Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Mansoa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Mansoa. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20325: Memória dos lugares (399): destacamento de João Landim, no rio Mansoa: quem eram os " Homens de Ferro [em] Botes de Borracha", que aqui estavam, em junho/julho de 1970, com uma seção do 3º pelotão da CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1969/71) ? Era gente dos fuzileiros especiais e do BENG 447... (José Nascimento)



Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa  > João Landim >  Junho/Julho de 1970 >   O destacamento, composto por dois barracões, guarnecido na altura por 1 secção do 3º pelotão da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71), comandada elo fur mil José Nascimento.


Foto (e legenda): © José Nascimento (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Legenda complementar do autor (*):


 O que consigo ler da última foto é:

Homens de Ferro [em] Botes de Borracha

D.F.E. / A2 [ou 12 ?]
Destacamento de Fuzileiros Especiais N. A2 [12 ?}

Furriel M.L. Dias

Sinais - Vargas- Lagares
Fuz. Esp.

LDM 203

Tenentes Brito e Beijamim [Beijamim assim mesmo] [Seria o então tenente RN  Rebordão de Brito ? E o Benjamim  ? Havia um outro tenente DFE Benjamim Correia ... LG]

Guerreiro
Pinto


2. Escreve o José Nascimento, ex-fur mil, CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1969/71) (*):

 [O destacamento de João Landim] era composto por um barracão onde nós militares do 3.º pelotão da CART 2520  havíamos de permanecer e por um outro barracão onde "moravam" os militares da Engenharia e da Marinha, responsáveis pela manobra e cambança das duas jangadas que operavam entre margens do Mansoa, para o transporte de viaturas militares e civis, bem como de população.

Aqui permaneci nos meses de Junho e Julho de 1970. Ao escurecer era posto a funcionar um pequeno gerador que nos iluminava durante a noite, mas o seu barulho era de tal forma infernal, que, passado quase meio século, parece que ainda ouço o seu roncar dentro da minha cabeça.

A casa de banho era composta por uma estrutura de madeira, com um ou dois bidões no seu cimo, que diariamente os elementos vindos de Safim os abasteciam de água potável, também nos traziam as nossas refeições que, para não variar,  quase sempre chegavam fora do horário que seria normal para o almoço ou para o jantar.

Para as necessidades fisiológicas, existia uma pequena estrutura de madeira já meio apodrecida. Quando a maré do Mansoa subia, as águas do rio exerciam as funções de estação de tratamento. Curiosamente, a algumas dezenas de quilómetros da foz, a água aqui era salgada, que quando a maré enchia, quase nos entrava pelo barracão adentro.

Apesar das enormes dificuldades foi um aliviar de tensões e  uma fuga ao perigo constante que representou a nossa estada no Xime. A noite é que era passada com alguma apreensão devido às precárias condições e ao reduzido número de militares para fazermos a nossa própria segurança.
Durante o dia controlávamos as viaturas, tanto civis como militares, que atravessavam de uma margem para outra do rio, fazendo o registo em folhas de papel próprias.

A permanência em João Landim também permitiu que algumas vezes embarcasse no "machimbombo"  que vinha de Teixeira Pinto ou de Bula com destino a Bissau. Aproveitava para ter um almoço diferente do que era habitual (bianda com bianda) e para fazer umas compras de pequenas recordações que traria até à Metrópole quando em Agosto de 1970 vim abraçar os meus familiares.
Terminava a minha pequena aventura em João Landim, para lá não voltaria mais." (...).

Temos 13 referências a João Landim no nosso blogue. Mas muitos maisa camaradas passaram por aqui e devem fotos deste lugar. (**)



Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa > João Landim > Junho de 1973 > O rio Mansoa em João Landim e a jangada que fazia a sua travessia. Primeiro entravam as viaturas, depois as pessoas. Bissau ficava a cerca de quinze quilómetros e para a "peluda", o fim da comissão, faltavam, ainda quatro longos meses. A Helena regressaria mais cedo a casa, o Francisco só chegará a Lisboa a 11/10/1973, no T/T Niassa, com os seus rapazes do Pel Rec Daimler 3089.

Foto (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20321: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (15): Mudança para Quinhamel

1. Em mensagem do dia 24 de Julho de 2019, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) fala-nos do "Reguila", o 1.º Cabo Cordeiro do 3. Pelotão da 2520.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

MUDANÇA PARA QUINHAMEL

Doze meses são passados sobre a permanência da CART 2520 no Xime. É chegada a hora da abalada para Quinhamel.

Enquanto a CART 2520 esteve sediada no Xime, houve dois pelotões que estiveram fora da zona operacional da Companhia; o 3.º pelotão fez o treino operacional em Mansambo e o 4.º pelotão actuou em Galomaro por cerca de quatro meses.

O destacamento da Ponte do Udunduma, localizado entre o Xime e Bambadinca também esteve à guarda da CART 2520, bem como o destacamento do Enxalé, situado na margem direita do Geba a cerca de dois quilómetros do Xime. As tabancas de Amedalai, Taibatá e Dembataco que estavam em auto-defesa também tiveram a protecção da CART 2520.

Foi um ano de grande actividade operacional para CART 2520 com um sem número de operações militares no mato, de montagem de emboscadas e de patrulhamentos ao longo dos diversos trilhos e picadas existentes na zona. Foram montadas dezenas de seguranças aos barcos que navegavam pelo rio Geba e um elevado número de colunas do Xime a Bambadinca e também algumas deslocações a Bafatá para a compra de mantimentos, nomeadamente algum gado vacum. Estas deslocações a Bafatá também serviam para descontrair e aliviar algumas tensões acumuladas. A estrada entre Bambadinca a Bafatá já era alcatroada.

Assim que souberam que a mudança ia acontecer, os "músicos" da Companhia fizeram uma canção dedicada a Quinhamel baseada numa música do Duo Ouro Negro e que versava ou rimava mais ou menos assim:

Dizem que vou pra Quinhamel
Uma praia bonita pra me banhar
Pra Quinhamel pra Quinhamel
Pra Quinhamel eu vou lá ficar

Pra Quinhamel pra Quinhamel
Pra Quinhamel eu vou lá ficar
E à noitinha quando o sol se pôr
Do Pelicano ou do Grande Hotel eu vou voltar

 Preparando a recepção aos periquitos

Rio Geba - Adeus Xime

Mas, quando chegados a Quinhamel os operacionais foram apanhados por algumas surpresas. Os pelotões seriam dispersos por vários destacamentos; Biombo, Ilondé, Ome e Safim. Só um pelotão e mais alguns atiradores é que tiveram o privilégio de permanecer o tempo restante da comissão em Quinhamel, além dos elementos da chamada Formação, condutores, mecânicos e outras especialidades.

Safim coube ao 3.º pelotão e lá vamos nós, nem tivemos tempo de saborear o belo clima e a praia de Quinhamel. Chegados a Safim ainda havia outra surpresa, um pequeno destacamento que dava pelo nome de João Landim situado na margem esquerda do rio Mansoa. O comando deste sub-destacamento era feito por um furriel, a nível de secção.
Mal tínhamos postos os pés em Safim e sabendo da necessidade de avançar com uma secção para outro destino, o alferes Marques diz-me:
- Nascimento, vais tu - depositando em mim a sua confiança.
- Só vou com voluntários - respondi-lhe.

De seguida perguntei quem queria ir comigo para o desconhecido. Avançaram os elementos necessários, pouco depois estávamos a caminho.

E assim eis-nos chegados a João Landim à beira do Rio Mansoa plantado.

 João Landim depois de uma tempestade - Junho/Julho de 1970

 João Landim - Jangada no Rio Mansoa - Foto obtida em plena noite com o flash de um relâmpago

João Landim - Junho/Julho de 1970 - Visto do Rio Mansoa

Era composto por um barracão onde nós militares do 3.º pelotão da CART 2520 havíamos de permanecer e por um outro barracão onde "moravam" os militares da Engenharia e da Marinha, responsáveis pela manobra e cambança das duas jangadas que operavam entre margens do Mansoa, para o transporte de viaturas militares e civis, bem como de população.

Aqui permaneci nos meses de Junho e Julho de 1970. Ao escurecer era posto a funcionar um pequeno gerador que nos iluminava durante a noite, mas o seu barulho era de tal forma infernal, que passado quase meio século, parece que ainda ouço o seu roncar dentro da minha cabeça.
A casa de banho era composta por uma estrutura de madeira, com um ou dois bidons no seu cimo, que diariamente os elementos vindos de Safim os abasteciam de água potável, também nos traziam as nossas refeições, que para não variar quase sempre chegavam fora do horário que seria normal para o almoço ou para o jantar. Para as necessidades fisiológicas, existia uma pequena estrutura de madeira já meio apodrecida. Quando a maré do Mansoa subia, as águas do rio exerciam as funções de estação de tratamentos. Curiosamente, a algumas dezenas de quilómetros da foz, a água aqui era salgada, que quando a maré enchia, quase nos entrava pelo barracão adentro.

Apesar das enormes dificuldades foi um aliviar de tensões e uma fuga ao perigo constante que representou a nossa estada no Xime. A noite é que era passada com alguma apreensão devido às precárias condições e ao reduzido número de militares para fazermos a nossa própria segurança.
Durante o dia controlávamos as viaturas, tanto civis como militares, que atravessavam de uma margem para outra do rio, fazendo o registo em folhas de papel próprias.
A permanência em João Landim também permitiu que algumas vezes embarcasse no "machimbombo" que vinha de Teixeira Pinto ou de Bula com destino a Bissau. Aproveitava para ter um almoço diferente do que era habitual (bianda com bianda) e para fazer umas compras de pequenas recordações que traria até à Metrópole quando em Agosto de 1970 vim abraçar os meus familiares. Terminava a minha pequena aventura em João Landim, para lá não voltaria mais.

Em João Landim recordo um pequeno episódio, quando o militar que estava de controle chegou ao pé de mim e me disse que havia um nativo que ia para Bissau e não tinha documento de transporte de alguns produtos hortícolas que levava para venda e me perguntou o que havia de fazer. Eu respondi-lhe para o deixar seguir. Passados alguns minutos, para surpresa minha apareceu-me o militar com um ananás como gratidão, oferecido pelo nativo. Soube a pouco.

Para todos os camaradas da Tabanca Grande aqui vai um grande abraço.
José Nascimento
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20020: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (14): "O Reguila"

sábado, 3 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20031: Escritos do António Lúcio Vieira (1): A suprema mas vã glória de afundar um submarino inimigo... no Rio Mansoa, nas imediações de João Landim... Ou os delírios de um alferes de engenharia que não ficou na História Pátria!


Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Guiné > O fur mil cav Lúcio Vieira, da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), no rio Geba.

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um conto do [António] Lúcio Vieira,  ex-fur mil cav, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), escritor, residente em Torres Novas. novo membro da nossa Tabanca Grande (*):

SUBMARINO À VISTA!

esta é uma estória realmente surreal

por Lúcio Vieira

[O editor decidou situá-la em João Landim, no Rio Mansoa, à revelia do autor, que apenas esclareceu o seguinte, em email que lhe mandou ontem, em resposta a uma pergunta sobre o lugar:  (...) "sobre o episódio do submarino, não me recordo, francamente, como a estória me chegou. Talvez tenha acontecido em João Landim, mas não sei. Sei, isso sim, é que me pareceu tão deliciosa que não resisti." (...) Ainda bem que o Lúcio Vieira não resistiu... Independentemente do sítio exato onde aconteceu, é uma daquelas histórias que fará parte, seguramente,  da antologia do nosso humor de caserna. Recorde-se, por outro lado, o currículo do autor, enquanto combatente: " "Cruzei o rio Mansoa (na legenda troquei-o, inadvertidamente com o Geba) durante toda a comissão. Tal como o Cacheu.  (...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente."]

Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias.

Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.

Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos.

A famosa jangada de João Landim, no rio Mansoa
Foto de Virgínio Briote  (c. 1965/66)
Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água.

Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.

Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária.

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores – bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.

Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar.

Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.

Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa.

E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante.

Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.

Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia.

No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial.

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente.

Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso.

Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta.

Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. E tudo ali então se precipitou.

De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!”

Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra.

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros.

“Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação.

“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante.

Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte.

Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito.

O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos.

Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar.

Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia!

Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações.

“Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo.

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?”

Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã.

E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações.

Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial.

Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.

As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome.

Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida.

Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias.

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada.

O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…”

Perdão, tecia.

---------------------

Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.

António Lúcio Vieira
CCav 788 / BCAV 790 ( Bula e Ingoré, 1965/67)
_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste  de 2 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20027: Tabanca Grande (483): Lúcio Vieira, ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), natural de Torres Novas, jornalista, poeta, dramaturgo, encenador: senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 794

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16486: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte XI: A jangada de João Landim, no Rio Mansoa...



Foto nº 51A


Foto nº 51B

´
Foto nº 51 > Junho de 1973 > O rio Mansoa em João Landim e a  jangada que fazia a sua travessia. Primeiro entravam as viaturas, depois as pessoas. Bissau ficava a cerca de quinze quilómetros e  para a "peluda",  o fim da comissão, faltavam, ainda quatro longos meses. A Helena regressaria mais cedo a casa,  o Francisco só chegará a Lisboa a 11/10/1973, no T/T Niassa, com os seus rapazes do Pel Rec Daimler 3089.


Foto nº 52 >  Rio Mansoa, João Landim > Junho de 1973 > Veículo da segurança ao local, pertencente à CCAV 3420 (Bula, 1971/73, que era comandada pelo cap cav Salgueiro Maia.


Guiné > Região do Cacheu > Junho de 1973  > A famosa jangada de João Landim que "de há séculos" atravessava o Rio Mansoa, levando durante a guerra colonial milhares de homens, armas e  viaturas, da "ilha de Bissau"  para o o centro, para o norte e para o nordeste,  para a região do Cacheu e para região do Oio, e vice-versa,,, Era um ponto estratégico, razão por que havia lá um  destacamento das NT.

Finalmente, e já nos finais do séc. XX e princípios do séc. XXI, foi construída uma ponte, com financiamento e tecnologia da União Europeia...  Tendo arrancado em 1998, só  foi inaugurada em 2003 devido às vicissitudes da guerra civil de 1998/99. Com  780 metros de comprimento, era então o maior empreendimento realizado na Guiné-Bissau. (LG).

Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) (*).

Francisco Gamelas, que é engenheiro eletrotécnico de formação, quadro superior da PT Inovação,  reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973" (Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust; preço de capa 12,50 €).

Os interessados podem encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal :
franciscogamelas@sapo.pt.

O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta, a partir da foto. nº 29. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.


A jangada do Mansoa

por Francisco Gamelas

De repente, o rio.
Largo.
A jangada,
já atracada,
a nossa espera. Amargo
o teu sorriso. Também sorrio.
Escoltaram-nos até aqui
as panhards do Salgueiro Maia, 
ali de Bula.
Estranha, a chula
que se ensaia
no balanço da jangada em frenesi.
Do outro lado,
quase Bissau.
Já não é precisa a escolta.
O meu amor vai e já não volta,
o que não é mau.
Fico, assim, mais sossegado.
Leva no ventre
o nosso primeiro fruto
a crescer.
Vai-nos doer,
mas não é caso de luto.
Entre 
o agora e o meu regresso
apenas quatro meses
de suplício,
que mais parece um vício,
às vezes
que lhe tento fugir, sem sucesso.

João Landim,
local de passagem 
sobre as águas do Mansoa,
Não é à toa
que as pessoas em viagem
vacilem até ao fim.
Jangada velha, gingona.
corrente forte,
dependente do tempo e da maré.
Mas a vida é como é.
Para tudo é preciso sorte,
até a jangada se manter à tona.

Maio de 2015

In: Francisco Gamelas - Outro olhar: Guiné, 1971-1973. Aveiro, 2016, ed. de autor, pp. 120-121 (Com a devida vénia...)




Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) >  Escala 1/50 mil >  Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim (**)

14 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10667: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (2): Bula (Fernando Súcio / Leonel Olhero)

12 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10656: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (1): Bula (Fernando Súcio / Leonel Olhero)

7 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)

12 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (45): Destacamentos - Pedaços

12 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4674: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (16): O alvoroço dos (re)encontros: obrigado, malta da CCAÇ 2790 (António Matos)

domingo, 26 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14933: Libertando-me (Tony Borié) (27): Todos temos um rio, eu tenho quatro: o Águeda, em Portugal; o Mansoa, na Guiné e os Passaic e o Yukon, nos Estados Unidos

Vigésimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Os meus quatro rios

Todos temos um rio e, em alguns momentos dizemos, olha, preciso de ar fresco, vou até ao rio, referindo-nos ao rio, como se fosse nosso, nossa propriedade.

Quase em todas as grandes cidades passa um rio. Por quê? Porque essas cidades, outrora pequenas povoações, nasceram junto ao rio, que já lá existia, porque os povos, nas suas migrações, normalmente paravam e estabeleciam-se onde houvesse água, que ainda hoje continua a ser essencial para a vida, para a nossa sobrevivência.

Quase todos nós lembramos o “nosso rio”, temos cá dentro o “nosso rio”, mesmo os que nasceram na montanha têm o seu rio, que era aquele riacho, entre pedras de granito, onde levavam as ovelhas ou as cabras a beber, onde tomavam banho, onde tiravam a água pura e cristalina para beberem, era o “nosso rio”, embora hoje, com as alterações climáticas, a maior parte desses rios tenham sacado.

Nós temos quatro rios que nos marcaram. Foi o rio na localidade onde nascemos, o rio Águeda, onde havia um grande areal no verão, uma grande nora, instalada numa rudimentar represa, que lhe roubava alguma água, que ia fazer crescer uns campos de milho em seu redor. Foi aí que aprendemos a nadar, onde, junto com os rapazes da nossa idade, empoleirados nas velhas árvores, às vezes nos alcatruzes da própria nora, nos atirávamos à água, sabendo ou não nadar. Este rio nasce na Serra do Caramulo, tem cerca de 40 quilómetros de extensão, passa entre outras localidades, na hoje, cidade de Águeda e junta-se ao rio Vouga na localidade de Eirol, que leva a sua água e talvez alguma poluição para a ria de Aveiro, que por sua vez desagua no oceano Atlântico.

O “nosso outro rio” foi, o rio Mansoa, lá na Guiné e, não querendo ser deselegantes, parecia-nos que o oceano estava longe do mar, o sol tórrido espelhava naquela água lamacenta, ficava ali, horas e horas, na ponte velha, que era por onde passavam as “bajudas”, e outro pessoal, para irem trabalhar nas bolanhas, a sua lama até se tornava brilhante, talvez fosse da nossa idade jovem, era aí, onde normalmente líamos e relíamos as cartas e aerogramas da família e amigos, sonhávamos, às vezes acordados por uma pequena brisa, onde a mágoa da lama dos nossos antepassados, aventureiros descobridores, nos enviaram para ali, onde naquele momento, o frio e o gelo da nossa aldeia da Serra do Caramulo, seria bem vindo, tornando aquela bolanha lamacenta, onde se agitava no ar aquele pato preto, que nos parecia que ia chorando lágrimas de orvalho, lágrimas frescas, que iam secando as nossas, verdadeiras, que juntávamos às do cisne cor de rosa que deslizava sobre aquela água, procurando algo que não encontrava.


Aquele cenário, visto da ponte, algumas vezes era um grande lago, outras uma bolanha, pois sobressaiam pequenas árvores e arbustos à superfície, outras um pequenino riacho, perigoso, com lama a circundar esse pequeno riacho, assistindo à sua corrente forte, quando desaguava, levava restos de arbustos e lama para não sabemos onde, em que em alguns momentos, saltavam peixes, fazia alguma turbulência, querendo passar a toda a pressa, fugindo daquela área, em direcção ao oceano Atlântico, tal como nós, no nosso pensamento e, ainda hoje, não sabemos se era um rio ou um canal, se era de água fresca ou salgada, onde começava ou onde acabava, sabemos que era o “nosso rio”, onde, todavia, ao fim de algum tempo, aquela água lamacenta, para nós, significava silêncio e alguma paz.

O “nosso outro rio”, que nos marcou, é o rio Passaic, em Nova Jersey, que tem uma extensão de aproximadamente 130 quilómetros, que desde a sua origem, nas montanhas de Mendham, no sul do condado de Morris, onde havia “glacieres”, 13.000 anos atrás, durante o seu percurso, forma diversos lagos e mesmo terras alagadiças, passando por diversas cidades até chegar ao local onde nos marcou, que foi a cidade de Newark, pois dormimos algumas vezes junto ao seu leito, em algumas noites de neve e frio de rachar, junto de outros “desafortunados”, a que chamavam “descamisados”, dormíamos juntos, encostados uns aos outros, para nos aquecermos.

Este rio, hoje tem outro aspecto, pois a Agência do Governo, que trata da poluição ambiental, tem gasto milhões de dólares limpando o seu leito, onde a água já corre, em alguns locais algumas vezes cristalina.

Bem, ainda temos outro “nosso rio”, que é o rio Yukon, cuja palavra, significa grande rio no idioma athabaskan, uma língua aborígene, que na forma portuguesa significa mais ou menos Lucão, é um rio que corre na América do Norte, nas províncias da Colúmbia Britânica e do Yukon, em território do Canadá e no estado Norte Americano do Alaska, desembocando no mar de Bering, no Oceano Pacífico. Tem uma extensão de aproximadamente 3645 quilómetros, fazendo dele o 20.º maior do mundo, em comprimento. Supõe-se que sua nascente está localizada nos “glacieres” de Llewellyn, ao sul do Lago Atlin, na Colúmbia Britânica, território do Canadá, mas o rio Yukon propriamente dito, começa no lago Marsh, logo ao sul da cidade de Whitehorse, na província de Yukon, onde nos marcou, pelo menos nas povoações de Carmacks ou Dawson City e, talvez em outras mais pequenas na sua dimensão, pela sua grandiosidade, passando por entre montanhas, vales, planícies, formando grandes lagos, onde podemos ainda ver animais e aves selvagens, onde existem poucas pontes, a sua travessia continua a ser por jangadas, os seus afluentes, como o rio Tanana, Porcupine, Pelly ou Koyukuk, são paraísos terrestes, tantos para humanos com para aves e animais, onde ainda existem grandes cardumes de peixes, em especial salmão, tornando o dia-a-dia dos habitantes em seu redor, numa vida difícil, privados de algumas soluções modernas, mas sadia e agradável.

Aqui, onde vivemos, tudo é “nosso rio”, mas de água salgada.

Tony Borie, Julho de 2015.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14900: Libertando-me (Tony Borié) (26): Não é fácil

terça-feira, 30 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14812: Inquérito online: O rio da minha... tabanca... O meu rio da Guiné, aquele que mais amei / odiei... Responder até ao dia 3 de julho



Rio Mansoa > Ponte destruída | Foto Carlos Fraga



Rio Mansoa > Bolanha e ponte  | Foto César Dias



Rio Corubal > Rápidos do Saltinho | Foto Albano Costa


Rio Cumbijã > Imediações de Cufar | Foto António Graça de Abreu



Rio Cacine > Corrida de sintex | Foto João Martins


Rio Udunduma > Jangada | Foto Renato Monteiro



Rio Cacheu > LFG Sagitário | Foto cmdt A Rodrigues da Costa | Cortesia de Manuel Lema Santos

Edição Blogue Luís  Graça & Camaradas da Guiné (2015). Direitos reservados


I. Mensagem enviada ontem pelo correio interno da Tabanca Grande:


Assunto - O rio da minha... tabanca

Amigos/as e camaradas:

Há um poema lindíssimo do Alberto Caeiro (um dos muitos heterónimos, como sabem, do genial Fernando Pessoa) que começa assim: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia" ... Podem lê-lo ou relê-lo a seguir, aqui, no sítio da Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro. (*)

Mas eu esta semana queria falar do rio da nossa... tabanca. Todos, ou quase todos, ou muitos de nós, também deixaram lá, na "nossa" Guiné, o seu rio de "estimação"... Em muitos casos, terá havido uma relação de amor/ódio... Não admira: estávamos em guerra, não em turismo...

Não vamos aqui discutir a diferença entre rios, rias, braços de mar... A Guiné tinha/tem, para além do deslumbrante (e de trágicas memórias) Corubal, outros rios (, de água doce e/ou salgada, ) que cruzámos, por onde viajámos, ou em cujas imediações fizemos operações ou estivemos aquartelados, do Cacheu ao Cacine... Noutros, mais pequenos (Udunduma, Caium, Armada ...), nadámos, pescámos, andámos de piroga... Enfim, quem não tem recordações dos rios, rias e braços de mar, a começar pelos nossos camaradas da Marinha ? Muitos de andámos fizemos uma ou mais viagem de de LDG, de LDM, de sintex, de piroga  e até  de "barco turra" (as embarcações civis que faziam a ligação a Bissau, nomeadamente no Rio Geba).

A sondagem desta semana é sobre "O meu rio da Guiné (o que mais amei/odiei)"... As hipóteses de resposta são;

1. Cacheu

2. Cacine

3. Corubal

4. Cumbijã

5. Geba

6. Grande de Buba

7. Mansoa

8. Tombali

9. Outro (o que corria junto do sítio onde estive)

10. Outro (não referido acima)

11. Nenhum


NÃO RESPONDAM por email, mas no blogue, "on line", ao alto, na coluna do lado esquerdo:

Só podemos dar uma resposta. A sondagem encerra no dia 3 de julho.

2. Aproveitem também para mandar fotos e histórias ligadas aos nossos rios da Guiné... Grandes e pequenos...



E se forem para férias, cá dentro ou lá para fora (, o que não está lá muito convidativo, o mundo está feio...) , mandem um "bate-estradas" (aerograma), a dizer que estão vivinhos da costa como a sardinha... (Até esta, infelizmente, está a desaparecer da nossa costa!).

Já inaugurámos a série "Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas" (**):

Um bom resto de dia... Bebam muito água... porque por estes dias vai estar uma brasa... Xicorações apertados, Luís Graça

_________________

Notas do editor

(*) Cortesia de Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

In O Guardador de Rebanhos

In Poesia, Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

(**) Vd. poste de 26 de junho de 2015  > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

domingo, 21 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11440: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (3): Rio Mansoa




Foto nº 42 > Mansoa > 1973 > A antiga ponte sobre o rio Mansoa, destruída.



Foto nº 65 > Mansoa >  1973 > A antiga ponte vista da nova


Foto nº 13 > Mansoa > 1973 >  Rio Mansoa > Canoa nativa



Foto nº 14 > Mansoa > 1973 > As barcaças (ou lá como se chamavam) que faziam a travessia do rio para irmos para Bula. Fomos numa delas. [À distância podem parecer LDM, mas não são].




Foto nº 35 > Mansoa > 1973 > Posto de sentinela junto ao rio




 Foto nº 7 > Mansoa > 1973 > O embarque para Bula. De costas em 1º plano o Cap Salgado Martins, comandante da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72.


Fotos: © Carlos Alberto Fraga (2013). Todos os direitos reservados [Edição: LG]



1.  Continuação da publicação do álbum fotográfico do Carlos Fraga, o mais recente membro da nossa Tabanca Grande (nº 611).

Ele esteve em Mansoa, nos últimos meses de 1973, como alf mil,  indo depois comandar uma companhia em Moçambique, já depois de 25 de abril de 1974.

Estas fotos, com a devida legendagem fornecida pelo Carlos Fraga, constam de um CD que chegou ao nosso conhecimento através de dois camaradas da mesma companhia, a 3ª C CAÇ/4612/72, o Agostinho Gaspar e o Jorge Canhão.

____________

sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11007: Do Ninho D'Águia até África (47): Iafane, o barqueiro (Tony Borié)

1. Quadragésimo sétimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (47)





O Iafane era um africano com uma certa estatura física, era de etnia “Balanta”, jogava futebol, vivia na tal aldeia com casas cobertas de colmo, próximo do aquartelamento, fumava cigarros como fosse um europeu, não falava muito bem português, mas compreendia-se, tinha a sua “morança”, e algumas mulheres. A sua profissão era barqueiro. Sim barqueiro, compreenderam bem, era barqueiro.


Tinha umas tantas canoas, ancoradas, às vezes na lama, junto à ponte do rio Mansoa, outras em terra, onde as construía, pois estava sempre na construção duma, e fazia viagens pelas aldeias ribeirinhas, trazendo o pessoal que queria vender os seus produtos no mercado da vila ou na sucursal da Casa Ultramarina. Na altura da maré cheia, lá ia com uma ou duas canoas, rebocadas pela sua, onde a poder de um enorme remo, a fazia mover na direcção que entendesse.


Transportava pessoas e bens, cobrava o que entendia, consoante o transporte, e esses mesmos passageiros o auxiliavam, remando, no regresso à ponte, junto da vila. Tinha uma pequena barraca, coberta de colmo junto à ponte, foto em cima, onde guardava os remos e demais utensílios, onde o Cifra passava horas, abrigando-se do sol e ouvindo as suas histórias de mulheres novas que trazia das aldeias ribeirinhas que visitava, umas para serem suas esposas, outras para outros “homens grandes”, e onde apreciava as possíveis raparigas que tivessem algum poder de se tornarem em esposas, algumas fugiam depois, pois não queriam viver com ele na vila. Também contava histórias de pescarias depois de intensos tornados, em que o peixe andava ”maluco” e saltava para dentro da canoa, ou até das vezes em que tinha sido contactado por um emissário dos guerrilheiros para parar com o seu negócio, pois os produtos e as raparigas que trazia para a vila, eram propriedade do movimento de libertação. Já o tinham avisado e mostrava um certo receio ao dizer isto. Ele contava tudo isto porque confiava no Cifra e o tratava por irmão, e sabia do envolvimento que o Cifra teve com as raparigas, que afinal eram guerrilheiras e que às vezes o ouvia por horas, enquanto com um pequeno machado nas mãos, construía uma nova canoa.


Tinha os seus truques na condução da canoa, colocava um saco de terra na ré onde se sentava e dizia que deste modo a proa levantava e dava mais velocidade, com menos esforço.


Pois não é que uns tempos depois o Cifra, deixando de o ver, assim como às suas canoas, soube que “foi no mato”, que na linguagem de guerra era transferir-se para os guerrilheiros, fazendo parte do movimento de libertação, e que estava estudando num País estrangeiro. Talvez até já fosse guerrilheiro na altura em que era barqueiro, e do modo como a guerra se estava intensificando, o Iafane, sabendo os hábitos do pessoal na vila, concerteza que ia dar que falar no futuro. Entretanto o Cifra veio embora, com a sua comissão cumprida.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10984: Do Ninho D'Águia até África (46): A menina Teresa não sai de cima de mim (Tony Borié)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10667: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (2): Bula (Fernando Súcio / Leonel Olhero)



1. Segundo de uma série de 4 postes com fotografias enviadas pelo nosso camarada e tertuliano Fernando Súcio (foto à esquerda), ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275, Bula, 1972/74, fotos estas pertencentes ao seu conterrâneo, o outro nosso camarada Leonel Olhero (foto à direita), ex-Fur Mil Cav do Esq Rec 3432 (Panhard), Bula, 1971/73.



João Landim > 1973 > Jangada militar no Rio Mansoa

 Bula > Fortim dos Fulas, estrada de Binar e S. Vicente

 João Landin > À espera da jangada para atravessar o Rio Mansoa

 HM 241 de Bissau, 1973 > Fernando Súcio

Jangada militar atravessa o Rio Mansoa

Bula, 21 de Julho de 1973 > Dia da Cavalaria

Jangada militar

Bula > Tabanca atingida por um míssiel no dia 5 de Maio de 1973

Bula > Ronco Balanta

Bula > Sala de Operações

João Landim > Fernando Súcio e Leonel Olhero

Fotos: © Leonel Olhero (2012). Todos os direitos reservados [Fotos editadas por CV]
____________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 12 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10656: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (1): Bula (Fernando Súcio)