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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12028: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (8): O Clube de Oficiais

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

8 - O Clube de Oficiais




Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné.
Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão.
Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo.
Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

Com a vinda a essa reunião dos capitães que se encontravam espalhados pelo território, pude conhecer alguns e rever o Espinha de Almeida, do meu tempo da Escola Prática de Artilharia, que se encontrava no Xitole (Bambadinca).

Este capitão miliciano, embora de pequena estatura, era corajoso.
Chamavam-lhe, por ser baixo, Capitão Pitaitas.
Mostrou, no entanto, valor militar, uma vez que nunca deixou de acompanhar os seus soldados em diversas missões, expondo-se ao fogo do inimigo.

Em dada altura sabedor do local, na mata, onde estava estacionado um numeroso grupo de "terroristas" fora do alcance do seu obus, resolveu desmanchá-lo e transportá-lo em peças para um lugar donde fosse possível bombardear a posição inimiga.
Depois de montar devidamente as peças do canhão atingiu com êxito a posição "terrorista" causando-lhe diversas baixas.
Pela sua bravura, o Capitão Espinha de Almeida foi galardoado com a medalha de serviços distintos com palma.

Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre.
Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção.
Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite.
Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia.
Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço.
Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
- Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
- Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
- Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde.
Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha curiosidade.
Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau.
O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
- O Senhor Capitão é miliciano?
- Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
- Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.
Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia

6 - A invasão de Conacry

No dia 23 de Novembro de 1970, Bissau ficou completamente às escuras. Não havia energia eléctrica em parte alguma.
Toda a gente ficou a pensar que o gerador tinha avariado.

Naquelas paragens, dadas as altas temperaturas que por lá se registam durante todo o ano, a energia eléctrica torna-se essencial para a maneira de viver a que os europeus estão habituados.
Sem energia o ar condicionado deixa de se fazer sentir, as ventoinhas deixam de funcionar e os frigoríficos deixam de conservar os alimentos e de refrescar as bebidas…

No dia seguinte a conversa de todos os europeus e porventura de muitos africanos era a falta de energia que se havia sentido durante a noite.

Que teria acontecido?

Começa a espalhar-se, muito em segredo, a notícia de que Bissau ficou às escuras na noite de 23 para 24 de Novembro e iria continuar sem qualquer iluminação nas noites seguintes porque se temia que os aviões MIG da República da Guiné-Conacry atacassem a cidade.
E depois começou a circular a notícia de que essa acção poderia vir a dar-se por retaliação, porquanto Conacry tinha sido atacada pelos portugueses na noite de 22 para 23 desse mesmo Novembro de 1970.
As notícias desse acto de guerra eram porém muito vagas e quando se falava nisso era muito em surdina, quase em segredo.

Resolvi saber o que se passou em concreto e sintonizei o meu rádio na frequência da Rádio Conacry. Comecei a ouvir notícias em francês que me desconcertaram, deixando-me boquiaberto com o que estava a ser divulgado nessa rádio.
E a data altura foi anunciado que o Tenente Januário dos Comandos Africanos, que eu conhecia bem, e que havia sido aprisionado em Conacry, iria relatar tudo quanto se passou.

Gravei o testemunho do Tenente Januário e o seu relato explosivo que reproduzirei mais à frente.
E comecei a tirar conclusões. A pouco e pouco, ao longo do tempo, compus um "puzzle" que julgo não andar longe do que verdadeiramente aconteceu.

A Guiné Conacry e o seu Presidente Sekou Touré, davam um total apoio ao PAIGC de Amílcar Cabral, movimento subversivo que combatia os portugueses.
Em Conacry estava instalado o Quartel-general Central do PAIGC e as suas bases na República da Guiné.
Por outro lado a oposição interna ao Presidente Sekou Touré estava continuamente aumentando e até já havia colaboração de guineenses de Conacry com os Comandos Africanos Portugueses.

Segundo Mário Matos Lemos, talvez tivesse partido dessa oposição a ideia da invasão da Guiné-Conacry.
Com efeito, Gago de Medeiros, no seu livro "Um Açoreano no Mundo", afirma que um representante da Frente de Libertação Nacional (Front National de Liberation) da República da Guiné o procurou em Genebra, em Setembro de 1967, pedindo-lhe que o pusesse em contacto com o Governo Português, o que terá acontecido.
Há quem atribua, contudo, a ideia da invasão ao Comandante Alpoim Calvão, apoiado pelo General Spínola.
Seja como for, a ideia seria invadir Conacry e colocar um Governo na República da Guiné discretamente favorável à política colonial portuguesa.

"A esse governo nada mais se lhe exigiria que a interdição das actividades do PAIGC em território da República da Guiné.
A PIDE e outros serviços secretos da Europa (franceses e alemães) mais a CIA, estabeleceram contactos. Tratava-se de saber se diversos países seriam ou não favoráveis a um golpe de estado que depusesse Sekou Touré.
Spínola avista-se com Marcelo Caetano a quem expõe a ideia, solicitando-lhe o seu acordo.
Ao que parece Caetano não ofereceu grande resistência. pondo, no entanto, o seu governo fora do assunto. O Governo Português não teria conhecimento de nada do que se viesse a passar. Reserva-se, porém, o direito de vetar o governo fantoche que seria imposto à Guiné-Conacry se dele discordasse."(*)


O receio de se poderem verificar nacionalizações por parte do governo de Sekou Touré levaram multinacionais e serviços secretos a concordarem com a invasão.
Por outro lado, o porto de Bissau e as Ilhas de Cabo Verde são considerados pelo Estado-Maior da Nato como bases estratégicas essenciais.

"Iniciam-se, então, os contactos para formação do governo fantoche a cargo da PIDE. São estabelecidas ligações com vários indivíduos dissidentes do regime de Sekou Touré e com refugiados políticos não só na Europa como em alguns países limítrofes da Guiné-Conacry.
Realizam-se várias reuniões na Europa.
Alpoim Cakvão desloca-se à Suíça a fim de participar numa dessas reuniões. A ela compareceu também Jean Marie Doré, primeiro e principal candidato a Presidente após o golpe de estado.
Doré esteve quase a ser aceite para o cargo, no entanto viria a ser posto de lado em virtude da sua conduta moral (...).
É então designado para Presidente o Coronel Diallou (ex-sargento do exército francês) pois oferecia maiores garantias que o anterior.
Escolhido o novo gorverno havia que arranjar os executores do golpe de estado.
Paralelamente às negociações com os políticos, os serviços secretos estabeleceram contactos com mercenários e refugiados da Guiné-Conacry que se encontravam em países fronteiriços.
Duas camadas de refugiados foram recrutadas: os dissidentes por motivos ideológicos e políticos e os que apenas tinham motivos raciais.
Uma vez contactado um número bastante elevado de indivíduos, navios de guerra portugueses foram às águas territoriais de vários países vizinhos, nomeadamente à Gâmbia e Serra Leoa, durante a noite, buscar grupos de indivíduos recrutados pelos contactos locais da PIDE, dispostos a participar no golpe. Uma vez recolhidos pelos navios da Armada Portuguesa foram transportados para a ilha de Soga no arquipélago de Bijagós, onde seriam treinados por um grupo de oficiais portugueses, à frente dos quais estava o Comandante Rebordão de Brito."(*)


Anteriormente, com vários meses de antecedência, haviam sido construídas instalações para albergar este pessoal.
Esta ilha de Soga foi escolhida por se ter considerado ser um lugar bastante discreto onde se podia realizar o treino do pessoal sem dar nas vistas.
Na ilha de Soga vieram juntar-se aos mercenários e dissidentes de Sekou Touré, num total de 200 homens, mais 220 militares do Exército e Marinha Portugueses.

"A invasão de Conacry veio a receber o nome de código de «Operação Mar Verde».
Esta operação foi planeada com mais de um ano de antecedência e para ela contribuiram investimentos estrangeiros.
O ojectivo político da operação era a substituição do regime de Sekou Touré por um regime não favorável ao PAIGC e simultâneamente favorável às multinacionais e aos interesses estrangeiros na Guiné Conacry."
(*)
E favorável aos interesses de Portugal com interdição das actividades do PAIGC. Os objectivos militares da operação eram os seguintes, de acordo com uma entrevista dada ao Diário de Notícias, em 22 de Novembro de 2000, por Alpoim Calvão:

Em primeiro lugar destruir o Quartel-General Central do PAIGC. Não se tratava de eliminar os seus dirigentes, mas aprisioná-los se possível.
Em segundo lugar libertar os prisioneiros portugueses que se encontravam em Conacry.


Em terceiro lugar destruir as vedetas e embarcações do PAIGC e da República da Guiné que estivessem no Porto de Conacry.
O quarto objectivo militar era a neutralização da aviação que se encontrasse no aeroporto.
Finalmente, o quinto e último objectivo da Operação Mar Verde era proporcionar o desembarque em Conacry dos elementos do "Front National de Liberation", opositores de Sekou Touré, que acompanhavam os portugueses na referida operação.


Durante a tarde do dia 20 de Novembro de 1970, o General António de Spínola, acompanhado do Comandante Alpoim Calvão, Capitão Almeida Bruno e Luciano Bastos, na altura Comandante Naval da Guiné, dirige-se à ilha de Soga, onde a bordo de um dos navios faz uma exortação aos Comandos Africanos, com viata à acção que iriam empreender.
Esta exortação, em português, é traduzida para crioulo pelo capitão de raça negra João Bacar Jaló (que eu conheci também).


Após o jantar, no mesmo dia 20, os navios Oriane (barco patrulha) [LFG-Orion], Cassiopeia (barco patrulha) [LFG], Dragão (barco patrulha) [LFG], Bombordo (barcaça de desembarque) [LDG-Bombarda] e Montante (barcaça de desembarque) [LDG] [e ainda a LFG-Hidra] zarpam para o largo de onde tomariam o rumo de Conacry.
A bordo de um dos navios, Alpoim Calvão comandaria todas as operações.
Embarcaram também nesse navio o Tenente Januário, Zacarias Saiegue [Saiegh] e Marcelino da Mata, todos de raça negra.

Noutros navios seguem, além da Companhia de Comandos Africanos (com o Major Leal de Almeida e o Capitão Bacar), um destacamento de fuzileiros especiais também africanos, o governo do Coronel Diallou e os grupos de combate compostos por dissidentes e refugiados do regime de Sekou Touré, bem como uma força de mercenários.
Durante todo o tempo que durou a operação, Alpoim Calvão teria estado em contacto rádio com o General Spínola.

À uma hora e trinta minutos de 22 de Novembro de 1970 Spínola terá enviado para Lisboa uma mensagem rádio dando por iniciada a Operação Mar Verde.
A essa hora desembarcaram em Conacry a Companhia de Comandos Africanos, o Destacamento de Fuzileiros Especiais e o Grupo de dissidentes e mercenários.

"Os 220 militares do Exército Português e da Marinha e os cerca de 200 militares do Front National de libération, chegaram nessa noite a ter o controlo quase completo da capital da República da Guiné.
Destruiram as vedetas rápidas da Marinha Guineense e do PAIGC, assegurando o domínio do mar.
Atingiram a central eléctrica, deixando a cidade às escuras, ganhando maior efeito de surpresa.
Tomaram a prisão «La Montaigne», libertando 26 militares portugueses lá detidos.
Destruiram cinco edifícios do PAIGC, eliminando sentinelas e militares que estavam nas imediações, mas Amílcar Cabral não foi encontrado.
Na ânsia de encontrar o Presidente Sekou Touré e de o eliminar, revistaram o Palácio Presidencial, abandonado pela guarda, aterrorizada com o ataque e tomaram a residência secundária do Presidente, mas Touré não estava em nenhum dos locais.
Ocuparam ainda o Quartel da Guarda Republicana e o Campo Militar Samory, destruindo viaturas e originando centenas de baixas... Penetraram na base militar, mas os caças MIG tinham sido enviados para outro local.
Obtido o quase total domínio em terra, as forças portuguesas e da oposição guineense não conseguiram o domínio do ar"
(**)

Mas houve outros acontecimentos que correram francamente mal.
Uma vez em terra, o Tenente Januário com o seu grupo de 20 homens, que tinha por objectivo a destruição dos MIG, deserta.
Por seu lado, Zacarias Saiegue [Saiegh] e o seu grupo não conseguiram tomar a estação de rádio, de onde devia ser feita uma exortação ao país pelo Coronel Diallou e a proclamação da destituição de Sekou Touré.

"Alpoim Calvão ao tomar conhecimento do falhanço da não tomada da estação de rádio e sabedor que os MIG não estavam no aeroporto, ordena a retirada levando os militares portugueses libertados. O Coronel Diallou, Presidente indigitado para a República da Guiné retira, também, abandonando os seus homens à sua sorte.
Às 9 horas e 15 minutos de 22 de Novembro de 1970 o Presidente Sekou Touré faz na rádio uma comunicação em que afirma que a situação se encontra normalizada e diz estarem ainda à vista os navios do invasor colonialista, o que era factualmente verdade."
(*)

(*) - Jornal Expresso de 3 de Janeiro de 1976
(**) - José Manuel Barroso. Diário de Notícias de 22 de Novembro de 2000.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11963: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (5): Os movimentos subversivos

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11963: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (5): Os movimentos subversivos

1. Quinto episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

5 - Os Movimentos subversivos

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia

De acordo com algumas fontes, Nkrumah (Presidente da Nigéria) e Sekou Touré (Presidente da República da Guiné), pouco tempo depois da independência da Guiné Conacry (Novembro de 1958), teriam tido a ideia de criar uma Federação de Estados Unidos da África Ocidental que englobaria a Libéria, a Serra Leoa, a Gâmbia, a Costa do Marfim, o Gana, a Nigéria e a República da Guiné, alargando-se, se possível, à Guiné-Bissau.
Existia, por isso, anteriormente a 1960, interesse dos chefes políticos dos países vizinhos da Guiné Portuguesa que este território se tornasse independente de Portugal. Em Conacry as emissões de rádio incentivavam, já em 1959, a população da Guiné-Bissau a sublevar-se e a não aceitar mais o domínio dos portugueses. Possivelmente em resultado dessa campanha, deu-se em 3 de Agosto de 1959, o primeiro incidente grave no território com uma greve no Porto de Pijiguiti (Bissau) de que resultaram alguns mortos e feridos.

Depois deste acontecimento e a partir de Março de 1960 as notícias sobre a Guiné Portuguesa proliferaram, revelando existir por detrás dos acontecimentos uma organização subversiva com alguma amplitude.

Em Londres, um indivíduo que mais tarde foi identificado como sendo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, natural da Guiné mas filho de pai cabo-verdiano, distribuiu à imprensa um comunicado da "Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas" que teve alguma divulgação.
O referido Amílcar Cabral aparecia como representante de um agrupamento político que tinha em vista a independência da Guiné e Cabo Verde e que se intitulava "Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde" (PAIGC).

Os dirigentes do PAIGC estavam radicados em Conacry, onde beneficiavam de um bom acolhimento do Governo da República da Guiné e da concessão de todas as facilidades necessárias para a sua actividade subversiva.

Outros movimentos surgiram, de menor dimensão, visando também a independência do território sob administração portuguesa, como foi o caso do Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC) e a União Popular para Libertação da Guiné (UPLG), ambos com sede em Dakar (Senegal).

O Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde acabou mais tarde por ser dissolvido e deu origem à União das Populações da Guiné (UPG). A certa altura ganhou alguma notoriedade o movimento "União dos Naturais da Guiné Portuguesa", com sede também em Dakar, cujo chefe, Benjamim Pinto Bull, era professor de português no Liceu da capital Senegalesa.
Este movimento era reformista mas partidário do diálogo.

Mas o principal movimento subversivo foi, sem dúvida, o PAIGC, que em 1962 apresentou por intermédio de Amílcar Cabral, na Comissão de Curadorias da ONU, uma petição onde, além de pedir a independência da Guiné, declarou que os militantes do PAIGC deveriam ser considerados soldados da ONU pois desempenhavam funções semelhantes às dos "capacetes azuis" que nessa altura se encontravam no Congo.

A partir de 1963 os ataques às forças armadas portuguesas e aos chefes tradicionais que maior dedicação demonstravam a Portugal tornam-se cada vez mais frequentes.
No sul da província, segundo afirmou o Ministro da Defesa Nacional na altura, "grupos numerosos e bem armados, possuidores de certa preparação de guerra subversiva, feita no Norte de África e em países comunistas, penetravam no território nacional numa zona correspondente a 15 por cento da superfície da província".
Segundo o mesmo ministro português, numa entrevista a um jornal de Lisboa, "os grupos provinham e tinham base na República da Guiné". Tendo por apoio um estudo de João Baptista Pereira Neto, no mesmo se refere que "de acordo com numerosos artigos que apareceram na imprensa estrangeira e em especial por algumas entrevistas com Amílcar Cabral, ficou a saber-se que o PAIGC fora fundado em 1956 pelo próprio entrevistado e por Rafael Barbosa, que a paralisação de trabalho verificada em 3 de Agosto de 1959 no Porto de Bissau havia sido decretada por aquele partido e que a passagem da luta política para a acção directa tinha sido decidida durante uma reunião clandestina do partido, realizada em Bissau em 19 de Setembro de 1959".

Na fase inicial o PAIGC seria constituído, de acordo com as palavras de Amílcar Cabral, por pequenos burgueses radicais e membros de organizações operárias e profissionais. Depois de ter mudado radicalmente, a massa de guerrilheiros passou a ser recrutada entre operários e camponeses, na sua maior parte balantas, que eram os que emigravam mais para a República da Guiné e que, devido à sua educação, se tornavam ladrões exímios e que apenas encaram o roubo como desonroso quando o autor é apanhado. Eles conheciam perfeitamente os terrenos pantanosos e rodeados de canais, onde tinham as suas plantações de arroz.

A enquadrar essa massa operária e camponesa estavam principalmente indivíduos jovens que abandonaram a Guiné durante ou após a frequência dos Cursos Liceal ou Técnico, e que depois de prestarem provas durante alguns meses em escolas de guerrilha, eram mandados para os países situados para além da cortina de ferro para aproveitarem das bolsas de estudo postas à disposição do PAIGC para frequência de cursos médios.
Deste modo o PAIGC conseguiu quadros jovens altamente qualificados à escala africana.
Parece que, enquanto a massa era principalmente guineense, os quadros eram essencialmente compostos por jovens cabo-verdianos.

O seu chefe incontestado, Amílcar Cabral, embora nascido em Bafatá era também, como já referi, filho de cabo-verdiano.
Era Engenheiro agrónomo, formado em Lisboa e casado com uma senhora natural da Metrópole, de raça europeia.

De acordo com as pessoas que com ele privavam, tratava-se de um indivíduo de fino trato, vestindo com sobriedade e que falava várias línguas tais como o português, o francês e o inglês.
Estas suas qualidades eram-lhe muito vantajosas nas demoradas viagens que, frequentemente, fazia às capitais de diversos países africanos comunistas e ocidentais.
E devido à sua actividade política e perspicácia, o PAIGC foi ganhando o reconhecimento de muitos países e recebendo auxílio de alguns deles e da O.U.A. (Organização de Unidade Africana).

Segundo Pereira Neto, o PAIGC parece ter sido um movimento firmemente suportado pelos países de leste, em especial pela Rússia e pelos países africanos com especial relevo para a República da Guiné, a Argélia, o Gana, Marrocos e, evidentemente, a O.U.A..
Amílcar Cabral numa viagem ao Norte de África e à Europa Ocidental, em 1965, viagem que teve uma primeira etapa em Argel, afirmou numa conferência de imprensa nesta cidade que: "as forças revolucionárias tinham cerca de 10.000 homens, treinados em Conacry, que recebiam auxílio militar directamente de Sekou Touré, que já dispunham de armas pesadas e que dominavam quase metade (40%) do território da Guiné-Bissau".

Em Abril de 1965, em Londres, pediu à Inglaterra não armas, para que aquele país se não comprometesse, mas abastecimentos, remédios, material escolar e artigos afins e afirmou que poderiam abrir oitenta a cem escolas com três mil alunos.
Não foi todavia em Inglaterra que foi impresso o Novo Livro - 1ª classe, editado pelo Comissão Social e Cultural do PAIGC, mas em Uppsala na Suécia.
Possuo um exemplar desse livro que me foi oferecido por um pára-quedista que, numa das operações militares de que fez parte, ocupou uma escola do PAIGC tendo recolhido diversos documentos dessa escola, incluindo livros.
O livro que possuo era pertença da menina Teixeira e é elaborado totalmente em língua portuguesa.
Transcrevo a seguir a página 24, onde consta o texto intitulado "O Combate".


"O combate"

Fogo! Fogo!
O inimigo foge
Que combate fácil
Em fila, os combatentes voltam à base
Todos os camaradas estão contentes

Vamos copiar: Todos os camaradas estão contentes

Do livro se depreende que Amílcar Cabral e o PAIGC prezavam a língua portuguesa e sabiam que ela seria um óptimo instrumento aglutinador do povo da Guiné e um excelente veículo cultural.
Também no seu apelo aos Portugueses Cabral afirma:
"Os nossos Povos fazem a distinção entre Governo Colonial fascista e o Povo de Portugal. Não lutamos contra o povo português.
Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso, em colaboração com todos os povos do Mundo e muito particularmente com o povo português."

Em Março de 1972 elaborou um documento secreto que distribuiu aos quadros do PAIGC, no qual, segundo o seu pensamento, sintetiza o plano português para destruir o seu partido e vencer a luta armada na Guiné. Nele faz referência à invasão da Guiné-Conacry em 22 de Novembro de 1970, de que darei notícias no próximo capítulo.
No mesmo documento parece prever também a proximidade do seu fim.
Transcrevo na íntegra, seguidamente, o referido documento:

As três fases do plano Português

"O objectivo principal do inimigo é a destruição do nosso Partido, porque em África e no Mundo inteiro o seu prestígio e o prestígio dos seus principais dirigentes estão no seu apogeu.
Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta.
Por isso mesmo, o objectivo real dos portugueses na sua tentativa de invasão da República da Guiné (Conacry), em 22 de Novembro de 1970, era o assassinato do Secretário Geral do Partido e a destruição da base na rectaguarda da revolução constituída pelo regime de Sekou Touré.
Numa palavra, destruir o Partido agindo no seu interior.
O plano inimigo far-se-à em três fases:

Primeira fase

Actualmente, muitos compatriotas abandonaram Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, o General Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras.
A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo muçulmanos aos não muçulmanos, etc.

Segunda fase

1. Criar uma rede clandestina (penetrando, por exemplo, no Partido e nas Forças Armadas).
2. Criar uma direcção paralela, se possível com um ou dois agentes e alguns dirigentes actuais do Partido (de entre os descontentes).
3. Desacreditar o Secretário Geral, para preparar a sua eliminação no quadro do Partido ou, se a necessidade se impuser, pela sua liquidação física.
4. Preparar a nova direcção clandestina para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do PAIGC.
5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.

Terceira fase

a) No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direcção do Partido, fazendo assassinar o seu Secretário Geral.
b) Formar uma nova direcção baseada no racismo e opondo guineenses e cabo-verdianos, utilizando o tribalismo e a religião (muçulmanos contra não muçulmanos).
c) Impedir a luta no interior do País, liquidar os que permanecem fieis à linha do Partido.
d) Entrar em contacto com o Governo Português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um governo fantoche na Guiné-Bissau que seria designado por "Estado da Guiné" e faria parte da Comunidade Portuguesa.
e) Postos importantes estão prometidos pelo General Spínola a todos os que executarem o plano.

Conclusão

O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportando-se como dignos militantes do nosso Partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentaram comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola, liquidados no norte do País."

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11939: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (4): O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11939: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (4): O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde

1. Quarto episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

4 - O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Milº de Artilharia

Na década de 60 e nos primeiros anos de 70 o Governo Português, de acordo com uma lei vigente, considerava o Ultramar como parte integrante da Nação. Este conceito imposto pelo poder central era mal compreendido pelos diversos paí­ses ocidentais nos quais se incluí­am alguns com quem tínhamos tratados de amizade e de cooperação.
Nesses países, onde se praticava a democracia, só se entenderia que o Continente e o Ultramar fossem uma Nação una e indivisível se os seus habitantes, sentindo-se portugueses, o quisessem.
Por outro lado o nosso Governo considerava que Portugal era um paí­s pluricontinental e pluricultural e que era da essência da Nação Portuguesa a missão de civilizar.

Relativamente a estes últimos conceitos o General Spínola, no seu livro "Portugal e o Futuro", esclarece a profunda contradição que encerravam, pois que "civilizar impõe a aceitação do primado de uma cultura o que colide com o conceito de pluriculturalidade."

Defendiam muitos que a defesa do território que os nossos pais nos haviam legado era indiscutí­vel e que a nossa atitude só poderia ser uma: a de o transmitirmos aos nossos filhos na totalidade da sua dimensão.

"A Pátria não se discute, defende-se".

Este imobilismo ideológico-polí­tico com que o Governo Português procurava alicerçar os fundamentos da sua acção em África era cada vez menos aceite pelos paí­ses ocidentais e Portugal encontrava-se em 1970 muito isolado internacionalmente.

Perante a incompreensão das nossas posições pelos nossos parceiros da NATO, empenhava-se o nosso Governo em demonstrar quanto eram importantes as situações estratégicas dos nossos territórios africanos no contexto Atlântico, face à tentativa da URSS em dominar o mundo.

O Governo Português sublinhava, por isso, a possibilidade de os territórios africanos sob nossa administração poderem vir a ser considerados como baluartes de protecção de rotas marítimas fundamentais e bases estratégicas de defesa do Continente Africano, quadro no qual a Guiné Portuguesa necessariamente teria uma função importante.
Nesse aspecto, e na hipótese de ser um dia eventualmente fechado o Canal do Suez, a nossa linha de comunicação constituiria a única possibilidade de apoiar com eficiência a navegação para o Índico e para o Extremo Oriente, ao longo da rota pelo Cabo da Boa Esperança.

Segundo o General Câmara Pina, "as bases portuguesas de África permitiriam estabelecer, conjugadas com as bases do Brasil, uma cobertura eficaz do Atlântico Sul. As bases portuguesas ofereciam grandes facilidades para o cumprimento de missões de vigilância no Atlântico Sul e de protecção à  navegação Europa-África que, em grande parte, passa entre a Guiné e Cabo Verde.
Mas a contribuição portuguesa poderia ser vista, ainda segundo o General Câmara Pina, a outra luz: negar ao adversário (URSS e seus satélites) posições eminentemente favoráveis para o lançamento de acções ofensivas.

E lembrava no seu artigo intitulado "Ideia Geral do Valor Estratégico do Conjunto Guiné-Cabo Verde e da Ilha de S. Tomé", que a instalação pelo inimigo de plataformas de mí­sseis e de aviões de grande raio de acção em alguns dos territórios administrados por Portugal constituiria, sem dúvida, grande perigo para os membros mais poderosos da aliança. "Conjugados estes meios com outros implantados em bases estrangeiras, adequadamente situados, passaria o inimigo (URSS) a dispor de um sistema ofensivo avançado flexível, apto para intervir contra as linhas de comunicação".

No quadro de uma guerra Leste-Oeste era valorizado pelos nossos Chefes Militares o valor estratégico do conjunto de territórios administrados por Portugal podendo:
- o Continente funcionar, conjuntamente com a Espanha, como elo de ligação dos Aliados da América com os Aliados da Europa, além de colaborarem na vigilância das saí­das do Mediterrâneo.
- os Açores e a Madeira constituir sentinelas avançadas;
- e os nossos territórios africanos (em que se incluí­a, evidentemente, a Guiné) formar baluartes de protecção de rotas marí­timas fundamentais e bases estratégicas de defesa do Continente Africano.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11914: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (3): Guiné-Bissau

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11914: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (3): Guiné-Bissau

1. Terceiro episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

3 - Guiné-Bissau

Fernando de Pinho Valente (Magro) 
ex-Cap. Milº de Artilharia 

A palavra Guiné possivelmente estará na origem do nome de um aglomerado situado junto às margens do Alto Niger.
Como era um centro muito frequentado pelas caravanas de mercadores sudaneses e outros, a sua fama chegou até aos países da orla mediterrânica. Aparecia designado por nomes diversos como Ginea, Djenné, e acabou por entre nós cristalizar sob a forma de Guiné.

Embora se começasse por chamar Guiné indistintamente a todo o litoral africano a sul do Bojador, o seu início acaba por ser definido na foz do Senegal e até ao Gàmbia. Mais tarde, prolongou-se até ao actual Golfo da Guiné.

A ex-Guiné Portuguesa fica situada na Costa ocidental africana entre o Cabo Roxo e o Rio Cagete e ocupa uma área de 31.800 Km2, dos quais só 28.000 Km2 estão permanentemente emersos.
Defronte da costa estende-se um cordão litoral e em pleno oceano há um grande número de ilhas e ilhotas - o arquipélago de Bijagós.

"A zona continental é uma região baixa, invadida pela água do mar, que através de largos estuários penetra profundamente para o interior. O interior é constituído por uma série de planaltos e colinas cuja altitude ronda respectivamente os 40 metros e os 100-200 metros, que somente no Boé chega à cota de 300 metros(1)".

Com uma temperatura monótona ao longo do ano (em Bissau a média das temperaturas máximas é de 36,6º e a média das temperaturas mínimas é de 21,7º) as estações são definidas pela diferença de pluviosidade: estação seca de Novembro a Maio e estação das chuvas de Junho a Outubro.

O professor Orlando Ribeiro classificou a Guiné como "uma encruzilhada de civilizações". Em 1960 na pequena área de 28.000 Km2 viviam 519.000 habitantes, repartidos por uma quinzena de povos, dos quais cada um falava a sua língua, construía e agrupava as casas e organizava o espaço à sua volta de maneira diferente.

No interior habitavam Fulas e Mandingas, ambos islamizados.
No litoral distinguiam-se os Balantas que eram principalmente cultivadores de arroz. Além de cultivarem o arroz também se dedicavam à criação de gado.
Os Manjacos contavam-se também entre as populações mais activas e avançadas do litoral da Guiné. Eram excelentes navegadores, percorrendo nas suas pirogas o litoral, pescando ou comercializando.
Mas havia ainda outras raças como os Felupes, os Bijagós, os Papeis, Biafadas, Baiotes, Brames, Cassangas, Bagos, Nalus, Saracolés, Sossos.

A cidade de Bissau é a capital da Guiné, e o seu principal centro urbano. Situa-se entre os estuários dos rios Geba e Mansoa.
A cidade cujo plano de urbanização foi aprovado pelo Diploma legislativo 1416 de 15 de Junho de 1948, apresenta um traçado geométrico, encontrando-se em 1970 dividida por uma ampla avenida central - Avenida da República - e duas laterais: Carvalho Viegas e Cinco de Junho. À entrada da primeira ergue-se o monumento a Nuno Tristão, descobridor da Guiné, encontrando-se no seu percurso alguns modernos edifícios, como repartiçõs públicas e a Sé Catedral.
No seu topo ficava (e fica) uma vasta praça, então designada por Praça do Império, dominada pelo monumento Ao Esforço da Raça, tendo no fundo o imponente edifício do Palácio do Governo.
A parte histórica da cidade é rodeada de um forte muro de pedra e cal com quatro metros de altura - a Amura.

Dispunha (e dispõe) de um porto navegável para navios de longo curso, no canal do Geba, ao fundo de uma enseada que se abre entre a ponte de Bandim e o extremo oriental da Ilha de Bissau. A entrada do Porto faz-se entre o Ilhéu dos Pássaros, onde está instalado um farol, e o Ilhéu do Rei.

Cheguei a Bissau num voo da TAP, cerca das 7 horas da manhã do dia 10 de Abril de 1970 (sexta-feira).

Tinha à minha espera o Engenheiro Lourenço Pinto, na altura chefe dos Serviços de Obras Públicas da Guiné, conterrâneo da Lena (natural de Torre de Moncorvo), casado com uma sua amiga, Etelvina Moritz.

Amavelmente levou-me para casa dele e fez questão que, no primeiro dia, tomasse as refeições e dormisse na sua própria habitação, o que veio a acontecer.

A cidade de Bissau não me impressionou, embora esperasse por pior. Do calor é que me queixei logo que lá cheguei. O clima da Guiné é desgastante. Também o cheiro de Bissau me acolheu desagradavelmente: o seu odor era de terra putrefacta.
A cidade pareceu-me uma cidade de grandeza média, mas mal arrumada e suja.
Verifiquei logo nos primeiros contactos haver muita gente usando o traje dos muçulmanos.

Depois de me apresentar no Quartel-General procurei saber onde se situava o Palácio do Governo e tentei imediatamente marcar uma entrevista com o General Spínola.
Quem me recebeu no Palácio foi o Capitão Almeida Bruno (hoje general). Mostrei-lhe a carta que tinha recebido do Secretário do Governador e pedi-lhe que me conseguisse um contacto com o General o mais rapidamente possível.
Recebeu-me desabridamente, o que me chocou, pois ele afinal, na altura, tinha um posto militar igual ao meu.
Perguntou-me quando tinha chegado. Disse-lhe que havia chegado a Bissau nesse mesmo dia de manhã, num avião da TAP.

- Se pudesse ser recebido amanhã muito lhe agradecia.
- Você está maluco. Vou inscrevê-lo para ser recebido na próxima quarta-feira pelas quatro horas da tarde.

No segundo dia da minha estadia em Bissau instalei-me no Clube de Oficiais do Quartel-General, onde passei a fazer as refeições e me foi dado um quarto para dormir.
Aí pude conviver com o Arquitecto Morgado, Capitão Miliciano como eu, que conhecia bem do Curso de Oficiais Milicianos e do Curso de Promoção a Capitão.
Ele apresentou-me a outros oficiais com quem passei a privar na altura como o então Capitão Mário Tomé (que depois veio a ser dirigente da União Democrática Popular - U.D.P.).

No dia 12 de Abril (dois dias após ter chegado a Bissau) fui convidado pelo Engenheiro Lourenço Pinto para um passeio de automóvel até Nhacra.
Vi, nessa altura, pela primeira vez as "tabancas"(2) indígenas e verifiquei que o atraso dos naturais era muito grande sobre todos os aspectos.
Não falavam o português, a poucos quilómetros de Bissau. Ao escudo (moeda) chamavam "peso". As crianças e as mulheres, com os seios nus, vendiam camarões, ovos, galinhas, limões, carangueijos, pássaros... junto à estrada.

Na quarta-feira seguinte, dia 15 de Abril, fui recebido pelo General Spínola.
Recebeu-me com muita afabilidade e disse-me que não estava de acordo com a nossa (minha e dos meus companheiros oficiais milicianos na disponibilidade) chamada para a guerra.
Disse-me que a minha qualidade de técnico de engenharia iria ser aproveitada e que iria ser integrado numa actividade civil embora como militar.
Que continuasse a aguardar no Quartel-General que em breve teria notícias.

No Clube de Oficiais encontrei o Emílio Guerra, Capitão Miliciano como eu, que comandava a Companhia Operacional de Cabuca.
Ao redor da piscina do Clube de Oficiais eram exibidos filmes num ecrã gigante e lembro-me de aí ter visto "O Comboio Apitou Três Vezes".

A vinte e um de Abril de 1970 fui colocado nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando-Chefe, Amura.
Tratava-se de um serviço destinado às populações civis, onde era planeada a execução de uma obra que visava o agrupamento das populações prevendo-se a construção de casas, escolas, postos sanitários, celeiros, poços, bebedoros, fontanários, cercados para o gado e pequenas capelas ou mesquitas conforme a crença religiosa daqueles que iriam usufruir desses equipamentos.


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Algumas notas sobre Nuno Tristão, descobridor da Guiné

Nuno Tristão foi cavaleiro da casa do Infante D. Henrique.
Em 1441, o Infante confiou-lhe o comando de uma caravela ordenando-lhe que explorasse a costa africana para o sul da Pedra da Galé, limite dos anteriores descobrimentos, encargo de que ele se desobrigou descobrindo o Cabo Branco.
Em nova viagem, em 1443, descobriu uma das ilhas de Arguim e a das Graças.
No ano seguinte realizou terceira viagem de descobrimento, atingindo a região senegalense.
E em 1446 velejou para a costa africana pela última vez vindo a ser morto, com outros companheiros, na Guiné.

Gomes Eanes de Azurara relata-nos na sua «Crónica da Guiné» o desenlace da seguinte maneira:
"(...) que sendo este (Nuno Tristão) nobre cavaleiro em perfeito conhecimento do grande desejo e vontade do nosso virtuoso príncipe (D. Henrique), ...de mandar seus navios à terra dos negros (Guiné) e ainda mais avante (...) fez logo uma caravela, a qual armada, começou a sua viagem, não fazendo alguma detença em alguma parte, senão seguir contra (para) a terra dos Negros.
E passando per o Cabo Verde, foi mais LX léguas, onde achou um rio, em que lhe pareceu que deveria haver algumas povoações, pelo que mandou lançar fora dous pequenos bateis que levava, nos quaes entravam XXII homens, scilicet (a saber) em um dez e no outro doze. E começando assim de seguir pelo rio avante, a maré crecia, com a qual foram assim entrando, seguindo contra umas casas que viram à mão direita. E acercou-se que antes que saissem em terra sairam da outra parte XII barcos, nos quais seriam até LXX ou LXXX Guinéus, todos negros e com arcos nas mãos.
E porque a água crecia, passou-se além um barco de Guinéus e pôs os que levava em terra, donde começaram de os assetar, aos quais iam nos bateis. E os outros que iam nos barcos trigaram-se (apressaram-se) quanto podiam para chegar aos nossos, e tanto que se viam acerca, despendiam aquele malaventurado almazem (munições de setas) todo cheio de peçonha, sobre os corpos dos nossos naturaes.
E assim foram seguindo, até chegarem à caravela, que estava fora do rio, no mar largo; porém todos assetados daquela peçonha, de guisa que antes que entrassem, ficaram quatro mortos nos bateis. E assim feridos como iam, ataram seus pequenos bateis ao bordo do seu navio, começando de o aparelhar para fazerem viagem, vendo o perigoso caso em que estavam; mas não puderam levantar as âncoras, pela multidão de setas de que eram combatidos, pelo que lhes foi forçado de cortarem as amarras, que não lhes ficou alguma.
E assim começaram a fazer vela, deixando porém os bateis porque não os puderam guindar (subir). E assim dos XXII que sairam fora, não escaparam mais que dous, scilicet (a saber) um André Dias e outro Álvaro Costa, ambos escudeiros do Infante (D. Henrique) e naturais de Elvas; e os dezanove morreram, porque aquela peçonha (veneno) era assim artificiosamente composta, que com pequena ferida, somente que aventasse sangue, trazia ao seu derradeiro fim.
Ali foi morto também aquele nobre cavaleiro Nuno Tristão(3) mui desejoso desta vida (...)."


(1) - Raquel Soeiro de Brito
(2) - Povoações africanas formadas por algumas palhotas.
(3) - Ao sul da Guiné-Bissau há um rio chamado Nuno, aquele em que a tradição diz ter morrido Nuno Tristão.

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Nota do editor

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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11892: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (2): Mobilização

1. Segundo episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

2 - A Mobilização

Em Setembro de 1969 sou mobilizado, sendo integrado num Batalhão que estava a ser formado em Chaves com destino à Guiné.
O Comandante de uma das Companhias, Capitão Pardal (do quadro permanente) baixou ao Hospital Militar e eu fui designado para o substituir. Munido das análises e do relatório médico dirigi-me a Chaves, onde cheguei ao fim de um determinado dia.

Na manhã seguinte apresentei-me ao Comandante de Batalhão e referi-lhe o que tinha acontecido comigo, relatando-lhe a cólica renal de que teria sido acometido e mostrando-lhe os documentos que me acompanhavam.

- Já tomou o pequeno almoço? - perguntou-me o Comandante.
- Não, ainda não, respondi-lhe.
- Então venha daí comigo e enquanto o tomamos juntos vamos conversando.

Nessa conversa que tivemos fiz-lhe ver que para o Batalhão que comandava não era aconselhável ter um Comandante de Companhia (um capitão) fisicamente diminuído e que me parecia dever procurar-se, em primeiro lugar, o meu restabelecimento completo antes de iniciar funções.
Concordou comigo e mandou chamar o médico para me observar. Dessa inspecção médica resultou que, nesse mesmo dia, fui mandado para o Hospital Militar do Porto.

Aí apresentei as minhas queixas no que respeitava à parte renal mas também fiz questão em referir que fazia a digestão dos alimentos com dificuldade e tinha permanentemente azia.
Fui por isso sujeito a diversas análises à urina e ao sangue.

Quando os resultados foram conhecidos pelo médico este chamou-me ao seu consultório e fez-me algumas perguntas:
- O Senhor Capitão consome bebidas alcoólicas com frequência?
- Não. Raramente bebo vinho e quando o faço é com muita moderação. Quando muito bebo um copo a certas refeições.
- Nunca teve hepatite?
- Não, que eu saiba não.
- Olhe Senhor Capitão, para África o Senhor não vai, concerteza. Há aqui uma análise que nos dá valores muito altos: quatro cruzes.
- Quatro cruzes? Mas isso é um cemitério. Doutor, o que se passa? Estou a ficar intranquilo.

O médico acabou por me aconselhar calma e decidiu que, durante quinze dias, passaria a fazer uma rigorosa dieta e que, no final dessas duas semanas, voltaria a fazer novas análises.
Com este contratempo, em Chaves não puderam esperar mais por mim e fui substituído no Batalhão que estava para partir para a Guiné.

As novas análises apresentaram somente duas cruzes, o que já não foi considerado grave. Quanto às minhas queixas na região lombar verificou-se que, além de pedras nos rins, eu tinha uma deficiência congénita: uma das vértebras finais da minha coluna vertebral não tinha ossificado completamente, pelo que, possivelmente, era essa anomalia a causadora da incomodidade que sentia quando estava algum tempo na posição de pé. Defeito de fabrico. Nada que fizesse parte da lista de doenças que impedissem o cumprimento do serviço militar. Tive, por isso, alta do Hospital, e apresentei-me na minha unidade de origem: o Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho. Unidade essa que, no caso de Portugal ser atacado, fazia parte da defesa antiaérea da cidade do Porto.

Parada actual do ex-GACA 3 de Espinho

Nunca percebi porque pertencendo eu a uma arma de artilharia antiaéria teria de integrar uma Companhia de Infantaria.
Como já havia sido mobilizado para a Guiné, fiquei, por isso, hipotecado a essa província ultramarina, como acontecia então.

Passei a fazer parte de uma lista de rendição individual. Quando chegasse a minha vez renderia na Guiné um Capitão que, porventura, viesse a ser evacuado por doença ou ferimento. Nessa situação e com base numa disposição vigente na altura, ofereci-me para efectuar uma comissão civil no território da Guiné, solicitando, por isso, que a minha futura mobilização fosse suspensa.

O resultado dessa minha iniciativa foi o seguinte:
"Por despacho de S.Exª o Secretário de Estado do Exército foi indeferido o requerimento em que o Cap. Milº de Artª Fernando de Pinho Valente do G.A.C.A. 3 requer suspensão da mobilização para o C.T.I. (Comando Territorial Independente) da Guiné, até ser despachado o seu oferecimento para o mesmo C.T.I. em cumprimento de comissão civil.
Nos termos do mesmo despacho deverá ser o oficial informado que a sua passagem à comissão civil está a ser considerada."

Perante isto resolvi escrever uma carta pessoal ao General Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné.
Nessa carta referia que, não sendo militar profissional, tinha dúvidas acerca da minha futura actuação como Comandante de uma Companhia Operacional. Não estava em causa a minha colaboração no esforço que estava sendo levado a efeito na Guiné, mas pela formação que tinha e pelas boas provas que já havia prestado como técnico de engenharia, julgava eu que poderia dar muito melhor rendimento no desenvolvimento sócio-económico que sabia estar a verificar-se na Província do que propriamente no campo militar.

Uns dias antes de me chegar a mobilização para substituir o Capitão Milº Quintela que havia sido alvejado com um tiro num braço na região de Serpa Pinto, recebi uma carta do Secretário do General Spínola onde me era dito que o Senhor Governador e Comandante-Chefe tinha tomado em muito boa conta as palavras da minha carta e que, quando chegasse à Província, lhe pedisse audiência que ele me receberia.

Na altura fiquei optimista e lembro-me de dizer à Lena:
- Olha, suponho que a guerra da Guiné está ganha.

Ela queria que eu pedisse uma nova Junta Médica, mas resolvi esperar pela nova mobilização. Mobilização que passados dias chegou.

Procurei lugar num dos táxis da praça de Viseu, que se dirigiam a Lisboa regularmente nessa altura. Acabei por arranjar lugar num deles.
Os meus companheiros de viagem deram-me o lugar da frente.

Despedi-me da Lena e do miúdo que ficaram lavados em lágrimas.
Pus uns óculos escuros e durante alguns quilómetros não falei. As lágrimas rolaram-me ininterruptamente pela cara.

Às 2 horas da manhã desse dia voava na TAP para a Guiné.

(Continua)


in "Memórias da Guiné" de Fernando Magro - Edições Polvo, Ldª - 2005
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 24 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar

1. Iniciamos hoje a publicação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005*:


Memórias da Guiné

1 - A Incorporação na Vida Militar

Fernando de Pinho Valente (Magro)(1)
ex-Cap. Milº de Artilharia

Em Agosto de 1968, uns dias antes de partirmos de férias para o Sul de Espanha, a Lena(2) apareceu com os olhos amarelados.
Como se não encontrasse bem de saúde chamei o médico.
Na opinião deste tratava-se de icterícia, o que obrigava a repouso, a uma dieta e à administração de medicamentos que prescreveu.
Sobre as nossas férias, foi de opinião que devíamos desistir da viagem para a Costa do Sol e em seu lugar procurar umas termas onde pudéssemos usufruir de uma estadia calma e fazer uma cura de águas.
Recomendou-nos as Termas de Monte Real.

Resolvemos seguir os conselhos do médico pelo que nos primeiros dias de Setembro dirigimo-nos para a referida estância termal, acompanhados do nosso filho Fernando Manuel, de 7 anos de idade.

Aí, pela manhã de um determinado dia, encontrei no "buvete" um antigo companheiro meu do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia que teve lugar em 1958 na Escola Prática de Vendas Novas. Fiquei admirado por o ver ali, tanto mais que esse meu antigo companheiro, além de saudável, era muito bem constituído fisicamente.
- Tu por aqui, a águas?! - perguntei-lhe admirado.

Explicou-me ele, então, que estava mobilizado para Angola e que resolveu fazer, antes de partir, um tratamento nas Termas, até porque havia realizado, em Lamego, exercícios militares em que a sua alimentação havia sido à base de rações de combate o que lhe tinha provocado uma indisposição gástrica e intestinal.

- Mas o quê, tu ficaste na tropa?- perguntei.

Que não, que não, respondeu-me o meu amigo. Que era economista, mas que havia sido incorporado obrigatoriamente na vida militar com o posto de tenente e havia sido compelido a frequentar um Curso de Capitães na Escola Prática de Infantaria em Mafra.
Que com o posto de capitão iria dentro de alguns dias fazer a guerra em Angola, comandando uma Companhia de Caçadores com cerca de 150 homens. Que eu também devia ser chamado muito em breve, pois dos duzentos e quarenta cadetes do Curso de Oficiais Milicianos de Artilharia de 1958, estava o Exército incorporando grupos de sessenta de cada vez, para a frequência obrigatória do Curso de Capitães.
Eu não queria acreditar...

A minha mulher, que tinha mantido uma conversação ocasional com a esposa deste meu companheiro das lides militares, apercebeu-se das suas últimas palavras e ficou estupefacta.
Não podia ser. Isso não era verdade.

Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas
Foto: Carlos Vinhal

Eu tinha cumprido a minha obrigação militar como Cadete em Vendas Novas e como Aspirante a Oficial Miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho, tendo regressado à vida civil em Fevereiro de 1960 como Alferes Miliciano. Na disponibilidade, fui promovido a Tenente Miliciano.
Depois disso casei-me e coloquei-me como técnico de engenharia na extinta Junta Autónoma de Estradas, em Viseu.

Em Maio de 1961 nasceu o meu filho Fernando Manuel.
Nesse ano de 1961 deu-se a invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das nossas possessões de Goa, Damão e Diu, na Índia, e teve início a guerra colonial em Angola.
Na altura ainda receei vir a ser mobilizado. Mas passados sete anos já estava completamente fora da minha expectativa tal acontecimento.

Nessa mesma tarde (do dia em que tive conhecimento da possibilidade de vir a ser incorporado no Exército), depois do almoço, segui com a família para Lisboa no meu próprio automóvel.
Procurei saber na Secção de Oficiais do Ministério do Exército o que me estava reservado. E aí foi-me dito que, efectivamente, fazia parte de um próximo Curso de Capitães, em Mafra.
E que, depois de promovido, teria de, obrigatoriamente, servir como militar em África. Que não tinha outra saída a não ser que me oferecesse como civil para uma comissão de serviço em Angola, Guiné ou Moçambique e, dado que era diplomado em engenharia, talvez viesse a ser atendido.

Ficamos, eu e a Lena, desolados, regressando às Termas de Monte Real num estado de espírito deplorável.
E foi ainda nesse estado de espírito que voltamos para Viseu poucos dias depois, terminado o tratamento nas Termas.

Antes de 1961, ano em que, como referi, se iniciaram as guerras em África, a Academia Militar tinha boa frequência.
Terminado o curso complementar dos Liceus candidatavam-se inúmeros jovens ao ingresso na referida Academia, os quais eram submetidos a um rigoroso processo de selecção.
Isto acontecia porque o oficial do exército tinha um estatuto muito especial. Desfrutava de uma posição social estimulante. O seu emprego era automático e vitalício. Geralmente usufruía de almoço gratuito nos Quartéis e tinha assistência de graça na doença para si e para a sua família.
A vida, desde que não houvesse guerra, desenrolava-se tranquilamente. E havia também, principalmente para os jovens, o incentivo das fardas.

Depois que as guerras de África começaram, as candidaturas de acesso à Academia Militar baixaram drasticamente.
E baixaram porque a situação se alterou. Os oficiais do quadro permanente eram constantemente mobilizados. Deixavam o aconchego da família, permanentemente. Em África faziam a guerra e como tal eram colocados em lugares inóspitos. A sua alimentação era assegurada com dificuldade. Muitas vezes tinham de consumir alimentos enlatados, tipo rações de combate. Corriam riscos. Adoeciam. Eram feridos e alguns até mortos.
Por isso muito poucos jovens em 1968 tinham interesse na carreira de Oficial do Exército.

Segundo me informaram, na altura, as candidaturas reduziram-se drasticamente e aqueles que tentavam a admissão à Academia geralmente não escolhiam as armas: cavalaria, infantaria e artilharia. Quase todos pretendiam os serviços.
O enquadramento dos nossos soldados por oficiais a nível de Capitão começou a ser um problema pelo que o Governo teve de recorrer aos milicianos que, como eu, estavam na disponibilidade com o posto de Tenente.

Escola Prática de Infantaria de Mafra

No dia seguinte ao terramoto que todo o Portugal sentiu (28 de Fevereiro de 1969) chegou o aviso de que tinha de me apresentar na Escola Prática de Infantaria em Mafra para frequentar o Curso de Promoção a Capitão.
Embora fosse um acontecimento esperado por mim, o que é certo é que a notícia me trouxe alguma intranquilidade e tive de começar a resolver rapidamente uma série de assuntos ligados à minha actividade pública e privada.
Também tive de me deslocar aos Armazéns Militares do Porto a fim de adquirir o meu próprio fardamento.
Em Mafra, onde permaneci entre Março e Julho de 1969, encontrei diversos companheiros meus do tempo de Vendas Novas.

Procurei, com paciência, executar os exercícios físicos que me eram impostos, alguns dos quais me foram particularmente penosos como correr com um saco de areia às costas e rastejar alguns metros por baixo de arame farpado.
Nessa altura já contava 33 anos de idade e fisicamente tinha limitações até porque tinha engordado alguns quilos.
Em Mafra foram-me ministrados ensinamentos sobre a guerra de guerrilhas, uma guerra desleal e traiçoeira feita de emboscadas e golpes de mão.
Este curso terminou com 4 dias na Serra de Montejunto, onde dormi ao relento, no chão, debaixo de pinheiros e me alimentei a rações de combate.

Um dos exercícios foi o assalto a uma aldeia completamente abandonada no cimo da serra. Esta aldeia foi tomada por soldados que comandávamos. Nela estavam abrigados outros soldados da Escola Prática de Infantaria, fazendo de inimigos, que nos receberam com grandes rebentamentos a que nós, naturalmente, respondemos.
Ainda viemos a Lamego, onde estava instalada uma Companhia de Comandos, para assistirmos a diversos "briefings" sobre a guerra que decorria nas três frentes: na Guiné, em Angola e em Moçambique.
Esses "briefings" foram-nos ministrados por oficiais experientes que já haviam cumprido Comissões nesses teatros de guerra.

Em Agosto estava pronto, no entendimento dos meus instrutores, para comandar uma companhia operacional com cerca de 150 homens e fazer frente à guerrilha que era movida em África. Entrei de licença e fiquei à espera da mobilização.
Mas, possivelmente devido aos exercícios físicos a que já há muito não estava habituado, tive uma enorme cólica renal e urinei sangue. Fiz análises e o tratamento recomendado pelo meu médico particular, mas fiquei a ter queixas de cansaço e mal estar na região lombar sempre que me mantinha por algum tempo na posição de pé.
Esse mal estar já eu o havia sentido antes, mas depois da crise porque passei, muitíssimo dolorosa, acentuou-se. Incomodidade essa que, naturalmente, atribuí ao mau funcionamento dos rins.
Tratei-me, repousei e esperei pela mobilização.

(Continua)



in "Memórias da Guiné" de Fernando Magro - Edições Polvo, Ldª - 2005

1 O nome do autor destas Memórias é Fernando de Pinho Valente. Pertence, no entanto, pelo lado paterno, à família dos Magros, uma família portuguesa muito antiga, pelo que decidiu adoptar o nome de Fernando Magro.

2 Diminutivo de Maria Helena, esposa do autor.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 27 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)