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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21705: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (78): CoBrA - Operação Goa: novo álbum de Banda Desenhada: testemunhos precisam-se sobre a Invasão de Goa em 1961, nomeadamente dos ex-prisioneiros de guerra


Anexo B: exemplo de página já desenhada  
do novo álbum de BD (Banda Desenhada) / novela gráfica


CoBrA: Operação Goa

"Esta é uma obra de ficção, em forma de novela gráfica, 
que narra as manobras e artimanhas do CoBrA, 
agência secreta liderada pelo controverso Jorge Jardim, 
que eventualmente levam à resolução da situação 
dos prisioneiros Portugueses detidos em Goa 
após a derrota no conflito militar de 1961 com a India."


1. Mensagem de Marco Calhorda < mcalhorda@gmail.com >

Date: segunda, 28/12/2020 à(s) 16:00
Subject: CoBrA: Operação Goa


Boa tarde,

Antes de mais, espero que tenham tido um bom natal.

Neste preciso momento, eu e o meu parceiro criativo (Daniel Maia – https://danielmaia-art.blogspot.com/) estamos na fase de pré-produção de uma novela gráfica sobre a Invasão Indiana de Goa de 1961 - https://cobraop.com/

Junta-se sinopse [Anexo A] mais  exemplo de página já desenhada [Anexo B]  e gostaríamos de adicionar testemunhos de pessoas que tenham vivido a situação "na pele" [Anexo C].

Eu já me socorri imensas vezes do vosso blogue para fazer pesquisas, incluindo a invasão de 1961, operação Mar Verde, etc., e gostaria de saber se era possível fazer-se um post a solicitar testemunhos (diretrizes em  Anexo C) sobre a Invasão de Goa.

Alguns desses testemunhos seriam posteriormente incluídos no livro como material de apoio e contexto. O fator humano faz com que o publico sinta a história de uma forma mais vivida, real.

Como eu não sou militar, nem participei na Guerra Colonial, assumi que não podia seu eu próprio a fazer tal post. Posso solicitar a vossa assistência por favor?

Fico, desde já, grato pela vossa atenção. Se precisarem de mais esclarecimentos, coloco-me a disposição para vos enviar mais informação ou fazer um zoom/WhatsApp.

Com os melhores cumprimentos,

Marco Calhorda

Anexo A > CoBrA: Operação Goa > Sinopse

Goa, 1961.

Os ventos da descolonização começam a soprar. Portugal está presente na India há mais de 450 anos mas tem uma crescente dificuldade em defender um território situado a mais de 8 mil quilómetros de distância da Metrópole. 

Por um lado, os recursos materiais e humanos são escassos. Por outro, um governo sob uma orgulhosa administração Salazarista que se recusa a adaptar aos novos tempos.

Suportado pelo sentimento internacional do pós-guerra que promove a
autodeterminação de múltiplas nações e, consequentemente, a desintegração dos velhos impérios, o governo nacionalista de Jawaharlal Nehru dispõe de um contexto favorável para anexar Goa à India e assim terminar o processo de integração territorial que havia começado em 1954 com a anexação de Dadra e Nagar Haveli, até então também territórios Portugueses. 

Acresce também o facto de que a India tinha sofrido uma humilhação militar com a China na disputa da zona fronteiriça de Ladakh, pelo que a anexação de Goa serviria o propósito de recuperar algum prestígio político junto da população Indiana.

É neste contexto que o CoBrA (Comissariado contra a Brutalidade Animal) entra em ação nos momentos que antecedem a invasão de Goa pelas forças da União Indiana.

Agência secreta de cariz fortemente Lusitano, leia-se com escassez de meios e
recursos sofisticados, mas abundante em criatividade e técnicas pouco ortodoxas, ao jeito do desenrascanço Português, o CoBrA é responsável pelo planeamento e execução de uma série de atividades clandestinas extremamente audazes em 3 distintos continentes, tudo com o intuito de fortalecer a fraca posição negocial do estado Português nas futuras negociações com a India para definir o futuro de Goa.

Baseada em eventos históricos sobre a invasão de Goa, esta é uma obra de ficção que narra a intervenção do CoBrA, agência secreta liderada pelo controverso Jorge Jardim, para forçar a abertura de canais de comunicação entre os vários intervenientes desta estória, na coação dos poderes políticos, incluindo os Portugueses, a abandonarem considerações imediatistas e oportunismos cínicos em prol do bemestar dos seus cidadãos e, finalmente, no engendrar do repatriamento dos prisioneiros Portugueses detidos em Goa.


Anexo C > Notas para testemunho

domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20814: (De) caras (150): Acossados pelo IN, numa agonia de 4 dias, entre 7 e 10 de outubro de 1965: seis camaradas, da CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423, no decurso da Op Lenda, em Gamol, Fulacunda, têm um destino cruel: 3 são abatidos, 2 suicidam-se e o último rende-se (Rui A. Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; e ex-cap mil, CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72)

Rui A.Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.

1. "Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra, muito pouco "guerreiro", da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (,o seu corpor nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui Alexandre Ferreira.

"Rumo a Fulacunda" é o título do primeiro livro de memórias do nosso amigo e camarada Rui A. Ferreira, que hoje vive em Viseu, lutando contra uma doença degenerativa, razão por que há anos que não colabora no nosso blogue, onde tem  mais de 70 referências.

Neste livro, conta-nos um cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423. Seis militares, perdem-se do grosso das NT,  dividas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, nesse próprio dia.

O Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Este episódio já aqui foi publicado, há quase 13 anos atrás (*). Muitos dos novos membros da Tabanca Grande nunca o leram, e o nome do Rui A. Ferreira tende a ficar esquecido. Queremos reavivar esta história, em homenagem às vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro; e o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma).

Por outro lado, e no atual contexto de confinamento, resultante da pandemia de COVID-19 e da declaração do estado de emergência, achámos por útil voltar a reproduzir este excerto do livro "Rumo a Fulacunda", agora noutra série, "(De)Caras" (**).

É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se.  Fica aqui o desafio aos nossos leitores, muitos dos quais poderão pôr-se na pele dos nossos infortunados camaradas: "Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"... 

Não, não é um "jogo de guerra", muito menos electrónico... Foi escrito com sangue, suor e lágrimas... Poderia ser um estudo de caso, relevante para a formação humana e militar e que levanta inúmeras questões, do foro militar, ético, jurídico, psicológico, psicotalógico, socioantropológico, filosófico,  etc.

Falta-nos mais informação sobre este episódio e o seu contexto: por exemplo, oficial ou oficiosamente, os nossos camaradas são dados como mortos em 6/10/1965, mesmo sem os corpos terem sido recuperados...

Por outro lado, só mais tarde se terá sabido do aprisionamento do José Veira Lauro... O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [, sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860],  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423.

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se:  voltaram ao local da emboscada ?... Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic),  num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do Alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,  a primeira baixa do grupo seria  o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o  José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a  10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicído) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os persegiu durante três ou quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda,  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário: L.G.;  fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).

(...) Na madrugada do dia sete de Outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23 [, a CCAÇ 1423], Capitão de Artilharia [ou Infantaria ?]  Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.


Seis homens isolados 
e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso [, alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [, da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo,  que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas 
do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia [, 9 de outubro de 1965] caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a 
dois suicídios

No último dia [, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.


No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


A morte do Alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do Soldado Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia, foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (****)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista nº 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...) (*****)




Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > "[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

______________

(**) Último poste da série > 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (122): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.

(...) Um outro camarada ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)


Militares mortos:

Armando dos Santos Almeida, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 /Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Queiriga, Vila Nova de Paiva / Corpo não recuperado.

Armando Leite Marinho, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Jugueiros, Felgueiras / Corpo não recuperado.

Fernando Manuel de Jesus Alves, 1.º Cabo / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Leiria / Corpo não recuperado.

José Ferreira Araújo, Soldado CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Povolide, Viseu / Corpo não recuperado.

Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, Alferes / CCaç 1420 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Belém, Lisboa / Corpo não recuperado.

[No portal da Liga dos Combatentes, Mortos no Ultramar, todos estes nossos camaradas continuam a ser dados com mortos,  em combate, no dia 6 de outubro de 1965.]

Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para  o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura. Pertence ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pires Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca; pertence ao BCAÇ 1858  (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67).

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19147: O nosso livro de visitas (197): Conheci em Angola o cap inf António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, ex-cmdt da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835, que passou por Guileje (1968/69) e que esteve prisioneiro na Índia (1961/62), tendo falecido em 2014 (Fernando Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3380, 1972/74)


Guião do BCAÇ 2835 (Bissau e Nova Lamego, 1968/69): Mobilizado pelo RI 15, partiu para o TO da  Guiné em 17/1/1968 e regressou a 4/12/1969. Esteve em Bissau e Nova Lamego. Comandantes: ten cor inf Esteves Correia, maj inf Cristiano Henrique da Silveira e Lorena, e ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos. Subunidades de quadrícula: CCAÇ 2315 (Binar, Bissau, Mansoa, Mansabá, Mansoa, Nova Lamego, Dara, Madina Mandinga); CCAÇ 2316 (Bissau, Bula, Mejo, Guilejem, Gadamael, Bissau); e CCAÇ 2317 (Bissau, Bula, Mansabá, Guileje, Gandembel, Bula, Nova Lamego).


1. Comentário do nosso leitor e camarada Fernando de Sousa Ribeiro (*)

Chamo-me Fernando de Sousa Ribeiro e fui alferes miliciano em Angola, integrado na CCaç 3535, do BCaç 3880, entre 1972 e 1974 (**).

O primeiro oficial de operações e informações que o meu batalhão teve foi o capitão de Infantaria António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, mais conhecido por capitão Castel-Branco. Em comissão anterior, este capitão esteve na Guiné, onde comandou a CCaç 2316, do BCaç 2835, em Guileje.

A sua passagem por Guileje deixou-lhe profundas marcas psicológicas, que lhe afetaram de forma claramente visível o seu espírito. A sua posterior estadia no meu batalhão em Zemba, Angola, não melhorou em nada o seu estado mental e, ao fim de menos de um ano de comissão, veio evacuado para a Metrópole e internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar Principal, como maníaco-depressivo.

Nunca, repito nunca, ouvi o capitão Castel-Branco fazer qualquer referência a Guileje e à sua experiência pessoal lá. Ele falava da Guiné em geral, contava casos passados em Bissau e noutros lados, mas a palavra "Guileje" nunca saiu da sua boca. Nunca. 

Talvez o facto de ele se ter sentido incapaz de "deitar cá para fora" as suas recordações e os seus sentimentos em relação a Guileje tenha contribuído de forma determinante para a sua degradação psicológica. De resto, tirando o seu estado de espírito alterado, o capitão Castel-Branco foi um oficial de operações muito competente e que deixou boas recordações em quem com ele conviveu em Angola.

Antes de Angola e da Guiné, o capitão Castel-Branco esteve na Índia como alferes ou tenente, encontrando-se em Goa quando se deu a invasão pela União Indiana. Foi prisioneiro de guerra. Enfim, como se costuma dizer, «a sua vida dava um filme».

O capitão Castel-Branco nunca falava de Guileje, mas falava, e muito, de Goa e da sua situação como prisioneiro na Índia. Para começar, ele aprovava a atitude do general Vassalo e Silva, que lhe salvou a vida. O que ele não aprovava, mas compreendia, foi a forma desordenada como se deu a rendição. Segundo o Castelo Branco, os militares portugueses puseram-se em fuga diante do inimigo, em vez de se entregarem, e só a contenção e disciplina das Forças Armadas Indianas impediu que muitos deles fossem mortos. Contou ele que foi uma situação deste tipo: «Onde estão os indianos, estão ali? Então fujo para acolá».

Em resultado de tudo o que viu e viveu, o capitão Castelo Branco ficou a admirar profundamente as Forças Armadas Indianas, cujo aprumo, disciplina e cavalheirismo terão sido irrepreensíveis. Segundo ele, a população civil goesa foi tratada com toda a deferência e os prisioneiros de guerra foram tratados no mais estrito cumprimento das convenções internacionais. Ele mesmo foi tratado como um oficial e não como um prisioneiro. Disse o Castelo Branco que quase a única diferença entre ele e um oficial indiano da mesma patente,  era que ele não podia comandar tropas e não podia voltar para casa. As saudades da família e a incerteza sobre a sua libertação é que foram o que mais lhe custou a suportar.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro


2. Há um primeiro comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, sobre o cap Castel-Branco Ferreira, com data de 27/7/2018 (**)

Conheci em Angola o capitão de Infantaria António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, que terá rendido Joaquim Evónio de Vasconcelos no comando da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835, em Guileje. O capitão Castelo Branco (como lhe chamávamos) foi o primeiro oficial de operações e informações que o meu batalhão (BCaç. 3880) teve em Zemba, no norte de Angola.

Logo desde o primeiro dia da comissão se notou que o capitão Castelo Branco "não batia bem da bola". «Ele esteve em Guileje, na Guiné», dizia-se. «Aquilo foi tão mau, que ele ficou maluco», acrescentava-se. E ninguém se atrevia a contrariar o Castelo Branco, não por receio do que ele pudesse fazer, mas por respeito por alguém que tinha comido o pão que o diabo amassou.

Como pessoa, o capitão Castelo Branco era bondoso e compreensivo, ou pelo menos assim parecia. Quando não se tem responsabilidades de comando de tropas, como ele não tinha, é relativamente fácil ser compreensivo. Não sei como ele se comportaria no comando de uma companhia.

Como militar, o capitão Castelo Branco deu provas de uma enorme competência. O maior êxito que o meu batalhão teve, e que valeu a promoção do comandante a coronel, deveu-se sobretudo à forma cuidada como o capitão Castelo Branco planeou uma determinada operação. Nessa operação, os guerrilheiros da FNLA foram completamente apanhados de surpresa, abandonaram uma vasta região e deixaram de exercer pressão militar sobre o distrito do Cuanza Norte.

À medida que o tempo foi passando, o estado de saúde mental do capitão Castelo Branco foi-se agravando cada vez mais. Ao fim de dez meses de comissão, mais ou menos, teve que ser evacuado para a Metrópole e internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar Principal. Vi-o uma vez em meados dos anos 90 e pareceu-me estar com excelente aspeto. Faleceu por volta de 2014.

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, camarada Sousa Ribeiro, pelo depoimento... O nome do capitão António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira figura na lista dos ex-prisioneiros de guerra da Índia com direito a uma pensão, conforme despacho conjunto  dos ministros da defesa e das finanças.

Identifico igualmente o meu primo, de Ribamar, Lourinhã, Luís Filipe Maçarico... Não vejo o nome do general Vassalo e Silva, que nãio consta da lista pela simples razão de já ter morrido (em 1985).

Despacho conjunto 648/2004

A Lei 34/98, de 18 de Julho, regulamentada pelo Decreto-Lei 161/2001, de 22 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei 170/2004, de 16 de Julho, veio estabelecer um regime excepcional de apoio aos ex-prisioneiros de guerra, nomeadamente a atribuição de uma pensão.

Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei 161/2001, de 22 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 170/2004, de 16 de Julho, e concluída que está a instrução dos processos pelo respectivo ramo das Forças Armadas, determina-se a concessão aos ex-prisioneiros de guerra constantes da lista anexa ao presente despacho, do qual faz parte integrante, a pensão a que se refere o artigo 4.º do referido decreto-lei.

O presente despacho produz efeitos desde 1 de Janeiro de 2004.

15 de Outubro de 2004. - O Ministro de Estado, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Paulo Sacadura Cabral Portas. - O Ministro das Finanças e da Administração Pública, António José de Castro Bagão Félix.

ANEXO

(...) António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira

Caro Sousa Ribeiro, vejo que és leitor, mais ou menos assíduo do nosso blogue, e já não é o  primeiro contributo que dás para a partilha de memórias entre todos nós que fizemos a guerra do ultramar / guerra colonial (**).  O nosso blogue integra camaradas que passaram por outros teatros de operações, incluindo Angola. Não há fronteiras rígidas. Por razões de "mera economia de tempo e espaço", este blogue tem-se centrado na experiência operacional dos militares que passaram pela Guiné, entre 1961 e 1974. Mas temos falado também de outros territórios, incluindo Angola, Cabo Verde, Índia...

Obrigado por nos teres trazido notícias de um camarada da Guiné, o então cap inf Castel-Branco Ferreira que não conheci, e infelizmemte já falecido, como dizes, em 2014.  Deve ter-se reformado como coronel de infantaria. Conheci, isso sim, em 1969, o oficial que o foi substituir na CCAÇ 2316, o cap art Octávio Manuel Barbosa Henriques, mas noutras funções, como instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga (Setor L1, Bambadinca),

Nessa medida venho-te convidar para te juntares à nossa "caserna virtual" onde cabe sempre mais um camarada e/ou amigo da Guiné. Somos 779 entre vivos e mortos. Tu poderás ser o 780 a sentares debaixo o nosso mágico e fraterno poilão...Só tens que mandar as duas fotos da praxe (uma atual e outra do tempo da tropa), mais o teu endereço de email. Um alfabravo. Luís Graça

4. Ficha de unidade: CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 

Foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 17/1/1968 e regressou a 4/12/1969. Esteve em Bissau, Bula, Mejo, Guileje, Gadamael e Bissau. Teve 4 comandantes:

(i) cap inf Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos;

(ii) cap inf António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira; 

(iii) cap art Octávio Manuel Barbosa Henriques;

 e (iv) cap cav José Maria Félix de Moraes.

O BCAÇ 2835 esteve em Bissau e Nova Lamego. Tinha como subunidades, além da CCAÇ 2316, a CCAÇ 2315 e a CCAÇ 2317.  Comandantes: ten cor inf Joaquim Esteves Correia; maj inf Cristinao Henrique da Silveira e Lorena; ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos.

Temos 14 referências à CCAÇ 2316 no nosso blogue, e 20 ao BCAÇ 2835.

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Notas do editor:


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19138: Manucrito(s) (Luís Graça) (146): Tinha eu sete anos quando começou a guerra colonial, com a invasão e a ocupação dos "anexos" de Dadrá e Nagar-Aveli, Estado Português da Índia, em 22 de julho de 1954...




Mapa de Portugal Insular e Ultramarino. Porto: Editora Educação Nacional, [1939]. Excerto: Mapa de Damão, e enclaves de Dadrá e Nagar-Avelli.  Era usado na minha escola Conde de Ferreira, na Lourinhã.


Cartoon de Sant Ana. Diário de Lisboa, 28 de julho de 1954 (com a devida vénia ao autor e editor...): o 'Pandita' Nehru (1889-1964) lançando,com uma fisga, uma pedra ("Dadrá") à cara do gigante Vasco da Gama (Sines, 1469 — Cochim, Índia, 24 de dezembro de 1524), sob o olhar estupefacto do rei Sol... Convenhamos: não terá sido o primeiro "insulto", de parte a parte...

Em 1783, Nagar-Aveli foi cedida aos portugueses, como reparaçãp patrimonial,  pelo afundamento de um navio português pela marinha marata. Dois anos depois, em 1785, os portugueses  compram Dadrá, inserindo o novo território no Estado Português da Índia.(LG)







Diário de Lisboa, 28 de julho de 1954.


Citação:
(1954), "Diário de Lisboa", nº 11368, Ano 34, Quarta, 28 de Julho de 1954, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_19456 (2018-10-26)

(Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Fundo: Documentos Ruella Ramos)



1. A censura impediu a notícia da ocupação, por voluntários nacionalistas indianos, do enclave de Dadrá , a 22 de julho de 1954 (e não 14 de junho, como refere alguma da nossa historiografia militar...), pelo "United Front of Goans" [Frente Unida dos Goeses], liderada por Francisco Mascarenhas; são assassinados Aniceto do Rosário, o sub-inspetor do posto de polícia de Dadrá, e o soldado António Francisco Fernandes. (Aniceto Rosário,  herói desconhecido, de origem goesa, mascido em 1917, será depois condecorado a título póstumo com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; tem nome de rua em Lisboa.)

A 28 de julho, mais um punhado de nacionalistas [, do Exército Livre de Goa (Azad Gomantak Dal, AGD, liderado por Prabhakar Sinari) e da Organização Nacional dos Voluntários (Rashtriya Swayamsevak Sangh, RSS; liderada por Raja Wakankar)   cercaram Naroli e  neutralizam as escassas forças policiais que defendiam o território. Não havia forças do exército.

A polícia portuguesa, sob o comando do administrador Nagar-Aveli, o capitão Virgílio Fernandes Fidalgo, concentra-se em Silvassa, e resiste entre 2 e 8 de agosto. Com centena e meia de polícias e alguns voluntários, as forças portuguesas retiram para Khanvel. Encurralado, o capitão Fidalgo acaba por assinar a rendição das suas forças,  em Udva, a 11 de agosto de 1954, em troca da garantia de que os seus cento e cinquenta homens e os que haviam sido feito prisioneiros pelos indianos, pudessem chegar  até Damão, em segurança. Consuma-se a queda de Nagar-Aveli...

A 15 de agosto (, data com grande simbolismo para os indianos, já que comemora a independência da Índia em 1947, e que era desde 1858 a "joia da coroa" britânica), um grupo de "satyagrahis" ocupa temporariamente o forte de Tiracol, a norte de Goa.

Em 10 de agosto de 1954, Salazar dirigiu-se ao país, através dos microfones da Emissora Nacional, falando sobre Goa e a União Indiana.

Acrescente-se mais umas pitadas de história: o território de Nagar Aveli paasou a pertencer à coroa portuguesa, em 10 de junho de 1783. já no reinado de D. Maria I; na sequência do Tratado de Amizade celebrado em 17 dezembro de 1779, no reinado de Dom José I, e como reparação por danos causados à fragata portuguesa Santana pela marinnha do Império Marata, em 1772.   Dois anos depois, em 1785, é feita a compra de Dadrá.  A soberania portuguesa sobre estes "exclaves" de Damão, ereforça-se com a derrota do império marata, em 1818, infligida pelo exército britânico, na III Guerra Anglo-Marata. Entretanto, a Índia torna-se independente da Grã-Bretanha, em 1947, incorporando a nova república todos os territórios até então submetidos à coroa inglesa.  Os territórios franceses são integrados em 1954. Portugal era a última potência colonial na Índia, depois da Ingaterra, da Holanda e da França...


2. Entre 22 de julho e 11 de agosto de 1954 são invadidos e ocupados  os dois enclaves do Estado Português da Índia, situados a sudeste de Damão (também conhecidos como exclaves de Damão, no coração do Guzerate).

Os invasores pertenciam a diferentes grupos nacionalistas (, conhecidos por "satyagrahi", ou seja, reclamando-se dos princípios da resistência não-violenta de Gandhi, a "satyagraha"). Sabemos que beneficiaram da "proteção" das forças da União Indiana que cercavam os enclaves.

Estes acontecimentos podem considerar-se como o início da "guerra colonial" e do "fim do império"...Poucos portugueses ainda se lembram destes topónimos e menos ainda sabem do que é que se passou nestes territórios que faziam parte do mítico Portugal pluricontinental e plurarracional de que ia do Minho a Timor... 

Quando entrei para a escola primária, no ano letivo de 1954/55, ainda tive que decorar estes topónimos e saber apontá-los no mapa... E comecei a ver os meus vizinhos, mais velhos,  a partir para a Índia, "em defesa da Pátria".

(...) Havia o drama dos soldados  que partiam para as Índias,
Goa, Damão e Diu 
(sem os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli
que o “Pandita” Nehru  já nos tinha usurpado!),
de caqui e farda amarela e botas de polaina,
capacete de aço e mauser,
e as mães da rua dos Valados,
comprida, do cemitério ao largo das Aravessas,
que, desgrenhadas, roucas, histéricas,
rasgando véus e saias e arrancando cabelos, 
gritavam, imploravam, praguejavam e  até invetivavam Deus  e a santa da sua mãe, 
para que os dois (, juntos, sempre tinham mais força!),
velassem por eles, os seus meninos,
e os trouxessem de volta, sãos e salvos,
no veleiro de torna-viagem.(...)

In: Luís Graça - Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde.
Texto poético, inédito, 2005, c. 50 pp.


3. Recorde-se que em 11 de junho de 1953, Lisboa e Deli cortam relações diplomáticas. Nehru decreta, no final desse ano, o bloqueio económico aos territórios portugueses.  Não havia, por isso, nenhuma força militar em Dadrá e Nagar-Aveli.

Em 18 de dezembro de 1961, a União Indiana invade e ocupa militarmente os restantes territórios, Goa, Damão e Diu, com uma força caricatamente desmesurada (um exército de 45 homens; 1 porta-aviões, 1 cruzador, 3 contra-torpedeiro e 4 fragatas; 50 caças e bombardeiros). 36 horas foi o suficiente para pôr um fim à presença histórica dos portugueses, no subcontinente indiano, desde 1492, o ano da chegada de Vasco da Gana à Índia.

Em 1955, Portugal tornara-se membro da ONU e logo vai interpor recurso, ao Tribunal Internacional de Haia, com vista a recuperar os territórios de Dadrá e Nagar-Aveli. A sentença,  lavrada cinco anos depois, em 1960, é "salomónica": condena como ilegal a invasão, reconhece a soberania portuguesa sobre os territórios de Dadrá e Nagar-Aveli, mas a União Indiana tem todo o direito... de impedir qualquer acesso (de pessoas e bens) aos enclaves... 

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, Portugal começa a ser cada vez mais um país internacionalmente isolado... A intransigência de Salazar (ou a sua incapacidade em negociar uma solução historicamente honrosa com a União Indiana) vai desembocar no "orgulhosamente sós" e na guerra colonial...

 O recrudescer da guerra fria e o peso do movimento dos não-alinhados, a par do apoio da União Soviética e da "neutralidade" da administração Kennedy e do Vaticano, ajudam também a explicar e compreender o desastre (anunciado) de 18 de dezembro de 1961.

Alguns dos meus vizinhos e parentes da Lourinhã ficaram lá prisioneiros, cinco meses, juntamente com mais 3300 camaradas.  Menos de oito anos depois, em 24 de maio de 1969, eu partiria no T/T Niassa (com o Jerónimo de Sousa, hoje líder do PCP, e tantos outros camaradas que ficaram anónimos...) para a Guiné, em missão de soberania... LG

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Fontes consultadas:

Filipa Alexandra Carvalho Sousa Lopes - As vozes da oposição ao Estado Novo e a questão de Goa.
Porto: Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2017 (Tese de doutoramento em Ciências da História, 432 pp, disponível em Repositório Aberto da Universidade do Porto, FLUP - Faculdade de Letras, FLUP - Tese : http://hdl.handle.net/10216/108453)


E ainda "Ìndia, Estado da", in: Dicionário de História de Portugal (coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica), vol VIII, Suplemento F/O, Lisboa: Livraria Figueirinhas,1999, pp. 255-261,

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Nota do editor:

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18698: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 53 e 54: "Vai haver uma estrada alcatroada até Gampará, e vamos ter artilharia em Fulacunda"



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > O José Claudino da Silva junto ao obus 14

Foto (e legendagem): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet.

Foto (e legendagem): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14)

3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 53 e 54


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


53º Capítulo  > O GRAVADOR E AS BOMBAS


Sem que nada o fizesse prever, chateei-me com o Moreira e, por aquilo que escrevi, a culpa foi minha. - Desculpa Moreira!

"Ainda hoje estive a discutir com o Moreira que dorme no meu quarto, por uma coisa insignificante, coitado do rapaz. Estou sempre nervoso, nunca estou bem em lado nenhum, para mais um amigo de Penafiel que foi para Bissau para condutor do delegado da companhia, teve um acidente com o Jeep e está no hospital ferido. O Jeep ficou desfeito e nem sabe se irá embora quando a comissão terminar é uma situação muito chata porque parece-me que foi ele o culpado e os condutores tem de pagar os concertos.

Vá lá que ao menos veio o gravador de cassetes que tinha encomendado e a lancha já trouxe as bombas”.


Antes de continuar a transcrever o texto que tenho em mãos, quero voltar a apelar para a compreensão dos leitores se, por vezes, o texto é confuso. A razão é simples: transcrevo tal qual o original. 

“Hoje tenho mais uma notícia para te dar.

Daqui até Gampará que é o quartel mais próximo de nós, vai ser feita uma estrada de alcatrão, ora como os “turras” não querem que se façam estradas de alcatrão pois assim não podem colocar armadilhas, vão decerto procurar evitar que ela se construa, mas para nós os fazermos pôr ao largo veio hoje uma lancha militar trazer bombas de obus e no dia nove vem para cá três obuses.

O obus é uma arma Maior que um carro e que atinge 20 km de distância. Por isso agora, vamos estar mais seguros se eles se lembrarem de nos atacar.

Cada bomba pesa 36 kg e num raio de 500 metros onde explodir devasta tudo, agora estaremos suficientemente armados para dar cabo destes reles terroristas”


Para mim, o mais importante mesmo foi a chegada do gravador de cassetes. Em breve iria começar a enviar as minhas gravações.


54º Capítulo  > O MORTO VIVO


Já não me lembrava disto, como não me lembro de muitíssimas outras coisas que se passaram naqueles dolorosos tempos, e a que eu tentei dar, muitas vezes, pouca importância, pondo amor e humor em muito do que escrevi. O que vos passo a contar está escrito num “aero”,  datado de 07/05/1973:

“Mais uma vez tive azar não veio avioneta por isso lérpei e não tive correio, talvez venha amanhã. Hoje tenho uma notícia a dar-te que considero invulgar, pois creio que não conheço nenhum caso idêntico.

Um camarada meu teve um irmão em Moçambique em 1966. Estava lá há sete meses, quando foi dado como morto. Mandaram o corpo dele para a Metrópole e fizeram-lhe o funeral. Na passada sexta-feira o meu camarada recebeu aqui notícias que o irmão está vivo. Disse-me que as informações que tiveram foram estas.

O irmão ia numa viatura que passou sobre uma mina que explodiu, morreram 13 soldados, e ele caiu a uns metros de distância, ficou ferido, os camaradas não o viram e deixaram-no ficar, os “turras” depois encontraram-no e levaram-no para o Senegal [lapso do Dino, deve ser Tanzânia], esteve lá até agora tendo conseguido fugir, embora com sete anos de prisão ele está bem vivo o que não deixa de ser uma infinita alegria para a família. Este meu camarada, portanto, irmão do morto vivo, até parece que dá em maluco.”


Desconheço o que posteriormente se passou e se na urna estaria ou não algum cadáver. O que posso concluir é que, para a família, foi algo maravilhoso e inesquecível.

Nunca saberemos se os desaparecidos em combate estarão mortos ou vivos e, como vamos envelhecendo e morrendo, nós, os que participaram nesta guerra, se temos algum testemunho como este que relato, deviam divulgá-lo, porque o luto numa família faz, pelo menos aos que crêem, acreditar que um dia se encontrarão algures, na vida eterna.

Recebi o requerimento assinado para vir de férias nesse dia e no dia seguinte tomei a vacina para poder viajar. Refiro-me a isso porque nunca percebi qual a razão de sermos vacinados para vir à metrópole.
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18669: Guiné 61/74 - P18626: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino dSilva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 50 e 52: (i) tivemos o primerio ferido em combate, numa sexta-feira, 13 de abril de 1973, sendo evacuado por helicóptero; e (ii) o correio está a chegar atrasado depois de aparecerem os Strela...

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18078: (De) Caras (101): Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, ex-prisioneiro de guerra, aqui à conversa com outro camarada do seu tempo, com quem chegou a trabalhar no centro cripto de Tite, o Raul Pica Sinos (CCS / BART 1914, Tite, 1967/69)


S/l > s/d > O Geraldino Marques Contino, à esquerda, com os seus dois filhos, e a esposa Luísa, presumivelmente em férias.


S/l  [Ovar ?] > s/ d [2009 ?] > O Geraldino Marques Contino... Ja há dez anos atrás, o nosso grã-tabanqueiro Henrique Matos perguntava o que era feito destes homens, nossos camaradas, que foram  capa da revista do Expresso, nº 1309, de 29 de novembro de 1997

Fotos (e legendas: © Raul Pica Sinos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Ainda Bissássema, em conversa com o Contino  

por  Raul Pica Sinos [ex-1º cabo op cripto, CCS/BART 1914, Tite, abril de 1967 / março de 1969; vive em Almada] [foto à esquerda]

[texto redigido em abril de 2009 / revisto em novembro de 2013;
editado por Leandro Guedes > Blogue do BART 1914. Tite, Guiné-Bissau > 17 de novembro de 2013 > Ainda Bissássema, na conversa com o Contino

[Reproduzido aqui com a devida vénia: trata-se de um depoimento excecional, permitindo-nos completar o conhecimento dos factos relacionados com a captura e a condição de prisioneiro de guerra do nosso camarada Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, adida ao BART 1914, Tite, 1967/69;  sobre o assunto publicámos recentemente um interessante trabalho do nosso colaborador permanente Jorge Araújo (*);.

Tanto o Geraldino Marques Contino como o Raul Pica Sinos, ficam desde já convidados para nos darem a honra de se sentarem à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande; temos  ainda  poucas referências  tanto ao BART 1914 como à CART 1743.

Sobre a "batalha de Bissássema" o Raul Pica Sinos tem diversos postes publicados no blogue do BART 1914. Recorde-se que na noite de 3 de fevereiro de 1968:

(i) desapareceram em combate o fur mil Manuel Nunes Reis Cardoso, do Pel Mort 1208, e o soldado Milícia Manga Colubali, da CMIL 7;

(ii) foram capturados pelo IN três militares da CART 1743: alf mil António Júlio Rosa; 1º. cabo op cripto Geraldino Marques Contino; e sold Victor Manuel Jesus Capítulo.

O blogue do BART 1914, que existe desde 2008, é mantido por 3 antigos operadores cripto, se não erro, o Leandro Guedes, o Pica Sinos e o José Justo; aqui fica também o nosso reconhecimento público pelo extraordinário trabalho que estes camaradas do BART 1914 estão a fazer, recolhendo e partilhando memórias da sua unidade e subunidades adidas.

Estes camaradas estão também ativos no Facebook.]


... AS MÃES SÃO IGUAIS EM TODO O MUNDO... 

Na pequena, mas importante, vila do concelho de Almada que, dá pelo nome de Trafaria, localizada na margem esquerda do rio Tejo, a cerca de 3 quilómetros da foz, vila onde estava situado o antigo quartel do BRT (Batalhão de Reconhecimento das Transmissões) que incorporava o Centro de Informações e Segurança Militar com vistas à formação, entre outras, da especialidade em Operadores de Cripto, especialidade comum à época aos protagonistas deste apontamento, foi o local escolhido para o almoço/encontro de confraternização entre a minha pessoa (entre outros) e o ex-1.º Cabo Geraldino Marques Contino.

Há anos que procurava este acontecimento, não só para matar saudades, mas também para satisfazer curiosidades não só da minha pessoa, como de muitos que viveram o drama, aquando da captura do entrevistado em Bissássema, na região de Tite, em Guiné-Bissau,  e nas prisões em Conacry. (**)

Recordo-me, em Tite, no Centro de Cripto, nos dias que trabalhei com o nosso convidado, era comum vê-lo transportar um livro debaixo do braço. Nos pequenos momentos de descanso, não deixava escapar duas ou três linhas de leitura. 

Havia dias que também gostava, como os demais, de se vestir de forma despreocupada. Ainda hoje confessa que não sabe a razão porque foi “brindado”, pelo ex-capitão miliciano Paraíso Pinto, com 5 dias de detenção, justificados porque… o chapéu de palha e os sapatos de pala que trajava (naquele dia), não conjugavam com o trono nu e com os calções do fardamento...

O ponto “quente” da nossa longa conversa, foi a sua captura e a dos demais 2 companheiros (o Rosa e o Capitulo), em 2 de Fevereiro de 1968, na operação que, dava, creio, pelo nome de “Velha Guarda”.

A Companhia de Artilharia [CART] 1743 a que pertenciam, encetou a operação, em 31 de Janeiro de 1968, integrando num dos 3 destacamentos constituídos (um deles elementos da CCS), uma Companhia de Milícias. O objectivo, era, na região de Bissássema, banhada pelo rio Geba, (na sua frente a cidade de Bissau), aniquilar o IN, anulando o constante saque do arroz e, o recrutamento dos jovens e das mulheres. Os primeiros para ingresso nas suas fileiras e as segundas para servirem de carregadoras e cozinheiras dos produtos pilhados. Consequentemente fixar elementos das NT na zona, não só com vistas a proteger as populações, como conservá-las afectas.

Segundo conta o Contino, 2 dias após a chegada ao terreno, pouco minutos a faltarem para a meia-noite, mais precisamente no dia 2 de Fevereiro de 1968, (sexta-feira), um numeroso grupo IN, investiu em direcção ao extenso e mal programado perímetro das nossas tropas, pelo lado do pelotão das milícias. Estes não aguentando o ímpeto do ataque, acabaram por abandonar os seus postos, permitindo abrir brechas na defesa do terreno e possibilitar o cerco ao improvisado posto de comando.

A confusão surpreende as NT e, permite a captura dos europeus [o Geraldino Marques Contino, o António Rosa e o Vitor Capítulo]

Acrescenta o meu convidado:
…nem mesmo a sua tentativa de se esconder de entre a manada das vacas resultou…

Foram longos os dias e a distância efectuada a pé pelo mato.

Quando pelas tabancas passavam para descansarem ou pernoitarem, eram sempre bem recebidos, em especial pelas “mulheres grandes” e mães, que, ao vê-los feitos prisioneiros, não deixaram de lançar o seu olhar misericordioso e de grande lamento, imaginando como seria o sofrimento das mães brancas ao saberem que os seus filhos foram feitos prisioneiros.

…"As mães são iguais em todo o mundo!", remata o camarada.

Julgo, conhecendo-o como o conheci no seu pequeno período de permanência em Tite, a sua forma de estar, era de atitude ou algo diferente na resposta à recepção dos naturais guineenses. Homem habituado aos usos e costumes africanos, onde, desde os 3 anos de idade até aos 17 anos, viveu na cidade de Luanda, em Angola, razão pela qual não se fez rogado em aceitar, por uma ou outra vez, dançar e mesmo consentir o cumprimento dispensado por algumas bajudas (, mulheres em idade de casamento).

Conclui, dizendo que até à fronteira de Conacry  foi sempre, como os seus camaradas, muito bem tratado, em especial pelo seu captor.

Os inimigos nunca souberam das suas especialidades e patentes, inclusive teve o cuidado, durante a “viagem”, sem disso se aperceberem [os seus captores], de comer o pequeno livro de cifra que na ocasião transportava.

Já em Conacry, na prisão estatal, tomava as refeições, como os demais, no refeitório, na presença dos elementos da direcção do PAIGC. Diferente quando mudado para a prisão de prisioneiros de guerra e políticos. Aqui as refeições não primavam pela qualidade, mas comiam exactamente o mesmo que os seus carcereiros.

De tempos a tempos … lá vinha uma manga ou uma papaia… Ofertas de agradecimento dos guardas carcereiros que, sendo analfabetos, lhes pediam para escrever as cartas às famílias e ou suas namoradas.

De resto a maior parte do tempo era passado a jogar às cartas, com baralhos construídos por si, em aproveitamento do papel de que eram feitas as pequenas caixas de fósforos.

O Contino, depois de 30 anos de trabalho, como quadro superior na TAP, já está reformado.

[Revisão / fixação de texto / negritos e realce a amarelo:  o editor do Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné, com um alfabravo fraterno ao Contino e ao Pica Sinos]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  11 dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (101): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)


Infogravura nº 1: itinerário (a verde) utilizado em território da Guiné-Conacri pelos três militares da CART 1743,  feitos prisioneiros pelo PAIGC, em 3 de Fevereiro de 1968, na Tabanca de Bissássema: o António Rosa, o Vítor Capítulo e o Geraldino Contino.


Guiné > Região de Quínara > Bissássema > Local onde foram aprisionados, em 3 de Fevereiro de 1968, os três militares da CART 1743 (Tite, 1967/69): o António Rosa, o Vítor Capítulo e o Geraldino Contino.

A amarelo e laranja, o percurso realizado pelo trio de prisioneiros evadidos em 3 de Março de 1969 do Forte de Kindia: o António Rosa, o António Lobato e o José Vaz. Seis dias depois foram recapturados e reconduzidos para a prisão de Conacri.

[Infogravura adaptada, retirada do sítio  «http://ultramar.terraweb.biz/06livros_AntonioLobato.htm», com a devida vénia].



1.  INTRODUÇÃO 

A primeira parte deste pequeno trabalho de investigação, partilhada recentemente neste espaço colectivo (*), inicia-se com as consequências do ataque à Tabanca de Bissássema, situada nos arredores de Tite, em 3 de Fevereiro de 1968, que antes já tinha sido uma base IN. 

Guião da CART 1743 (1967/69),
"Os Diabos"
Do ataque da madrugada desse dia, sábado, resultou terem ficado prisioneiros de guerra três militares de um Gr Comb da CART 1743 (1967/69), «Os Diabos», que tinha recebido a missão de aí se instalar e onde decorria já a construção de abrigos enquadrados na organização do seu sistema de defesa.

Corolário desse ataque continuado, intercalado entre maior e menor intensidade, alguns guerrilheiros entraram no aquartelamento, lançando granadas e apanhando à mão o António Rosa, o Victor Capítulo e o Geraldino Contino, os quais foram levados para território da Guiné-Conacri. 

Primeiro atravessando a pé o corredor de Guileje (cerca de 200 km em 6 dias),  seguindo depois até Boké em viatura. Aí chegam à fala com Nino Vieira (1939-2009), e depois dirigem-se a Conacri onde são recebidos por Amílcar Cabral (1924-1973).  Segue-se nova viagem até à “Casa Forte de Kindia”.

Treze meses depois, em 3 de Março de 1969, António Rosa com mais dois prisioneiros de guerra, António Lobato e José Vaz, levam à prática um plano de fuga pensado entre si, sendo recapturados ao fim de seis dias. Na sequência dessa evasão mal sucedida foram transferidos para um novo cativeiro em Conacri [vidé P2095 e P7929]. [Infogravura nº 1, reproduzida acima[,

Após o diálogo estabelecido com os três militares da CART 1743, em Conacri, Amílcar Cabral dá conta em comunicado escrito em francês, datado de 19 de Fevereiro de 1968, da identificação destes novos prisioneiros de guerra.

Exactamente seis meses depois do episódio da Tabanca de Bissássema, ou seja, em 3 de Agosto de 1968, Amílcar Cabral faz aos microfones da «Rádio Libertação», a sua emissora, nova referência aos prisioneiros de guerra do PAIGC. Por deferência deste, as palavras do seu secretário-geral foram gravadas em fita magnética, bem como as declarações de oito militares portugueses feitos prisioneiros nos primeiros seis meses desse ano, e retransmitidas em Argel, na rádio «A Voz da Liberdade», emissora da FPLN/Portugal [Frente Patriótica de Libertação Nacional]. O conjunto desses oito depoimentos foram editados no Caderno 1, da responsabilidade da FPLN, com o título “falam os portugueses prisioneiros de guerra” [vidé P16172]. [Infogravura nº 2]



Infogravura nº 2

Citação:

(1968), "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84394 (2017-10-30)


Nesse caderno 1, na página 20, encontrámos os testemunhos de Geraldino Marques Contino, com respostas dadas a sete perguntas, conforme se reproduz abaixo. De relevar que das sete perguntas duas estão relacionadas com a comunicação com a família, depreendendo-se que seria para lhes dar conta da sua [nova] situação. Por exemplo, a 4.ª, “Você já escreveu à sua família)”; R: “Escrever ainda não escrevi, mas escreverei brevemente”; e a última, “Você vai escrever-lhes [aos pais]?”; R: Vou escrever-lhes, naturalmente”. Como se pode observar, o seu apelido está mal escrito [Contino e n não Coutinho}. [Infogravura nº 3]



Infogravura nº 3


Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 04309.007.011.
Título: Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra.
Assunto: Editado pela FPLN/Portugal, em Alger, exemplar 1 de publicação com declarações dos militares portugueses feitos prisioneiros pelo PAIGC. Pretende-se dar conhecimento da verdade às famílias, ao mesmo tempo que se acusa o governo português de os referir como desaparecidos (militares das incorporações de 1966). Este número inclui transcrição de uma comunicação de Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, aos microfones de “A Voz da Liberdade”, dirigida aos prisioneiros portugueses, no dia 3 de Agosto de 1968, com a promessa de fornecer em breve fitas magnéticas com testemunhos dos prisioneiros, bem como o tratamento que lhes é dado, quando feridos e ligação com a Cruz Vermelha Internacional, para o seu repatriamento para junto das suas famílias.
Data: 1968. Observações: Declarações gravadas em fita magnética e difundidas pela Rádio Libertação, pelo PAIGC, que autorizou retransmissão pela emissora da FPLN, a Voz da Liberdade. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade.
Tipo Documental: Documentos

[com a devida vénia].

Neste contexto, não é possível confirmar o que quer que seja quanto ao envio de “notícias para a metrópole”, como então se dizia. Só o próprio nos pode/poderá fazê-lo. Certamente que não foi nada fácil dizê-lo, e a existir algum atraso, ele seria perfeitamente compreensível, por necessidade de encontrar as palavras acertadas e estabelecer um fio condutor que não provocasse danos, nos dois sentidos. Por um lado aos destinatários, que nada sabiam acerca da nova realidade, por outro ao próprio remetente que estava “obrigado” e/ou “comprometido” em dizer-lhes a verdade. Mas, ao pensar referi-la, é aceitável que se tenha questionado, muitas vezes, sobre as consequências que esta notícia teria no seu seio? Como é que ela seria recebida? Aumentando a angústia e a dor nos seus pares ou desenvolvendo esforços no sentido de encontrar canais de comunicação alternativos? Provavelmente ambas as situações.


2. A IGREJA NA VIDA DOS PRISIONEIROS DE GUERRA (II) - O CASO DE GERALDINO MARQUES CONTINO


Geraldino Marques Contino, o ex-1.º Cabo Op.Crpt da CART 1743, feito prisioneiro naquele sábado, dia 3 de Fevereiro de 1968, na tabanca de Bissássema, certamente que passou pelas mesmas emoções, angústias, privações e sofrimentos relatados pelos seus camaradas de infortúnio, o António Rosa e o Victor Capítulo, desde que foi capturado, depois na prisão de Kindia, onde cinco dias após aí ter dado entrada completou o seu 23º aniversário (em 15 de Fevereiro) e, por último, na de Conacri.

Como referimos anteriormente, foi na busca de informações sobre a sua vida em cativeiro que tomámos em mãos essa tarefa, existindo uma só fonte onde poderíamos obtê-las, isto é «Do outro lado do combate». E a consulta recaiu, uma vez mais, no espólio da Casa Comum – Fundação Mário Soares, onde encontramos várias referências, umas já publicitadas acima, outras relacionadas com a troca de correspondência entre os responsáveis da Igreja Católica e Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral do PAIGC.

E a causa/efeito para esse contacto nasce da falta de notícias do Geraldino Contino, o qual deixou de escrever aos seus familiares, em particular para os seus pais, depois do mês de Janeiro de 1970, muito provavelmente por volta do dia em que completava o seu 25º aniversário (o 3.º em cativeiro), data considerada para si e para os seus de muito importante. A ausência de liberdade, o permanente controlo dos seus movimentos, e a cada vez menor motivação para a escrita, levaram-no a cortar com o mundo exterior. Será que foi isso que aconteceu? Ou terão as cartas, também elas, ficado retidas/ prisioneiras?

Uma vez que a ausência de notícias se manteve durante alguns meses, os pais do Geraldino Contino tomam a iniciativa de escrever para o Vaticano, dando conta a Sua Santidade o Papa Paulo VI (1897-1978) da sua angústia por desconhecimento do destino do seu filho, feito prisioneiro pelo PAIGC. O Santo-Padre interessa-se por este caso e remete, em 10 de Setembro de 1970, uma carta dirigida ao Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), solicitando informações concretas sobre a situação desse jovem militar. Este religioso, por sua vez, cumprindo o superior desejo de Paulo VI, escreve em 16 do mesmo mês uma nova missiva de teor semelhante, enviando-a ao cuidado de Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral.

Recorda-se que estas duas cartas, escritas em francês, constam da Parte I. (*)

A este contacto formal do Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo, seguiu-se a resposta pronta de Amílcar Cabral, com data de 17 de Setembro, cujo conteúdo daremos a conhecer de seguida, a tradução e o original em francês, por esta ordem.

Tradução [de Jorge Araújo]:

Conacri, 17 de Setembro de 1970

Sua Excelência Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo de Conacri Monsenhor,
Tenho a honra de acusar a recepção da vossa carta de 16 de Setembro, pela qual teve a gentileza de pedir para o pôr ao corrente sobre o conteúdo de uma carta remetida pela Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano, por intermédio de Sua Excelência Monsenhor BENELLI, substituto desse mesmo Ministério.

A direcção nacional do nosso Partido está honrada de poder dar as seguintes informações acerca do prisioneiro de guerra Geraldino Marques Contino de acordo com o interesse de Sua Santidade o Papa Paulo VI.

- Nome: Geraldino Marques Contino
- Filho de Armando Contino e de Olinda Marques
- Nasceu em 15 de Fevereiro de 1945 em Envendos [Mação, Santarém]
- Profissão: estudante
- Situação na arma colonial: 1.º Cabo – RAL5
- N.º mecanográfico: 093526/66
- Feito prisioneiro em 3 de Fevereiro de 1968 em Bissássema (Frente Sul) a 17 quilómetros de Bissau, a capital.

O prisioneiro encontra-se bem, tanto física como moralmente. De acordo com os princípios humanitários da nossa luta, do respeito pela pessoa humana e de nunca confundir colonialismo português e povo de Portugal ou cidadãos portugueses, o melhor tratamento é concedido a este prisioneiro como a todos os outros. Toda a sua correspondência é enviada, no tempo, para o seu destinatário. É possível que o Governo português por necessidade da sua propaganda contra a nossa luta legítima, não quer que as famílias dos prisioneiros sejam informadas da situação na qual se encontram os seus filhos, cônjuges e irmãos.

A carta anexa, escrita pela mão do prisioneiro, e endereçada a seus pais, informará melhor que nós sobre a sua situação, a sua saúde e o seu estado de espírito.

À vossa inteira disposição para todas as informações úteis, por favor aceite, Monsenhor, a expressão dos nossos sentimentos de respeito e fraternal amizade.

Pel’ O Secretariado Político do PAIGC
Amílcar Cabral, Secretário-Geral



Citação:
(1970), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39285 (2017-10-30)

Na volta do correio, o Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo, acusa a recepção das informações enviadas por Amílcar Cabral, em nova carta datada de 19 de Setembro, nos seguintes termos (primeiro a tradução, depois o original constituído por duas folhas dactilografas):

Tradução [de Jorge Araújo]

Senhor Amílcar Cabral
Secretário-Geral do PAIGC
Conacri

Deixe-me dizer obrigado – um obrigado muito simples mas não menos sincero – pela recepção dispensada à minha carta de 16 de Setembro e a resposta, tão rápida e atenciosa, que se dignou trazer.
Gostaria de ser gentil o suficiente por ter sido o interlocutor junto do Secretariado Político do PAIGC para o qual registo aqui a expressão da minha gratidão.

O SANTO-PADRE será em breve informado, por intermédio de Sua Excelência Monsenhor Substituto da Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano, - Monsenhor BENELLI – do conteúdo da sua carta; ao mesmo tempo que será transmitida a relação de Geraldino Marques Contino a seus pais.
O seu gesto, Senhor Secretário-Geral, marca uma etapa decisiva da vossa luta para conseguir, finalmente, libertar a sua Pátria de toda a dominação; o Vaticano, singularmente atento às actividades dos Movimentos de Libertação do mundo inteiro, não vai deixar de apreciar o verdadeiro valor das intenções e dos esforços do PAIGC.

Queira aceitar, Senhor Secretário-Geral, com os meus agradecimentos repetidos, a expressão do meu bem fraterno e respeitosa amizade.

Conacri, 19 de Setembro de 1970
Raymond-Marie TCHIDIMBO,
Arcebispo de Conacri




Citação:
(1970), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39286 (2017-10-30)

Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 07069.111.023.
Assunto: Agradece a resposta à sua carta, em que dá conta da situação do prisioneiro de guerra Geraldino Marques Contino.
Remetente: Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo de Conacri.
Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC.
Data: Sábado, 19 de Setembro de 1970.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Relações com a Guiné-Conacri / Senegal 1960-1970.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondência.

[com a devida vénia]

Depois desta data nada mais foi encontrado relacionado com este tema. Desconhece-se, por isso, as consequências destes contactos. O que se sabe é que passados dois meses, naquele domingo, 22 de Novembro de 1970, Geraldino Marques Contino e os restantes vinte e quatro militares portugueses, prisioneiros de guerra em Conacri, às ordens do PAIGC, são libertados na sequência da «Operação Mar Verde», planeada e conduzida pelo Comandante Alpoim Calvão (1937-2014) [vidé postes P3244 e P1967].

Vinte e sete anos depois, numa iniciativa do semanário «Expresso», foi possível reunir em Lisboa, dezasseis desses prisioneiros. Na capa da «Revista do Expresso, n.º 1.309, de 29 de Novembro de 1997, é possível identificar, com a seta amarela, o Geraldino Marques Contino, camarada que esteve no centro deste trabalho de pesquisa [Infogravura nº 4]. O texto da reportagem é da autoria do jornalista José Manuel Saraiva.


Infogravura nº 4


Foto do Geraldino Marques Contino, publicada na Revista do Expresso n.º 1309, de 29 de Novembro de 1997, com a devida vénia.

A escassos dias de completar quarenta e sete anos, em que reconquistaram a liberdade na sequência da audaz «Operação Mar Verde» [Guiné-Conacri, 22 de Novembro de 1970], e a vinte anos da primeira reunião pública em grupo, em Lisboa, por iniciativa do Expresso, este trabalho é, também, a minha homenagem a todos eles, uma aprendizagem pessoal e, ainda, uma lembrança pelas duas efemérides.

Por último, recupero as declarações proferidas à RTP, em 1995, pelo então Presidente da República da Guiné-Conacri, Lansana Conté (1934-2008), elogiando a invasão do seu país pelos portugueses, “vendo-a como uma oportunidade perdida de libertar o país do jugo de [Ahmed] Sékou Touré [1922-1984]. E disse que os militares portugueses fizeram aquilo que é um desejo natural das Forças Armadas de qualquer país: libertar os seus prisioneiros de guerra” [Fórum Armada - página não-oficial da Marinha de Guerra Portuguesa - http://archive.is/CNcHE], com a devida vénia.
Obrigado pela atenção.

Com um forte abraço de amizade… e muita saúde.
Jorge Araújo.
8NOV2017
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Nota do editor:

Último poste da série >  30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)