de reumatismo. Sofre-se de piolhos que nos roem a pele. Sofre-se na terra de ninguém rastejando sobre a lama ou cadáveres em putrefação”.

E daqui partimos para os aerogramas, em Jumbembém Manuel Sousa vai contando o seu fadário, e vem logo a propósito conhecer a popularidade do chamado bate estradas, grátis para um militar, a preço insignificante para as famílias, envolveu o Movimento Nacional Feminino (MNF), o serviço postal militar, a TAP, os transportes marítimos. 

A dirigente do MNF, Cecília Supico Pinto, define a competência da madrinha: escreve ao afilhado pelo menos todas as semanas, procura ser sempre agradável, versando os assuntos que mais possam interessá-lo, escreve para o distrair. Porque, como nos recordou Carlos Matos Gomes, quem partiu para aqueles teatros de guerra a tudo quer resistir quando sentiu que quebrava uma ligação ao que lhe era matricial à sua terra, à sua família, à sua comunidade, aos seus projetos de vida. 

E a autora desenvolve habilmente a origem e o sucesso deste meio de comunicação, dá-nos o essencial do que foi o papel do MNF, como se chegava à madrinha de guerra, muitas vezes era graças às revistas mais populares da época, caso da Crónica Feminina, talvez o maior sucesso de todos os tempos em Portugal de uma revista de entretenimento. Um meio que permitiu enredos, aproximações que levaram à descoberta do amor ou que respeitaram à mera formalidade da ajuda que era pedida para distrair um militar. 

E temos uma correspondência que permite conhecer o perfil de quem escreve, como vive, do que gosta, como ocupa o tempo, como trabalha. O militar responde, começa então respeitoso e vai-se desprendendo, pergunta se há namorado na costa, pede fotografia, umas vezes é comedido a descrever os horrores da guerra, outras vezes não tanto, trabalha na padaria, na manutenção de viaturas ou na secretaria, e não quer dar parte de fraco. 

Essa riqueza epistolar é-nos dada pela autora através de uma transcrição muito bem escolhida que intitula “Amor em tempo de guerra”, no fundo o triunfo dos aerogramas, tudo vai acabar bem, no altar ou na conservatória, com o copo-de-água possível.

O primeiro contato é sempre tocante, caso de Mário Silva para a menina Rosa Maria: 

“Menina, você dizia-me que gostava de saber de onde eu era, pois eu sou de aí de perto, tão perto que pertenço à mesma freguesia. Sou natural de Vilarinho mas já vivo fora da terra natal há 10 anos, estando os últimos anos como padeiro em Lisboa. Menina, quando me escrever, não se importava de me mandar dizer se é natural de Cacia e ao mesmo tempo agradecia que me trates por tu. Se por acaso a menina não se importasse podíamos escrever como madrinha e afilhado? Agradeço uma vez mais a atenção dispensada". 

Nem todos os casamentos irão ocorrer pouco depois da chegada do jovem, a autora deixa-nos para o fim um amor de longa espera entre Maria do Céu Cadima e Fernando Paredes. A Maria do Céu nunca deu ao Fernando qualquer sinal de que queria ser mais do que a sua madrinha de guerra, nunca se ultrapassava a linha da amizade, o Fernando queria mais. A vida trocou-lhes as voltas, Fernando casou com Maria Olinda, sem nunca deixar de pensar na sua Céu. A mulher de Fernando adoeceu e morrer em 2010, pouco depois Fernando também adoeceu com linfoma nos ossos, chegou a ir viver para um lar, onde contava a sua antiga história de amor, os moradores, comovidos, encorajaram-no a encontrar-se com a amada. E como no romance de Gabriel García Márquez, "O Amor nos Tempos de Cólera", cinquenta anos depois, Fernando plantou-se à porta da Céu, ela disse que não mas aceitou reatar a amizade. O resto merece ser transcrito: 

“Casaram a 13 de maio de 2015 pelo civil e a 1 de agosto passaram a morar os dois em Alfarelos, a terra do noivo. O casamento pela igreja fez-se a 7 de novembro, na Igreja de S. Martinho, em Montemor-O-Velho, a terra da noiva. A cerimónia teve guarda de honra dos Bombeiros Voluntários. Mas a felicidade que tardou a chegar para o casal não ficou durante muito tempo e por isso Céu não pôde ajudar Fernando a contar esta história, a história de um amor que venceu passado 50 anos com uma guerra pelo meio e muitas adversidades. ‘Só estivemos juntos um ano e meio, a Céu teve uma pneumonia e como tinha as defesas em baixo não resistiu a uma bactéria hospitalar. Foi um golpe duro depois de tanto lutarmos por este amor’, conta Fernando comovido. Céu, a fininha de voz doce que lhe disse naquele primeiro baile que não sabia dançar, morreu no dia 8 de janeiro de 2016. ‘Céu, eu nunca te vou esquecer’

E com este ponto culminante finda um itinerário que é mar ignoto para as novas gerações, tudo parece inacreditável ter havido mulheres que escreviam a um desconhecido, por sugestão do Movimento Nacional Feminino, dando alento e por vezes lugar a declarações apaixonadas, algumas que chegaram ao altar.

É uma dádiva maravilhosa, a de Marta Martins Silva, pôr estas mulheres esquecidas em cena pela voz das próprias, acabaram por ser protagonistas de uma guerra que seguramente nada lhes dizia, cumpriram o seu dever e até por vezes encontraram amor para toda a vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21619: Notas de leitura (1328): “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência”, na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Guiné 671/74 - P21445: Notas de leitura (1314): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Não podemos ignorar que o tema da guerra colonial continua a suscitar, sobretudo na classe sénior, uma controvérsia maniqueísta, há permanentemente um dedo acusador de que o rumo da guerra podia ter sido outro, diferente do que sucedeu ao 25 de Abril. Estes dois investigadores manifestam-se arredados de prós e contras, consultaram fontes documentais, e acima de tudo dão no seu manual um pano de fundo como mais ninguém até hoje ensaiou na literatura destinada ao grande público, é uma narrativa onde não se foge ao essencial do que é a guerra subversiva, guerrilha e contra-guerrilha, qual o ideal imperial do Estado Novo personificado em Salazar, o deflagrar da guerra e o seu alastramento, os homens e os dispositivos, as populações envolvidas, escolhem-se três generais distintos para relevar o comportamento pragmático, passando pelo destemor pessoal até à motivação ideológica de desejar uma vitória impossível. Os autores não fogem a esta discussão acirrada entre aqueles, em diferentes quadrantes ideológicos, associados à nostalgia e ao saudosismo, responsabilizam o 25 de Abril por se ter conduzido o desfecho da guerra para o caos e para a vergonha da retirada, mostrando, com a evidência dos documentos, a situação crítica que se estava a viver em Angola, na Guiné e em Moçambique, nas vésperas do 25 de Abril.

Um abraço do
Mário


O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2)

Mário Beja Santos

"Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Porto Editora, 2020, só de longe é uma reedição, ganhou a forma de livro de consulta, transformado numa grande angular onde os dois investigadores, seguramente os mais habilitados nesta vertente historiográfica, deram uma arrumação muito mais ventilada para políticas, doutrinas, territórios, organização das Forças Armadas, movimentos de libertação, populações envolvidas, ritos do quotidiano, balanço, o pós-guerra, elenco de figuras cimeiras intervenientes nos três teatros de operações. É timbre dos autores o rigor, a comunicação acessível só possível de quem muito sabe, o desnudar mitos diáfanos da fantasia de quem ainda hoje propala toda aquela guerra era por natureza sustentável e um ato patriótico. O texto de Adriano Moreira, em que este académico esculpe Salazar, o seu regime e o seu pensamento sobre o ideal imperial, é uma peça de indiscutível importância. Luís Salgado de Matos regista igualmente o relacionamento entre a Igreja e o regime face aos conflitos coloniais e averba com oportunidade que as independências de Angola e de Moçambique vieram mostrar que a Igreja Católica nestes territórios tinha uma implantação suficientemente forte para poder sustentar-se sozinha, o que é facto indesmentível. O mesmo investigador aborda a economia e a guerra, esta era paga pela metrópole, como ele escreve: “Em 1971, as colónias contribuíam com apenas 18% dos 12 milhões de contos de despesas operacionais de defesa, uma proporção que ficava permutada da sua participação na receita total do Estado. A metrópole gastava com a guerra cerca de 40% da despesa pública. Em 1974, aos custos morais e humanos da guerra – que eram os mais decisivos – acrescentava-se o prejuízo económico. À vontade da independência africana ameaçava sobrepor-se a da independência branca”.

Três generais são analisados, pela forma como fizeram a guerra: Costa Gomes, Spínola e Kaúlza de Arriaga. Costa Gomes chega a Angola em 1970, fora aberta a Frente Leste, ali se movem os três movimentos independentistas. E delineou uma estratégia de reorientação do esforço para as imensas planícies do Leste em detrimento das florestas dos Dembos e das margens do rio Zaire. Aumentou o número de distritos dentro da zona militar Leste, convocou múltiplas forças auxiliares. Consegue pôr a UNITA a combater o MPLA, lançou no terreno unidades táticas de contra-infiltração. “Um aspeto caraterístico da sua manobra foi o modo de emprego das forças africanas. Costa Gomes, ao contrário de Spínola na Guiné, não as integrou em qualquer projeto político destinado a alterar o status quo existente”. Os autores alongam-se na figura de Spínola, na análise das suas primeiras Diretivas, a sua enorme preocupação em pôr os guineenses do seu lado. Mexe no dispositivo criando Comandos de Agrupamento Operacional e os Comandos Operacionais, irá utilizar as forças africanas na contra-guerrilha e as milícias na proteção e enquadramento da autodefesa das populações. Consegue manter a situação equilibrada até 1972, será depois ultrapassado por uma nova estratégia e pelo uso de armamento mais sofisticado. Promoveu os Congressos do Povo, envolveu-se em operações que desencadearam fiascos diplomáticos, apercebeu-se que toda a sua orientação depois dos acontecimentos de Maio de 1973 era posta em causa, todo aquele plano de retração que inicialmente aceitou e que Costa Gomes assinou era o princípio do fim, nada do que ele sonhara para uma Guiné inteiramente dos guineenses.

Kaúlza de Arriaga terá uma ação de comando assumida e radicalmente ideológica, não podia admitir outro resultado que não fosse a vitória sem compromissos. Quando ele chega a Moçambique, a FRELIMO já está a esboçar um plano para avançar até ao Tete. Kaúlza lança em força a Operação Nó Górdio, vão encontrar as bases da FRELIMO abandonadas. Cahora Bassa, como se veio a demonstrar, não era um empreendimento primacial, exigiu a mobilização de um volume de meios cada vez maior para a defender, acabou por ser o Nó Górdio de Kaúlza, acrescido da denúncia dos massacres de Wiriamu, tal como Marcello Caetano já estava desavençado com Spínola acabou igualmente o relacionamento de confiança com Kaúlza e Arriaga. Ele regressa e vem para conspirar.

Este importante roteiro mostra como se desenvolveu o esforço de guerra, como foi evoluindo o comportamento da ONU dos anos 1960 para 1970, como nasceu o Movimento dos Capitães. E temos as feridas, a mais óbvia e visível foram os deficientes, escreve o presidente da ADFA que durante a guerra terão sido evacuados da frente de combate cerca de 25 mil militares afetados por deficiências motoras, sensoriais, orgânicas e motoras.

E chegou a hora da polémica interminável, se a guerra estava ou não perdida. As investigações têm progredido e os autores revelam o que se estava a passar sobretudo em 1974 em Angola, Moçambique e Guiné. Resumindo, em Angola não se estava a caminho de nenhuma vitória militar nem política: existia uma séria e assumida ameaça colonial sobre Cabinda e o Norte, a situação no Leste não inspirava confiança ao nosso aliado sul-africano, considerava-se que o programa de aldeamentos era desastroso; em Moçambique a situação era crítica, para além da continuação das ações nas zonas tradicionais de guerrilha, a FRELIMO estava a infiltrar grupos cada vez mais para Sul, abatera três aviões rodesianos que apoiavam as operações de contraguerrilha, o grosso dos meios estava empenhado na defesa de Cahora Bassa e nas linhas de reabastecimento à barragem, nas zonas restantes as forças portuguesas corriam atrás dos acontecimentos. Na Guiné, é onde tudo ia pior, primeiro com a chegada dos mísseis terra-ar e depois com os acontecimentos de Maio de 1973. Põem-se em cima da mesa o plano de retração. “Para a constituição deste reduto eram considerados os seguintes ponto-chave, a manter a todo o custo: Aldeia Formosa, Cufar, Catió, Farim, Nova Lamego e Bafatá, a Ilha de Bissau associada às regiões de Bula e de Mansoa. Isto é, reduzir a soberania a um reduto central. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central”. Enquanto tudo isto se passa, Marcello Caetano tentou várias saídas para o problema colonial e a guerra, pensa-se numa independência branca para Moçambique e Angola, há conversações em enviados secretos do Governo Português com o PAIGC e o MPLA, por três vezes Caetano procura a admissão junto do Almirante Tomás, este respondeu: “Já é tarde para qualquer um de nós abandonar o cargo”.

As investigações evoluíram muito e os saudosistas da sustentabilidade da guerra colonial veem cair por terra toda a sua carga emocional. Um só exemplo, referente à Guiné. Em 27 de novembro de 1973, o Comandante da Zona Aérea, Coronel Lemos Ferreira, enviou uma carta a Costa Gomes a explicar o que se passara na Guiné. Refere as possibilidades militares do PAIGC, que incluíam o patrulhamento aéreo feito por aviões MiG-15 e MiG-17 da República da Guiné Conacri, a eliminação de duas guarnições portuguesas junto da fronteira, a existência de blindados e armas anti-aéreas e anti-carro. E escreve textualmente: “Sabendo-se que a sobrevivência militar desta Província Ultramarina assenta quase exclusivamente no pessoal e nos meios da Força Aérea, por ser patente que as forças terrestres não parecem capazes de suportar e reagir a uma safanão forte por razões conhecidas, nomeadamente a sua reduzida motivação, deduz-se o risco de, apesar de sermos aqueles que mais intensamente procuramos remar contra a maré, acabarmos por ser o pião das nicas, por não termos realizado o milagre integral, ou seja, impedir todo e qualquer ataque inimigo!”.

Manual de referência, roteiro, obra-prima de divulgação, nada supera no panorama editorial português esta guerra colonial, totalmente indicada para antigos combatentes, investigadores e curiosos das novas gerações, manifestamente indiferentes às apoplexias do saudosismo.
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Notas do editor:

Poste anterior de 5 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21419: Notas de leitura (1312): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21426: Notas de leitura (1313): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte IV (Luís Graça): as primeiras minas e fornilhos A/C

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21420: Agenda cultural (758): O livro "Madrinhas de Guerra - A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar" da autoria da jornalista Marta Martins Silva; Edições Desassossego e prefácio de Carlos Matos Gomes, estará à venda nas livrarias de todo o país a partir do dia 9 de Outubro


Madrinhas de Guerra - A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar
Autora: Marta Martins Silva
ISBN: 9789898892997
Ano de edição ou reimpressão: 10-2020
Editor: Desassossego
Idioma: Português
Dimensões: 160 x 230 x 18 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 288


À venda a partir do dia a 9 de outubro nas livrarias de todo o país.

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Sinopse:

«Eu sou um militar longe, muito longe da minha terra natal [...] e com a sua ajuda o tempo passava um bocadinho melhor.»
A chegada do correio era o momento mais aguardado pelos militares que combatiam na Guerra Colonial. Em Angola, na Guiné e em Moçambique, milhares de rapazes portugueses viveram o inferno na terra, e as cartas que recebiam da metrópole eram o conforto que precisavam para se sentirem mais perto de casa.
Muitas destas cartas eram escritas por mulheres que eles não conheciam mas que aceitaram o repto do Movimento Nacional Feminino para se corresponderem com os militares e lhes oferecerem um ombro amigo durante a comissão em África: palavras de alento que deram, em muitos casos, lugar a declarações apaixonadas que chegaram ao altar.
Madrinhas de Guerra conta o papel quase esquecido destas mulheres pela voz das próprias, mas também as lutas dos homens a quem escreviam, protagonistas de uma guerra que deixou atrás de si um rasto de sangue e destruição. Por entre histórias de encontros e desencontros - entrelaçados com a História de Portugal dos anos 60 e 70 do século passado -, há lugar aqui para o que de melhor ficou desse tempo tão duro para quem o viveu: o amor.


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Sobre a autora:

Marta Martins Silva nasceu em Aveiro em 1984, numa altura em que o país lidava com a recessão económica e o FMI. Não sabe se foi isso que a afastou dos números e a aproximou das palavras desde que se conhece. Encontrou no jornalismo, que exerce desde 2007 na revista Domingo do Correio da Manhã, a junção de duas das suas grandes paixões: a escrita e as pessoas. Agradam-lhe as histórias reais, pela verdade dos protagonistas que as vivem e porque não há melhor guião do que a vida daqueles com quem todos os dias se cruza. Desde os bancos da escola que se interessa pela História do país, mas nos últimos dez anos, fruto dos contactos frequentes com os ex-combatentes da Guerra Colonial para a revista Domingo, apaixonou-se pelo tema do Ultramar e pelas histórias que a História esconde. Em 2019, assinou na revista Sábado o especial «Os primeiros soldados enviados por Salazar», e edita agora o seu primeiro livro.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21357: Agenda cultural (757): Contos eróticos, "Os Velhotes", de António José Pereira da Costa... na Feira do Livro do Porto, 12 de Setembro de 2020 (Carlos Vinhal)

Guiné 671/74 - P21419: Notas de leitura (1312): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Esta nova edição da Guerra Colonial é uma obra de referência para quem quiser ter uma grande angular da guerra, o que motivou o Estado Novo a optar pela guerra alegando mesmo que havia força para a manter intemporal, isto a despeito dos ventos de mudança que tinham refeito novas cumplicidades e introduzido na cena internacional o conceito de auto-determinação. Os autores oferecem-nos agora um manual escrito numa linguagem muito acessível e que abarca o modo de fazer a guerra, a organização das forças terrestres, aéreas e navais, a africanização, o viver quotidiano. Iremos mais tarde apreciar o que eles descrevem e analisam sobre as controversas teses da guerra ganha ou guerra perdida e como, na última cena do ato final, Marcelo Caetano procurou arranjar tentativas para a solução da guerra, quando tudo já estava perdido.
Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1)

Mário Beja Santos

A dupla Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes obteve um currículo inexcedível na investigação da guerra colonial, são dois comunicadores rigorosos, possuem opinião fundamentada e estão dotados daquela mestria de tornar acessível matéria que poderá ser encarada como árida pela opinião pública curiosa mas leiga. Acaba de sair uma nova edição de Guerra Colonial, Porto Editora, 2020, não é uma remodelação superficial, a sua arrumação permite a quem quer recordar ou iniciar-se sobre políticas, doutrinas, modos de ver, territórios da guerra, organização e manobras táticas das Forças Armadas portuguesas, as populações envolvidas nos conflitos, como era o dia-a-dia dos militares e dos guerrilheiros, como surgiram, se organizaram, evoluíram os movimentos de libertação e conduziram a guerra; e como eram os comportamentos na sociedade portuguesa face ao progredir da guerra, procede-se ao balanço, o que se passou após o fim do conflito, quais os protagonistas considerados com papéis mais marcantes. Enfim, uma obra de estrutura inédita entre o roteiro, o manual e o breviário.

“A guerra que Portugal travou em África entre 1961 e 1974, e que contribuiu de forma decisiva para o 25 de Abril, é o acontecimento mais marcante da nossa história na segunda metade do século XX. Este trabalho pretende contribuir para um melhor conhecimento do que foi esse conflito, das condições em que ele se desencadeou e das suas consequências”.

Abre toda esta digressão com o mapa da guerra, o cenário do mato, passa-se para a doutrina militar de contraguerrilha assente no manual O Exército na Guerra Subversiva, uma verdadeira bíblia para as forças terrestres. Elencam-se as forças portuguesas perante a guerrilha, a natureza das operações, desde a defesa dos pontos sensíveis, passando pelas minas, os patrulhamentos e os golpes de mão. Com este pano de fundo da guerra e dos atores de âmbito nacional, a digressão é de Portugal na cena internacional, estudos que ficam a cargo de Josep Sanchez Cervelló, a partir de 1960 nos areópagos internacionais a política colonial portuguesa era maioritariamente contestada. Ficamos igualmente a conhecer o que era o Exército Português nas vésperas da guerra colonial.

Adriano de Moreira dá-nos um magnífico ensaio sobre Salazar, um homem só num mundo em mudança, é de leitura obrigatória, aqui fica um parágrafo:
“Extremamente hábil e lúcido com os problemas diplomáticos até ao fim da II Guerra Mundial, não receando medir-se com representantes de qualquer grande potência, num quadro de referência euromundista que permaneceu vigente durante a maior parte da sua vida, a explosão dos fatores internos e a mudança revolucionária do contexto internacional não o encontraram munido de igual capacidade de gestão, porque as solidariedades mundiais eram outras, as lealdades eram diferentes. O mundo, como o país, deixara de ser o conhecido”.

E Adriano Moreira disserta sobre a hierarquia militar e o olhar de Salazar sobre o império.

Estamos agora no primeiro palco de guerra, Angola, descreve-se o meio, os primeiros atos de terror, e depois a reocupação do Norte de Angola, esquematiza-se a emblemática Operação Viriato. Segue-se o quadro em que se movem os atores, os locais, os grupos étnicos, quem é quem nos movimentos de libertação e a resposta das Forças Armadas Portuguesas.

O segundo teatro de operações é a Guiné, releva-se a atuação do líder revolucionário Amílcar Cabral na fundação do PAIGC, dá-se relevo à primeira operação de grande operação, a Operação Tridente, entra-se propriamente no terreno e resume-se o que foi a guerra entre 1963 e 1968, segue-se a era Spínola e faz-se menção aos acontecimentos de 1963, ficamos igualmente a saber os efetivos da Marinha e da Força Aérea, bem como evoluiu o dispositivo militar do Exército na Guiné.

E passamos para a guerra em Moçambique, faz-se uma súmula do território, é descrito o aparecimento e organização da FRELIMO, como se iniciou a guerra, como se caraterizou o avanço da FRELIMO para Sul, entre 1973 e 1974. Faz-se agora um registo das Forças Armadas Portuguesas, primeiro o Exército com as suas diferentes armas, incluindo as Forças Especiais, segue-se a Marinha e por último a Força Aérea. Feita esta contextualização, avança-se para a descrição dos movimentos de libertação e guerra: o MPLA, a UPA/FNLA, a UNITA, o PAIGC e a FRELIMO, dá-se mesmo o quadro dos armamentos e equipamentos dos movimentos de libertação. Procura-se uma descrição dinâmica da evolução política destes movimentos de libertação, primeiro o MPLA, depois a FNLA, segue-se a construção do Estado na Guiné-Bissau, o papel de Samora Machel na FRELIMO e as contribuições da organização da Unidade Africana em suporte dos movimentos de libertação.

Em capítulo distinto é-nos dado um quadro referencial da manobra militar das Forças Portuguesas: o seu armamento, o desafio da logística, houve que requisitar paquetes, transformar a linha aérea imperial e comprar novos aviões, montar sistemas de informações e validar a ação psicológica, a ação psicossocial, construir aldeamentos, fazer recurso da africanização, em 1973 a percentagem das tropas locais no efetivo-geral do Exército mostrava números impressionantes e díspares: 42% em Angola, 20% na Guiné e 54% em Moçambique.

O quotidiano arranca com uma ordem de mobilização, forma-se uma unidade, dá-se instrução, segue-se uma licença de dez dias antes do embarque e para a generalidade a viagem é por navio. Os oficiais seguiam para a 1.ª classe, os sargentos para a 2.ª e as praças para a 3.ª. “À chegada ao porto de destino, procedia-se a uma nova formatura, um desfile e um discurso. Depois, iniciava-se a partida para um campo militar: o Grafanil, em Luanda, ou o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques para norte até à Beira, Nacala ou Porto Amélia. A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão”. Os autores referem a importância dos quartéis, como se passavam aqueles dois anos, a importância do correio e os ritos da glorificação, as cerimónias do 10 de Junho e as condecorações. Não são esquecidas as organizações femininas, o papel das mulheres na guerra colonial e as manifestações oposicionistas à guerra. O historiador Luís de Salgado Matos dá-nos um elucidativo estudo sobre a Igreja e a guerra, da colaboração à resistência.

E ficamos hoje por aqui, os autores vão-nos falar depois de três generais com três conceitos distintos, o peso do esforço de guerra, o fim do Império, as feridas que a guerra deixou e inevitavelmente emerge a questão ideológica da guerra perdida ou sustentável, que eles vão documentar com os casos concretos da Guiné, Angola e Moçambique. Bem interessante é a relação que nos dão dos principais protagonistas e é de ter em conta a reflexão final sobre as Forças Armadas. Despedem-se dizendo que esta divulgação lhes pareceu a mais adequada para o maior número de pessoas, tanto para as que estiveram nos teatros de operações como para as gerações mais novas, que da guerra vagamente sabem por ouvir falar.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21400: Notas de leitura (1311): “I Reunião Internacional de História de África - “Relação Europa-África no 3.º Quartel do Século XIX”; Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa 1989 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Trata-se, tanto quanto me é dado saber, de um trabalho universitário em que numa grande angular se pretende saber mais sobre o comportamento jornalístico face à guerra colonial, desde a primeira hora: quais os meios de comunicação em Portugal e colónias, como se fabricavam as notícias, como agia a censura, recolhem-se depoimentos a entrevistas e testemunhos e procura-se aquilatar até que ponto é possível investigar a história da guerra colonial sem entrar nos meandros deste jornalismo e como este, de certo modo, vai estar nos carris da descolonização.
Documento vasto, prismático, a exigir seccionamento na recensão, para benefício do leitor.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (1)

Beja Santos

“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este jornalismo é de estudo indispensável na investigação histórica.

Carlos Matos Gomes
Logo no prefácio, Carlos de Matos Gomes pede ao leitor que aceite a singularidade da guerra:

“A guerra é o reino do medo, da sujidade, do excesso, da violência, do que não se pode dizer em voz alta nem expor nas montras. É um corte entre nós e os outros, que são eles, os que, por alguma razão, ou sem razão alguma, passam a execráveis inimigos. A guerra é um universo denominado pela irracionalidade e pela bestialidade”.

E daí questionar-se por onde passa a fronteira entre a verdade e a mentira, entre o que é lícito tornar público e no dado essencial das omissões. O prefaciador recorda-nos que o jornalista que vai à guerra tem a oportunidade para uma aventura pessoal, conhece os limites do que pode escrever, se descreve horrores é para destruir a imagem dos nacionalistas; o que fala na rádio e na televisão tem outra espécie de condicionalismos, o som e a imagem timbram melhor as cores da propaganda. Mas há um dado axiomático:

“Na guerra, o jornalismo expõe com ineludível crueza a servidão aos poderes político e económico, que permitem a sua existência. Esses poderes têm a sua verdade e é essa que vale, seja como pura propaganda, seja como análise mais ou menos científica”.

Daí o jornalismo ter obrigatoriamente de justificar ideologicamente e economicamente o regime:

“A guerra era imposta do exterior. Aliás, não havia uma guerra, mas atitudes subversivas e correspondentes ações de reposição da ordem. Não havia guerrilheiros, mas terroristas, bandoleiros a soldo de potências estrangeiras”.

Na imprensa metropolitana fugia-se até ao limite em dar notícias sobre a guerra colonial, aliás, os leitores metropolitanos estavam absorvidos por outras preocupações. Em dado passo da escalada da guerra, encontrou-se uma figura mediática que era conveniente ao regime e à mitologia do herói: Spínola, credor dos grandes meios de comunicação social internacionais e a grande curiosidade que suscita ao leitor aquele militar monóculo que aterra no centro das operações e que passou a ter o destemor de dizer nos gabinetes da política que não havia solução militar para aquele tipo de guerra.

Acresce que em Angola e Moçambique, teatros de guerra menos importantes para os repórteres internacionais, havia dois mundos, o dos colonos a fazer a sua vida pacífica e as povoações em guerra. Em Lourenço Marques, a guerra não existia, em contrapartida o hospital de Vila Cabral ia-se enchendo de feridos, aí os colonos pressentiam a gravidade dos acontecimentos. A guerra foi deliberadamente ocultada pelas autoridades aos moçambicanos. E o jornalismo feito especialmente em Angola e Moçambique não era levado a sério tanto pelos militares como pelos civis, da mesma maneira que as informações militares passavam deliberadamente ao lado dos implicados, como refere em entrevista o jornalista Rodrigues Vaz:

“Há que chamar à atenção para a qualidade inegável do serviço de informações do Exército, cujos relatórios da situação que se vivia em Angola era o espelho real do que acontecia. Só que o regime não devia olhar para eles com olhos de ver, teimando tapar o sol com uma peneira. O resultado foi o que se viu e o inconcebível é que continua a haver gente que acha que a guerra estava ganha pelo Exército português e que o 25 de Abril é que veio estragar tudo. É lamentável que ainda agora seja pouca a gente que se lembra de pensar como se poderia ganhar a paz, mas isto é que era importante”.

Atenda-se agora à evolução do jornalismo durante o Estado Novo, a obra identifica os matutinos e vespertinos, a imprensa desportiva, as revistas e outras publicações e até a tentativa de pôr em marcha projetos inovadores como o Diário Ilustrado, concluindo-se que:

  “Os finais da década de 60 e inícios da década de 70 configuram em Portugal o culminar de um período intenso em mudança do jornalismo, reflexo das mudanças sociais em curso, em que se misturam fatores de natureza humana (recomposição das redações com o recrutamento de jovens universitários), tecnológicos (reconversão na maioria dos jornais) e políticos (as fraturas internas da última fase do salazarismo, agravadas pelas ambiguidades e hesitações do marcelismo)".

Segue-se um retrato dos meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas, levantamento que compreende a imprensa escrita, a rádio, a televisão e o cinema. Na sua sequência, faz-se menção ao início da guerra de Angola e à natureza das notícias que se publicaram.

“O discurso censurado dos diários de Lisboa foi conduzido no sentido de camuflar sistematicamente a origem maioritariamente angolana e de negar o âmago anticolonial dos assaltos às cadeias de Luanda”.

E mais adiante:

“As notícias sobre a nacionalidade dos assaltantes são bastantes difusas: estes ora são referidos simplesmente como estrangeiros, ora como uma amálgama de negros, de quem se diz não serem da África portuguesa, e de alguns brancos europeus, explicando tratar-se de portugueses da Metrópole que teriam pitando o rosto de negro para passarem despercebidos”.

Todos estes acontecimentos ocorridos em Luanda aparecem imputados ao turbilhão independentista que se vivia no Congo, a nação portuguesa é apresentada como vítima de uma conspiração à escala internacional.

“Os acontecimentos no Catanga e no Congo e também o drama franco-argelino e a crise no Laos são relatados com vista a singularizar a situação de Angola. Enquanto a condição naqueles locais é descrita como sendo de guerra, de miséria e de incerteza, o discurso da imprensa de Lisboa era encaminhado no sentido de dissimular uma imagem de harmonia e tranquilidade aplicada ao império português em África”.

A imprensa angolana também fez passar a ilusão da serenidade, houvera assaltos mas milhares de pessoas passaram o seu dia na praia e outras assistiram ao desfile preparatório do cortejo de Carnaval. Estamos perante um caso de ficção informacional. A censura impediu artigos que dessem outras vertentes da realidade. Cita-se por exemplo a série de crónicas assinadas por Domingos Mascarenhas intituladas “Angola 1961”. O jornalista entrevê na revolta em Luanda um acontecimento decisivo capaz de pôr em causa o destino da nação. Foi tudo proibido. Mas apesar da censura passaram mensagens nas entrelinhas. Convém agora ver como é que a guerra era tratada no telejornalismo e na televisão em geral.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Chegou a hora do bardo invocar a primeira perda do BCAV 490, o que nos remete para lembranças dolorosas e poderosos textos em que a literatura de guerra é fértil. A nossa memória esvoaça para aqueles acidentes estúpidos de viaturas, de afogamentos, saltamos para teatros de operações onde o apontador de dilagrama se enganou no cartuxo e só não morreu por acaso, jaz a nossos pés como um Cristo a descer da Cruz. Por acidente ou combate, é uma perda. E decidi-me remexer nessa obra-prima que é o "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz para bater à porta do horror.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (9)

Beja Santos

“Quando veio do Continente

Quando veio do Continente
trouxe o destino marcado.
A 28 de Agosto
morreu num tronco estampado.

Quem lhe havia de dizer,
quando de lá abalou,
quando seus pais abraçou
que os não tornava a ver.
Neste sítio veio morrer,
numa morte tão de repente.
Deixou pena a muita gente
e à sua família querida.
Trazia a sina já lida,
quando veio do continente.

Conduzindo uma viatura,
no dia 28 a certa hora
saiu da estrada fora
onde teve a desventura.
Ali teve a morte escura
este pobre malfadado.
Em Bissau foi sepultado.
Tão longe da sua terra,
morreu sem lutar na guerra,
trouxe o destino marcado.

A morrer foi o primeiro
cá do nosso Batalhão,
a todos deixou paixão
este amigo e companheiro;
esse soldado solteiro
andava sempre bem disposto.
Sua mãe já não vê o rosto
do filho que tanto amou
porque numa árvore se estampou a 28 de Agosto.

Pois ele vinha a guiar
ao lado um superior.
Foi ele quem viu o condutor
com a morte labutar.
O Furriel não pôde salvar
o rapaz por ele estimado.
Já não mais se pôs ao lado
de António Silva Pereira,
porque na maldita 4.ª-feira
morreu num tronco estampado.”

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É por demais sabido que a mina ou emboscada, a troca de tiros numa operação, o descabelado acidente pesam mais na memória, quando é a primeira vez. E a literatura da guerra está pejada destes momentos infaustos, obrigatório é contá-los, fazem parte do narrador, é um dever não o obliterar, na narrativa devem constar todos os ingredientes, a dor própria e a dor alheia, o acabrunhamento que se instala nos circunstantes. E assim se chega a um romance maior, "Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, começa-se por um episódio relacionado com a primeira operação de uma Companhia de Comandos:
“O jovem comandante da Companhia, seco de carnes e de rosto de feições regulares, inspirava confiança, apesar de ser quase da mesma idade dos homens que comandava. Mantinha uma distância de reserva entre si e eles que alguns confundiam com arrogância. Deu as ordens com voz calma, como se estivesse ainda em exercício de preparação e só depois se aproximou do soldado ferido deitado sobre um pano de tenda.
O Pedro, que ele escolhera pessoalmente para número um do primeiro Grupo, era o primeiro ferido da sua Companhia. Um dos pés estava transformado numa massa de formas irregulares onde se misturava o coiro preto da bota com a terra castanha empapada em sangue, e de onde emergiam tendões brancos desligados dos ossos.
À vista deste espectáculo empalideceu. Não conseguiu evitar esse sinal de fraqueza. Sentou-se a observar os gestos do enfermeiro: primeiro, uma injecção de morfina, depois, apertar o garrote para estancar o sangue, de seguida, uma injecção de vitamina K para facilitar a coagulação e, por fim, os movimentos tensos de limpar o melhor possível a pasta avermelhada antes de a envolver num penso.
Depois de acabar o penso que envolvia o que restava do que fora o pé do soldado Pedro, o enfermeiro arrumou a bolsa dos primeiros socorros, enterrou os novelos de algodão ensanguentados, as gazes sujas e as ampolas vazias, para o inimigo não saber que um soldado fora ferido, e preparava-se para se sentar um pouco mais longe.

- Fica aí perto, ele está a recuperar – mandou o capitão ao enfermeiro.

Vindos de muito longe, chegaram ao soldado Pedro a voz e o rosto do capitão. Lentamente começou a ver as folhas brilharem ao sol, a ouvir um zumbido na cabeça. Tentou mexer os dedos das mãos, dobrou as pernas. Parecia estar inteiro. Ele era ribatejano e tinha sido forcado amador. Sentia-se como depois de uma pega de caras: dorido, mas completo, quando muito, com alguma coisa fora do lugar.
- Não me dói, meu capitão, só tenho sede.
- É assim mesmo, vamos mandar vir um helicóptero para a evacuação, vais ver que ficas bom – disse-lhe enquanto lhe dava água.
Só então o Pedro olhou para a extremidade da perna e viu a bola branca a tingir-se de vermelho, as ligaduras ensopadas em sangue. Mas sentia o pé lá em baixo, até podia mexer os dedos!”.


Esta Companhia de Comandos, destinada a ir ao assalto de santuários da Frelimo, viverá horas de horror, aqui se deixa alguns parágrafos dispersos de uma escrita universal sobre os nossos trabalhos africanos, uma lembrança intemporal para as dores que qualquer combatente tem pouca vontade de transmitir:
“Os homens moveram-se sem necessidade de ordens. Ligaram os cabos dos guinchos de reboque ao casco e à torre da autometralhadora para libertarem do interior do blindado o corpo meio esmagado do furriel do Esquadrão de Cavalaria a escorrer sangue e espuma da boca. Desceram-no, desarticulado, da velha lata para os braços do enorme soldado Bento, que pegou nele ao colo como a um menino.
Deitou-o docemente à sombra de um arbusto compondo-lhe os membros. A cara de criança em corpo de gigante do soldado dos Comandos enfrentou a do outro, com a face branca da morte, sem acreditar que já não estivesse vivo. O gigante Bento, que mal cabia na farda camuflada, voltou pelo mesmo caminho na sua passada de urso cansado, com a espingarda, que parecia um brinquedo, pendurada às costas, à espera de o mandarem fazer mais algum serviço.

- O apontador da metralhadora também está morto, esmagado pela torre que saiu dos encaixes. O condutor é que não sei, não se pode passar para o seu lugar – explicou um dos que tentavam enfiar-se dentro da Fox. – Pelo menos os pés devem estar desfeitos…
- Para já é preciso tirar este caixão com rodas daqui para podermos continuar.”

E despedimo-nos com outra água-forte deste notabilíssimo romance, o fim do desventurado Casal Ventoso:
“No rescaldo, ainda com o coração a saltar debaixo da pele os homens correram para ele, para amparar o Casal Ventoso. O capitão, o Cardoso, o Lencastre, o Lino, o Torrão, o Transmissões, chegaram perto do soldado criado no maior barro de lata de Lisboa.
O Lencastre foi o primeiro a levar a mão ao nariz e a engolir um vómito seco, mas os outros também não conseguiram reprimir um gesto de repulsa quando encararam a barriga aberta do Casal Ventoso e viram as volutas azuladas dos intestinos a engrossarem viscosas entre os dedos ensanguentados. O Casal Ventoso espalhava diante deles o que todos temos trazido escondido no nosso interior, e sentiram as pernas fraquejar à vista do repugnante espectáculo das vísceras que nos fazem idênticos aos animais de talho. Agoniaram-se com o cheiro das fezes soltas e escorrerem pelo camuflado roto”.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 3 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19853: Notas de leitura (1183): "Entre o Paraíso e o Inferno (De Fá a Bissá)", por Abel de Jesus Carreira Rei; edição de autor, 2002 (Mário Beja Santos)