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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22774: O meu sapatinho de Natal (1): Outono, uma refexão de Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732


1. Em mensagem do dia 1 de Dezembro de 2021, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto a que deu o título:

OUTONO

As notas da música caem compassadas com suavidade, sobre o meu cérebro, o meu coração já morreu por desgaste e mau uso. Música pura, sem palavras, que ameniza as adversidades e estimula a imaginação.
A estética, comum a todas as artes, cria pontes de comunicação entre elas, quando escrevo procuro muitas vezes a ajuda da música, essa arte tão universal, e tão ancestral como a linguagem. Os povos primitivos actuais e os que desapareceram dizimados pelos colonizadores fazem ou faziam sons com ritmo e harmonia, com conchas, paus, pedras, canas, outros utensílios simples e com as cordas vocais naturalmente.

O meu neto mais novo, agora com dois anos, desde muito cedo começou a tamborilar em todos os objectos disponíveis e adaptáveis que encontrava para esse efeito e a dançar ao ritmo dos sons que produzia.
Já o meu neto mais velho, quando tinha um ano, a avó deu-lhe um bombo que comprou nas festas da Senhora da Agonia, que teve que se tirar do seu alcance, porque ele não parava de batucar. Quando tinha três ou quatro anos ficava enlevado quando ouvia música clássica.

Nos meus tempos de garoto não havia rádio em minha casa, em toda a aldeia haveria rádios somente em duas casas. Alguns homens e rapazes tocavam gaitas de beiços a que chamavam realejos. Havia outros músicos, só já conheci alguns dado que a maioria era do tempo dos meus avós ou mais velhos. Tocavam guitarra, viola, violão, violinos e por vezes juntavam-se à noite a fazer "rondas" com música e cantigas, pelas ruas da aldeia.
Estive dois anos completos na Guiné, durante a vida militar, e nunca tive a sorte de assistir a um batuque africano, mais autênticos e genuínos embora menos elaborados do que os brasileiros. Buba, onde passei mais tempo, tinha uma população reduzida, vinte ou trinta milícias fulas, (tropas auxiliares), e as respectivas mulheres, nunca ouvi falar lá de qualquer cerimônia tradicional, com música e bailado.

Em Mansabá, para onde fui acabar a comissão, havia uma tabanca grande, de mandingas oingas, mas nada recordo das suas festas ou cerimônias.

Considero os povos africanos, apesar da sua pobreza, os mais felizes da Terra, porque dentro deles parece viver a melodia e o ritmo do Universo. Reparem no brilho do olhar e no gingar dos corpos das mulheres africanas, sendo mulheres mais sintonizadas com a criação e com o movimento e com o som, que o acompanha, dos astros.

Dia de outono, frio, com chuva, triste que se derrama, com neblina próxima, quase sem se mostrar. Tempo sem flores, com folhas multicolores que cobrem as árvores caducas e se vão desprendendo para atapetar o solo, ao ritmo da passagem dos dias da estação.
O tempo mudou ainda ontem era um dia de sol claro e eu sentado na esplanada deserta do Parque da Cidade, a admirar a natureza que me envolvia, que ao despedir-se do Verão, mostrava uma imagem decadente e bela.

Sempre gostei de esplanadas desertas ou não, para companhia uma bebida com espírito e a vista duma paisagem natural, com árvores, com campos, com floresta, com rio, mar por onde a vista se alonga e todo o nosso ser entra em comunhão com todos esses elementos essenciais e primordiais.
Dias curtos e claros de Outono, em que os raios solares mais oblíquos e menos fortes dão uma luminosidade mais calma e repousante a esta quadra, que em Novembro nos avivam as saudades dos nossos mortos, das festas com eles, com os magustos, em tempo frio, a descascar e comer os bilhós quentes (castanhas descascadas) à volta da lareira, nos mata-porcos com a companhia e o calor de toda a família alargada, avós, tios e primos.

Na continuação da quadra, com o frio seco do planalto, a ser combatido pelos toros da lareira, em Dezembro, entre verdades, milagres e mitos, a religião católica trazia-nos o renascimento da vida com o Natal que festejávamos como uma verdade sagrada.

Em Janeiro, a vida continuava com o mesmo ritmo, os mesmos trabalhos, com os mesmos deuses, santos e santas dos céus que nos protegiam de todos os males e que sem festejos nos davam entrada no Novo Ano, como se entrássemos na Eternidade que nos era prometida.

Bom Natal e Bom Ano Novo, a todos os camaradas e amigos!

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Nota do editor

Esta é a primeira colaboração, que se espera de muitas, deste Natal de 2021.
O mote está lançado, venham mais reflexões e histórias relacionadas com os nossos natais, seja os passados na Guiné ou os vividos em família.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21691: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (30): Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf e José Câmara, ex-Fur Mil Inf


1. Mensagem natalícia do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com data de 24 de Dezembro de 2020:

Estrela de Natal

Entre miríades de estrelas,
Brilha no céu uma, no oriente.
Um clarão de esperança
Que ilumina o mundo inteiro. Para sempre.


O cobre de esperança imperecível.
Incendiou-o, à humanidade,
Com o fogo da imortalidade.
Tudo perecerá com o tempo.
Menos a alma.
Sopro de vida.
O Criador a fez à sua imagem.
Um menino nasceu em Belém.
Na noite de Natal.
Veio resgatar o homem da pena aplicada ao Adão e Eva.
Pela sua desobediência à vontade do Criador.
Um mistério por desvendar...


Berlim, 24 de Dezembro de 2020
14h14m
Jlmg


********************

2. Mensagem natalícia do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 25 de Dezembro de 2020:

“Natal é a ternura do passado, o valor do presente e a esperança de um futuro melhor”, assim escreveu alguém.

Convido-vos a meditarem comigo sobre o que foi e é as nossas vidas, nas nossas relações com os outros e com as nossas instituições.
Mais importante que tudo, convido-vos a acreditar firmemente que os nossos melhores dias de vida ainda serão aqueles que estão na nossa frente.


O Menino nasceu no dia 25 de Dezembro de Dezembro, mas a Sua mensagem, a da Natividade, é de todos dias!

Convosco ficam os meus votos de um Feliz Natal e Bons Anos.
Que a saúde seja sempre vossa companheira e daqueles que vos são queridos.

Com amizade e respeito, um abraço amigo do
José Câmara

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21689: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (29): O Natal agridoce de 2020... (E um "In Memoriam" à Isabel Levezinho que acaba de deixar a "Terra da Alegria") (Luís Graça)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21685: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (26): O Natal, a família e os amigos (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 23 de Dezembro de 2020:

Neste tempo de pandemia, com todo o rol de desgraças que têm ocorrido, vamos vivendo acabrunhados com as limitações que as autoridades nos impõem para controlar o vírus importuno e maldito.
Mas chegou o Natal, que segundo os eruditos substituiu há quase dois milénios as Saturnálias, festas dos Romanos a outro Deus e as famílias, os vizinhos e povos inteiros, alegram-se e vivem uma grande festa a um Deus novo, esquecendo um pouco os dias tristes que são o quotidiano de quase todos.

As nossas almas expandem-se em festa e há um sentir colectivo contagiante que a todos nos aproxima. Ficamos mais irmãos e mais comunicativos.

Eu confesso que comecei a sentir mais essa comunhão com todos, esse espírito de festa, a partir do dia, há talvez dez dias, em que recebi pelo correio um postal de Boas Festas remetido pela minha afilhada e sobrinha, lindo e delicado. Na sua feitura e nas palavras que recordavam outros Natais vividos na nossa família alargada.
A Inês, assim se chama ela, é uma jovem linda e original, com trinta e dois anos, quem a conhece não me pode desmentir.

Recebi também, perto dessa data, um postal do meu amigo que tem 82 anos e alguns problemas de saúde, infelizmente. A originalidade do postal dele é que colou numa das páginas, pequenas flores silvestres que apanhou no seu quintal. O Sr. Alberto Neves, assim se chama, foi desportista, foi industrial, amigo de muitos, amigo da borga, que tem um percurso de vida respeitável que lhe dá uma grande estatura social e moral. Sem mais adjetivos, qualifico-o como um HOMEM BOM, dos melhores que tenho conhecido.

Agradeço de todo o coração à minha família pelo gesto da minha afilhada, que no tempo das telecomunicações, por voz e por vídeo, me enviou uma mensagem por postal, à maneira antiga.
Agradeço igualmente ao meu amigo que embora podendo usar o telemóvel, quis surpreender-me com um postal à moda de tempos passados.

Fiquei feliz, tenho uma boa família e tenho bons amigos.

BOM NATAL PARA TODOS!

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21684: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (25): cenas da vida de um vagomestre [João G. Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), hoje a viver em Toronto, Canadá]

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21676: Boas Festas 2020/21 (21): "A Covid/19, a tecnologia e o Natal"; poema de Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 21 de Dezembro de 2020, com um poema alusivo à quadra que atravessamos:


A COVID/19, A TECNOLOGIA E O NATAL

Hoje não passamos as mãos pelos rostos das crianças
nem beijamos os rostos dos que amamos.


A distância é longa parece perto aqui à nossa frente.
A tecnologia a diminuir o longe ideia enganadora.
Nos écrans vemos os peritos de saúde
e o pai natal entra a medo.
Não é o pai natal que conhecíamos.


No presépio José coloca a máscara
e a Senhora amamenta o menino com mil cuidados.
José pede aos reis: - mandai beijos de longe
e deixai os presentes à entrada da estalagem.
A vaca e o burrito lançam calor, mais afastados.


Esquecemos a piedade pelos que morrem
e vamos visitar os tristes encurralados
que desaparecem e poucos de nós se condoem.
São números longínquos, mas tão próximos.

A árvore de natal ilumina, teimosa, os rostos ansiosos
De meninas e meninos:
ah! os presentinhos!
Os mais velhos espreitam de longe, desejosos
De encantadores sorrisinhos.

Hoje não passamos as mãos pelos rostos das crianças
nem beijamos os rostos dos que amamos.
Apenas ouvimos Bach e Chopin.


Paulo Salgado – Bom Natal de 2020 (apesar de tudo)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21674: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (20): A ONGD Afectos com Letras, em nome das crianças, adolescentes e mulheres que apoia na Guiné-Bissau

sábado, 19 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 – P21659: (Ex)citações (380): Mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas, 

Não obstante a realidade atualmente vivida, covid-19, uma pandemia mundial cujo inimigo é invisível, é tempo, tal como o tinha feito no texto anterior, em trazer à estampa as mensagens natalícias que os nossos camaradas endossavam para a Metrópole aquando se aproximavam as épocas de Natal e Ano Novo. 

Na RTP, único canal televisivo e com as imagens emitidas, a preto e branco, a proliferar nesta Pátria lusitana, os familiares e amigos regozijavam-se com a presença no pequeno ecrã dos nossos camaradas. 

E foi precisamente com o objetivo em que jamais esqueceremos uma veracidade que nos fora conhecida em tempos de uma guerra para a qual fomos atirados, que lancei no meu último livro – “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” – o texto que a seguir transcrevo. 

 


Mensagens Natalícias de antigos combatentes 
Realidades de guerra 

O tempo foi, é e será de uma efetiva Paz que a humanidade expressamente muito aprecia e considera. Uns acreditam piamente no solene momento espiritual; outros, guiam-se pelo inatingível “estrada de Santiago” mostrada no infatigável horizonte boreal que os conduzem ao mundo das utopias. 

Prezo a quadra mágica do Natal e do Novo Ano. Considero e respeito todas as opiniões. Recordo, com um inabalável e contemplativo sentimento nostálgico, as mensagens que os soldados fixados então nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - transmitiam aos seus familiares e amigos nestas épocas festivas.  

“Daqui fala o soldado…” um combatente que transmitia à plebe que se “encontrava bem” e lá ficavam os beijos e os abraços para que o povo, carente de sensível saudade, descansasse a sua alma que se inseria num manto salpicado de tristeza. “O meu rapaz está bem”, comentava uma desconhecida mãe no mais recôndito lugar nesta pátria lusitana, mas que, entretanto, se mostrava refeita de uma desmedida saudade pela ausência do caridoso fruto que colocara no mundo. Via-o na televisão e logo o seu ânimo ressuscitava.  

Nesta panóplia de infindáveis mensagens lá surgia um camarada que enviava beijinhos para o seu recém-nascido filho ou filha, mas que por ora não conhecia. Partiu para a guerra com o embrião aconchegado na barriga da sua amorosa companheira.  

As imagens televisivas, onde o cenário de guerra mostrava jovens envergando os seus camuflados e normalmente inseridos numa paisagem onde a vegetação de fundo apontava para os gigantescos planos de uma África no seu melhor, eram escolhidas a dedo, sendo que o repórter de imagem não corria um alegado risco físico que interferisse com o bem-estar pessoal. 

Em Gabu ocorreram reportagens “encaixadas” em tempos de conflito. Todavia, as realidades da guerra eclipsavam-se por esses momentos de lazer. O combatente sentia que o seu dever era transmitir que “estava bem” e tudo se confinava a uma auréola de fértil esperança.   

Da então Nova Lamego, agora Gabu, guardo réstias de memórias dos tempos em que a televisão, a preto e branco, transmitia “Mensagens de Natal e de um Feliz Ano Novo” de camaradas que se entregavam ao elevo de uma fantástica máquina de filmar que lançava depois para o ar imagens de sonho e carregadas de confiança. 

Mas, tudo o que tem princípio tem um fim. Revejo, em lembrança, o período das nossas comissões militares na Guiné, e das “escarpas” que tivemos de ultrapassar, sendo algumas delas rotuladas de extrema dificuldade.  

Uns partiram rumo a solo guineense e chegaram isentos de mazelas; outros, infelizmente, morreram em combate, ou numa outra inusitada situação; mas existem aqueles que revelam danos corporais que um dia levarão para a sua derradeira morada, cuja consequência direta teve como origem uma mina antipessoal, uma bala que lhe perfurou o corpo numa maldita emboscada, ou como efeito uma improvável causa que entrementes lhe causou o desespero.  

E é com estas indesmentíveis realidades de guerra, sempre merecedoras de reparo, que partilho pequenos escritos sobre o conflito na Guiné, onde fomos evidentes protagonistas, uns como “heróis” no momento exato em que o combate acontecera, admitindo, com convicção, que todos foram substancialmente “heróis”, alguns deles vistos depois como “vilões” por força de um regime que libertou soldados entregues à sorte nas antigas províncias ultramarinas.  

Da Guiné, aquela em que todos nós combatemos, ficarão fundamentais retratos de homens que para além das suas mensagens natalícias, guardam nos seus baús pequenas cópias desses registos de guerra. 

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior deste autor:

23 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21570: (Ex)citações (379): Vidas (José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp)

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21648: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (9): Naquele dia 25 de Dezembro de 1973 (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Ref)

1. Mensagem do nosso camarada António Martins de Matos, TGen PilAV Ref (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74) e autor do livro de memórias "Voando sobre um Ninho de Strelas", com data de 13 de Dezembro de 2020, lembrando o Dia de Natal de 1973:


25 DE DEZEMBRO DE 1973

Naquele dia 25 de Dezembro de 1973 a actividade aérea na BA-12 estava reduzida ao mínimo dos mínimos, apenas as missões de Alerta, para evacuações de DO-27 e AL-III e a parelha dos Fiat G-91, para uma eventual saída de apoio-fogo.

A meio dessa manhã meti-me na minha Yamaha 200 e lá fui, estrada fora, do Largo do Liceu Honório Barreto, onde morava, até à Base da Bissalanca. A minha tarefa para essa tarde estava bem definida, ia entrar de Alerta ao Fiat G-91 a partir das 13:00 e até ao pôr do sol.

Um almoço muito ligeiro no Bar dos pilotos, ainda vinha cheio de fatias douradas, sonhos, bolo-rei e muitas outras iguarias, o resultado de uma noite de consoada passada em casa das minhas vizinhas do andar de baixo, as enfermeiras paraquedistas. Até tinham sido amigas, sabendo da minha paixão por automóveis e em especial por Porsches, no meio de muitos sorrisos malandrecos tinham-me oferecido um 911 da Dinky Toys, à escala 1/43.
Porsch 911 S 2.2 1970 - Escala 1:43

Era Dia de Natal, Feriado, a “Paz entre os homens de boa vontade”, mais uma série de frases feitas, talvez, nesse dia, a guerra tivesse uma pausa. A primeira missão aconteceu por volta das 14:00. No sistema sonoro do Grupo a mensagem a chegar: - “Alerta aos Fiats”.

Corrida às Operações para saber mais alguns detalhes. A solicitação era para Gadamael, lá no Sul, junto à fronteira com a Guiné Conacri. Recolha do capacete e das fitas da Martin-Baker, quase tudo o resto ficou esquecido no armário, o anti-g, o mae-west e o respectivo equipamento de sobrevivência. No bolso do fato de voo, o que sempre me acompanhava, uma bússola e um espelho, se me apeasse e em caso de necessidade, podia tentar indicar a minha posição.

Uma corrida até à Linha da Frente, o condutor do Jeep a buzinar, os mecânicos a correrem, a tirarem as tampas que protegiam as aeronaves, uma rápida entrada nos aviões de alerta.

Quinze minutos depois já estávamos a sobrevoar a zona. Tinham sido atacados, dos lados da fronteira, com morteiro 120mm.

De acordo com a descrição dos militares do Aquartelamento, as granadas tinham caído longe do arame mas sempre em aproximação, como se alguém estivesse a tentar regular o tiro. À nossa chegada tinham-se calado.
Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.
© Foto do Cor Art Ref António Carlos Morais da Silva.

Largámos os foguetes algures. Já há algum tempo que não usava as metralhadoras, o seu calibre era inócuo para quem, na floresta, se pudesse abrigar atrás de uma qualquer palmeira. Para além disso, as placas para-fogo junto à saída dos canos estavam completamente rachadas, bem à vista de todos, com umas feias e atabalhoadas soldaduras, quais cicatrizes. Por causa dessas anomalias, um piloto já se tinha ejectado. No momento de disparar as armas o painel das metralhadoras saltara fora.

Tudo calmo, o pessoal do Aquartelamento satisfeito. Regressámos a Bissalanca com a sensação da ajuda ter ficado um tudo ou nada… incompleta.

Depois de aterrado fui à Secção Fotográfica da Base, quase paredes meias com a Esquadra. Toda aquela zona do Sul da Guiné estava devidamente cartografada e fotografada. Com base no que me haviam dito (morteiro de 120mm e ataque do lado da fronteira), analisei as fotos, tentando descobrir todos os locais possíveis para bases de morteiros de 120mm. No meio de toda aquela floresta encontrei quatro clareiras que se ajustavam ao requisito. Informação em reserva, a ser utilizada numa futura missão na área.

O período de alerta quase a terminar, já me estava a ver de regresso à Yamaha e ao Largo do Liceu, o altifalante do Grupo a transmitir um novo aviso: - “Alerta aos Fiat”.

Outra vez Gadamael. Nova corrida, os mecânicos a apontarem-me uma outra vez o 5437, o avião de alerta, uma outra vez abastecido com os tip-tanks e foguetes. Fiz-lhes sinal para uns outros aviões, uma parelha que estava estacionada ali mesmo ao lado, cada avião com duas bombas de 750 libras, ainda nos cavaletes, mas prontas a serem instaladas. Aqueles mecânicos eram super eficientes, em quinze minutos o armamento foi devidamente acoplado aos aviões e a parelha ficou pronta para voo.
Bissau, 1969 - G-91 R4

Outros quinze minutos e já estávamos de novo na zona. Os do Aquartelamento a confirmarem-me que era outra vez o fdp do 120mm. Apontei a duas das clareiras que tinha identificado nas fotos e, num passe meio esticado, larguei uma bomba em cada uma delas. Depois disse ao meu asa para fazer o mesmo às duas outras clareiras, o que ele, capitão periquito, executou na perfeição.

Um parêntesis para os menos familiarizados com assuntos aeronáuticos; na aviação e independentemente de hierarquias, o mais experiente vai à frente.

Continuando, as bombas de 750 libras eram bem potentes. Ainda a recuperar do passe e sentíamo-las a explodir, o avião até estremecia. Umas outras características, eram bem fuseladas e, ao rebentarem, faziam um enorme cogumelo de pó e detritos, talvez uns vinte metros de altura.

Bombardeamento executado. Ao verificarmos a área para ver se havia alguma reacção de Strelas, descobrimos algo de estranho. No meio de todo aquele verde da floresta havia três rebentamentos castanhos de uns quinze a vinte metros de envergadura e um outro, enorme, uma densa fumarada escura que, no mínimo, deveria ter mais de cinquenta metros de altura.
Algo devia ter explodido lá em baixo, o capitão periquito acabara de fazer o seu primeiro “alvo”.

Regressámos. O voo tinha durado apenas uma meia hora. Como Chefe da Parelha lá tive de ir fazer o respectivo relatório.
Poderia ter escrito três Pings e um Pong, ou, mais de acordo com a sequência da ocorrência, Ping, Ping, PONG, Ping. Não iam perceber. Optei pelas palavras habituais, “Gadamael, junto à fronteira, quatro bombas de 750 lbs, resultados desconhecidos”.
A noite a chegar, o período do Alerta terminado, fomos à nossa vida.

Só semanas mais tarde e através de um relatório da PIDE viemos a saber o resultado daquele grande rebentamento. Uma das bombas fizera explodir as munições que o PAIGC tinha escondido na floresta, para, à noite, irem despejar sobre o Aquartelamento. Pelo menos nessa noite os de Gadamael devem ter dormido descansados.

Outros pensamentos positivos, nunca mais chamei “Pira” ao Capitão Pira.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21647: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (8): Lisboa resiste, mas também nós resistiremos: Mil alegrias natalícias para todos vós (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil)

Guiné 61/74 - P21647: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (8): Lisboa resiste, mas também nós resistiremos: Mil alegrias natalícias para todos vós (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Há mil e uma maneiras de irmos ao encontro dos outros. Ocorreu-me ir à vossa procura numa Lisboa feita néon e fantasma, chovera a potes, era um fim de tarde em recolhimento, silêncio e recolhimento favoreceram este quinhão de recordações que vos ofereço como minha lembrança de Natal, e estava sempre presente nesta viagem a minha lembrança do Natal em Missirá, naquele ano de 1968, parecia que ia tudo faltar para a festa dos meus camaradas e daqueles civis guineenses a viver todas as fadigas da precariedade em permanência e da guerrilha omnipresente.
E chegaram as lembranças dos outros, que nos encheram de alegria, trouxeram calor e paz que eu espero que encontreis nestas iluminações e nos meus votos sinceros de paz, saúde e bonomia.

Abraço do
Mário


Lisboa resiste, mas também nós resistiremos:
Mil alegrias natalícias para todos vós


Mário Beja Santos

6 de dezembro, choveu copiosamente de manhã e no princípio da tarde, depois amainou, aproxima-se o lusco-fusco, está na hora de pôr o meu projeto em andamento, procurar iluminações (em sentido figurado, também) para enviar votos de Boas Festas para quem guarde lembrança, recordar os meus vivos e os meus mortos, passar a ponte baloiçante entre o pretérito, o presente e o almejado futuro. O poeta Manuel Alegre num dos seus livros épicos disse que quando nós desembarcarmos no Rossio é sinal de grandes mudanças, falava do combate à tirania, eu estou no Largo de Camões, onde outrora havia barracas e enxovias, depois urbanizou-se e pôs-se no centro o vate imortal, puseram-lhe crepes no Ultimatum, o Partido Republicano emergia de uma afronta. Aqui decorreu o final de uma das obras-primas de Eça de Queirós, por aqui andarilhei todos os dias, quando trabalhei na Rua do Século, e aproveitava as horas do almoço para bisbilhotar cantos e recantos de inexcedível beleza: subir e descer a Rua da Emenda, percorrer as Chagas, a Rua da Misericórdia, bisbilhotar os alfarrabistas da Rua do Alecrim ou da Calçada do Combro, o resto, em termos de paisagem, estava por minha conta, deram-me o folgado gabinete outrora ocupado por Maria Lamas, era só abrir a janela e tinha o Tejo quase até à foz. Lembranças felizes, evocações felizes, votos felizes para o que a roda da fortuna nos reserva.

Paro diante deste palacete, com o Chiado à frente amistoso, a chispar malícia, foi hotel, consulado, residência de altos representantes, passou a companhia de seguros, tem por vezes belas exposições de artes de uma galeria do rés-do-chão. Ali ao lado, onde é a chiquérrima e sofisticada Hermès, havia a galeria do Diário de Notícias, e quase em frente um quiosque gerido pela Nani e o Vítor Consciência, ali comprei desenhos do Stuart, Amarelhe e Manuel Ribeiro de Pavia, a preços convidativos, um dia o quiosque desapareceu, encontrei a Nani na Feira da Ladra a vender os despojos do quiosque e choramingona, o Vítor finara-se depois de grande sofrimento. E ali perto houve um dos principais cinemas da minha adolescência, o Chiado Terrasse, tinha muitos filmes de capa e espada mas também por ali passavam obras-primas de Hitchcock, John Houston ou John Ford, enfim, reminiscências de todo este espaço que bati a pé, ao longo da minha provecta idade, o mesmo é dizer que vos desejo longa vida, e com muitos aspetos auspiciosos que Deus tem dado à minha.
Por aqui passa a veia cava do Chiado, de baixo para cima e de cima para baixo. Há a Havanesa, a Paris em Lisboa, a Casa David, a Sá da Costa, a Bertrand, as ourivesarias Aliança e Eloy, tudo transformado, embora os espaços possam guardar lembranças da vida febril do passado. Já me postei diante da Basílica dos Mártires, orações telegramáticas para antepassados e vivos, paro agora diante daquele prédio que tem florista à porta e onde no quarto andar funcionou a última tertúlia do Chiado, a Mandíbula de Aço, obra e graça do meu querido amigo Filipe de Sousa, que tinha negócios de fazendas ali mesmo em frente, a Casa Souza, uma atmosfera de arte onde se comia um belo cozido à portuguesa ou uma chispalhada à transmontana, sempre em boa companhia. As lembranças não param e até deu para me especar em frente à Pastelaria Marques, outrora casa de luxo, quando o Ruy Cinatti visitou em casa para conhecer a minha filha Joana, dizendo de chofre que as crianças à nascença são todas iguais, trazia doçarias da Marques e uma linda peça de prata lavrada indiana para a recém-nascida, que continua a estimar tão terna oferta. Do lado esquerdo de quem desce havia a Casa José Alexandre, e logo me ocorre que um ministro me chamou ao gabinete a pedir auxílio, a meio da tarde viria um conceituado embaixador, queria tratá-lo com algum salamaleque, descobrira, atónito, que havia para ali uns copos embaciados e encardidos, eu que tivesse a amabilidade de ir comprar coisa mais digna, em copos de água e cálices de Porto. Lá fui à Casa José Alexandre, fui bem-sucedido. Anos depois, ao mudar de poiso da Praça do Comércio fui para a Avenida da República, ao retirar dossiês que me acompanhariam na viagem dei com copos lascados daquele conjunto adquirido, tinha estoicamente resistido um, desforrei-me, trouxe-o comigo, já chegava de tanto vandalismo e menosprezo por coisa pública. E vamos adiante, há mais luz que nos espera.
A Rua Nova do Almada traz-me à lembrança uma bela exposição que se pôde visitar no Museu Nacional de Arte Antiga que tinha por centro um quadro sobre a Rua Nova dos Mercadores, quando Lisboa tinha fumos de império, especiarias e uma boa percentagem de escravos africanos. Mas também me recordo de uma loja muito concorrida, a Casa Batalha, e do outro lado a Valentim de Carvalho, onde comprei um bom lote de discos de vinil que ficaram em cinzas na Guiné. Arrepio-me sempre quando passo pelo antigo Tribunal da Boa Hora, as vezes que ali fui testemunha para coisa nenhuma, recebia convocatórias para as onze da manhã, e depois vinha o meirinho anunciar que a audiência não teria lugar, receberíamos nova convocatória. E desço para a Rua do Ouro, está bem luminescente o Santander Totta, que conheci como Totta e Açores, quando fui oficial pagador da Agência Militar e vinha buscar em caixas de couro milhões de contos ao Banco de Portugal via às portas deste banco bandos de especuladores a vender ações de lucros prometedores, houve muita gente gulosa que investiu as suas economias neste papel que se veio a demonstrar valer coisa nenhuma, era puro capitalismo de ficção. E daqui vou até à Praça do Município, recordo José Relvas eufórico há 110 anos, como nunca esqueci as suas memórias que me avisaram que existe um oceano entre o sonho e a realidade.
É verdade, fui funcionário público no Terreiro do Paço, subi as escadas do Ministério da Agricultura e num andar superior funcionava o Ministério do Comércio Interno, eu dirigia as relações públicas, para o caso ralações, estamos a falar do tempo em que a inflação tinha dois dígitos, em que os abastecimentos motivavam altas questiúnculas entre partidos e até me lembro de no dia 25 de novembro de 1975 os preclaros membros do governo desapareceram e fiquei com o atendimento telefónico por minha conta, aí para o fim da manhã recebi uma chamada desesperada do Presidente da Câmara do Barreiro a suplicar uma atitude pública para apaziguamento das populações, havia um assalto aos supermercados e mercearias, dizia ele que corria o rumor de que caminhávamos para a guerra civil, agradeci a informação e redigi por minha conta e risco um comunicado que a agência oficial fez divulgar pelos meios de comunicação. Choveu bem todo o dia, já se disse atrás, vou aproveitar os tapetes líquidos para refletir imagens, o Arco da Rua Augusta está bem iluminado, ao contrário do Senhor. D. José que parece vogar num mar de trevas. Ocorreram-me essas imagens, fazem parte deste meu propósito de vos desejar mil alegrias natalícias, festejamos assim juntos o que a pandemia impede, a árvore de Natal parece irradiar calor, é um afago para os olhos, a Lisboa Pombalina está deserta, mas este cone de luz endereça-nos para a paz na terra aos homens de boa vontade.
Que simbólica encontro nestas iluminações da Rua do Ouro? Pois bem, a estrela de Belém, a esperança em melhores tempos, que não nos falta saúde, a curiosidade, o gosto de presentear o outro, a mão estendida para entreajuda. E olhando este céu estrelado, vem-me à mente uns versos de Ruy Cinatti que ainda hoje são um dos meus compassos da vida:

Paz comigo próprio. Paz
que não me contente. Paz
armada ou pacífica, mas paz
que não me iluda. Paz
mítica ou revelada. Paz
que me contagie ou paz
entre mim e os outros. Paz
que me não compare. Paz
ativa, humilde. Paz
que me encha as mãos
e não conspurque. Paz
vocativa: semente, fruto. Paz
na alma. Paz
de Deus que me enamora
só de Deus enamorado.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21643: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (7): É Natal, é Natal, apesar dos confinamentos (António Marreiros, natural de Sagres, a viver há 48 anos no Canadá, ex-alf mil, CCaç 3544 (Buruntuma, 1972) e CCAÇ 3 (Bigene e Guidage, 1972/74), membro n.º 822 da Tabanca Grande

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux está enternecida com o seu primeiro Natal português, desabafa com um amigo de longa data, há perto de 30 anos que percorrem os países da Comunidade Europeia como intérpretes, sente-se radiante pelo acolhimento do seu adorado, a família acolheu-a de braços abertos, já passou o Natal e há reuniões já previstas com os filhos, voltarão todos a estar juntos no que eles chamam o Ano Bom. E nessa intimidade familiar entrou uma confissão de um Natal vivido em Missirá, o mais inesquecível dos Natais, a mais iluminada das festas, pela congregação das recordações de origem, pelos alimentos que traçam união entre os portugueses, e por se ter oferecido um tanto de alegria àquele povo que apreciou canja de galinha, que até meteu hortelã, imagine-se, cabrito assado bem passado pelo alho, houve que lamentar não se ter posto um pouco de vinho, não faltou louro e boa pimenta, arroz-doce preparado com leite enlatado, e algumas iguarias que sobraram da Consoada, onde houve devaneios com boa pinga.
Annette está feliz, sente-se em casa ao lado do seu adorado, mas regressa dentro de dias à rotina profissional, e tem os filhos à espera, precisam do seu afeto e da sua ajuda pecuniária. Sofre com a partida, mas tem que ser, há sempre que ganhar balanço para superar este novelo da ausência, e num horizonte que mete talvez dez anos. Serão os dois capaz de viver assim? E como ela agora sofre, já que abandonou o estatuto de mulher só... E vem agora um período dolorosissimo das agruras trazidas pela guerra.
Vamos contá-las.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Carta de Annette Cantinaux para Julien Beuys, de profissão intérprete, natural do Luxemburgo, seu amigo desde o início da carreira profissional de ambos, há perto de 30 anos, datada de Lisboa, 28 de dezembro:

Très cher Julien,
Espero que tenhas tido um Natal cheio de alegrias na companhia da Yvonne, filhos e noras. Aqui me tens a dar-te algumas notícias do meu primeiro Natal português. O Paulo dá uma enorme importância ao jantar e à Consoada, o jantar é típico, imagina que comem bacalhau cozido, batatas e couves, primeiro uma canja de galinha, e depois do prato principal aparecem os doces, alguns deles muito próximos da nossa confeitaria natalícia. Janta-se e o convívio prolonga-se até à meia-noite, recomeça a festa, sabes muito bem que celebramos de outra maneira. Vieram os filhos, foram adoráveis comigo, senti que todos estavam a fazer o possível para haver aproximação, o Paulo insistia que ninguém saía da mesa, era ele que servia, tinha a felicidade estampada no rosto.
Findo o jantar, houve arranjos na mesa, e viemos para a sala, aqui refastelados pude falar de mim, do meu trabalho, da minha itinerância. E foi numa amena troca de explicações sobre o Natal belga que o Paulo procurou justificar aqueles doces que são próprios das festividades natalícias portuguesas, eu já o tinha questionado sobre as broas de milho, confeito que desconhecia. Ele explicou que conhecera na infância dois tipos de broas, a de milho e a castelar, a primeira era muito procurada pelas pessoas de menores recursos, o milho era então abundante no campesinato, viver da agricultura e das coisas da terra era muito comum, na sua juventude metade da população vivia da agricultura, comia-se muito pão de milho, como igualmente o chamado pão de mistura, campeava a pobreza.

Broas de milho no Natal de Missirá, 1968
Coscorões no Natal de Missirá, 1968
Filhoses, também compareceram no Natal de Missirá, 1968

E já não me recordo como e porquê o Paulo começou a falar com viva emoção do Natal de 1968, ele estava na guerra, vivia a maior parte do tempo numa localidade chamada Missirá, parece que é um nome muito comum nos países muçulmanos, teria sido em Missirá, lá para as Arábias, que nasceu Fátima, a filha do Profeta. Aliás, não nessa noite, mas numa outra ocasião, o Paulo falou nos principais topónimos guineenses, falou de Madina e Medina, e de designações muito comuns onde vivem as etnias islamizadas.Sem nenhuma hesitação, falando desse Natal diante de todos nós, ele declarou que se tratara de um acontecimento intenso, era o seu Natal inesquecível. E contou-nos que em meados de novembro lhe ocorrera escrever para a família e amigos pedindo-lhes para enviar algumas vitualhas, coisas que não pesassem muito, o correio era dispendioso, e referiu as broas, os coscorões, as filhoses e outros doces cujo nome não me recordo, até camaradas que tinham ido passar férias e que obrigatoriamente regressavam à Guiné até 15 de dezembro receberam a incumbência de trazer esses doces.
Houve Consoada, houve bacalhau com batatas, o luxo de vinho tinto engarrafado, a festa decorreu numa instalação hermeticamente fechada, para evitar que, na eventualidade de haver um ataque da guerrilha, a luz os denunciasse. Mas tão importante como a Consoada foi a organização do almoço de Natal para toda a população de Missirá e para os militares, evidentemente. Juntou-se todo o dinheiro disponível, compraram-se cabritos que foram assados no forno de Missirá, com batatas, chamou-se o padeiro e os dois cozinheiros para se fazer uma sopa, uma canja de galinha, encontrou-se as massinhas, havia pão frito, um dos militares lembrou que a canja lá na sua terra tinha cubos de batata, e pediu-se para Lisboa uma porção de hortelã, chegou felizmente a tempo e deu cheirinho ao caldo, feito em dois grandes panelões, foi sopa muito apreciada, houve o cuidado de desfazer os ovos da galinha, a carne toda muito esfiapada, um caldo com gostosos olhos de azeite.

O cabrito acho que estava uma delícia, era indispensável uma grande tachada de arroz, alguém aventou que devia ir ao forno, foi mais trabalho para o padeiro, tudo se comeu, e até houve arroz-doce para a miudagem e para os homens e mulheres de cabelo branco, que o Paulo disse serem as mulheres e os homens grandes.

Outro momento muito importante nesse Natal, e eu senti que nessa narrativa se lhe embargava a voz, o Paulo pediu ao chefe religioso para irem à mesquita rezar a Deus para haver paz nos homens de boa vontade, sugestão que foi imediatamente aceite, a comunidade acolheu-o na mesquita, depois abraçaram-se, o régulo ter-lhe-ia dito então que o considerava membro da família. Aliás, quando em novembro do ano seguinte ele se despediu do povo de Missirá e foi para outro local combater, o régulo disse publicamente que ele era um Soncó e como Soncó competia-lhe nunca esquecer a família, vivesse ele onde vivesse Deus lhe daria a graça de o saber que também pertencia ao Cuor e àquela família.

Bacari Soncó, meu irmão, já régulo do Cuor
A nova Mesquita de Missirá

Ouvimos toda esta exposição em silêncio, havia algo de irreal, todos aqueles episódios pareciam arrancados a uma imaginação fértil, distantes da nossa cultura.
Alguém fez a sugestão de se ligar a televisão, e tempos depois voltámos para a mesa, o Paulo fez chocolate e chá para acompanhar aquelas iguarias, alguém trouxera bolos um tanto parecido com os nossos, com frutas cristalizadas e frutos secos, deram-lhe o nome de bolo-rei e a um outro sem as frutas cristalizadas chamaram-lhe bolo-rainha. A família partiu de madrugada, uma série de prendas ficaram depositadas à volta de um pinheirinho, havia para ali um presépio com toscas figuras de barro, o Paulo prometeu que o almoço estaria pronto aí pelas duas da tarde, como aconteceu.

Sinto-me tão feliz na companhia deste homem, aproveitei esta pausa para te escrever, como sabes iremos trabalhar em Bruxelas no dia 5 de janeiro, creio que a 6 tu partes para Dusseldórfia e eu para Lille, para mim é mais simples, posso sair de casa pelas 7 da manhã, cerca de hora e meia depois estarei no local onde irá decorrer uma conferência.
Feliz mas melancólica, tudo tem corrido da melhor maneira na nossa relação, o Paulo reitera constantemente que não sente obstáculos em vivermos como vivemos à distância, mas acontece que a vida que eu levo em Bruxelas, mesmo com a felicidade de me dar bem com os meus filhos, faz-me sentir muito só, eu já me resignara ao estatuto de mulher só. Tu conheces muito bem a nossa estimada colega, a Nelly Alter, que habita perto de Namur, e que se ocupa muito bem no seu estatuto de mulher só, faz parte de organizações de passeios pedestres, não perde uma exposição, vai aos concertos, viaja, e confessa que já lhe parece impossível admitir pôr alguém lá em casa, ela tem uma idade próxima da nossa, considera inaceitável ter que fazer concessões para viver a dois, sente-se bem assim. Talvez eu tivesse um sentimento parecido com o da Nelly, já me considerava estar pronta para ter umas amizades, saídas em grupo, visitar amigos, etc. E de repente apareceu-me um senhor numa conferência, pediu-me para conversar com ele, tinha a ideia de escrever um romance em que o tema central passaria pela experiência da guerra que ele viveu, encontrara no estrangeiro alguém com quem mantinha uma intensa relação e ele então ia descrevendo cronologicamente toda essa vivência da guerra, e enquanto tudo isto se passava surgiu, como um rasto de luz, a descoberta do amor. E imagina tu, Julien, que quando ele me visitou e descobrimos que havia qualquer coisa de especial na atração recíproca, ele me assegurou que já tinha um título para o livro, como tu sabes moro na Rua do Eclipse, acho que foi fulminante a escolha para o título da obra, porquê não sei, mas que a nossa vida entrou numa nova constelação, não tenho dúvida alguma, mesmo com esta dor que é estar semanas e semanas sem nos vermos, sem nos tocarmos, amar o Paulo foi descobrir que no acaso podemos encontrar, com absoluta naturalidade, o fim da escuridão ou da ilusão de que viver só depende da aceitação.

Peço desculpa pelo atabalhoado desta carta, mete comida de Natal, falei-te de Lisboa e da Guiné, tu és o meu porto seguro para desabafar, dentro de dias o Paulo leva-me ao aeroporto, sei que tudo vai continuar, tenho esperança que um dia será diferente, há que aprender a mitigar a distância e também por isso conto com a tua amizade.
Até breve, em Bruxelas, Annette, a tua amiga do coração.
Missirá flagelada em 22 de dezembro de 1966, imagem enviada por Henrique Matos para o nosso blogue. Vemos o alferes Marchand, então comandante do destacamento
A caminho de uma operação, com uma inalterável boa disposição
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21537: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20669: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (3): Um Presépio de cartolina

Olossato – Um Presépio em cartolina que com “uma improvisada lamparina acesa, até ao fim do Dia de Reis”, fez a diferença naqueles dias de Natal no Olossato.


Mais uma crónica do nosso camarada Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70):


MEMÓRIAS AO ACASO

03 - UM PRESÉPIO DE CARTOLINA

As licenças no período Natalício estavam completamente vedadas aos militares deslocados nos teatros de guerra.

No mato, tomavam-se precauções redobradas para os dias de maior significado Cristão, e festejava-se um arremedo de Natal com rancho melhorado, que de forma alguma colmatava a nostalgia da família, dos amigos e das diversas gastronomias regionais, evocadas tanto por ausência, como por contraste.

No Natal de "68", na única e incipiente loja existente no Olossato, e depois nos comércios de Bissorã, onde a oferta melhorava substancialmente, procuramos, sem resultado, um Presépio.

Aprazado um telefonema nos correios de Bissorã (havia que pedir a chamada com aviso e marcar hora de contacto), solicitei a minha Mãe, do "stock" da nossa loja em Vila Real, o envio em envelope comercial de um Presépio de cartolina, que depois de armado, tinha a particularidade de ficar com o aspecto tridimensional que foto documenta.

Bissorã – No centro, e ao fundo da foto, o edifício dos Correios em Bissorã, de onde o ex-Alf. Mil. Miguel Rocha telefonou à Mãe, a D. Mariazinha, pedindo que lhe enviasse para o Olossato um Presépio em cartolina.

Nas costas do Presépio em cartolina, a Mãe do ex-Alf. Mil. Miguel Rocha escreveu esta mensagem. “Natal de 1968. Que a Paz que reina neste Presépio caia sobre a Guiné”. 

Apesar da humildade artística, este singelo presépio fez a diferença na atípica envolvente tropical, impondo-se como fio condutor dos nossos pensamentos, recordações e emoções daquela quadra festiva, quiçá para nós, a mais marcante, vivida longe dos nossos, num ambiente hostil e de avassaladora saudade.

Uma improvisada lamparina, acesa até ao fim do Dia de Reis, completava o arranjo numa pequena mesa da messe de oficiais.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20646: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (2): Hoje, exactamente 51 anos depois!

domingo, 29 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20510: Estórias do Juvenal Amado (63): Galomaro, 1972 - Outros Natais

1. Em mensagem de hoje, 29 de Dezembro de 2019, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta passada no Natal de 1972.


OUTROS NATAIS

O Natal é uma época que traz ao de cima o que há melhor de nós e em que temos a sensibilidade mais à flor da pele.
É ponto assente.

Somos assaltados por recordações de Natais passados, diferentes, saborosos tendo em conta, que éramos mais jovens, onde muitos dos nossos entes queridos participavam e hoje são só recordação e saudade.

O consumismo e as televisões emboscadas espreitam para dentro das nossas compras divulgando o que compramos e o que vamos comer e por vezes onde o vamos comer.
As tragédias dos outros e para as quais não haverá nunca remédio, são sempre bem assunto para se escarrapachar se bem, que daí nada resulte na mudança da vida dessas pessoas para além dessa noite.

Para mim é um exercício marcado pela extrema falta de respeito para com os visados, que estão sós nessa noite da família. As razões que levaram à rua estas pessoas por vezes de extratos sociais bem diferentes, não são facilmente catalogados, embora nesta época se olhe para eles de forma diferente e haverá quem nunca olha para eles senão nesta altura. Mas fazer alguma coisa por eles também serve de expiação, conforta-nos, dá-nos uma visão de dever cumprido, quando afinal as nossas escolhas no tipo de sociedade cada vez mais desumanizada e materialista onde duvidamos cada vez mais das intenções dos outros, provocam essa mesma exclusão.
Diz-se que fazer algo pelo nosso vizinho ajuda a mudar o Mundo, pelos resultados é o mesmo que acreditar, que uma borboleta bate as asas na Ásia e provoca uma tempestade no Continente Americano.

Celebramos o nascimento de um menino pobre, perseguido e também refugiado, que os pais procuraram segurança para ele noutro país. No fundo é o que procuram os refugiados de todo o Mundo e, é doloroso defendermos esses valores e aplicarmos outros, condenando milhares de seres a vidas miseráveis à separação e à morte. Os meninos daquela terra, bem como de outras terras, continuam a ser perseguidos e mortos, perante a indiferença dos poderes vigentes, pese as grandes intenções nas palavras comovedoras dos discursos de ocasião.

As razão das migrações são profundas, talvez não seja o local indicado aqui para se aflorar o tema, se bem que ninguém é dono da razão absoluta e seria frutífero que cada um pensasse no assunto longe dos comentários facebookianos.

Após este intróito passo a contar uma história com 47 anos e da qual só tomei conhecimento neste ultimo dia de Natal.

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Estávamos Galomaro em 1972, tinha sido um ano ruim para o nosso Batalhão com mortos no Saltinho e Cancolim, e a CCS do 3872 também não tinha escapado, pois em Novembro tivemos um morto numa mina, passado uma semana outro por doença e mais uma semana um ataque ao arame felizmente sem consequências graves para nós.

Era segundo Natal à porta longe das nossas famílias e ainda não sabíamos que lá passaríamos outro.
O Furriel Sapador Fernandes estava de regresso das suas férias e de que se havia de ter lembrado em boa hora? Já que não tinha levado muita roupa e também não precisava de trazer pensou:
- E seu levasse alguma coisa de diferente para a malta?
Se assim o pensou melhor o fez e dirigindo-se a uma mercearia fina que havia em Mangualde, resolveu comprar frutas cristalizadas, pinhões, amêndoas, avelãs etc, ingredientes com os quais se confecciona o bolo-rei tão apreciado e tão ligado às nossas tradições natalícias.

Falou com o nosso Furriel Enfermeiro Graça, que estava ligado familiarmente ao ramo da panificação, que lhe deu algumas indicações e conselhos de como se fazia o afamado bolo.

E assim, no dia combinado com o padeiro Léo, que não faço ideia como é que foi ocupar esse posto uma vez que era carteiro na vida civil e na tropa pertencia ao Pel Rec. Sem desprimor para nenhum padeiro ele era excelente a confeccionar uns pães individuais, que para além de serem bem saborosos, nas sandes vendidas na cantina, acompanhavam as rações de combate e evitavam o desperdício, que acontecia com o pão grande que a malta do miolo fazia bolas para atirar uns aos outros.

O Léo disse que dava bem para mais de uma dúzia de bolos-reis o que encheu de satisfação o Fernandes.
Às escondidas pela noite dentro, o Furriel Sapador, que nada percebia de fazer pão, acabou como pasteleiro a confeccionar bolo-rei, que como se bem se sabe não é para todos.

E que bolo maravilhoso.
Sabia a tudo que tínhamos cá deixado, lembrava o perfume das nossas casas, transportava-nos para uma realidade bem diferente. Tudo mercê da inspiração de quem pensou nos cento e muitos homens naquele pontinho do Mundo, quando resolveu trocar outras coisas da maleta da TAP por aquela ideia solidária, que faz de nós camaradas mais que irmãos, como tão bem descreve o escritor António Lobo Antunes.

A surpresa foi geral, a felicidade estampada nos nossos rostos deve ter sido a melhor prenda que aquele jovem furriel, que também escondia uma apuradíssima sensibilidade, acusado de ser tão exigente com os seus soldados recebeu na vida.

Como eu, penso que a grande maioria não soube até ontem e se de facto se temos sabido naquela hora como bem diz o nosso camarada Luciano (ex-TRMS), o tínhamos atirado ao ar e carregado em ombros.

O nosso comandante também não escapou à satisfação geral e desconfiando da fartura, mandou chamar o Fernandes para saber como raio tinha sido aquilo feito? Ele contou-lhe e perguntou-lhe se tinha gostado. O rosto do Coronel José Maria de Castro e Lemos alargou-se num grande sorriso (coisa rara nele) disse que tinha sido a melhor prenda de Natal da sua vida.

Nunca mais me esqueci, mas só agora sei a verdadeira história e não resisto a contar o segredo daquela noite mágica em que aconteceu o milagre de bolo-rei na ceia de Natal em Galomaro, na zona Leste da Guiné, o que prova que o Natal não é só quando um homem quer, mas especialmente como o quer, e a prova disso foi o Fernandes fazer a diferença.

Um abraço

PS: - Pedi a devida autorização ao Fernandes, que para além de excelente fotografo é caçador inveterado e continua a exercer a profissão de topografo para além de cultivar amizades.

Bem haja por tudo.
Juvenal Amado


O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o resultado de uma caçada

 O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o 2.º Sarg Silva da "Ferrugem"

O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o Pelotão de Sapadores. É o primeiro à direita, de pé.

Fur Mil Sap António Maria Fernandes com os Fur Mil Claudino, Sousa e Marques, e 2.º Sarg Silva

 Fur Mil Enfermeiro Graça

O famoso bolo-rei num prato

Além dos camaradas já ref. está também o Pereira Nina da Liga que me parece ter começado o processo da minha ida lá

O 3872 presente. Pereira, Dulombi; Alcains, CCS; Juvenal Amado; João Romano, Saltinho e Cansamba; Fernandes e Luciano, CCS
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19029: Estórias do Juvenal Amado (62): O Vilela, num conto com bolinha vermelha

Guiné 61/74 - P20509: Blogpoesia (653): "Noite de Natal", "Depois do Natal" e "Com açafates", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Noite de Natal

Noite serena e luminosa.
De alegria, paz e de saudade daqueles que já não estão.
Mesa farta de iguarias.
Um pinheiro de Natal.
Na manjedoira um presépio simples
com as figurinhas simples da Família Santa e dos pastores.
Está a Família inteira reunida.
Vieram de longe os ausentes.
A união e a harmonia.
A lareira acesa.
O calor do fogo divino.
É a noite da consoada.
O avô cansado e seu gato inseparável, dormitam no preguiceiro junto ao lar.
A avó anda feliz na sua lide.
Tem todos os seus ao pé.
A criançada gravita impaciente pela festa do abrir as prendas.
Até a cadelita irá ter a sua.
Bendita a bênão do menino Jesus, o Salvador!...

Ouvindo Schubert
Berlim, 25 de Dezembro de 2019
20h10m
JLmg

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Depois do Natal

Raios de luz incendeiam de sol os céus.
Reina a paz nas consciências reconhecidas pela luz.
Se abraçam amorosamente as vidas num clamor de fraternidade.
Sossegam todas as tormentas e tempestades.
Vai abrir-se ao mundo um novo ano.
Oxalá impere, finalmente, a justiça e a solidariedade entre os povos desta terra peregrina.

Berlim, 27 de Dezembro de 209
9h51m
Jlmg

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Com açafates

Não importa o peso.
Com açafates alargamos nossos dons.
Fruta. Pão. Flores.
Tudo bom para dar ou para vender.
Num gesto de bem-fazer.
Cada um tem seu jeito e dom.
O que importa é criar amor.
Receber e dar.
Viver bem.
Semear felicidade.
Tornar mais leve e grata a vida.
Colorir o céu e a terra.
Com azul e verde.
Levar mais longe os frutos da minha horta e jardim.
Trazer para casa os dons que pude comprar.
Regalar os meus.
Ser quem sou e sou capaz...

Berlim, 24 de Dezembro de 2019
9h22m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20482: Blogpoesia (652): "Encontrei Praga", "Nevoeiro de Praga" e "Enxurradas de Agosto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20505: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (21): Fez-me bem passar por Runa. O coração voltou a sentir "aquela" emoção. Talvez por ser Natal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro)



1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 26 de Dezembro de 2019:

Passei ontem por Runa e a memória levou-me de volta aos dias em que, no Hospital Militar, fui enfermeiro "acidental".[1]

Era no Serviço 5, Medicina Geral, no Anexo da Artilharia 1, em que estava colocado, que se prestava assistência aos veteranos da I Guerra Mundial, recolhidos no Lar Militar, em Runa, Torres Vedras.
Iam para consultas médicas, e internamentos se caso fosse. Reclamei para mim a exclusividade do seu acompanhamento.

Era eu que me certificava das horas certas para os medicamentos, que lhes dava as refeições, que lhes dava banho.
A hora do banho era sempre um grande momento.
Passava horas a conversar com eles, a ouvir-lhes histórias antigas, da família e da guerra, mas a hora do banho é que era.

- Ó ti Chico, este... já não serve para nada, vamos mas é cortá-lo que só está aqui a atrapalhar.

Eles morriam de riso e eu de felicidade por os ver sorrir assim. - Talvez por ver neles os meus avós maternos que tanto adorava.

Acontece que fui de férias.
E na volta, falou-me o 1.º Sargento-Enfermeiro que chefiava o Serviço.
- Você arranjou aqui um bonito serviço. Vieram dois homens de Runa, perguntaram por si, disseram-lhes que você tinha ido de férias e eles queriam ir embora, que só vinham quando você cá estivesse.

Fez-me bem passar por Runa.
O coração voltou a sentir "aquela" emoção.
Talvez por ser Natal.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

(...)
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3.ª e 5.ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
(...)

Último poste da série de 26 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20500: Feliz Natal de 2019 e Bom Novo Ano de 2020 (20): Mesmo cansados da guerra..., votos de que possamos continuar a partilhar memórias (e afetos)... Ah!, e obrigado por tudo: confiança, lealdade, apoio, "fair play", tolerância, cumplicidade, amizade, camaradagem... (Os editores)