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terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19471: (D)o outro lado do combate (43): 'Puxão de orelhas' de Amílcar Cabral a Rui Djassi (Faincam) (1937-1964), em carta enviada em janeiro de 1964, sinal precursor da sua substituição na Zona 8, região de Quínara (Jorge Araújo)


Citação: (1964), "I Congresso do PAIGC em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85097 (2019-1-25) - Grupo de dirigentes por ocasião do I Congresso: Lay Sek, Constantino Teixeira, Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Amílcar Cabral e 'Nino' Vieira (com a devida vénia).




Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
"PUXÃO DE ORELHAS" DE AMÍLCAR CABRAL A RUI DJASSI (FAINCAM), EM CARTA ENVIADA EM JANEIRO'1964, ERA O SINAL PRECURSOR DA SUA SUBSTITUIÇÃO NA "ZONA 8": ENTRE A DESPROMOÇÃO E A MORTE -


1. INTRODUÇÃO

Na sequência das narrativas apresentadas no fórum nos P19433 e P19437 (*), onde se colocava a questão «o que terá acontecido ao Rui Djassi (Faincam)?» entre finais de 1963 e início de 1964, algumas hipóteses foram avançadas tendo por base a literatura consultada, mas nenhuma delas, digo eu, dando respostas fidedignas e esclarecedoras. (**)

Com efeito, na busca de outros pressupostos ou cenários complementares, seguimos em frente no sentido de encontrar novos elementos que nos ajudem a compreender melhor esta problemática, considerada ainda como incógnita.

Eis os elementos que podem contribuir para uma nova leitura sobre a questão de partida.


2.  CARTA DE AMÍLCAR CABRAL ENVIADA A RUI DJASSI (FAINCAM) NO INÍCIO DE JANEIRO'1964


Tendo por base uma leitura hermenêutica, consideramos o conteúdo da carta acima referida como um valente "puxão de orelhas" a Rui Djassi, expresso num duplo desagrado: o primeiro por insuficiente comunicação, o segundo por um comportamento pouco cuidado, rigoroso e muito permissivo na "zona 8", como principal responsável operacional na região, do qual originou um bloqueio da fronteira Sul por parte das NT, inviabilizando o cumprimento da estratégia logística no «Corredor de Guileje».

Da importância deste contexto nos dá conta Leopoldo Amado, no seu livro "Guineidade & Africanidade" (2013), p. 263, onde se refere a gigantesca e complexa rede logística (sem dúvida, a maior do PAIGC) que "estendendo-se desde Conacri e perpassando por outras cidades da República da Guiné como Boké, Kandiafara, Simbeli e Tarsaia, prolongava-se depois pela então Guiné Portuguesa adentro pelo Corredor de Guileje, a partir do qual, sintomaticamente, se despachavam o maior volume (dir-se-ia mesmo a esmagadora maioria) do armamento e munições e ainda os víveres imprescindíveis ao esforço de guerra". [Vidé, também, P2499: Guileje - Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008).(***)

Dito isto, o conteúdo da carta de Amílcar Cabral, que seguidamente se partilha no fórum, era já um sinal precursor do que estava para acontecer ao Rui Djassi, ou seja, o seu afastamento da liderança da "zona 8" e a sua substituição por outro quadro do PAIGC, no caso Guerra Mendes.

Rui Djassi já não marcaria a sua presença em Cassacá, no I Congresso [Fev' 1964], justificando Amílcar Cabral a sua ausência "pelo seu desaparecimento, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".



PAIGC (Nov 1970) - Duas imagem obtidas, algures no Sul, pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson.  

 Recorde-se que este fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita.

A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à Fundação Amílcar Cabral, com sede na Praia, Cabo Verde, pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda) (***)


2.1 - Transcrição da carta de Amílcar Cabral:


Recebi as tuas cartas, datadas de 26 e de 30 de Dezembro [1963].

No começo de um novo ano, aproveito para te dirigir saudações fraternais em nome de todos os camaradas do Secretariado e em meu nome pessoal. Que 1964 seja o ano da libertação total do nosso povo e que tu avances sempre no caminho do serviço do nosso grande Partido pela liberdade e pelo progresso real do nosso povo. Saudações para a tua família e para todos os camaradas.

Acho que o que aconteceu na fronteira (emboscada do inimigo e fecho da passagem por Simbeli) não foi causada pela estadia dos camaradas na fronteira. A razão principal é a falta de controlo real da zona de fronteira [Sul] pelos nossos combatentes, assim como a presença sempre para fora do inimigo em Quebo. Se o inimigo não pudesse sair de Quebo sem correr grandes riscos, se nós estivéssemos sempre a chateá-los em Quebo, não teria coragem de vir pregar-nos uma grande partida. Não achas?

Espero no entanto que estás a fazer tudo para acabar com essa situação. Não há outro caminho perto, conduzindo à base?

Como compreendes, não é possível indicar com antecedência dias fixos para transporte de material, porque isso não depende só de nós. Temos de estar dependentes das autoridades, do seu tempo disponível, da sua boa vontade, etc.. O que é indispensável é controlares sempre os caminhos para não deixar o inimigo a possibilidade de nos pregar partidas. Para evitar que o inimigo reforce as suas posições tens de chateá-los por todos os lados, não o deixar em paz, como estar a fazer. Tens de fazer do tempo seco o período da intensificação das nossas acções.

Foi com prazer que recebi as notícias da luta. Quero felicitar todos os camaradas responsáveis e combatentes de fora pela actividade que estão a fazer. Espero que vamos intensificar cada vez mais a nossa acção, mas sem nos deixarmos levar pelo inimigo, quer dizer, só vamos batermo-nos com ele quando tens a certeza de o vencer, de o destruir.

Espero também que dês notícias mais detalhadas, porque senão é difícil aproveitá-las para comunicados. Dizes por exemplo: "no mesmo dia os camaradas atacaram Fulacunda no momento de içar a bandeira". Boa notícia, mas abateram o quê exactamente, de que maneira, com que resultados? Qual era o objectivo do ataque? Conseguiu-se esse objectivo? Etc. Tu sabes bem que deves dar assim as informações, para eu poder avaliar e poder servir-me delas.

Lamento muito a morte do nosso camarada Malan N'djai. Peço que apresentes sentimentos à família dele. Não deixes de mandar a ficha correspondente, com todos os dados.

No que respeita ao material destinado à tua zona, ele tem seguido e já não há nenhum neste momento. Estamos a fazer esforços para pôr no país todo o material previsto no plano que foi há tempos. Claro que isso não é indispensável para a marcha da nossa luta, mas é conveniente para a nova fase que estabelecemos.

Penso no entanto que muito podem fazer – e estamos a fazer – com o material de que dispõe hoje os nossos combatentes nas zonas de luta. Temos agora de pensar em desenvolver a nossa acção, sem esperar por mais material.

Ficamos todos muito contentes com a missão que vocês fazem. Foi uma grande vitória, camarada. Vamos continuar nesse caminho, como já deves saber.

Acho que o caso entre o José Sanha e o Caetano, que não percebi bem, será brevemente resolvido pela Direcção do Partido, a bem do progresso da nossa luta. Espero que tenhas a paciência de esperar um pouco, sem criar problemas graves e que ninguém poderá aceitar nem compreender, no momento em que tens grandes responsabilidades.

Dá saudações ao povo da zona, a todos os responsáveis e a todos os militantes. Tenho grande saudade de todos. Para ti, o melhor abraço do camarada Amílcar Cabral.

Seguem medicamentos pelo Dino, que esteve doente.

 .
2.2 - Segue-se a reprodução da carta manuscrita por Amílcar Cabral.






Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35428 (2019-1-25)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 07056.008.007.
Assunto: Emboscada do inimigo que teve como consequência o fecho da passagem por Simbeli. Falta de controlo real na zona de fronteira, presença do inimigo no Quebo. Instruções para enfraquecer o inimigo. Material militar e medicamentos para a zona.
Remetente: Amílcar Cabral.
Destinatário Djassi (Faincam) [Rui Djassi].
Data: 1964 [Jan].
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Início de 1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.



2.3 – Em 30 de Maio de 1964 [três meses e meio após o I Congresso] nova referência a Rui Djassi em carta remetida por Amílcar Cabral a Osvaldo Vieira



Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35499 (2019-1-25)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 04606.045.073.
Assunto: Acusa recepção do relatório sobre as missões em andamento, notícias do Rui Djassi, aumento de base de guerrilhas, pede pormenores sobre a tentativa de complot feito por alguns camaradas.
Remetente: Amílcar Cabral.
Destinatário: Osvaldo [Vieira],
Data: Sábado, 30 de Maio de 1964.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografados enviados por Amílcar Cabral 1960-1967.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondência.

Transcrição:

Conacri, 30 de Maio de 1964

Meu caro Osvaldo,

Não te escrevi há dias pelo Yaye, porque estava ocupadíssimo, mas espero que esta carta te chegue às mãos por ela e antes dele. O Yaye te contará a história dos estudantes que fizemos voltar para traz.

Vi com atenção o vosso relatório sobre as missões em andamento, e não deixo de lamentar o que tem acontecido com o Rui Djassi. Aliás até hoje ninguém parece saber onde pára o Rui, e tudo está a atrasar-se, a prejudicar-se por causa disso. […]


Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

25JAN2019.
_____________

(***) Vd. poste de  2 de Fevereiro de 2008 Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19437: PAIGC - Quem foi quem (12): Rui [Demba] Djassi, nome de guerra, Faincam (1938-1964), antigo comandante da região de Quínara, hoje "Herói da Pátria"







Citação:
(s.d.), "Relatório", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40094 (2019-1-24)  (Com a devid avénia...)

Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.056.036
Título: Relatório
Assunto: Relatório remetido a Amílcar Cabral, Secretário Geral do PAIGC, por Rui Djassi (Faincam), acerca da repressão da população daquela zona pelas tropas coloniais.
Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos



Transcrição / revisão  / fixação de texto: LG


Camarada Cabral:

A situação está difícil. O povo não pode fazer revolta em grande parte; porque serão massacrados como acontece no Cubisseque [península de Cubisseco, a sudoeste de Empada, vd. carta de Catió].

E de maneira [que], passando mais dias, nem dentro  [, no mato,]  podemos estar .

A lavoura está quase parada,  porque se te virem entrar no mato é logo tiro. Para trazer-nos comida é difícil.

A dificuldade surge dia a dia.

O número dos mortos pode  alcançar 12.

Do camarada Djassi (FAINCAM)



1. O que terá acontecido ao Rui Djassi (Faincam)? - pergunta o nosso editor Jorge Araújo (*)


O seu nome deixou de constar na estrutura da «guerrilha», então aprovada no Congresso de Cassacá, em 17 de fevereiro de 1964,  sendo substituído por Guerra Mendes [que irá morrer em combate, em 9 de maio de 1965, em N'Tuane (Antuane)], conforme se pode ler no preâmbulo das  decisões tomadas então tomadas (*)

 (...) "Todos os responsáveis e militantes do Partido sabem que a zona 8 [região de Quínara]  sofre ainda as graves consequências duma direcção que não esteve à altura das suas responsabilidades e ainda da acção nefasta e dos erros cometidos por alguns responsáveis dessa zona. 

Depois do nosso Congresso, os camaradas Arafam Mané e Guerra Mendes, encarregados de melhorar urgentemente a situação da zona 8, fizeram, juntamente com outros camaradas, o melhor que puderam para cumprir a palavra de ordem do Partido. Mas esses camaradas mesmos são os primeiros a reconhecer que as coisas não vão muito bem na "zona 8", onde a situação é agravada pelo desaparecimento do responsável Rui Djassi, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".(...) 


E mais se acrescenta (*):

(...) "Nestas condições, todo o trabalho feito na zona 11 e nas outras regiões do país, está a ser prejudicado pela situação má em que se encontra a zona 8.

Por outro lado, a experiência feita no norte do país em que todas as zonas se encontram sob a chefia e responsabilidade dos camaradas Osvaldo Vieira e Chico Mendes (Té) mostra que é possível fazer o mesmo no sul, enquanto se prepara a nova fase da nossa luta. Quer dizer, todas as Zonas do Sul (11, 8 e 7) devem ficar sob a direcção centralizada dum pequeno número de responsáveis, directamente ligados ao Secretário-Geral do Partido. É portanto necessário fazer uma reorganização da direcção do Partido, da luta no sul do país, com a maior urgência possível.

No Ponto I.8, lê-se (*):

(...) " Os ex-responsáveis de zonas, camaradas Rui Djassi (Faincam) e Domingos Ramos (João Cá) devem vir imediatamente ter com o Secretário-Geral do Partido, passando as suas funções respectivamente a Guerra Mendes e Abdoulaye Barry"  (...).

Terá sido o Rui Djassi mais um "erro de casting" do Abel Djassi (aliás, Amílcar Cabral) ? É possível, mas o líder histórico do PAIGC também não tinha muito por onde escolher... De qualquer modo, um, Rui Dkassi (Faincam) e outro, Domingos Ramos (João Cá), desapareceram cedo, muito antes do "pai da Nação"... Um em 1964, outro em 1966.


2. O Bobo Keita, sobre o seu camarada Rui Djassim  diz o aegyuinte  no seu "livro de memórias" (in Norberto Tavers de Carvlaho - De campo em campo: Conversas com o caomandante Bobo Keita,edição de autor, Porto, 2011, pp. 237/238):

"Parte V - Guerrilheiros caídos no campo da honra (....)

Rui Djassi

O Rui  Djassi comandava toda a zona de Quínara. Tinha a sua base em Gampará. Cheguei a passar por aí quando íamos para o Congresso de Cassacá em 1964 [, de 13 a 17 de fevereiro de 1964; na região de Quitafine e não na ilha do Como, que na altura estava sob ataques terrestres, navais e aéreos das NT, no decurso da Op Tridente].

Na altura, pela maneira como se comportavam na base, notava-se logo que em situação de emergência, havia um perigo certo. Só quem não tivesse nenhuma noção de estratégia e de defesa poderia aceitar aquela situação. Os camaradas procediam a rituais animistas, cantando, dansando, bebendo o vinho do cibe [ou vinho de palma].

A base vivia num constante ambiente de frenesim. Foi assim que foram surpreendidos pela tropa portuguesa. Os tugas lançaram então a ofensiva. Escolheram um momento onde o rio estava na sua fase de plena enchente. O rio separava a base duma grande mata que se situava do outro lado da base. De forma que, quando houve o ataque, apanhados de surpresa, muitos camaradas tentaram ganhar o rio para atravessar e porem-se a salvo na outra margem.

O Rui Djassi tentou os mesmos gestos mas acabou pro morrer afogado no rio. O seu corpo desapareceu nas águas desse rio e nunca mais foi encontrado. Isto aconteceu pouco depois da realização do Congresso de Cassacá, que teve lugar em fevereiro de 1964".



Em suma, tudo indica que o Rui [Demba]  Djassi morreu "sem honra nem glória", contrariamente ao Domingos Ramos.  Ambos são, todavia,  "heróis da Pátria", e existe a sua "campa" (, embora não tenha sido encontrados os seus restos mortais) no Memorial aos Heróis da Pátria, junto ao Mausoléu Amílcar Cabral no interior da Fortaleza de São José de Amura, em Bissau. Lá consta qye nasceu em 1938 e morreu em 1964.


3. E a  propósito do Rui Djassi, recupera-se aqui  o comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba, também ele estudioso da história do PAIGC, feito no poste P13787 (**), onde refere:

"O Rui Djassi era cobrador da Farmácia Lisboa, foi incorporado no Exército Português e desertou como furriel miliciano  para ir com o Amílcar Cabral e mais 29 para a China, tirocinar 'guerra revolucionária' e foi o 1.º a concluir tal formação. 

Residiu na estrada de Stª. Luzia e, quando surgiu na guerra, o pai ofereceu recompensa a quem o liquidasse. Foi o 1.º comandante de Quínara e terá sido o responsável do assassinato do irmão do Manuel Simões [, o Januário Simões], ora evocado por falecimento. Foi o comandante dos ataques a Tite, em Janeiro e Fevereiro de 1963, currículo que o terá safado das penas de morte decretadas por Amílcar no I Congresso de Cassacá, na altura da Operação Tridente". (*)


4. Há vários Djassi no PAIGC,o que pode levar a confundir quem trata a informação do Arquivo Amílcar Cabar (***):

(i) o próprio Amílcar Cabral usava como nome de guerra "Abel Djassi"

(ii) o Osvaldo Vieira tinha, como nome de guerra, "Ambrósio Djassi";

(iii) Leopoldo Alfama era o Duke Djassi (, atuava na região do cacheu);

(iii) aão sabemos qual era o verdadeiro do Rui Djassi, que se assina sempre Djassi (FAINCAM).

(iv) aparace um documento, no Arquivo Amílcar Cabral, datado de 24 de junho  1965, em Madina do Boé, e assinado por Djassi, que  não pode ser atribuído ao Rui Djassi (morto em 1964) mas simn ao Osvaldo Vieira (Ambrósio Djassi); aliás, não é só um documento, são vários, dando o Rui como comandante da base do Boé.

Numa revista académica brasileira, ODEERE (que  "publica trabalhos inéditos e originais desenvolvidos em torno das discussões sobre etnicidade, relações étnicas, gênero e diversidade sexual em diferentes tempos e espaços e abordando diversos grupos sociais, tais como indígenas, negros, africanos, mulheres etc."), encontrámos uma referência a Rui Djassi.

Mais exatamente à sua sobrinha, Nhima Muskuta Turé, nascida em Gampará (Fulacunda, Região de Quínara), em 1954...  Nasceu na "luta de libertação", era filha de combatentes, foi recrutada ("contra a sua vontade"), aos nove anos, pelo seu "tio Rui Djassi". Teve uma instrução rudimentar, foi enfermeira do PAIGC. Foi entrevistada em Bissau em 14/10/2009, era então enfermeira-chefe do centro de saúde de Belém, Bissau (****)-

5. Recorde-se, por fim,  que o Rui Djassi fez parte da segunda leva de militantes do PAIGC que foram enviados para a China, no 2.º semestre de 1960, para formação político-militar como futuros comandantes.

Rui Djassi fazia parte destes 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão, mais uma vez os seus nomes, por ordem alfabética:

(i) Constantino dos Santos Teixeira (nome de guerra, “Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);  oficialmente terá morrido de acidente na estrada Bafatá-Bambadinca; mas também há ainda suspeitas de assassinato, em 7/6/1978; foi primeiro ministro e chefe de Estado;

(iii) Domingos Ramos: morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966; tem nome de rua em Bissau; foi camarada do nosso Mário Dias no 1º curso de sargentos milicianos  (CSM) realizado na Guiné, em 1959;

(iv) Hilário Rodrigues “Loló”: , comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé;

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009): natural de Bissau; ex-Presidente da República; nome de guerrra, "Marga";

(vi) Manuel Saturnino da Costa, o único que ainda é vivo: será 1º ministro entre 1994 e 1997, num dos piores governos do PAIGC, na opinião do nosso saudoso Pepito (1949-2014);

(vii) Pedro Ramos: fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro"); era irmão do Domingos Ramos;

(viii) Rui Djassi: comandante da base de Gampará, n aregião de Quínara, morreu por volta de fevereiro de 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas;  tem nome de rua em Bissau;

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974=; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral (ironicamente repousam os dois, lado a lado, na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra); tem nome de rua em Bissau; o aeroporto internacional também ostenta o seu nome;

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada n o 2º semestre de 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; a sua cabeça foi depois levada para Tite, como "ronco"; era irmão de Manuel Saturnino da Costa: e terá sido o primeiro revés de Amílcar Cabral, no plano militar; tem nome de rua em Bissau.
__________________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 24 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19433 (D)outro lado do combate (42): A nova estrutura político-militar do PAIGC decidida no I Congresso, de Cassacá, em 17/2/1964: os líderes do 1º Corpo de Exército Popular (Jorge Araújo)


(***) Último poste da série > 25 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)

 Vd. postes anteriores da série: 

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (10): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)

7 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4473: PAIGC - Quem foi quem (9): Luís Cabral, entrevistado por Nelson Herbert (c. 1999)

4 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

1 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

12 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

18 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2190: PAIGC - Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)

6 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

(****) Vd, Patricia Alexandra Godinho Gomes  - "As outras vozes”: Percursos femininos, cultura política e processos emancipatórios na Guiné-Bissau.  ODEERE -  Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPREC), UESB . Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19433 (D)outro lado do combate (42): A nova estrutura político-militar do PAIGC decidida no I Congresso, de Cassacá, em 17/2/1964: os líderes do 1º Corpo de Exército Popular (Jorge Araújo)


Fig 4

Citação: (s.d.), "O Secretário-Geral do PAIGC e Presidente da Assembleia Nacional Popular, Aristides Pereira, e o Ministro das Forças Armadas, Nino Vieira, passando em revista uma base da Frente. A fotógrafa Bruna Amico, de costas.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_11290 (2019-1-18)



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil Op Esp. / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974): coeditor do nosso blogue






GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

A NOVA ESTRUTURA POLÍTICO-MILITAR DO PAIGC DECIDIDA NO I CONGRESSO DE CASSACÁ EM 17FEV'1964

- OS LIDERES DO 1.º CORPO DE EXÉRCITO POPULAR 





1.INTRODUÇÃO


Ainda que o conteúdo inicial da presente introdução nada tenha a ver com o título deste trabalho, ele servirá apenas para conceptualizar o quadro narrativo, e factual, que o precedeu.

Pretendo, deste modo, partilhar no fórum, uma vez mais, o que foi possível apurar no âmbito desta pequena investigação cruzada, onde foram seleccionados e utilizados alguns dos depoimentos julgados pertinentes existentes em cada um dos lados do conflito, e que dão corpo a esta minha primeira narrativa de 2019, abrindo-a a outros (novos) horizontes de análise.




Fig. 1

Por outro lado, é de relevar o património documental existente no Arquivo Histórico do ex-Banco Nacional Ultramarino, produzido pela Administração da Delegação da Guiné [Vd. Fig 1] e remetido para a sua Sede em Lisboa, sobre o qual o nosso camarada, incansável, Mário Beja Santos, nos tem presenteado com as suas «Notas de Leitura», tituladas «Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné», a quem agradecemos.


Como consequência desse seu trabalho de inegável mérito, o seu conteúdo tem captado a minha superior atenção, aproveitando esta oportunidade para o citar.


Estamos, então, perante informações que consideramos de elevado valor historiográfico para a compreensão do processo iniciado em 1961 a nível interno, com diversas acções subversivas, e que evoluíram para a confrontação bélica, preparada e estruturada além-fronteiras.





Figura 2 – Mapa da Guiné com as principais linhas de infiltração da guerrilha, em 1961/63 – infogravura publicada no P15795: «O início da guerra da Guiné (1961-1964)», de José Matos, historiador – Parte I (com a devida vénia).

O primeiro acto, a Norte, ocorreu em 20 de Julho de 1961, 5.ª feira, com um assalto à povoação de S. Domingos, em particular ao edifício onde estava instalado um pelotão da 1.ª CCAÇ (CCAÇ 3), "fazendo uso de terçados [espadas curtas e largas], armas de caça, espingardas e garrafas de gasolina. Cinco dias depois, outro grupo armado provoca danos materiais na estância turística da praia de Varela e ainda em Susana" - (P15795).

Seguiram-se, depois, novas acções subversivas, desta vez a Sul, com incursões armadas vindas da fronteira com a Guiné [-Conacri], actos registados durante o segundo semestre de 1962.

Como exemplo dessa subversão, refere-se o caso narrado pelo gerente do BNU onde escreve: "é nosso dever levar ao conhecimento da V. Exa que por volta das três da madrugada de ontem [25Jun'1962; 2.ª feira], pequenos grupos de indivíduos, que se supõe pertencerem ao PAIGC, atacaram a tiros de pistola em Catió a Administração do Concelho, a Central Eléctrica, o posto da PIDE e os CTT, cortando os fios telefónicos e atravessando árvores na estrada. Incendiaram também a jangada e três pequenos barcos que fazem a ligação de Bedanda para Catió. Entre Buba, Empada e Fulacunda, foram cortadas as comunicações telefónicas e destruídos alguns pontões feitos de paus de cibe" (P19291).
Como elemento de comparação, dá-se conta da versão escrita e assinada pelo Rui Djassi (Faincam, nome de guerra) [1938-1964], responsável do PAIGC [Zona 8] pelas acções supras, cujo conteúdo se transcreve:

"30.06.1962 [sábado] > Da última hora – EMPADA

Destruíram pontes no dia 27-28 [Junho'62], cortaram fios em grande quantidade. Há dificuldade [de] comunicação para vários pontos, entre os quais Bissira-Empada, Empada-Pam-Tchuma, Sacunda-Aidara.

No dia 28 [Junho] foi morto um comerciante europeu [Januário Simões, irmão de Manuel Simões, 1941-2014] que está [estava] ao serviço da PIDE.


Na mesma noite meteram fogo na casa do Anso Mara, também agente da PIDE.
Todos os professores catequistas daquela área foram presos sem motivo de justificação. Eis os nomes: Domingos Lopes; Mário Soares; Avelino Mendes Lopes; Bernardo Mango. E mais alguns camaradas. Agradecia mandar-me relógio para José Sanha.

ass: [Rui] Djassi (Faincam)"
Eis a reprodução do original [Fig 3]



Fig 3

Citação: (1962-1962), "Comunicados [Zona 8]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40585 (2019-1-18), com a devida vénia.

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Siares. Pasta: 04620.104.055. 
Título: Comunicados [Zona 8].
Assunto: Comunicados assinados por Rui Djassi (Faincam): destruição de pontes e comunicações na região de Empada; ataque a agentes da PIDE; prisão de professores catequistas (entre os quais Bernardo Mango); ataque das tropas portuguesas à tabanca de Caur e à população.
Data: Quarta, 27 de Junho de 1962 - Quarta, 4 de Julho de 1962.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1960-1962 (interna).
Documentos anexos a 04620.104.054.
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.


2. A NOVA ESTRUTURA POLÍTICO-MILITAR DO PAIGC DECIDIDA NO I CONGRESSO DE CASSACA EM 17 DE FEVEREIRO DE 1964


Neste segundo ponto daremos conta da decisão tomada durante o I Congresso de Quadros do PAIGC realizado em Cassacá, entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, nomeadamente no âmbito político-militar, cujos elementos foram retirados de um documento manuscrito de Amílcar Cabral (1924-1973), localizado nos arquivos existentes na Casa Comum, Fundação Mário Soares, constituído por sete folhas, e que serão reproduzidas no fim deste trabalho.

De referir, ainda, que esta narrativa segue na "fita do tempo" uma outra relacionada com o envio de uma carta de Aristides Pereira (1923-2011) a 'Nino' Vieira (1939-2009), escrita igualmente em Cassacá, em 22 de Janeiro de 1964, um ano depois do ataque a Tite, informando-o da intenção de se realizar um encontro, ou seja, o "I Congresso" - P19335.[Fig 4, em cima]

Eis, então, o conteúdo das decisões tomadas.

23 de Junho de 1964 > Decisão

"O desenvolvimento da nossa luta armada exige que se tomem medidas urgentes e concretas tanto no plano político como militar. A VI Conferência de Quadros do Partido (I Congresso) tomou decisões importantes em relação a essas medidas, principalmente no que respeita à organização do Partido, as regiões libertadas, a criação das FARP, com o reforço das guerrilhas em todo o país, a criação do exército popular e a instalação das milícias populares.

Todos os responsáveis e militantes do Partido sabem que a zona 8 sofre ainda as graves consequências duma direcção que não esteve à altura das suas responsabilidades e ainda da acção nefasta e dos erros cometidos por alguns responsáveis dessa zona. Depois do nosso Congresso, os camaradas Arafam Mané e Guerra Mendes, encarregados de melhorar urgentemente a situação da zona 8, fizeram, juntamente com outros camaradas, o melhor que puderam para cumprir a palavra de ordem do Partido. Mas esses camaradas mesmos são os primeiros a reconhecer que as coisas não vão muito bem na "zona 8", onde a situação é agravada pelo desaparecimento do responsável Rui Djassi, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".


[O que terá acontecido a Rui Djassi (Faincam)?, uma vez que o seu nome deixou de constar na estrutura da «guerrilha», então aprovada, sendo substituído por Guerra Mendes [† em combate, em 09Mai'65, em N'Tuane (Antuane)], conforme pode ler-se no ponto 8.

A propósito de Rui Djassi, recupero o comentário do camarada Manuel Luís Lomba, feito no P13787, onde refere:

"O Rui Djassi era cobrador da Farmácia Lisboa, foi incorporado no Exército Português e desertou como furriel mil para ir com o Amílcar Cabral e mais 29 para a China, tirocinar "guerra revolucionária" e foi o 1.º a concluir tal formação. Residiu na estrada de Stª. Luzia e quando surgiu na guerra o pai ofereceu recompensa a quem o liquidasse. Foi o 1.º comandante de Quinara e terá sido o responsável do assassinato do irmão do Manuel Simões [, o Januário Simões], ora evocado por falecimento. Foi o comandante dos ataques a Tite, em Janeiro e Fevereiro de 1963, currículo que o terá safado das penas de morte decretadas por Amílcar no I Congresso de Cassacá,  na altura da Operação Tridente".
Alguém tem algo mais a acrescentar, relacionado com este mistério?].

O documento refere ainda:

"Nestas condições, todo o trabalho feito na zona 11 e nas outras regiões do país, está a ser prejudicado pela situação má em que se encontra a zona 8.

Por outro lado, a experiência feita no norte do país em que todas as zonas se encontram sob a chefia e responsabilidade dos camaradas Osvaldo Vieira e Chico Mendes (Té) mostra que é possível fazer o mesmo no sul, enquanto se prepara a nova fase da nossa luta. Quer dizer, todas as Zonas do Sul (11, 8 e 7) devem ficar sob a direcção centralizada dum pequeno número de responsáveis, directamente ligados ao Secretário-Geral do Partido. É portanto necessário fazer uma reorganização da direcção do Partido, da luta no sul do país, com a maior urgência possível.

Por isso, tomo as seguintes decisões, em nome da direcção do Partido.

I – Guerrilhas

1. Todas as zonas do sul do país (11, 8 e 7) ficam sob a chefia do camarada João Bernardo Vieira ('Nino'; Marga), membro do B.P. e actual chefe da região (zona 11). Ele dirige todos os responsáveis de zonas abaixo indicados.

2. O camarada "Nino" é assistido nas suas funções por um grupo de responsáveis constituído pelos seguintes camaradas: João Tomas Cabral, Arafam Mané, Guerra Mendes, Abdoulaye Barry e Constantino Teixeira.

3. O camarada João Tomas Cabral desempenhará junto do camarada Nino as funções de Comissário político para todo o sul do país. Ele deve trabalhar em inteira ligação com o camarada Nino.

4. O camarada Arafam Mané passa a ser o primeiro responsável da região de guerrilha Catió-Cacine (antiga zona 11).

5. O camarada Guerra Mendes é nomeado primeiro responsável da região de guerrilha Fulacunda-Bolama (antiga zona 8).

6. O camarada Abdoulaye Barry passa a ser o primeiro responsável da região de guerrilha Xitole-Bafatá (antiga zona 7).

7. O camarada Constantino Teixeira tem a categoria de primeiro responsável da região de guerrilha e passa a fazer a ligação permanente entre as diversas regiões e o camarada Nino, com função de controlador para todo o sul do país.

8. Os ex-responsáveis de zonas, camaradas Rui Djassi (Faincam) e Domingos Ramos (João Cá) devem vir imediatamente ter com o Secretário-Geral do Partido, passando as suas funções respectivamente a Guerra Mendes e Abdoulaye Barry.

9. O camarada Nino deve passar as suas funções na Zona 11 ao camarada Arafam Mané. Deve, além disso, começar a dirigir todas as regiões do sul do país, para o que deve fazer as inspecções necessárias e tomar todas as medidas que julgar úteis para a melhoria da luta nessas regiões. A base do camarada Nino deve ficar instalada na região de Catió-Cacine, onde considerar mais conveniente para o bom cumprimento dos seus deveres.

10. O camarada Nino tem autoridade para escolher e nomear os diversos responsáveis dos sectores e bases da guerrilha dentro das regiões a sul do país. Pode igualmente destituir ou transferir todo e qualquer responsável, se isso for conveniente para o desenvolvimento da luta.

11. Sugiro no entanto a seguinte reorganização da direcção das guerrilhas nas diversas regiões e sectores:

a) Catió-Cacine (zona 11) – comissão regional da guerrilha – Arafam Mané, Saco Camará, Quade N'dami, Aguinaldo Noda,

Comissário político geral: Sadjo Bambo.

Responsável principal: Arafam Mané

Responsável do sector de Quitafine: Saco Camará 

Responsável do sector de Chão de Nalus e Como: Arafam Mané

Responsável do sector de Canframe: Aguinaldo Noda

Responsável do sector de Calbert (Tombali): Quade N'dami

- Os responsáveis das diversas bases e dos grupos de guerrilha devem ser indicados pelo camarada Nino.


b) Fulacunda-Bolama (zona 8) – comissão regional da guerrilha – Guerra Mendes, João Tomás, Madna na Isna, Bromejo e Cabiru Baldé

Comissário político geral: João Tomás

Responsável principal: Guerra Mendes

Responsável do sector de Quinara: Guerra Mendes

Responsável do sector de Bolama: Caetano Barbosa

Responsável do sector de Buba: Bromejo

Responsável do sector de Cubisseco: Madna Na Isna

Responsável do sector de Fulamore: Yafai Camará

Responsável do sector fronteira (Contabari): Cabiru Baldé

- Os responsáveis das bases e dos grupos de guerrilha são indicados pelo camarada Guerra Mendes, com aprovação do camarada Nino [Vd. Fig 5].

c) Xitole-Bafatá (zona 7) – comissão regional da guerrilha – Abdulai Barry, Suleimane Djaló, Braima Camará, Tito Fernandes.

Comissário político geral: Tito Fernandes

Responsável principal: Abdulai Barry

Responsável do sector de Xitole: Braima Camará

Responsável do sector de Xime: Abdulai Barry

Responsável do sector de Saltinho e Caré: [?] [nome ilegível]

Responsável do sector de Bangacia: Suleimane Djaló

Responsável do sector de Bambadinca: Joãozinho Lopes

- Os responsáveis das bases e dos grupos de guerrilha devem ser escolhidos pelo camarada Abdulai Barry, com aprovação do camarada Nino."




Fig 5

Citação: (1965), "Desfile de um destacamento das FARP, comandadas por Nino Vieira", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43067 (2019-1-1)



II – Criação do 1.º Corpo do nosso Exército Popular


1. Deve-se criar imediatamente o 1.º Corpo do nosso Exército Popular no Sul do País, de acordo com as decisões do nosso Congresso. Nenhuma desculpa, razão ou argumento pode servir para retardar mais a criação do exército. Devemos criar as primeiras unidades do exército com os homens e o material de que podemos dispor neste momento, sem prejudicar grandemente a acção e o desenvolvimento das guerrilhas no sul do país. Temos no entanto que compreender que a criação do exército representará um reforço da nossa força e, portanto, permitirá indirectamente, o fortalecimento das nossas guerrilhas.

2. O camarada Nino deve empregar o melhor do seu esforço para a criação imediata do Exército no sul do país. Para isso deve ser devidamente ajustado com todos os camaradas responsáveis e militantes, que lhe darão a melhor colaboração. Terá, além disso, toda a assistência do Secretário-geral e da direcção do Partido.

3. Devem ser criadas imediatamente duas Subsecções do Exército, com os nomes de "Botchecol" (1.ª subsecção) e "Vitorino" (2.ª subsecção). A organização e a estrutura dessas unidades do Exército popular são descritas pormenorizadas em documento secreto, que segue para o camarada Nino.


4. Estas duas subsecções, com todos os Corpos do nosso Exército Popular, serão superiormente dirigidas pelo Comité Principal do Exército, o qual é subordinado ao Conselho de Guerra. No sul do país, as unidades criadas são directamente dirigidas por um comando-geral do sul e pelos responsáveis indicados pela direcção do Partido.

5. O comando-geral do sul é formado pelos seguintes camaradas:

Nino / Marga – comandante geral

Carlos Leal – comissário político geral

Umaro Djaló – comandante da subsecção

Saturnino Costa – comandante da subsecção

Na qualidade de comandante geral, o camarada Nino, com a colaboração do camarada Comissário Político geral, estuda e planeia, de acordo com o Secretário-geral, ou os seus representantes, todas as acções militares e políticas a realizar pelo exército no sul do país. Os camaradas das subsecções são responsáveis pela execução dos planos e a realização total das acções determinadas pelo comando, de acordo com a direcção do Partido.

6. A subsecção "Botchecol" tem os seguintes dirigentes:

Umaro Djaló – comandante

Humberto Gomes – 2.º comissário político

Gustavo Vieira – chefe dos grupos especializados


7. A subsecção "Vitorino [Costa] tem os seguintes dirigentes:

Manuel Saturnino Costa – comandante

Mamadu Alfa Djaló – 1.º comissário político

Ngalé Yala – 2.º comissário polític

Mário Silva – chefe dos grupos especializados

8. Os chefes de grupo e comissários políticos de grupos devem ser indicados pelo comando geral do Sul

Nota: Tudo isto deve ser feito completamente até ao dia 15 de Julho de 1964".


Segue-se a reprodução das sete folhas originais [Fig 6].











Citação: (1964), "Decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (I Congresso)", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42295 (2019-1-) (com a devida vénia)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 07061.032.017.
Título: Decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (I Congresso). Assunto: Manuscrito de Amílcar Cabral das decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (Congresso de Cassacá). Organização do PAIGC; a situação das regiões libertadas; a criação das FARP; a criação do Exército Popular e a instalação das milícias populares; problemas da Zona 8; guerrilha; criação do I Corpo do Exército Popular; organização e estrutura de uma Subsecção. Em anexo uma carta de Amílcar Cabral para Nino Vieira e uma folha de apontamentos.
Data: Terça, 23 de Junho de 1964.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
22Jan2019.
______________

Nota do editor Jorge Araújo:

Último poste da série > 26 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19335: (D)outro lado do combate (41): Carta de Aristides Pereira a 'Nino' Vieira, escrita em Cassacá, em 22 de janeiro de 1964 (Jorge Araújo)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16123: O segredo de... (28): Domingos Ramos e Mário Dias, dois camaradas e amigos da recruta e do 1º CSM (Bissau, 1959), que irão combater em lados opostos... No último trimestre de 1960, Domingos Ramos terá sido vítima do militarismo e racismo de um oficial português quando foi colocado no CIM de Bolama, como 1º cabo miliciano

1. Já aqui publicámos um dos textos mais notáveis do blogue, daqueles que terão, obrigatoriamente, de figurar na antologia dos 100 melhores postes da Tabanca Grande  que um dia, se houver tempo, pachorra e saúde,  ainda haveremos de organizar... Referimo-nos ao poste P3543, de 30/11/2008, do nosso camarada e grã-tabanqueiro da primeira hora  Mário Dias (1).

Mário [Roseira] Dias  [, foto de 2005, à direita, ] foi para a Guiné no início dos anos 50, ainda adolescente, tendo assistido à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943... Conheceu Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959,


[foto à esquerda, efígie de Domingos Ramos em nota de 100 pesos, emetida em 1990, pelo Banco Centreal da Guiné-Bissau]



Como é sabido, o Domingos [Gomes Ramos tornar-se-ia um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC, sendo comnhecido pelo seu nome de guerra, "João Cá".  Este CSM  acabaria, de resto, por ser um alfobre de quadros... para o PAIGC.

Segundo o próprio Mário Dias nos conta (2), o Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado,  ou seja, já não era um indígena.

Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, colocado no Centro de Instrução Militar (entretanto transferido de Bissau para Bolama).

Os dois amigos seguirão  caminhos diferentes: Mário Dias será um dos fundadores da CCmds da Guiné e é combatente no CTIG (até 1966),  seguindo depois para Angola, como sargento do quadro permanente,  não sem antes ter estado frente a frente com o seu antigo camarada e amigo, em meados de 1965, nas matas do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá...

Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante anos e revelou, em primeira mão, aqui no nosso blogue, aos seus amigos e camaradas da  Guiné (1). Um ano e poico depois o Domingos Ramos morreria, em combate, em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (3). A sua perda foi particularmente por Amílcar Cabral.

O Mário, grande português e um homem de invulgar nobreza,  tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Diz ele:

"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

Por tudo isto, estes dois homens merecem ser aqui lembrados: um já morreu sem ter podido partilhar  o seu segredo com o seu antigo camarada e amigo (e sobretudo confirmar a sua versão dos factos, passados em Bolama).

O que se passou, realmente, em Bolama, por volta de outubro de 1960 ? Domingos Ramos, segundo se depreende do testemunho (insuspeito) de Mário Dias,  terá sido  vítima do militarismo e do racismo de um oficial português, ao punir o 1º cabo miliciano Ramos com vários dias de prisão.


2. O segredo de... Domingos Ramos

por Mário Dias


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Centro de Instrução Civilizados (CIC) > Maio de 1959 > Recruta >  "Eu, Domingos Ramos e outros"...

 Texto e fotos: © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados


Manhã de 8 de Maio de 1959. Na parada do quartel da Bateria de Artilharia de Campanha [BAC] em Bissau, Santa Luzia, defronte ao que viria a ser o QG [Quartel General], mancebos agrupavam-se segundo indicações de alguns oficiais e sargentos e preparavam-se para iniciar a sua vida militar. Eu era um deles. Com receio, mas também com alguma expectativa pelo que iria acontecer.

Foi nas instalações desse quartel que funcionou pela primeira vez uma escola de recrutas seguida de um CSM [ Curso de Sargentos Milicianos ] para europeus e guineenses considerados civilizados ou assimilados, já com formação escolar de, pelo menos, o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.

Até essa data, a recruta era separada e, sendo os europeus um pequeno número que não justificava uma incorporação anual, iam ficando esperados alguns anos e, quando havia suficientes mancebos para formar um ou mais pelotões, realizava-se a recruta que tinha lugar em Bolama. Portanto, esta incorporação de 1959, foi a primeira na Guiné que juntou europeus e africanos.

Curiosamente, a unidade chamava-se Centro de Instrução de Civilizados (CIC) por se destinar a africanos considerados civilizados [ou assimilados]. O comandante era o capitão Teixeira, pai do conhecido historiador Nuno  Severiano Teixeira (4). Nos anos seguintes, talvez devido ao caricato da designação, passou a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM) e foi transferido para Bolama.


Foto nº 1 A

Foto nº 1 B
Aqui está o 1º pelotão do CIC da incorporação de 1959 em Bissau [Foto nº1]. Eu estou à esquerda, na 3ª fila (de óculos) [Foto nº 1 A]. Uma pequena chamada de atenção para o facto de os homens situados à esquerda do pelotão serem europeus. Tal não se deve a qualquer espécie de discriminação ou elitismo. Aconteceu que, formando-se, como sabem, por alturas, nós, os tugas, éramos os mais pequenos. Dos elementos africanos, alguns foram para o PAIGC após a passagem à disponibilidade. De entre eles, quero aqui destacar o Domingos Ramos (segundo à direita na fila de pé) [Foto nº 1 B].

O Domingos Ramos era um indivíduo bem constituído fisicamente e, sobretudo, moralmente. Aquilo que se pode chamar, um bom gigante. Desde o início da nossa vivência comum que por ele tive uma especial estima. Tornámo-nos bons amigos em todas as situações e na caserna, nas horas de descanso, trocávamos opiniões sobre os mais variados assuntos, com especial interesse da minha parte por tudo relacionado com os usos e costumes dos guineenses. Muito aprendi com ele. Recordo ainda com saudade e emoção as paródias, próprias da irreverência da nossa juventude. E da célebre água pú que ele me ensinou e a que aderi com entusiasmo.

Eu explico: Água pú era uma bebida/comida energética, fácil de fazer, fruto do desenrascanço e instinto de sobrevivência dos africanos e que eu desconhecia. Trata-se de um tigela ou caneca com água onde se dissolve açúcar, quanto mais melhor, e nessa calda se vão molhando pedaços de pão quase como se de açorda se tratasse.

Que bem que sabia! Fiquei cliente viciado desde a primeira vez que, pela mão do Domingos Ramos provei. No final da 3ª refeição, metíamos no bolso (à socapa) o casqueiro sobrante que guardávamos no armário da caserna onde, para o efeito, não faltava o respectivo açúcar. Saída para Bissau - as garotas ou bajudas estavam à espera - e, após o recolher, lá íamos repor energias com a água pú. Mal o sargento de dia dava a ordem de destroçar, era uma correria, direitos aos armários gritando com todo o entusiasmo: Água púuuuu…

Nesse ambiente de sã camaradagem se passou o tempo até ao juramento de bandeira que teve lugar em 10 de agosto de 1959, alguns dias após os célebres acontecimentos do Pidjiguiti (5). Terminada a recruta, teve início a 14 de agosto de 1959 o 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) que houve na Guiné. Nesta fase, já que os instruendos do CSM eram menos que durante a recruta (alguns foram para a Escola de Cabos e outros ficaram como soldados),  os nossos laços de amizade estreitaram-se ainda mais.


Foto nº 2

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > Instruendos do  CSM / 59  . Em baixo, a partir da esquerda, : eu [, Mário Dias, de óculos]; Domingos Ramos apontando a velha Mauser; Pinhel; Orlando; e Laurentino Pedro Gomes [que, tal como eu, após passagem à disponibilidade, regressou ao serviço como furriel do quadro, seguindo a carreira milita; segundo me disseram, faleceu num acidente de viação nas proximidades de Cacheu já depois da independência].

De pé, também a partir da esquerda, está um (não me lembro o nome) que veio a ser professor de trabalhos manuais no liceu de Bissau; a seguir o Telmo que acabou por se formar em economia e já faleceu; o Armindo Birges; depois é o alferes Vigário, um dos nossos instrutores que viria a falecer em combate em Angola; segue-se o Coelho, exímio acordeonista, sobrinho de um conhecido comerciante de Cacine e que acabou emigrando para o Brasil; finalmente o 1º cabo Cerqueira, que já pertencia ao Quadro Permanente [QP] e que fez o CSM para obter condições de promoção a furriel.


Foto nº 3

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos montando a tenda... Aqui está o Domingos Ramos nos exercícios finais do CSM (semana de campo), atarefado na montagem da barraca que era feita com 3 panos de tenda ligados entre si por botões metálicos.n Certamente que alguns tertulianos se recordam deste primitivo sistema. A fotografia não tem grande qualidade mas não deixo de mostrá-la, por se tratar de uma pessoa que muito estimei.


Foto nº 4

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos na Semana de Campo... Aqui, como se pode ver pelos apetrechos que levam nas mãos (cantil e marmita) iam a caminho do carro que nos trazia o almoço durante a semana de campo. O Domingos Ramos é o segundo da direita.

O CSM terminou 28 de novembro [de 1959] e a 29 fomos promovidos a 1ºs cabos milicianos que era uma forma de o regime de então poupar umas massas. Fazíamos sargentos de dia, frequentávamos a messe e tínhamos as responsabilidades inerentes mas… ganhavamos como cabos.

A seguir ao CSM, tivemos que dar uma recruta como monitores. Alguns, entre os quais o Domingos Ramos, foram colocados para o efeito em Bolama, ficando outros, como eu, em Bissau. Creio que algo se passou em Bolama que o tornou permeável aos apelos do PAIGC e o levou a aderir à luta. Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter.

O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós. Este Rui Jassi era filho do capitão de 2ª linha Jassi que morava no lado direito da estrada de Santa Luzia, perto da capela aí existente. Era uma figura incontornável nas cerimónias e festividades às quais comparecia orgulhosamente com a sua farda branca. Quando soube que o filho tinha passado para o PAIGC, segundo constava, dizia que oferecia tudo quanto tinha a quem lhe trouxesse o seu cadáver. Talvez isto não passe de mais uma das muitas lendas que se foram gerando.

Mas, regressando ao Domingos Ramos, tema principal desta minha intervenção, creio que foi um acontecimento em Bolama que o fez mudar de ideias. Um dia, já próximo da nossa passagem à situação de licença registada, que ocorreu em outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em fevereiro de 1961, o Laurentino [Pedro Gomes] mostrou-me uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama,  respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias.

Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que "palavra de oficial faz fé" é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado.

E foi isso, creio, que o levou a juntar-se ao PAIGC. Nos primeiros dias de novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros cujos nomes já não me ocorrem, partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento.

Morreu em combate num dos ataques ao quartel de Madina do Boé onde está sepultado. Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar.



Foto nº 5

Guiné > Bissau > 1959 > 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias, Domingos Ramos e outros...
 De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro.

Foto nº 6

Guiné > Bissau > 1959 > O 1º Curso de Sargentos Milicianos foi uma alfobre de quadros para o PAIGC... Alguns dos outros que foram meus camaradas na recruta. De poucos nomes me recordo mas muitos também foram guerrilheiros. Dos dois que estão mais altos, o da direita é o Constantino Teixeira, mais conhecido por Chucho ou Axon, que foi igualmente figura importante do PAIGC. Chegou a ser ministro da segurança interna, salvo erro, no tempo imediatamente a seguir à independência. Apareceu, algum tempo depois, morto dentro do carro numa rua de Bissau. Daquele gordinho de óculos escuros que está com a mão no bolso da camisa, só me recordo da sua alcunha que era Diblondi. O porquê de tal alcunha, não sei. Peço desculpa por omitir tantos nomes, embora me lembre das pessoas. Nunca tive o cuidado de ir anotando os acontecimentos nem de escrever no verso das fotos os nomes das pessoas. Péssimo hábito de que agora me arrependo.

Foto nº 7

Guiné > Bissau > 1959  > O meu pelotão de recrutas africanos, de pé descalço...

Termino com esta foto [nº 7] dos meus primeiros recrutas porque ela constitui o testemunho de um facto que, possivelmente, muitos desconhecem e outros certamente acham impossível se apenas contado. Reparem bem nestes soldados indígenas na Guiné em 1959. É isso mesmo que estão a ver: descalços.

Era assim que faziam toda a recruta e só depois de prontos lhes eram distribuídas as botas. Dizia-se que eles preferiam andar descalços. Mesmo sendo verdade, e muitos de nós se devem lembrar que, de facto, o andar descalço era um hábito muito arreigado, não se justifica e é humilhante que soldados assim andassem. (6)

Mário Dias
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Notas do editor:

(1) vd. poste de 30 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

(...) De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.

Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.

Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.

E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. (...)


(2) Vd. 1 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P474: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(3) Domingos Ramos,  morto em Madina do Boé em 10 de novembro de 1966, é um herói nacional da Guiné-Bissau, figurando em notas de banco (por exemplo, de 100 pesos, emissões de 1975 e 1990), nomes de ruas e instituições de ensino... Foi um dos pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral. Tinha também um irmão na guerrilha, Paulo Ramos.

Vd. referênciaa ao Domingos Ramos no postes:

22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - P119: Antologia (10): Dossiê Guiné (Vida Mundial, 1971) (conclusão) (A. Marques Lopes)

12 de dezembro de 2007 >  Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

(4) Henrique Nuno Pires Severiano Teixeira: é um académico e político português. Professor catedrático (Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais da Universdiade NOVA de Lisboa) , é também vice-reitor da mesma instituição. Dirige o Instituto Português de Relações Internacionais. Nasceu em Bissau em 5 de novembro de 1957. Ministro da Administração Interna no XIV Governo Constitucional, dirigido por António Guterres, de 14 de setembro de 2000 a 8 de abril de 2002; e ministro da Defesa Nacional no XVII Governo Constitucional, com José Sócrates como primeiro ministro (de 12 de março de 2005 a 26 de outubro de 2009).  É autor, entre diversas obras, da Nova História Militar de Portugal, 5 Volumes (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003-2004).

(5) Local do porto de Bissau onde, a 3 de Agosto de 1959, na sequência da repressão de um conflito laboral (uma greve de marinheiros, estivadores e outros trabalhadores portuários, reivindicando aumentos salariais e melhores condiçõs de trabalho), terá morrido um número nunca rigorosamente determinado de mortos e feridos. Estes acontecimentos foram habilmente explorados por Amílcar Cabral, passando a efeméride a ser considerada pelo PAIGC como o início (oficial ou oficioso) da luta de libertação da Guiné.

Vd. poste de 2 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (19): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias

(6) Último poste da série > 3 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15192: O segredo de ... (27): A minha prenda de Natal de 1963: a destruição de Sinchã Jobel, com o meu engenhoso fornilho montado numa mala de cartão... (Alcídio Marinho, ex-fur mil at inf MA, CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65)