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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6532: Estórias do Juvenal Amado (26): Laura, ou as estórias da nossa terra

1. Mensagem de Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 30 de Maio de 2010, com mais uma das suas estórias, sempre do agrado da tertúlia:

Meus caros Luis, Carlos, Magalhães, Briote e restante camaradas da Tabanca Grande

Fui trabalhar para a Crisal (fábrica de vidros de Alcobça) com onze anos, acabado de sair da escola primária e como eu foram muitos ao longo da minha juventude.
Só lá estive uma ou duas horas.

O forno da Crisal foi dos sítios que conheci, onde o trabalho era da maior violência. Centenas de trabalhadores trabalhavam ao mesmo tempo com canas de aço, donde pendiam a ponta bolas de vidro incandescente e os meninos de 11 anos, levavam depois as peças já moldadas para as arcas de tempera (Chamava-se levar a cima).
O calor era insuportável e a grande concentração de trabalhadores, tornava o local perigoso com acidentes quase diários. Mais tarde a empresa foi modernizada e a temível secção do forno, foi dividida em turnos, construída em local mais arejado e foi assim reduzido em grande parte o perigo aos seus trabalhadores.

Durante esses anos, foi vê-los partir para a guerra e vê-los regressar os que regressaram.

Mais tarde com 14 anos, voltei para ingressar na pintura e por lá permaneci até 1980.

A estória que trago hoje é pois, uma memória de várias memórias. Os nomes são fictícios mas as situações não deixam de ser verdadeiras na sua essência.

Esta introdução vem um pouco na linha do excelente poste do Mário Pinto, sobre a falta de preparação que nós tivemos para enfrentar o IN.

Isto só para dizer que os furriéis e alferes não foram preparados convenientemente, o que se dirá dos soldados que embarcavam quase sem dar tiros. Marchávamos relativamente bem, mas não se enfrenta o IN com marchas. Foi a vida ruim das suas juventudes, onde muitos que lá trabalhavam comiam broa e usavam como conduto um pouco de pão alvo, ou uma mão cheia de azeitonas escaldadas, que permitiu suportar as dificuldades por que passaram.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


LAURA OU ESTÓRIAS DA NOSSA TERRA

Laura dormia com o semblante calmo. A carta esquecida enfim após ser lida várias vezes repousa aberta. De manhã voltará a lê-la, talvez à procura do que está escrito nas entrelinhas, ou talvez da realidade que lá não foi escrita.

Jorge partiu mas o seu cheiro ainda está pela casa toda.

Férias tinham passado rapidamente, aliás antes do fim, já elas se tinham esgotado nos longos silêncios dele.

São quase oito horas da manhã, corre para apanhar ainda aberto o portão da fábrica.

- Bom dia senhor Manuel - cumprimenta ela o porteiro, que abana a cabeça como quem diz:

- Mais um pouco e ficavas na rua. Vai… vai rapariga, que eu mudo-te a chapa de entrada.

Se tem deixado fechar a porta, teria que esperar por um dos patrões, para que ele lhe desse autorização para pegar ao serviço. Que chatice já não bastava o dinheiro que perdia, como ainda ter que ficar à espera para pedir para ir trabalhar. Já não seria a primeira vez.

- Já chegaste? Fez-te mal o casamento ou é a falta.

São os normais comentários jocosos das colegas. Laura sorri mas não responde habituada, que está à brejeirice normal das colegas mais velhas da secção.

Onde estará o Jorge neste momento? - Pouco ou nada se tinha falado da guerra mas notava, que ele nem sempre estava com ela, ainda que presente fisicamente. Qualquer coisa trazia bem no fundo do seus pensamentos.

Os suores, os sonhos agitados, as longas horas de olhar fixo no tecto falavam por si.

O tempo passa devagar. Ah, se ele estivesse à minha espera ao portão da fábrica. Tinha-se habituado a que ele a esperasse todos os dias. Ia ser difícil suportar a sua ausência.

Se lhe acontece alguma coisa? - Como vou viver sem ele?

Logo afastava esses pensamentos rezando entre dentes uma oração, prometendo ir a Fátima a pé, se nada lhe acontecesse. Nem por sombras queria pensar que também a Maria tinha feito a mesma promessa e de nada lhe tinha valido, pois o namorado lá tinha ficado. Como dizia o padre, ao contrário dos bens terrenos, só Deus era para todos.

E o Tó, genro do latoeiro, e o Valdemar, que perderam uma perna, um na Guiné, o outro em Angola. Ao menos voltaram vivos e trabalhavam já na lapidação do vidro, uma vez que o trabalho nos fornos estava fora causa, mercê das suas deficiências.

Também o Zé de Cós, lá tinha ficado na Guiné logo no princípio da guerra. Era um artista a gravar à roda. Gravava desenhos minúsculos em baixo relevo no vidro, com rodas pequeníssimas feitas de vários materiais. Tiraram-lhe o engenho de gravar arte e beleza, deram-lhe um de matar.

De tempos a tempos, falava-se que tinha voltado um soldado dado como morto. No coração daquela mulher, que o tinha dado à luz, acendia-se uma esperança e na casa para sempre de luto, voltava a entrar uma réstia de Sol.

Mas não, ele já tinha voltado dentro do caixão, o local onde repousa, seria para sempre lugar santo e de romaria para aquela mãe.

O engenho que criava beleza, foi depois ocupado por jovem soldado regressado de Moçambique, que tinha para lá ido em 66 e regressava agora com o rosto e espírito marcados por Sagal Mueda, em pleno território Maconde.

Mas nada disto vai acontecer - Espantava ela os maus pensamentos.

Ele virá mesmo com cicatrizes no corpo e na alma, mas virá.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6263: Ser solidário (65): Solidariedade não é caridadezinha (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5955: Estórias do Juvenal Amado (25): O Sertã e os companheiros da tenda de campanha

terça-feira, 9 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5955: Estórias do Juvenal Amado (25): O Sertã e os companheiros da tenda de campanha


1. Mensagem de Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com com data de 2 de Março de 2010:

Caros camaradas
Um pequena estória.

Um abraço
Juvenal Amado



O SERTÃ

O Ivo num falso autoritarismo vira-se para o “Sertã” e diz-lhe:

- O senhor faz favor de ir à cantina e trazer três cervejas, passa pelo Léo trás três pães, porque hoje vamos provar as tais latas que o senhor trouxe de casa e que ainda deixa estragar.

O “Sertã” esboçou um sorriso olhando para a cara do Ivo, que muito sério acrescenta:

- É depressa.

O “Sertã” era um soldado do PelRec muito calado, passava despercebido ou pelo o menos tentava, mas na verdade ele trazia umas latas de carne cozinhada pela mãe, posteriormente conservada no próprio molho, que era de comer e chorar por mais. A acrescentar a isso era o facto de talvez ser o único de nós que ainda tinha dinheiro.

Aliás ele teve sempre dinheiro.

Eu o Ivo, o Sertã e mais dois ou três camaradas éramos os últimos inquilinos da grande tenda de campanha, onde ficámos alojados quando chegámos a Galomaro.

O camarada ainda argumentou:

- E dinheiro?

O Ivo em ar teatral no seu metro e oitenta, levanta-se de um salto, começa a esbracejar, maldizendo a sorte que lhe estava guardada de ninguém fazer, o que ele mandava e apontado a cantina no extremo oposto da parada, lá simulou que lhe dava qualquer coisa má, se o outro não fosse fazer o que ele lhe tinha dito.

O “Sertã” lá foi fazer o que lhe era pedido mesmo sem dinheiro.

Não foi a primeira nem a ultima vez, que o “Sertã” nos emprestou dinheiro. Também nos fizemos convidados às benditas latas com carne em conserva, que iam chegando de tempos a tempos. O pai mandava-lhas sempre, que tinha portador. Para nosso deleite acrescento.

A última vez que vi o “Sertã” foi no 3.º almoço que efectuámos perto de Castelo Branco. Lá estava ele com a esposa e cinco filhos. O sorriso era o mesmo e a festa que lhe fizemos foi bem demonstrativa da nossa amizade e estima por ele.

O próximo Almoço que será no dia 1 de Maio é lá perto, talvez o “Sertã” apareça.

Um abraço
Juvenal Amado

O Sertã em primeiro plano

Da esquerda para a direita: Borges, Roque, eu e Caetano que é o organizador do almoço este ano
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5954: Convívios (113): Pessoal do BCAÇ 3872, dia 1 de Maio de 2010, em Cabeçudo - Sertã (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5707: Estórias do Juvenal Amado (24): O Cafezinho, ou uma história de vida

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5707: Estórias do Juvenal Amado (24): O Cafezinho, ou uma história de vida

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 22 de Janeiro de 2010:

Caro Luis, Vinhal, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande

O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão mas todos nós miudos gostavamos da sua liberdade e do ter por perto.
Era um valdevinos mas um lider nem sempre nas melhores razões.
Tenho saudade dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.

Um abraço
Juvenal amado


O “CAFEZINHO”

Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de Alcobaça.

Um penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o combustível da bicicleta era tinto normalmente.

Pequeno com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa, Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!

O seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca.
O filho que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse:

- Pois, e agora cantas.

Todos nos rimos e o Cafezinho, aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.

Vendedor de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209 nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei quando saí da empresa em 1980.

Mas a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim o mesmo, que o esperava naquele dia.
Andámos na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia. Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.

Um dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto ao campo de ténis.
Quem jogava ténis naquele tempo eram meia dúzia de colunáveis da terra, e pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.

Entretanto saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.

Voltamo-nos a tornar mais íntimos, quando feita a minha recruta no CICA 4 sou enviado para o RI6 na Senhora da Hora na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto, pois era da incorporação anterior. Eu o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo e o Zé Café tornamo-nos inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos boleia, nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a nós o resto da semana.

Quando chegávamos à porta quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de Armas.

O Cafezinho foi o nosso cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio de Cristal, eram normalmente o nosso destino.
Aí o Cafezinho dava show. Nas barracas de brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só para o verem disparar.
Nós três cotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco rentável com gente como nós.

Um dia quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho, perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados.
Respondemos-lhe em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos acabar a tropa ali mesmo no Porto.

Bem o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.

Quando regressamos cada um foi à sua vida, embora sempre que nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a relembrar.

O Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria, concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a associar-se.

Há dez anos saí de Alcobaça e a morte dele passou-me ao lado. Fiquei espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.

25209. Amanhã vou fazer um totoloto e vou utilizar os mesmos números. Talvez em vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. ´Poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5454: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (15): Tabanca de Matosinhos, Tertúlia do Cozido à Portuguesa e viva a amizade (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Setembro de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virgínio, Magalhães e restante tabanca.

Esta é uma estória sobre a nossa passagem por Galomaro.
Não consegui confirmar que o nome dele seja efectivamente Mamadú, mas penso que ele é do tempo dos camaradas que estiveram na área antes de mim.

Aproveito para enviar algumas fotos da tabanca.

Na foto aérea que foi tirada no sentido de Bafatá na direcção do Dulombi. Do lado esquerdo vê-se a pista, do lado direito uma fiada mais escura são as grandes árvores que ladeavam o caminho de Cansamba, Duas Fontes, Dulombi, Bangacia, Campata e Saltinho.

Também junto à casa grande com quatro pequenas, à direita destas mal se vê, penso que seja o famosíssimo Regala.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O VELHO MILICIA

Boina castanha debotada, olhar como quem olha para além de nós, o Mamadu acariciava a espingarda, como quem fazia festa a um neto.

Sentava-se à porta de sua palhota, mascava incessantemente alguma coisa e de tempos a tempos mandava uma daquelas cuspidelas, que velozes atingiam dois ou três metros. A saliva saía com um barulho particular dos seus lábios apertados.

A idade era indefinida, pois para nós miúdos de 22 anos, um homem com 50 ainda por cima africano era um velhote.

Muito magro e alto, caminhava lentamente casaco de camuflado demasiado largo e calções feitos a partir de umas calças da farda n.º3.
Era a indumentária constante do velho milícia de Galomaro.

Às nossas perguntas sobre os anos de guerra, respondia com um sorriso melancólico e indefinido.

Corria a estória que no passado ele tinha abatido 6 guerrilheiros num ataque a Cossé.
Falava-se que por isso tinha a cabeça a prémio.

Às nossas perguntas como tinha sido, respondia fazendo uma espécie de mímica, agachava-se apontava a hipotético inimigo e seis vezes premia o gatilho. O seu pouco vocabulário de português, era assim complementado com os gestos, acabando a sua narração batendo levemente na G3, dando assim a entender que tinha sido com aquela mesmo, que tinha cometido o feito que lhe era atribuído.
Depois disso mais uma cuspidela, a conversa morria ali sem mais demoras.

Não sei o que lhe terá acontecido após a independência, se não fugiu, possivelmente foi morto, o que se lamenta, a ser verdade ter a cabeça a prémio.

Juvenal Amado

Tabanca de Galomaro

Vista aérea de Galomaro

Padre Nuno na tabanca de Galomaro

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.
Editadas por CV
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

Vd. último poste da série de 30 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 27 de Agosto de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virginio. Magalhães e restante Tabanca Grande

Era para ser um comentário ao poste 4865 do camarada Carlos Adrião Geraldes que li e reli pois achei muito saborosa.
O Cabo Mqueiro Abel era na verdade aquilo que se pode chamar um desenrascado.

Lembrei-me dos ajuntamentos à volta da minha Berliet, onde os Maqueiros ou Enfermeiros tratavam alguma ferida mais ligeira de algum popular. Era comum aparecerem nas aldeias mais recondidas, mulheres e crianças com sarna que eram tratadas logo no local. Entretanto, nós trocavamos os comprimidos de sal por fruta. Eles ficavam contentes e nós ainda mais.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O que será na verdade a coragem

O André era de compleição robusta, transmontano de gema cedo puxou pelo físico nos campo e possivelmente na construção civil. Se bem me recordo, os baldes, em madeira e chapa de zinco, cheios de massa eram acartados ao ombro dos garotos serventes, que ainda em idade escolar tinham que ajudar os magros rendimentos das famílias. Muitos chegaram às fileiras do Exército só com as 2.ª e 3.ª classes do ensino obrigatório.

O peso dos baldes era hoje muito para a maioria dos adultos e estamos a falar de crianças.

Isto repetia-se por todo o País e não só na terra do André.

Quando chegaram à idade militar, uns foram utilizar essa força, construir as cidades de países já livres de disputas coloniais, que utilizaram os seus meios económicos para se modernizarem e darem bem estar ao seu povo.

De forma indirecta ajudaram a perpetuar com as suas remessas monetárias o regime e a guerra, que os obrigou a procurar sobrevivência por toda essa Europa livre.

Outros tiveram que utilizar a mesma força, incorporando os contingentes que foram sendo despejados em África nos principais teatros de operações.

Mas voltando ao André, quis a sorte que ele fosse escolhido para Maqueiro.

Penso que ele se sentia mais à vontade a usar a espingarda do que a seringa. Gostava da acção, e a provar foi a forma em como no ataque a Galomaro utilizou o morteiro 60 mm pondo a zona de onde o IN atacava a ferro e fogo.

Mas, os maqueiros tinham uma especialidade em que a primeira coisa a fazer era prestar socorro aos feridos, e mesmo debaixo de fogo, tentar ajudar quem deles precisava, esquecendo que também eles eram alvo das balas inimigas.

Era pois uma coragem em que se escolhia os outros primeiro.

Assim, 15 dias antes do ataque a Galomaro, o André esqueceu as possíveis minas e de um salto já estava ao pé do Teixeira que lançava gritos lancinantes de dor e de espanto.

Ninguém lá chegou primeiro que ele, tal era o seu espírito solidário.

Medicou, fez torniquetes e deu esperança ao nosso camarada gravemente ferido. Finalmente as lágrimas correram-lhe pelo rosto em sinal de revolta, quanto fechou aqueles olhos que já não viam.

O André quando regressou também emigrou e foi construir as cidades dos outros, cumpriu assim o destino luso.

Conseguiu o bem-estar, que até aí lhe tinha sido negado. Construiu na sua terra uma maison com garage e terá assim feito planos para que os filhos não passassem o mesmo que ele passou, quando finalmente regressasse.

Que outra maneira poderia ser?

Homem que não aprende com o passado não tem futuro.
Juvenal Amado

Pessoal de Saúde de prevenção no decorrer de uma Operação. Da esq. Fur Graça, Médico, André e Catroga

Tratamento em ambulatório - Cabo Enfermeiro Catroga

Vacinação

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

Furriel Graça com população

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4854: Estórias do Juvenal Amado (21): O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, dia 20 de Agosto

domingo, 23 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4854: Estórias do Juvenal Amado (21): O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, dia 20 de Agosto

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 22 de Agosto de 2009:

Caros Carlos, Luís, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande.

A coisas têm o valor que lhes damos em certa altura das nossas vidas.
A feira de S. Bernardo era aguardada por mim ansiosamente todos os anos. Numa vila pequena sem grandes divertimentos, era esse evento aproveitado para nos divertirmos e gozarmos de alguma liberdade junto do sexo oposto. Os pais fechavam os olhos às voltinhas de carrossel, ou mesmo nos carrinhos de choque a dois.

Enfim coisas que fariam rir às gargalhadas os miúdos e miúdas de hoje, que até nesse ponto não fazem ideia o que a sua liberdade custou a conquistar.

A feira começa a 20 de Agosto e dura uma semana.

Quem estiver interessado, é naturalmente bem-vindo.

Um abraço
Juvenal Amado


O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, 20 Agosto

No posto acabei de render o Pinto, que se deitou de imediato na cama improvisada do mesmo, adormecendo de seguida. Não sei se ele já não estava meio adormecido quando o rendi.

São 2 horas e 15 minutos, olho a mata sombria para além do campo de futebol. O gerador envia aquela luz que dá para ver pouco mais de meio do campo.

O Lourenço é o outro camarada de serviço, render-me-á às 4, somos obrigados a permanecer todos no posto. O lion-brand arde junto a eles para afugentar os mosquitos.

Levantei-me todo encharcado de suor, mas agora tenho frio, saio do posto para desentorpecer as pernas.
Penso na notícia dada pela a rádio e a saudação do locutor de seviço (PIFAS) a todos os combatentes de Alcobaça, espalhados pela Guiné. As suas palavras sobre a alegria a rodos na abertura da feira anual de S. Bernardo, tiveram o efeito de acirrar as saudades.
A guerra era tão longe, só quem lá tinha os seus, se distanciava dos festejos.

“Mais uma corriiiiiiiiiida mais uma viaaaaagem”

“ Esta é para a menina do casaco amaaareelo”

“Tomem os seus lugares e não descer nem subir do carrossel em movimento”

Gritavam os feirantes pelo som distorcido dos altifalantes de corneta.

Os garotos faziam birra para andar em tudo.

O barulho de ensurdecer dos geradores dos carrosséis, pistas de carros, das motas no poço da morte.

As barracas de tiro. “ Oh simpático não vai um tirinho?” As espingardas de pressão de ar com as miras completamente desalinhadas, não se acertava no alvos a dois metros. Mas o que a malta lá ia fazer, era meter-se com as funcionárias de ar duvidoso das ditas, queríamos lá saber dos “tirinhos”

As farturas e os namoricos.

Com os olhos em brasa procurava o olhar de uma em especial não importava que tivesse a família toda a acompanhá-la. Se ela retribuisse o olhar, eu não dormiria nessa noite.

Faço concha com a mão e tapando com o casaco camuflado, acendo um cigarro. Tento espantar o sono.

Por volta das 10 horas tinha sido atacado Cancolim ou outro destacamento na mesma direcção.

Há uns meses Cancolim foi atacado perto da hora de jantar. A Maria Turra tinha dito na rádio do PAIGC que os seus combatentes tinham esperado que a malta acabasse de jogar à bola para depois atacar. Era a acção psicológica deles a actuar.

Os pensamentos baralham-se, não vejo hora de ser rendido pelo Lourenço pira.

Finalmente chamo:

- Lourenço, oh Lourenço está na tua hora. Acorda lá porra.

Deito-me e parece que nem adormeci o Lourenço chama-me, já é dia ainda fosco.

- Oh Amado, não queres ver uma puta de uma perdiz, que está poisada no arame farpado mesmo à minha frente. Só pode estar a gozar comigo -acrescenta.

Caçador inveterado, agarra numa pedra e sem qualquer convicção, atira-a na direcção do pássaro.

Para surpresa dele e minha, acerta no papo da ave que cai para trás. Ficámos incrédulos, não acreditando no que tinha acontecido, a ave aproveitou para meio cambaleante fugir dali para fora.

O Lourenço só dizia:

- E deixei-a fugir e deixei-a fugir f………..

Foi a rir que acabámos a noite de reforço.

Voltando à feira, já lá não vou há mais de dez anos.
Em memória daquela noite, tenho que lá fazer uma visita.

Juvenal Amado

Vinho de palma bem fresco de manhã. O pior era umas horas depois.

A ferrugem antes da partida para o Xime

Juvenal Amado na Parada de Galomaro

Fotos: Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4794: Estórias do Juvenal Amado (20): Um tiro na Parada de Galomaro

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4794: Estórias do Juvenal Amado (20): Um tiro na Parada de Galomaro

1. Mais uma estória do nosso camarada Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, enviada em mensagem de 30 de Julho de 2009.


UM TIRO NA PARADA DE GALOMARO

Tinha sido um dia cansativo.

Coluna para Bambadinca, carregar, descarregar em Cancolim e regresso contra o que era normal a Galomaro no mesmo dia.

Quem fazia segurança eram um Pelotão de uma Companhia independente, que esteve estacionado em Galomaro durante algum tempo. Não recordo no número dessa Companhia, mas sei que o meu conterrâneo Afonso fazia parte dela.

Tínhamos andado na escola primária juntos, mas depois a vida separou-nos para nos voltarmos a encontrar na Guiné.

Vínhamos completamente exaustos cheios de pó e de sede.

Deixei a viatura no parque e na palheta com o Afonso, dirigimo-nos através da Parada para a Cantina

Uma cervejinha sabia di mais.

Íamos conversando e ao mesmo tempo, eu fazia a manobra de desarme da G3 retirando a bala da câmara.

Nisto PUM!!!!!!!

Eu nem sabia donde tinha vindo o tiro. Incrédulo olhava para a minha espingarda, que ainda fumegava.

Tinha retirado a bala da câmara ainda com carregador posto, quando mandei a culatra à frente introduzi outra munição. Está bem de ver.

O tiro foi para o ar mas... dar um tiro daquela forma mesmo nas barbas do Coronel Castro e Lemos, era muito complicado.

Quando olhei para a porta da messe, já lá estava ele a abanar o pingalim.

O oficial de dia era o alferes Veiga. Veio identificar-me de imediato e mandou-me apresentar no dia seguinte.

- Estou lixado e ainda por cima tão perto das minhas férias - que já estavam marcadas para vir à Metrópole.

- Malvada sorte com tanto sítio para dar tiros tinha que ser ali.

Foram horas más, para além da vergonha de ter cometido um erro tão grave.

No dia seguinte lá me apresentei ao alferes Veiga, que me disse que era melhor eu ir falar com o Comandante e pedir desculpa do sucedido, pois a coisa estava bera.

Assim fiz. Barbeei-me e lá fui com o rabo entre as pernas, ter com o homem grande de Galomaro.

Chegado à porta do gabinete perfilei-me, fiz continência e falei com a voz mais segura, que pude arranjar no momento:

- Vossa Excelência, meu Comandante, dá-me licença?

- O que é quer o nosso Cabo?

- Meu Comandante, fui eu que dei o tiro ontem.

A cara tornou-se cinzenta, levantou-se com o pingalim na mão e com gestos ameaçadores veio direito a mim.

Pregou-me a maior descasca de que tenho memória e o pingalim roçava-me sem cessar, perigosamente, as orelhas e o nariz.

Ainda hoje me sinto admirado como não levei com ele, tal era a fúria do nosso Comandante.

Por fim mandou-me embora, não sem antes me dizer que não me pregava uma porrada, pois quase todos os oficiais tinham intercedido por mim.

Levei uns reforços à Benfica, mas quanto às benditas férias estavam salvas.

Juvenal Amado


Ten Cor Castro e Lemos numa coluna

Ten Cor Castro e Lemos, Lopes, Estufa, Sacristão e Alf Veigas

Fotos e legendas: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4770: Estórias do Juvenal Amado (19): O cabrito do nosso Comandante

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4770: Estórias do Juvenal Amado (19): O cabrito do nosso Comandante


1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Julho de 2009:

Caros Carlos, Luís, Briote, Magalhães e restante Tabanca Grande

Cá estou novamente com mais uma recordação.


O cabrito do nosso Comandante, não era dele

O Coronel José Maria Castro e Lemos era um militar muito rígido e exigia muita disciplina.
Proibiu terminantemente que houvesse animais à solta dentro do quartel.

Um dia um homem grande ofereceu-lhe um cabrito que ele mandou prender atrás do meu abrigo. O Aljustrel pôs-se com avarias e mata sem querer o cabrito. Muito enfiado foi direito ao nosso Comandante dizendo-lhe que o cabrito dele andava à solta e que ele sem querer o tinha morto. A resposta do Coronel foi curta: - Se andava à solta não era o meu.

Como era de esperar tinha a alcunha de "pica paradas" graças à sua inseparável bengala.

Ten Cor Castro e Lemos numa coluna

Ten Cor Castro e Lemos, Lopes, Estufa, Sacristão e Alf Veigas

Doutor, Narciso, Alf Farinha, Sardeira, Catroga, Correia e André

Fotos e legendas: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4744: Estórias do Juvenal Amado (18): Romão, o único prejudicado

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4744: Estórias do Juvenal Amado (18): Romão, o único prejudicado

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 25 de Julho de 2009:

Caros Luís, Carlos, Virginio, Magalhães e restante camaradas da Tabanca Grande

Esta é mais uma estória que envolve alguma solidariedade, que se praticava e como se tentava proteger quem achavamos mais limitado fisicamente.

Quanto ao tenente Raposo quero deixar bem claro que era um homem bondoso que nunca aplicou um castigo a ninguém. Quando nos juntamos nos nossos almoços o seu nome é sempre falado com amizade.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O ÚNICO PREJUDICADO FOI O ROMÃO

O Romão pertencia ao Pel Rec, mas era dado assente que ele nunca aguentaria fisicamente o esforço, que lhe seria exigido durante a comissão.
De fraca figura magro, era quase considerado a mascote e todos o ajudavam a superar as dificuldades, que a sua especialidade impunha.

O seu estado físico piorava a olhos vistos, urgia pois arranjar uma solução que o tirasse do mato.
Assim pediu-se ao Furriel Castro, responsável pela cantina dos praças que intercedesse de forma que o Romãozinho passasse para cantineiro acabando assim com as preocupações, que os camaradas dele tinham quando iam para as operações.

Assim foi, o Romão passou a vender cervejas, coca-colas, etc. Esqueceu a G3 bem como as picadas e as caminhadas ao sol abrasador.

Nem sempre facilitava a vida a quem tanto se preocupou com ele é bem verdade, havendo por vezes comentários ácidos em relação à abertura e fecho da respectiva cantina.

Lá foi fazendo a sua vida da forma mais calma que podia, até que um dia o impensável aconteceu. O valor resultante do dia de vendas desapareceu. Não me lembro dos valores em causa, mas era muito dinheiro para o Romão conseguir repor.

É afastado de imediato das funções e substituído por outro soldado do Pel Rec que se fez operar às unhas encravadas e por último ao prepúcio que muito o incomodava segundo ele dizia.

Tudo isto não fez aparecer o patacão, e a solução passou pelo aumento dos produtos que nós consumíamos, até perfazer o valor em falta.
Assim foi cada cerveja mais X, cada coca-cola mais Y, durante bastante tempo à boa lógica dos governos quando impõem impostos.
Lá fomos pagando, mas a coisa tendia a eternizar-se. Os camaradas das outras companhias, quando nos visitavam, queixavam-se e nós também.

Nós condutores constatávamos pelas diversas cantinas da zona Leste que a nossa era de longe a mais cara. Começou o falatório como era de esperar.
Numa bela manhã, na formatura do primeiro almoço onde normalmente duas dúzias de camaradas respondiam pela Companhia toda fazendo ginástica com a vós, de forma a que cada um respondia por vários, o tenente Raposo fez a costumeira pergunta - “alguém tem alguma coisa a dizer”?

Normalmente teria como única resposta entre dentes - “adeus ou vai-te embora”. Mas desta vez foi diferente - ”ó meu tenente porque razão nós continuamos a pagar muito mais caro os produtos da nossa cantina do que nos outros destacamentos

O homem mudou de cor - ”queres ver que levas já uma chapada nas trombas meu bandalho?” “Queres tu dizer que sou eu que fico com o dinheiro para mim?”. “Malvada a hora em que me meti com esta tropa fandanga” - lastimou-se.

Sendo ele oriundo da Guarda Fiscal onde era 1.º Sargento, habituado a lidar com homens de certa idade, convivia mal com a nossa pouca idade e as nossas maluqueiras.
E lá continuou agora já de papel na mão, “dá cá o teu número ó bardamerda”.
O resultado desta cena foi os preços terem baixado aos consumidores.

Muito mais tarde, o dinheiro desaparecido apareceu dentro de uma caixa inexplicavelmente, como inexplicável foi o seu desaparecimento.

E como o nosso povo muito bem diz, “uma mão lava a outra” os produtos da nossa cantina baixaram, para nos ser reposto os meses que pagamos a mais.

Só ao Romão não foi reposto o que lhe tiraram.

Juvenal Amado
25.08.009

Visita do General Bettencourt Rodrigues a Galomaro

Tenente Raposo

Passos, Ivo, Catroga, Setã, Alfredo, Silva, Ferreira, Romão e Viseu

Fotos e legendas: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4509: Estórias do Juvenal Amado (17): Ataque a Campata

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4509: Estórias do Juvenal Amado (17): Ataque a Campata

1. Mensagem de Juvenal Amado (*), ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 8 de Julho de 2009:

Caro Luis, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande

As estórias são motivos de prazer quando delas não resultam lembranças que nos traumatizam.

Ao longo destes meses em que me expus com as minhas estórias, tentei ser o mais próximo daquilo que se passou ao tempo. Um ou outro facto, data ou acontecimento a memória nem sempre fiel, foi e é objecto de dúvida e imprecisão. Mas essas nunca foram relevantes no contexto das mesmas estórias.

Do que relatei efectivamente houve trauma em alguns acontecimentos.
Nenhum de nós passou por eles de forma ligeira.
Neste contexto fico feliz, que não tenha praticado nenhum acto, que me desonrasse como militar e como homem.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


ATAQUE A CAMPATA

O nosso camarada ex-Alferes Dias, traz ao poste 4466 (**) o relato dessa sangrenta noite, com o rigor de quem se habituou durante aqueles anos, a ter que fazer relatórios sobre a operacionalidade das tropas sobre o seu comando.

O Dias foi um oficial operacional responsável pelos os seus soldados, combateu, arriscou a vida possivelmente convencido que esse era o caminho mais certo para não ter baixas.

Era norma operacional, que o trabalho desenvolvido nas patrulhas e nas operações, afastava o IN e reduzia o sangue derramado.

Efectivamente também lá estive nessa noite e depois na reconstrução da aldeia.

Connosco para Galomaro veio um guerrilheiro ferido, que veio a falecer tal era a gravidade dos seus ferimentos.

Juntamente veio um menino gravemente queimado, que ficou a viver no quartel até praticamente ao fim da nossa comissão. O seu sofrimento bem como o cuidado com que foi tratado pelo pessoal médico da CCS, foi por mim aflorado em jeito de comentário numa estória, que relata uma patrulha nocturna.

Quanto ao jovem prisioneiro posteriormente mencionado, foi um episódio, que tenho guardado estes anos todos, porque me chocou a forma como ele foi tratado.

Seria filho de um homem grande de uma aldeia relativamente perto, ou foram buscar logo o pai que apareceu no quartel a exigir uma arma para matá-lo e assim lavar a honra dele e da sua família.

O homem queria estar nas boas graças das autoridades nem que, para isso tivesse que verter o sangue do seu sangue.

Quanto ao filho, não faço ideia nenhuma do que lhe aconteceu, mas eu e mais camaradas, ainda que fugazmente, assistimos a parte do tratamento que ele levou durante o interrogatório.

Mais não assistimos, pois os interrogadores ao se aperceberem de que nós os estávamos a observar, deram-nos violenta ordem para recolhermos ao abrigo.

O interrogatório foi feito na traseira do quarto do Comandante, por conseguinte, virado para a porta do meu abrigo.

Recordo como, na altura, fiquei agoniado ao ver a cara inchada e as canelas, do prisioneiro, a escorrer sangue.

Ainda hoje lamento, mas nada podia fazer, aquela gente estava acima da lei.

Dirão que os fins justificavam os meios.

Um soldado combate, defende-se ou ataca, mas não tortura.

Não estive de acordo na altura e continuo a não estar de acordo agora. Resta-me a consolação de que nenhum militar do 3872 participou nesse acto.

Galomaro > Aquartelamento > No primeiro edifício do lado esquerdo há a parede e no final do passeio estão umas tábuas. Foi nesse local que o interrogatório ocorreu. Na frente, tapados com trepadeiras, está o quarto do comandante e messe de oficiais e sargentos.
Foto do ex-Alf Mil Vasconcelos


Na foto, em cima: Correia, Catroga, Fur Mil Graça, Alf Mil Médico Vieira Coelho e André. Em baixo: Santos. No menino que ficou gravemente queimado, é o que está em pé e nota-se que está todo ligado por baixo da camisa. O maqueiro André foi quem prestou os primeiros socorros ao Teixeira, (15 de Novembro de 1972) quando este caiu na mina a caminho do Saltinho. Mais tarde quando do ataque a Galomaro (1 de Dezembro 1972) fez fogo com o morteiro 60 mm, para o qual não tinha formação especifica. Com esta acção evitou, de certo, que houvesse baixas do nosso lado.
Foto do ex-Alf Mil Médico Vieira Coelho


Um abraço
Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4450: Estórias do Juvenal Amado (16): Borrasca no Pilão

(**) Vd. poste 5 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4466: O Grupo Especial do Marcelino da Mata em Galomaro (Luís Dias)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4450: Estórias do Juvenal Amado (16): Borrasca no Pilão

1. Mensagem de Juvenal Amado (*), ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Maio de 2009:

Caro Luis, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante tabanca

Dirão alguns que a minha posição nesta estória não é de algum modo de um soldado brioso.
Com 10 meses já estava farto de conflito e não sabia que ainda me faltam 17.

Mas voltando ao assunto, eu fui como tantos outros um homem de paz, que teve que ir para a guerra. A minha visão de valentia, nunca se mediu pelo o número de inimigos mortos, mas sim pelos foram evitados de ambos os lados.

Como o José Brás muito bem disse, muitos de nós preferimos o abraço do que o aço e o homem em vez de inimigo.

Gosto deste espaço em que polémicas à parte todos tem o seu lugar, enquanto uns como eu já se sentem em paz, penso que o blogue ainda cumpre o seu desígnio terapêutico, aos que necessitam de ajuda e sem coragem para escrever, se sentem também retrados nas várias estórias.

Podem pelo o menos dizer: - Vês eu não estava a mentir quando falava do que lá passei.

Um abraço
Juvenal Amado


2. Borrasca no Pilão

Sentado do lado da janela, parecia um pardal de telhado sempre ao saltos.

Muito magro, pequeno pouco maior que uma G3, foi durante toda a viagem de regresso à Guiné motivo de animação.

Quando avião se fez à pista e começou a ver o arame farpado a correr veloz, o seu semblante transformou-se ligeiramente.
- Já estamos de regresso ao arame farpado novamente - disse com algum desânimo.

As férias correram rápidas, os dias escaparam-se por entre os dedos, agora no corredor de rumo à saída do 727 pensava no calvário, que ia passar até chegar a Galomaro.

Ainda sinto o cheiro dos lençóis e a frescura daquele Novembro, que a escassas 3 horas deixei para trás.

Cada passada que dava me aproximava da porta, a hospedeira desejava-nos sorte. Tão apreciada durante toda a viagem, o seu sorriso depressa se diluiu nas ondas de calor, que me atingiu quando cheguei às escadas.

A roupa arde. O corpo ainda está à temperatura do ar condicionado.

Vou para os Adidos. Apresentei-me já sabendo que seria escalado para tudo que era serviço. Tenho que sair de Bissau rapidamente.

A mistura de periquitos e veteranos fazia uma manta de retalhos. Os braços e joelhos branquinhos contrastava com os rostos tisnados da malta mais velha.

A noite foi passada em cima do colchão sem lençóis e todo vestido, pois sabia lá quem já tinha dormido naquela cama.

No dia seguinte foi fatal, estou de piquete.

Quem comandava o piquete era um furriel novinho em folha, tão branco e magro, o suor corria-lhe em bica e dava-lhe um aspecto quase transparente.

Ou muito me engano ou se houver chatice, vai ser complicado convencer o furriel de que não deve fazer ondas.

No Pilão, conviviam entre a população, segundo era voz corrente, clandestinos do PAIGC, comandos africanos, fuzileiros e prostitutas, que eram responsáveis pelas visitas dos soldados às enfermarias com maleitas, que por vezes faziam temer o pior em relação ao futuro reprodutor dos mesmos.

Assim estava eu a rogar a todos as santinhos que não houvesse problemas lá para aqueles lados, quando o piquete foi chamado.

Estava visto que as minhas preces não tinham sido ouvidas.

Tinha estalado um fogachal com rebentamentos à mistura bem no meio do bairro.

Olho à minha volta, três ou quatro soldados mais velhos, o resto são acabados de chegar. Um Unimog com o nosso furriel no comando dirige-se para os cavalos de frisa da entrada do bairro. Os clarões estão cada vez mais perto e ouvem-se tiros.

Nós não conhecíamos o bairro, nem tínhamos qualquer preparação para lá intervirmos.

- Meu furriel o melhor é não entrarmos lá, sem que outros piquetes mais conhecedores lá entrem primeiro. Tentavam os velhinhos demover o furriel.

O bom senso ditava que aguardássemos que os piquetes de Bissau interviessem primeiro.

Passaram os piquetes do QG, dos Comandos, PM e não sei mais quantos. A coisa não dava sinal de abrandar, o cheiro a incêndio era intenso. Por fim lá nos fizemos à vida e entramos também.

As cubatas queimadas, feridos e possivelmente mortos deram-nos razão. Não teríamos salvação se fôssemos apanhados entre fogos, nem saberíamos donde nos chovia.

Regressamos aos Adidos, já madrugada tentei dormir, lembrava-me do sorriso da hospedeira, da fresquidão dos lençóis, dos sabores e perfumes de casa.

Os mosquitos atacavam em esquadrilhas, estou demasiado excitado para dormir.

Pensava: - Tenho que arranjar transporte para o Xime numa LDG ou coisa parecida, rapidamente, pois lá perto está a minha segunda casa.

Juvenal Amado

O Geba ao fundo

Piscina de Bafatá

De regresso a Galomaro há que festejar. O Passos, Ivo, Catroga, Setã, Alfredo, Silva, Ferreira, Romão e Viseu
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de1 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4270: Blogpoesia (42): Reflexão - É mais fácil (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74), com data de 21 de Agosto de 2008, com mais uma das suas estórias (*), desta feita, com uma pequena ficção que ilustra a mágoa de quantos, já casados e com filhos, tudo deixaram para combater numa guerra que se travava naquelas longínquas e desconhecidas terras de África.

Caros camaradas Carlos, Virgílio, Luís Graça e restante Tabanca

Cá vai mais uma pequena estória, embora uma ficção, que se repetiu vezes sem conta ao longo dos anos de Guerra.

Como digo na introdução, ela surge da correspondência mantida com o nosso camarada Vasco Joaquim (**).

Ele pertenceu ao BCAÇ 2912 que nós fomos render. Algumas das fotos para além de ilustrarem a estória, servem também de documento histórico, onde são mensionados os nomes dos camaradas que morreram nas Duas Fontes, em 1 de Outubro de 1971.

Deixo ao teu critério as fotos que entenderes usar.

Um abraço a todos os camaradas que já eram casados ou não
Juvenal Amado



2. Introdução

Casado desde os vinte anos, ela com dezoito e após 40 anos de matrimónio, já com cinco filhos, a forma que ele fala do grande sofrimento que foi a separação durante os anos que esteve na Guiné, mais precisamente em Galomaro, (BCAÇ 2912 de 1970 a 1972), é elucidativa do drama que o atingiu com a separação.

Também me levou a recordar uma situação passada com o meu camarada Lourenço Periquito, que também já era casado e tinha um filho quando embarcou para a Guiné.

O Lourenço todos os dias escrevia e recebia carta da mulher. A dada altura essa corrente de escrita quebrou-se, pois o nosso camarada deixou de receber as cartas da esposa. O nosso camarada estranhou, mas lá ficou esperando sem dizer nada a ninguém.

Os dias e as semanas foram passando, o correio não chegava. O desespero levou a umas cervejas a mais, o nosso camarada soltou o seu drama dando largas à sua dor.

Falou-se com o Comandante e a partir daí, logo ele recebeu noticias de casa. Também a esposa estava aflita, pois não sabia como contactar o marido. (Telemóveis vieram muitos anos depois).

O incidente foi motivado pelo carteiro que fazia aquela zona ter ido de férias e o que o substituiu, nunca ter levantado o correio da caixa que ficava no pequeno povoado.

O Lourenço recebeu de uma só vez a correspondência de quase um mês, e era vê-lo devorar as cartas com a felicidade estampada no rosto.

Embora esta estória tenha sido gerada pelo testemunho do nosso camarada Vasco, que confidenciou que tanto ele como a esposa, numeravam os aerogramas para terem a certeza que não perdiam nenhum, é intenção minha dedicá-la a todos os que viveram situações semelhantes.

Os dois casos têm final feliz.

Fotografia de casamento do nosso camarada Vasco Joaquim, mas que podia ser de qualquer um dos muitos militares que deixaram as suas esposas para ir combater.
Foto: © Vasco Joaquim (2008). Direitos reservados.


3. Adeus até ao regresso
Mais uma estória de amor

Olho os teus cabelos espalhados na almofada.

Nunca te disse quanto te amo. Na penumbra, o meu olhar desce pela curva do pescoço, ombros até ao arredondado dos seios. Finalmente adormeceste, após a longa vigília que prolongou o amor feito de desespero e ansiedade, pela partida próxima.

O teu corpo nú, encostado ao meu, tão perto da despedida. Acaricio-te a pele macia, mexes-te ligeiramente sem acordar.

Volto a olhar a curva do teu rosto sereno, de vez em quando atravessado por um leve franzir, como se uma preocupação teimasse em não desaparecer.

Algumas horas nos separaram dos dois anos em que possivelmente nunca nos veremos.

Antevejo a dolorosa despedida, não com um até já ou um até logo, mas sim com um até qualquer dia.

Acordo-te suavemente. Abres os olhos e sorris, mas logo o sorriso é substituído pelo pânico:

- Já está na hora? - Perguntas aflita.

- Sim tenho que me preparar, não posso perder o comboio - respondo.

Tinha sido um acto de loucura termo-nos casado antes de eu ter sido mobilizado. Nem casa tínhamos, por isso o termos ficado em casa dos meus pais, ocupando o meu quarto de solteiro, rodeados dos meus livros e discos.

Depois da minha partida, voltará para casa dos pais dela, onde se sentirá mais apoiada.

São tempos conturbados estes. O nosso horizonte é limitado pelo o fantasma da guerra.

Aquele trocar de olhares no baile, o convite mudo para dançar, fez-me ficar preso à tua juventude e guardá-la para mim, nesse momento único.

Beijámo-nos sem parar. Os lábios sabem a sal.

- Vou-te escrever todos os dias.

Os sacos pesam como chumbo, ou se calhar são os meus braços que os não aguentam. A despedida é mais violenta que eu alguma vez imaginei.

- Não chores. Não quero guardar de ti esta ultima imagem.

- Todos os dias quero receber carta tua e eu todos os dias te respondo. Prometes?

- Prometo - respondo, não conseguindo afastar-me daquele abraço.

Fica à porta, parece mais pequena. Está frio, mas não parece dar por ele.

Terei esta imagem dela no combóio, nas árvores, nos rios, nas núvens e nos momentos de solidão.

Desejarei tê-la comigo ao deitar e ao acordar. A saudade vai-me perseguir cada dia e cada hora até ao intolerável.

O navio já está à espera nos Cais. O Tejo está cinzento e um manto de neblina paira sobre ele.

A cidade dorme.

Não avisei do dia do embarque. Não seria capaz de suportar outra despedida.

Entro para o barco, estou cheio de frio, não tem conta os cigarros que acendi. Olho para o Cais. Há muitos familiares dos meus camaradas. Foram mais corajosos do que eu.

O barco parece estar inclinado, pois todos nos agrupamos do lado do Cais. Ouvem-se as sirenes e aqueles cabos que ainda nos ligavam a terra já estão soltos. Os gritos e os assobios dos meus camaradas enganam a angustia.

Muitos dos pais vieram a Lisboa pela primeira vez. Uma ocasião para ser recordada pela tristeza.

Vejo o teu rosto em todas as jovens que se despedem com lenços a acenar.

Também eu aceno, despeço-me de ti em todas elas.

- Adeus até ao meu regresso meu amor

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) - Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim

(**) - Vd. poste de 9 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3124: O Nosso Livro de Visitas (23): Vasco Joaquim, 1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912 (Juvenal Amado/Carlos Vinhal)

domingo, 10 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74



1. Mais uma estória do camarada Juvenal Amado (1) nos chegou. É também uma homenagem aos meninos de suas mães que deixaram a vida prematuramente.

Cancolim > Abrigo do Morteiro 81


O MORTEIRO NO MEIO DA PARADA

CANCOLIM


Nunca consegui compreender, o porquê da colocação do abrigo do morteiro 81 mm no meio da Parada.

Tal localização obrigava os apontadores e municiadores de Cancolim, a correrem debaixo do fogo inimigo, mais de trinta metros pela parada, sem qualquer protecção.

Esta Companhia não teve sorte em terras da Guiné.

Estava há talvez 15 dias em Cancolim, quando sofreu a primeira flagelação. Oito dias depois sofre outra. E precisamente oito dias depois, sofre um violento ataque de morteiros 82.

Tudo indica que as duas primeiras flagelações foram só para marcar o alvo e assim direccionar o tiro pesado desse dia.

Ia pernoitar em Cancolim como de costume, após coluna de reabastecimento.

Mal conhecia o destacamento, pois só lá tinha ido uma vez e ainda estávamos naquele período de adaptação operacional, enquadrados pelos velhinhos que íamos render.

Conhecia vagamente o Apontador de Morteiro Correia, amigo do meu irmão Ivo. Mas esse pequeno elo foi o suficiente para ser por ele adoptado sempre que ia em coluna, lá.

Estavam a construir umas instalações sanitárias junto à caserna do lado direito, para quem entrava no destacamento. Até aí, as nossas mais prementes necessidades fisiológicas tinham que ser feitas nuns buracos junto ao arame farpado e para tal, tínhamos que avisar a sentinela.

Tinha anoitecido há pouco, estava de conversa com alguns camaradas, junto das valas como era hábito. Naquele destacamento ninguém se recolhia antes das dez horas da noite.

De tempos a tempos ouviam-se tiros e rajadas dadas pelos sentinelas. Aquilo incomodava-me, pois era impensável que tal se fizesse em Galomaro.

Quando se pesca à cana, temos duvidas se o peixe morde se é o mar que faz estremecer a cana, mas quando é peixe mesmo não há duvida nenhuma. Assim é com um ataque. Ao primeiro som não temos duvidas.

O som das saídas de morteiro 82 do IN não deixam lugar para o talvez. Deixámo-nos cair para dentro das valas e abate-se sobre nós um dilúvio de ferro e fogo.

As explosões são seguidas, pois um apontador experiente pode pôr quatro ou cinco granadas no ar. Quando elas começam a cair, o efeito é devastador.

Penso que o nosso organismo tem meios de nos fazer ignorar parte do que se está a passar, pois ao ficarmos surdos, deixamos de ter a total percepção do inferno em que estamos.

Uns disparam as suas armas, outros choram e apelam para Nossa Senhora de Fátima (*), eu lá ia disparando a minha arma, estou aterrorizado.

O nosso morteiro responde ao fogo desde o primeiro momento, alguns camaradas atravessam a correr, em campo aberto, transportando cunhetes de granadas para municiar o morteiro.

Como invejei essa valentia.

Não sei quanto tempo durou, mas sei que foi demais.

Pouco a pouco, a violência do ataque abrandou.

O fumo, o pó e o cheiro, manteve-me muito tempo sem me mexer. Espreitava pelo bordo da vala para ver se descortinava o que se passava.

Havia mortos e feridos, foi a noticia que começou a correr pelas valas.

A madrugada com a sua luz redentora, mostrou-nos a destruição e os estilhaços espalhados por todos o lado.

Cancolim > Depois do ataque, não faltavam embalagens vazias de granadas espalhadas junto ao abrigo do morteiro 81

Estavam três camaradas mortos dentro de uma vala. Uma granada tinha rebentado dentro. Os seus corpos destroçados foram, como possível, depositados nos sanitários em construção.

Foi uma triste inauguração.

Essas obras ficaram muito tempo por concluir em memória dos nossos mortos. Havia feridos, falou-se num dos velhinhos ter ficado cego de um dos olhos e o próprio capitão novo (**), foi ferido ainda que ligeiramente no pescoço por um estilhaço.

Foram os nossos primeiros mortos em combate. A morte em combate nunca é limpa, ao contrário do que até ali tinha visto, nos filmes de cowboys e de guerra made in América.
Não os conhecia em vida e a imagem que guardo deles, é daqueles corpos desfeitos no chão das casas de banho por acabar.

Faz-me lembrar um poema sobre a Guerra, em que se fala no menino de sua mãe (***), também ali estavam estendidos os meninos de suas mães. Como a maioria nós nem barba tinham.

Tombaram assim no campo de batalha os nossos camaradas e é em memória deles esta estória.

José António Paulo - natural de Mirandela
João Amado - natural de Vieira de Leiria
Domingos de E. Santos Moreno - Natural de Macedo de Cavaleiros

(*) Também do lado dos guerrilheiros nos momentos de aflição se chamaria possivelmente por Fátima, neste caso a filha de Maomé.

(**) O capitão ferido veio a desertar logo de seguida, numa viagem que fez à Metrópole. Era um miliciano bastante querido pelos seus soldados e a imagem que tenho dele, é de um homem sensível que não foi talhado para guerreiro. Onde estiver desejo-lhe a melhor sorte.

Não foi culpado de maneira nenhuma pelo o que aconteceu e o que viu foi demais para ele.

Foi substituído mais tarde pelo Capitão Rosa também miliciano.

Este homem ficou famoso entre nós pela sua intervenção na reunião havida em Galomaro com o General Spinola.

O General, no seu discurso aos oficiais disse em dado momento que devíamos à Pátria o sacrifício, até das nossas vidas.

O então Capitão Rosa, dando voz ao que muitos pensavam, respondeu que a nossa Pátria é a que nos dá paz, bem estar e futuro e, aquela que o General referia, não era de modo algum essa.

Não posso jurar que tenham sido rigorosamente estas as palavras mas o fundamento foi o mesmo

(***) O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De balas trespassado
Duas, de lado a lado
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

(Fernando Pessoa)
_________________

Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74


1. Em mensagem de 29 de Julho, recebemos do nosso camarada Juvenal Amado, mais uma das suas habituais estórias (1).

Caros camaradas
Carlos Vinhal, Luís Graça, Virgínio Briote e restante Tabanca

Como já disse ainda estou .

Esta estória é um pouco a história de todos que embarcaram naqueles anos cinzentos.

Tão jovens depressa envelhecemos interiormente.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

2. Pela calada da noite
Por Juvenal Amado

No campo militar de Sta. Margarida, o frio naquele mês de Novembro trespassava-me a ponto de me fardar com botas e tudo, depois deitar-me novamente.
Não foi pois com desgosto que disse adeus a CIME e ao seu comandante o Coronel Maçanita.

Nunca tive dúvida de que seria mobilizado. Em pensamentos antecipados pensava em Moçambique, onde tinha já prestado serviço militar o meu irmão mais velho.
Talvez Angola, onde até tinha família. Mas…

Fui mandado regressar a Abrantes já sabendo que tinha sido mobilizado, não sabia ainda para onde.
Depressa me tiraram as duvidas… Guiné esse nome tão temido.

Quando cheguei a casa com dois sacos verdes, a minha mãe olhou-me no cimo das escadas e perguntou-me num fio de voz:
- Para onde ?

Senti-me tentado em dizer-lhe, que ia para outro sítio qualquer. Não podia esconder-lhe e brinquei com o facto, tentando apagar o pânico que vi nos seus olhos.

- Mãe ainda vou fazer o IAO, depois ainda venho de férias e só depois embarco.

Tentei fazer passar a ideia, de que passaria o Natal e talvez para Fevereiro ou Março eu rumaria às terras da Guiné.
As férias passaram a correr, aliás quanto mais me aproximava da data de regresso a Abrantes, mais desejoso de partir estava. Sou incapaz de estar naquele meio termo.
O meu pai e a minha mãe pediram-me que escrevesse sempre. Despedi-me:
- Até para a semana, pois decerto venho passar o Natal a casa, menti eu.

Entrei na Porta de Armas naquela madrugada escura e cinzenta. O vulto da 4 L verde-escuro foi ficando mais longe, mas sempre um braço se agitava num longo adeus.
Dobrei a esquina da caserna, esperei um pouco e voltei a espreitar. Lá estava a 4 L imóvel, talvez à espera que o tempo voltasse a trás e eu entrasse nela, de regresso a casa.
Penso que eles se aperceberam que o embarque, já estava marcado e que não me voltariam a ver tão cedo.

Foram poucos os dias que tivemos até à data do embarque, mas deu para cimentar algumas amizades que ainda duram.
Quando entrei na caserna ouvi chamar com aquela pronúncia do Norte:
- Condutor, oh condutor, tens aqui lugar, traz as tuas coisas para a nossa beira.

Na verdade nós já nos conhecíamos, pois tínhamos vindo do RI 6 do Porto para Abrantes no mesmo combóio, quando todos acabamos as nossas respectivas especialidades. O Ivo, Ermesinde, Lo…pes, Silva, Félix, Ferreira, Passos, Dias e o Leo, todos do Pelotão de Reconhecimento e Informação.

Assim fui adoptado pelo Pelotão e só mais tarde vim a conhecer os meus camaradas da ferrugem. Ainda ouvi bocas de que eu tinha desprezado o meu Pelotão. Na verdade, acabei por ir parar a outro abrigo, onde se arrumaram os camaradas das mais variadas especialidades, que não tiveram lugar nos abrigos dos seus pelotões.

Mas voltando a Abrantes, todas as noites aquele grupo saía, bebíamos uns copos, só voltando para o quartel quando já estavam a fechar a Porta de Armas de vez.
Invariavelmente de manhã só me levantava após a visita de algum graduado e mesmo assim, quando ele virava costas deitava-me outra vez. Assim passava o capitão, batia na cama com uma varinha e chamava:
- Oh Zé das canas, então, não te levantas?

Estas visitas já faziam parte do nosso dia-a-dia.
Foi assim que uma manhã, o oficial de dia entrou com aquela desenvoltura dos Operações Especiais a gritar:
- Está a levantar e quem não se levantar rapidamente leva uma porrada, que vai parar à Guiné.

Chegou ao pé da minha cama e gritou-me:
- Oh nosso cabo, dê cá já o seu número.

Sonolento e cheio de frio, respondi-lhe que só lho dava se ele o mandasse dourar.

O Alferes Armandinho fingiu que não ouviu. Assim ele não tivesse ouvido a ordem que o levou ao encontro da morte mais os seus homens no dia 17 de Abril de 1972 na emboscada do Quirafo (2).

Mandaram que nós arrumássemos as nossas coisas e despejássemos a caserna até às 22 horas. Para não haver dúvida, passaram revista à e fecharam a porta à chave.
Ali ficamos sentados nos sacos e mais bagagem, até cerca da meia-noite.
As Morris, Berliets e Unimogs começaram a faina de nos acarretar para Estação dos Caminhos de Ferro, no Rossio ao Sul do Tejo.
É tudo feito pela calada da noite.

Metidos em combóio especial, só paramos em Lisboa em Sta. Apolónia ainda é noite. Já lá estão os transportes para nos levar até ao cais de Alcântara. Amanhece, mas é uma luz parda com névoa, que paira sobre o rio Tejo ali ao lado.

Uma cozinha de campanha distribui café com leite e pão para o pequeno almoço.

O Angra do Heroísmo já espera por nós. A cidade acorda lentamente, mas mais um embarque, depois de 10 anos a ver partir barcos carregados de jovens, já não causa qualquer interesse nem curiosidade.

Foto 1 > Lisboa 18 de Dezembro de 1971 > O Angra do Heroísmo espera por nós

Não tinha avisado ninguém da data da partida, mas à última hora deu-me vontade ter alguém a quem dar um abraço, que dissesse aos meus pais e irmãos que eu tinha embarcado bem. Telefonei ao meu tio Armando, que em 15 minutos já estava ao pé de mim. Veio com ele a minha prima. Conversámos, entreguei-lhe uma carta para ele meter nos correios, mas com a condição de não dizer que tinha estado comigo até a mesma chegar ao destino.

Quando os meus pais receberam a carta, já estava com dois dias de mar alto.

Vem a ordem para se começar a embarcar por Companhias, olho em volta o nevoeiro que não deixa ver para além de duzentos metros.
Subo para o navio, fico a olhar para o cais onde se dão os últimos abraços, ainda se contêm as lágrimas.
Já estamos todos a bordo.

O navio solta três vezes o urro das suas sirenes.
Um alarido percorre aquela mancha verde de soldados, já estamos afastados do cais. Um enorme e estrondoso silvo de assobios ecoa pelo cais, olho para esplanada do mesmo e vejo os lenços, a mole humana parece varrida por uma rajada, vão tombando aqui e ali as mães, irmãs e namoradas que tinham até ali resistido ao seu próprio drama.
O nevoeiro foi engolindo Lisboa, ainda se vê ou está gravado nos meus olhos aquela mancha cinzenta do cais com braços acenando.

Foto 2 > Já a bordo do Angra do Heroísmo, a caminho da Guiné

Quando voltar a esse lugar, será de certo num dia mais feliz, mas nunca apagará da minha memória a enorme tristeza da partida.

Juvenal Amado
ex-1º Cabo Condutor
CCS /BCAÇ 3872
______________

Notas de CV

(1) - Vd. último poste da série de 17 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)

(2) - Sobre a tragédia do Quirafo, Vd. postes de:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74



1. No dia 12 de Julho de 2008, recebemos esta mensagem do nosso camarada Juvenal Amado

Caros Carlos, Virgilio e Luis Graça e toda a Tabanca

Esta estória acaba por ser a história de um camarada nosso, mas acima de tudo serve para prestar homenagem a um homem bom, que em dada altura ajudou outro sem esperar qualquer beneficio. Antes pelo o contrário o ter ignorado a questão, podia ter-lhe trazido alguns problemas.

Tenho lido a série dos nossos regressos. Não li todos mas já alguns entre eles os relatos do Carlos e do Virgilio. Gostei muito. Nem eu me lembrava do que senti também quando regressei.
Possivelmente também escreverei sobre isso, mas ainda estou . Ainda não consigo regressar.

Um abraço para todos
Juvenal Amado






Caderneta Militar do Filipe



2. O longo abraço
Tem cuidado, deixa essas conversas para a Metrópole. O africano veio fazer queixa de ti.

Por Juvenal Amado

Naquele momento sentiu desabar sobre ele uma infinidade de sensações. Umas de revolta por ser tão ingénuo, outras de espanto por alguém que sendo também um oprimido, tinha feito queixa dele.

O Alferes Mota era o Comandante do Pelotão das Transmissões e por conseguinte o Oficial Superior do nosso camarada. Estava de Oficial de Dia, tinha recebido a denúncia. Após ter-lhe feito a recomendação, dirigiu-se para messe.

Meio atarantado, o Rádiomontador Filipe dirigiu-se para o seu abrigo cheio de medo e pensando:
– Desta vez não me safo - criticar o regime na nossa situação, pode ser considerado traição.

Tudo se tinha passado no Regala (*), pequena loja de utilidades que também servia uns bitoques com um tempero africano, que era de comer e chorar por mais.

O Filipe, como de costume, tinha algum prazer em iniciar as discussões. Dessa vez não foi diferente e a forma como se estava a ministrar o ensino da língua portuguesa, às crianças da Guiné, era para ele motivo de crítica. O individuo de cor chegou-se à mesa ninguém sabe bem como. Cada um pensou que ele era amigo do outro e ninguém fez reservas. Entrou na conversa sobre a escola e o ensino que estava a ser administrado nas escolas primárias.

O Filipe entusiasmou-se com a conversa e sem se aperceber de inicio, com a retirada estratégica da conversa que os companheiros de mesa fizeram, soltou tudo que pensava e quanto mais os outros se retraíam, mais ele avançava.

Mais alguns mas... da parte do negro (possivelmente professor) o Filipe, subia o nível as criticas ao Estado e à guerra, aliás assunto que já lhe tinha causado alguns dissabores e apertos. (**)

O africano levantou-se e dirigiu-se na direcção da Porta de Armas, que ficava talvez a quinhentos metros.

O Filipe que tinha caído em sí e desconfiado, seguiu até o ver entrar no Quartel.
Ficou com o coração apertado, mal disse o seu feitio de ser pouco cuidadoso com quem falava, pois ele sabia como as opiniões politicas contra o regime eram tratadas.
Mas ele era assim, quando via ou ouvia algo que lhe desagradasse, tomava partido e como era costume, raramente alguém compreendia as suas razões.

Entretanto, algum tempo depois vai para Bolama, em gozo de férias. Naquele tempo cometia-se toda casta de imprudências, desde beber por copos possivelmente mal lavados, comer marisco de proveniência duvidosa, enfim petiscos porque férias são férias.

As férias foram óptimas naquele ambiente paradisíaco e exótico.
Já perto do regresso a Galomaro, adoece e é já doente que chega ao destacamento. Está todo amarelo, é urgentemente evacuado para o Hospital Militar de Bissau. Está com hepatite e corre perigo de vida.

E é lá que está, quando o Alferes Mota chega, também ele doente com hepatite. O Filipe vai vê-lo através da porta envidraçada da enfermaria dos infecto-contagiosos. É numa dessas espreitadelas que vê o enfermeiro junto à cama, com o nosso camarada já morto.

Dois dias após a sua chegada, morre o alferes Mota (***), com os parâmetros das análises mais baixas do que as do Filipe.
A morte passou por ali e fez a sua escolha.

O Filipe esteve internado 32 dias em Bissau, antes de ser evacuado para o Hospital Militar da Estrela em Lisboa, onde esteve 173 dias.

Conhecendo eu o Filipe, o seu romantismo revolucionário, não o deve ter deixado calado por onde passou. Resultado cartas, fotos e objectos, que ao tempo foram considerados suspeitos vá-se lá saber porquê, tudo desapareceu entre Galomaro, Hospital de Bissau e Estrela .

A PIDE também visitou a casa da mãe no Porto, quando ele por sorte estava em Lisboa. A seguir, o 25 Abril veio pôr fim aos delitos de opinião, que as gerações mais novas nem sonham o que era, talvez por nossa culpa.

O Filipe faz um sentido agradecimento à memória do Alferes Mota, por o ter ajudado naquela noite, quando ele regressava do Regala. Eu também lhe agradeço, pois pequenos gestos como o que praticou, ajudaram a anular a suspeita, as escutas e a delação, que eram uma constante nas nossas vidas.

Brancos ou pretos, a PIDE não escolhia cores e o braço era longo.
Obrigado Alferes Mota.

Algumas notas:
(*) - O senhor Regala era um individuo de origem caboverdiana, que para além de proprietário do café, também faziam colunas de reabastecimento connosco. Homem bem falante e lúcido, quanto aos problemas da sua terra. Dizia-se que tinha relações privilegiadas com a guerrilha e por isso, coluna onde ele fosse nunca era atacada. Galomaro também beneficiava dessa protecção, o que veio provar-se ser mentira, uma vez que fomos violentamente atacados.

(**) - Em dada altura que o Filipe, assistiu à saída de camaradas para os postos avançados e patrulha nocturna, desatou a fazer barulho e a protestar contra o facto. O barulho chegou aos ouvidos do Comandante, que mandou averiguar o que se passava. Dessa vez o anjo protector chamou-se Dr. Pereira Coelho, que abraçando-o, disse-lhe ao ouvido que se fingisse bêbado e assim o salvou.
Por vezes O Filipe, era mal compreendido e se não vejamos o episódio das bajudas; Ao fim da tarde, os soldados iam ter com as lavadeiras, que se acercavam do destacamento. Eram momentos em que os soldados, davam por vezes largas a alguma falta de respeito para com as lavadeiras. Alguns por graça e para as ouvir dizer de uma enfiada só, todos os palavrões que conheciam em português e no seu dialecto. Apalpavam-nas e diziam-lhe que não lhes pagavam, por elas lhes terem partido os botões todos, ao lavarem as camisas como hábito, batendo com as ditas em pedras pois sabão, era coisa que não entrava nos seus apetrechos.
Tínhamos chegado a Galomaro, quando o Filipe se insurgiu contra uma dessas cenas, que verdade se diga não eram muito dignificantes, pois algumas bajudas eram muito novas. Resultado foi ele se envolver em briga, com um dos participantes dessa tertúlia, indo parar ao chão com o estalo que recebeu.

(***) - O Alferes Mota era um oficial miliciano, antigo seminarista, bastante culto, muito correcto para com os seus subordinados.
Morreu se não estou em erro no dia 26 de Novembro de 1972 com hepatite e não com paludismo como escrevi na minha estória O Ultimo Natal em Galomaro.

PS: Esta estória resulta da correspondência que tenho mantido com o Filipe há já algum tempo.

Juvenal Amado
09.07.08

Foto 1 > O Filipe com a lavadeira

Foto 2 > O Filipe com o Esofe que se juntou à Resistência

Foto 3 > O Filipe em Galomaro

Foto 4 > O Filipe na esplanada do Regala com dois camaradas do STM e Centro de Operações

Foto 5 > O Filipe no HM 241 de Bissau

Fotos © Juvenal Amado(2008). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2938: Estórias do Juvenal Amado (11): Galomaro, Bambadinca, Cancolim e Gabu (Juvenal Amado)