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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
A franqueza, por vezes brutal, o completo desassombro, o rigor dos números e das propostas, deixam-nos estupefactos. Estes apontamentos que Castro Fernandes, figura lídima do Estado Novo, envia à governação do BNU em 1957, não poderá deixar insensíveis os estudiosos da História da Guiné.
Castro Fernandes não mascara as situações de conflito, os enredos e as intrigas, o que pensa sobre o funcionalismo e os comerciantes, o que há de bom e de mau na exploração dos recursos económicos. Salta à vista que está muitíssimo bem documentado e veremos que quando refletir sobre os problemas que interessam diretamente ao BNU, tem soluções na manga. Não se conhece, ao tempo, documento mais importante sobre o que era a Guiné e os remédios para a desenvolver, numa perspetiva colonial.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes depois da sua viagem à Guiné, que ocorreu entre março e abril de 1957, trazem uma outra iluminação sobre conceitos coloniais, instituições, pessoas, potencialidades económicas e até o sistema financeiro. É, não vale a pena iludir, um relevantíssimo documento que abre também caminho a sabermos mais sobre as propriedades do BNU na Guiné e o que era esperado por este Banco quanto à Sociedade Comercial Ultramarina.

Falou largamente sobre o contencioso do Perfeito Apostólico com o novo Governador, Álvaro da Silva Tavares, não descurando a observação de que, fruto da intensa islamização, não era o mais acertado recorrer às escolas das missões, mas sim às escolas laicas para incrementar a alfabetização.
E esboça um retrato do atual Governador:
“Foi Delegado do Procurador da República na Guiné durante quatro anos, Juiz no Bié e em Luanda, Procurador da República junto da Relação de Goa, Secretário-geral do Estado da Índia. É um homem novo, de 42 anos, bastante culto, com uma boa leitura, e manifestamente inteligente. Conhece a Guiné e os seus problemas. É muito trabalhador. Pareceu-me, apenas, hesitante ao passar do pensamento à acção – tem talvez o defeito de examinar as soluções por todos os lados de forma que encontra sempre razões para ter receio de as adoptar…
Não é fácil a sua tarefa: actua num meio extremamente complicado, não tem colaboradores, tem de se mover numa orgânica que, a meu ver, não corresponde hoje às necessidades das Províncias Ultramarinas”.

Tenho para mim que alguns dos parágrafos mais elucidativos sobre a vida colonial guineense saíram do punho de Castro Fernandes quando ele fala do meio social. Recorda que a população civilizada da Guiné é constituída por 1500 metropolitanos, 1700 cabo-verdianos, 4000 guineenses e uns 500 libaneses, núcleo de cidadãos concentrados nas cidades e vilas.
São todos ou comerciantes ou funcionários:
“Os comerciantes são, acima de tudo, traficantes – o indígena é, dizem, a principal riqueza da Guiné. O comércio tem por missão explorar esta riqueza. De resto, o indígena já o sabe e tanto que o Balanta diz para o branco ‘furta me ma piquinino’.
Os funcionários são, de uma forma geral, do pior que há. Só vão para a Guiné ou os castigados ou os que não têm classificação para serem colocados noutra Província ou como ponto de passagem para outro lado. Como nível cultural, não vão além do Reader’s Digest, como nível social está pouco acima, se está, do possidonismo da pequena burguesia das nossas vilórias. Claro que há excepções e que talvez eu exagere um pouco a caricatura – assim, fiquei espantado ao saber que os discos de música clássica se esgotavam logo que eram postos à venda; encontrei algumas pessoas com certo interesse e até com boas maneiras, mesmo no Interior.

A intriga é, além do consumo do whiskey por parte dos homens e da canasta por parte das senhoras, o entretenimento favorito dos cidadãos e cidadãs de Bissau. Serve de pretexto desde os negócios sentimentais até ao corte dos vestidos.
A vida – apesar de os ordenados dos funcionários serem pequenos – é contudo agradável no aspecto da comunidade. Um Chefe de Posto, que é evidentemente pessoa modesta, geralmente de extracção social modestíssima, vive confortavelmente: tem uma boa casa, a geleira repleta de boas coisas (com conservas de frutas, sumos, fiambres, etc.), sipaios para todos os serviços de casa, etc. Os Chefes de Circunscrição são principezinhos. Tanto uns como outros são presenteados largamente – quer pelos indígenas, quer pelos comerciantes – e conseguem fazer economias que geralmente estoiram durante as licenças graciosas passadas em Lisboa.

Em Bissau vive-se bem. Como as exigências não vão muito além da boa mesa, têm-na farta. E todos têm automóvel. E bons aparelhos de telefonia com gira-discos moderníssimos. E fatos de bons tecidos. E vestidos janotas. E perfumes e águas-de-colónia. E casas agradáveis… embora de péssimo gosto.
De resto, sem este mínimo de conforto, a vida seria impossível – dada a hostilidade do clima.
Este quadro, apenas esboçado, dá ideia das dificuldades de encontrar pessoas capazes de levarem a cabo uma obra de grande envergadura.
Os vícios inerentes a um meio como este não podem facilitar uma acção que pretenda sanear a vida económica e política da Província, criando maior riqueza ou preservando a que existe.
Salvo o devido respeito – que é muito – pelos que conhecem profundamente os problemas ultramarinos, afigura-se-me que o principal drama da Guiné (como de Cabo Verde), no aspecto da categoria dos funcionários técnicos, reside principalmente na existência dos dois quadros, o metropolitano e o ultramarino.

Examinemos, por exemplo, os serviços da agricultura. Do Instituto Superior de Agronomia sai todos os anos uma fornada de agrónomos. Todos procuram ingressar nos quadros do Ministério da Economia, onde são colocados como agrónomos de terceira classe com ordenado modesto de entrada, mas onde lhes é possível exercer outras actividades ligadas à profissão. Vão para o Ministério do Ultramar, normalmente, os que ou não tiveram possibilidade de ficar por lá ou os que têm necessidade, logo de entrada, de um ordenado maior. Destes, os que podem vão para Angola ou Moçambique, os outros, pobres deles, vão parar com os ossos à Guiné ou a Cabo Verde. E, então, sucede que o Director dos Serviços Agrícolas, por exemplo, da Guiné ou não tem categoria para o lugar, porque é fraco profissionalmente, ou porque não teve a prática necessária para desempenhar eficazmente tal cargo.
A meu ver, a Guiné, como Cabo Verde, como provavelmente São Tomé (limito-me às Províncias do meu pelouro) só terão resolvido o seu problema de pessoal técnico quando os funcionários, todos do mesmo quadro, forem destacados em comissão durante um certo período (refiro-me, já se vê, ao pessoal dirigente). No estado actual das coisas, não me admira que o Engenheiro-Agrónomo Director dos Serviços Agrícolas da Guiné vá pedir ao Agrónomo-Chefe de Ziguinchor que lhe dite um relatório sobre a mancarra…
Quanto aos quadros – a sua exiguidade é perfeitamente lancinante. Basta dizer que à Repartição dos Serviços de Agricultura e Veterinária está consignada, no orçamento deste ano, a verba de 2 mil contos”.

E desloca a sua análise para outro estrato social, os comerciantes:
“Os comerciantes, à parte os quatro grandes – de que me ocuparei na devida altura – ou são libaneses ou gente sem nível e sem preparação.
Não existe um comércio diferenciado, constituído por indivíduos com iniciativa, recursos, capacidade.
Na Guiné desagua o aventureiro ou o desiludido. Sujeitos que para ali foram tentar a vida e que se limitam, com maior ou menor êxito, a explorar o indígena, comprando-lhe os produtos que vendem aos grandes, e vendendo-lhes o que podem. Mais pormenorizadamente me ocuparei adiante da forma como o comércio é exercido. Neste capítulo, limito-me a denunciar o baixo nível social desta classe”. E conclui: 
“De modo que, o meio social da Guiné Portuguesa é constituído pelo funcionalismo – de uma forma geral mau, embora se devam apontar algumas excepções (e honrosíssimas), sobretudo no pessoal das missões encarregadas da execução do Plano de Fomento, no quadro clínico da Missão do Sono, na Missão Geoidrográfica, etc. – e pelo comércio cujo nível já se denunciou. O restante são empregados onde predominam os cabo-verdianos”.

Seguir-se-á um apanhado detalhado sobre recursos económicos. Logo o amendoim ou a mancarra. Constitui o principal produto de exportação da Guiné, a produção é da ordem das 35 mil toneladas e a exportação de sementes de amendoim para a Metrópole em 1952, foi também de 35 mil toneladas. A produção tem vindo a aumentar de ano para ano, tendo passado para o dobro desde 1926/30 a 1946/50. A Guiné Portuguesa é o quarto exportador do continente africano e o principal abastecedor da Metrópole. A cultura da mancarra é feita inteiramente pelos indígenas em regime de rotação. A área de maior produção coincide com a circunscrição de Farim e parte norte de Bafatá a Gabu. O aumento da produção não deve fazer-se à custa do actual equilíbrio do meio natural, isto é, o aumento da produção pelo incremento da destruição vegetal e pelo encurtamento dos pousios conduzirá à senegalização dos solos. Este aumento, que pode crescer consideravelmente, tem de ser feito pela progressiva melhoria das sementes, pela sua distribuição ao indígena, pela armazenagem do produto, pela adaptação de técnicas culturais mais perfeitas.

O amendoim é quase todo embarcado para o exterior por descascar. A casca representa em peso 25% da semente. Só a Casa Gouveia possui um descasque no Ilhéu do Rei. A Sociedade Comercial Ultramarina é a única que possui uma instalação para produzir óleo de amendoim. Esta situação da exportação da mancarra em casca é hoje única em toda a África. A exportação da ginguba (mancarra descascada) teria como vantagens óbvias uma considerável economia no transporte, uma melhor selecção do produto, mão-de-obra que ficava na Província. Tem sido preconizado que o indígena fosse obrigado a apresentar ao comércio o produto sem casca, ou que o descasque se efectuasse em pequenas máquinas instaladas nos centros de compra mais afastados dos pontos de exportação.
O problema da selecção de sementes e da construção de celeiros para o seu armazenamento começa agora a ser encarado.
O comércio da mancarra obedece aos princípios em que assenta todo o comércio da Guiné: exploração do indígena, corrupção de funcionários, concorrência desenfreada.

Existem na Guiné quatro grandes casas exportadoras – Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosas, Nosoco – logo seguidas por Aly Suleiman, que é um pequeno exportador e, ao mesmo tempo, vendedor à Casa Gouveia, além de mais umas seis firmas. As grandes firmas operam, essencialmente, por duas formas: através das suas operações ou lojas estabelecidas no interior, pela compra do produto aos intermediários, pequenos comerciantes independentes espalhados pela Província. A compra ao indígena faz-se por dois processos: ou vão directamente às tabancas ou o indígena vem às lojas vender o produto (na generalidade, os pequenos e médios comerciantes queixam-se da faculdade que a todos é concedida de comprarem a mancarra nas tabancas; argumentam que se o indígena fosse obrigado a vender a mancarra nas lojas, compraria panos, contas, etc. e que, assim, recebem o dinheiro e, pago o imposto, gastam o resto em aguardente; além de que tal prática facilita a concorrência”.

O relator refere os preços de compra ao indígena em várias localidades da Guiné e observa igualmente que o negócio consiste sobretudo em cada um assegurar-se da maior quantidade possível de produto.

E esta análise de recursos económicos irá continuar com o coconote, arroz, produtos têxteis, e muito mais.

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.

Aeroporto de Bissalanca, anos 1950

Imagem de uma guineense, retirada de um postal à venda no eBay.
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Notas do editor

Poste anterior de1 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19459: Notas de leitura (1146): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19469: Notas de leitura (1147): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19475: Historiografia da presença portuguesa em África (149): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Há razões seguras para dar muita atenção a este documento elaborado pelo médico Damasceno Isaac da Costa. Estamos no início da Província Autónoma da Guiné, está aqui um retrato fiel da presença portuguesa, a descrição das viagens entre Bissau e Geba não são propriamente uma novidade mas não conta a pirataria praticada, aliás o Governador Oliveira Muzanty teve que pedir a Lisboa uma operação como nunca até então se realizara para liquidar rebeliões, neste caso a do régulo Infali Soncó, que também impedia a circulação do Geba, nos moldes em que Damasceno Isaac Costa descreve neste seu precioso relatório.
E vamos conhecer os grandes problemas de saúde e de higiene do território.

Um abraço do
Mário


Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (1)

Beja Santos

Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo Administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.

Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888. É um documento minucioso, começa pela descrição do Conselho de Bissau, com sede em Bissau e compreendendo a vila de S. José, o presídio de Geba, Fá e S. Belchior. Situa a ilha de Bissau e diz que o rio Impernal a separa do território ocupado pelos Balantas. A ilha, diz o médico, era constituída por gentes de dez tribos, e os régulos ou chefes tinham as denominações, entre outras, de Antim ou Intim, Bandim, Amura, Prábis, Safim, Torre, Biombo e Quixete. Faz uma história dos régulos, refere-se à importância que teve a Companhia de Grão-Pará e Maranhão que obteve licença do rei de Intim para a construção da fortaleza. A povoação, no final do século XVII, tinha duzentas cubatas e cinco casas cobertas a telhas, habitadas por negociantes portugueses e comissários das casas inglesas da Gâmbia e franceses da Goreia e também pelos grumetes; havia também uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição e um hospício para missionários.

Falando do itinerário de Bissau a Geba, escreve o médico:

“Durante a estação de inverno, durante esses meses em que as chuvas são constantes e torrenciais, as águas transbordando os vastos pântanos e superfícies pantanosas situadas em diferentes pontas na proximidade do rio, formam regatos que vão desaguar no mesmo rio, o qual, por sua vez, não tarda a transbordar em muito pouco tempo, em consequência da sua estreiteza e pouca profundidade. 

Nesse período de tempo, a água correndo constantemente e com violência para desaguar no oceano faz desaparecer o fenómeno de praia-mar. É devido à ‘mantuana’ que as embarcações que navegam de Bissau a Geba gastam muitas vezes 30 a 40 dias, pois que é necessário arrastá-las contra a corrente das águas com auxílio de cordas amarradas às árvores que orlam as margens do rio.

Um outro fenómeno que dificulta a navegação tornando-a perigosa especialmente na ocasião da lua cheia, é conhecido no país com a denominação de macaréu. É imponente e majestoso este fenómeno. Quando começa a praia-mar, ouvem-se ao longe grandes rugidos, semelhantes aos de uma tempestade, mas de curta duração. De súbito, vê-se encapelarem-se as vagas umas após as outras, as quais impetuosas levam diante de si tudo quanto se opõe ao seu curso vertiginoso. Este fenómeno só se vê nos rios Geba e Corubal.

Os Beafadas que outrora ocupavam as margens do rio Geba fechavam a navegação deste quando lhes parecesse, especialmente em ocasiões de guerra que travavam com os Fulas e exigiam avultadas indemnizações às embarcações que com grandes dispêndios e importantes carregamentos transitavam no rio. Em 1847, o governador de Cabo Verde ordenou que se suprimisse a verba vexatória que a título de presentes era abonada a esses piratas e desde essa época poucas vezes se repetiram casos de semelhante natureza.

Para levarem a efeito esses actos de pirataria, os Beafadas amarravam uma corda na árvore de uma margem que passando pela superfície da água ia terminar regularmente noutra árvore na margem oposta. Os extremos da corda traziam duas campainhas que anunciavam a chegada de qualquer embarcação. Os Fulas-Pretos atacavam esses piratas e acabaram os saques”.

É um documento não só de leitura aliciante como é um registo das condições de vida na colónia nos finais do século XIX.

(Continua)


Carta da Guiné, século XVIII, por amável deferência da Sociedade de Geografia de Lisboa.


Câmara Municipal de Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19457: Historiografia da presença portuguesa em África (147): O padrão, no Gabu, comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné (1446-1946)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19459: Notas de leitura (1146): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Pôs-se termo ao expediente do gerente de Bissau quanto à evolução da luta armada, a partir do momento em que ele se limitou a enviar para Lisboa os Boletins Oficiais das Forças Armadas, deixámos de ter uma outra maneira de olhar os acontecimentos, cortou-se com a pluralidade.
O documento de Castro Fernandes, não hesito em classificá-lo assim, é uma das peças mais relevantes que constam do Arquivo Histórico do BNU.
Figura proeminente do regime de Salazar, vai produzir nestes apontamentos observações sulfúreas, não esconde que vem aí uma nova era e que não se pode iludir o separatismo. E se neste texto dá nota negativíssima ao Perfeito Apostólico, o que iremos ler a seguir sobre o meio social encerra alguns dos parágrafos mais eloquentes da descrição do colonialismo guineense.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71)

Beja Santos

Concluída a viagem pelo expediente “Acontecimentos Anormais”, em síntese, a documentação enviada pelo gerente de Bissau para a governação em Lisboa sobre a eclosão e desenvolvimento da luta armada entre 1962 e inícios de 1964, temos agora por diante um conjunto de tarefas que culminarão com a cessação de funções do BNU na Guiné, tendo dado lugar ao Banco Nacional da Guiné-Bissau.

De 9 de março a 8 de abril de 1957, António Júlio de Castro Fernandes, o administrador do BNU com a tutela da Guiné, viaja à Província e produz uma coletânea de apontamentos que, atrevo-me a dizer, é um dos documentos fundamentais para análise sociopolítica e económica da década de 1950, e em certos domínios lança luz para tudo quanto se vai passar no tumultuoso itinerário que leva à saída das forças portuguesas em 1974. Daí a ênfase se irá fazer a um documento que, em termos historiográficos, estimo como incontornável, como se verificará.

O administrador, antigo Ministro da Economia, e mais tarde figura de proa da União Nacional (foi presidente da Comissão Executiva), elabora os seus apontamentos a partir da situação política que constatou.
Saltando imediatamente os considerandos geográficos, demográficos, por demais conhecidos, vejamos o que o administrador observa sobre a população dita civilizada:
“A grande maioria da população civilizada é constituída por comerciantes e funcionários. Há apenas um reduzido número de indivíduos exercendo profissões liberais e artes ou ofícios. Os ponteiros, quando não são puramente comerciantes, têm pequenas culturas, principalmente de cana-de-açúcar, feitas com mão-de-obra indígena.
Não há qualquer diferenciação de funções entre os civilizados por grupos rácicos: brancos, mestiços e negros constituem uma sociedade homogénea. Os libaneses dedicam-se exclusivamente ao comércio. Trata-se de uma sociedade burguesa, sem quaisquer preocupações de ordem intelectual. Vive este pequeno grupo em permanente emulação e intriga”.

E quanto à outra população:
“Não existem na Guiné elites nativas cultural e politicamente europeizadas, desligadas da minoria civilizada que dirige a vida da Província. Muitos régulos e chefes que mantêm o seu estatuto mas receberam forte influência europeia conservam uma ligação harmoniosa quer com a sociedade civilizada, quer com a sociedade indígena. Não há elites negras repelidas pela sociedade europeia e pela sociedade africana. Na Guiné Portuguesa não há elites nativistas, política ou culturalmente. O indígena quando tem razões de queixa é sempre contra determinada pessoa e não contra a sociedade civilizada”.

E tece o primeiro comentário que se prende com o mundo envolvente e as ideias separatistas:
“A situação geográfica da Guiné, encravada na África Ocidental francesa, não deixa de criar preocupações quanto às ideias separatistas que dominam o território francês e que podem ou infiltrar-se ou, quando tais infiltrações não sejam relevantes, ser postas no plano internacional.
O Perfeito Apostólico, sobretudo na sua paixão contra o Governador, mostra-se extremamente preocupado com as infiltrações que, segundo afirma, são já gravíssimas. Segundo me disse, não tardará que a Guiné Portuguesa constitua um caso idêntico ao de Goa.
O Governador, por seu lado, considera a nossa situação no plano internacional, no que diz respeito à Guiné, de extrema gravidade. Em sua opinião, é insustentável a nossa afirmação de que não temos colónias, de que a Guiné não é uma colónia, enquanto se mantiver a distinção legal entre cidadãos e indígenas. Para uma população de 509 mil indígenas, há 8,3 mil cidadãos, dos quais 360 são estrangeiros. À pergunta que nos farão qual a população da Guiné no seu total, a resposta de 518 mil indivíduos dos quais só 15% são cidadãos – conduz, naturalmente, à conclusão de que se trata de uma colónia, digamos nós o que dissermos. Em sua opinião, esta distinção entre cidadãos e indígenas deveria acabar: todos seriam cidadãos, embora uma parte desses cidadãos vivessem em regime tribal, respeitando o Estado o direito próprio de cada tribo, protegendo-os e educando-os por forma a que venham a gozar os benefícios da civilização. Claro que tal regime traria como consequência que todos os indígenas que soubessem ler e escrever teriam direito de voto. Tal perspectiva não o atemoriza – pelo contrário. Prefere um eleitorado disperso e sobre o qual os administradores possam exercer a sua influência a um eleitorado concentrado, muito fácil de manobrar pela oposição. Perguntando-lhe eu se a Guiné Portuguesa poderia vir a constituir um problema idêntico ao de Goa, respondeu-me ‘Pior, muito pior, porque na Índia temos uma obra em profundidade com 500 anos e aqui, na Guiné, não temos nada’.”

Segue-se uma descrição no campo das intrigas envolvendo o topo das instituições da colónia:
“Durante o interregno Melo e Alvim (fora Governador até 1956) exerceu a encarregatura do Governo o Inspector Superior Capitão Abel Moutinho. Pondo de parte o que dizem de bom, de mau e de péssimo, a respeito do Capitão Abel Moutinho, não restam dúvidas de que o senhor pretendeu ser nomeado Governador. Para tanto, foi organizando os seus quadros, formando à sua volta um grupo que o obviava e através do qual dirigia a Província. Também me não restam dúvidas – até por documentos que vi – que o seu orientador era o Perfeito Apostólico. Naturalmente que, por outro lado, foi preocupação do encarregado do Governo desmantelar o quadro que lhe era hostil. E, à cabeça, investiu com o Intendente (Chefe dos Serviços da Administração Civil), Santos Lima. Para tanto, instaurou-lhe um processo disciplinar com três fundamentos: actividades nativistas com ligações com os separatistas de Dakar, hostilidade à situação, irregularidades administrativas. O processo, para a instauração do qual contribuiu activamente o antigo Comandante Militar Neves e Castro, agradou ao Perfeito Apostólico – só por escrúpulo me não atrevo a dizer que foi por ele inspirado – e tinha como finalidade desmantelar com o Santos Lima o grupo que, de qualquer forma, lhe estava ligado.

A nomeação do Dr. Silva Tavares caiu como uma bomba no grupo Abel Moutinho. Este, em vez de desistir da almejada nomeação, tentou e tenta ainda – sempre através dos seus sequazes, tornar impossível a acção do Governador, obrigá-lo ou a estender-se ou a desistir. Para tanto, criaram-lhe – no intervalo entre a nomeação e a posse – todas as dificuldades possíveis.
O Perfeito Apostólico não escondeu nunca a sua hostilidade ao novo Governador. E marcou desde logo a sua posição, não esperando o Governador quando este chegou à Província e não assistindo à sua posse – claro que pretextando impedimentos pouco plausíveis.
Entretanto, o processo de Santos Lima foi seguindo o seu curso, mesmo antes da chegada do novo Governador tinham caído, por ausência de qualquer fundamento, as acusações de nativismo e hostilidade política. O Intendente foi reintegrado nas suas funções – ficando o processo disciplinar reduzido a duas ou três acusações sem a menor importância (Posso afirmá-lo, porque me foi facultada a leitura do processo). Como o Governador não investiu contra o Santos Lima e, pelo contrário, lhe deu e continua a dar consideração correspondente ao lugar que ocupa – embora tenha mandado que o processo siga o seu curso normal – tal atitude serviu de pretexto para o Perfeito Apostólico o atacar violentamente. Digo violentamente porque a mim mesmo me disse que a amizade do Governador pelo Santos Lima – homem desonesto e inimigo declarado das missões – era um autêntico escândalo. A verdade, porém, é que o Governador não é, nem deixa de ser, amigo do Santos Lima. O Governador não pode – só para satisfazer o Perfeito Apostólico e os amigos de Abel Moutinho – tratar mal, desprestigiar o Intendente. A hostilidade do Prefeito Apostólico manifestava-se um pouco em surdina, não se exibia publicamente. Até que surge o pretexto… Apareceu na Guiné um sujeito de Cabo Verde, dizendo-se vendedor de livros. Foi ao Gabinete, pedindo facilidades. O Chefe do Gabinete escreveu um cartão para o Director do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, enviando-lhe o indivíduo e dizendo-lhe se os livros podiam interessar ao Centro. E é tudo… e foi um trinta e um. O camarada era propagandista de uma seita protestante e os livros aparentemente de cultura geral tinham o veneno na cauda. O Perfeito Apostólico escreveu uma carta violentíssima e malcriadíssima ao Governador, este responde-lhe em termos (li toda a correspondência e o relato do Governador para o Ministro – não me ficando dúvidas sobre a fragilidade do terreno em que o Perfeito se colocou).

A hostilidade agora é feita à luz do dia – por parte do Perfeito. Assim: do próprio púlpito da catedral, na presença do Governador, o Perfeito leu uma prática desancando-o e mandou que essa prática fosse lida em todas as igrejas da Guiné (os padres, porém, apenas a resumiram); quando o Governador chegou da Costa do Ouro, o Perfeito não assistiu nem à recepção nem à transmissão dos poderes (eu estava presente e vi que todos os padres estiveram no aeroporto); recusou – sempre com pretexto de doença ou ausência – o convite para assistir ao banquete que o Governador me ofereceu; pretextando uma pane, que certamente não houve, não veio ao cocktail que o Banco ofereceu; no dia da minha partida, foi ao cais mas despediu-se logo para se não encontrar com o Governador. Não esconde a sua má vontade. Acusa o Governador de seguir uma política económica errada, acusa-o de não favorecer a acção missionária, dificultando a sua missão, acusa-o de proteger o desqualificado Santos Lima, e muito mais.
Em minha opinião, a atitude do Perfeito Apostólico, além de indefensável, é erradíssima.
Pessoalmente, acho o Perfeito Apostólico uma pessoa muito simpática, activo, devotado – mas falta-lhe altura intelectual. É, por outro lado, um apaixonado, um violento, um recalcado. Não me parece que esteja à altura da missão extremamente oficial que lhe cabe.

A evangelização exige, num meio como a Guiné, uma técnica muito especial e que, a meu ver, não reside na imposição. Pretende o Perfeito que a coisa se passa através da acção policial ou governativa – mas de tal sorte que o antipático recaia apenas nas autoridades. Assim, a islamização da Guiné – que não constitui apenas um problema religioso, porque pode vir a constituir – e já constitui – um obstáculo à integração do indígena na comunidade nacional – é assunto que tem que ser encarado com uma delicadeza muito especial. Os islamizados (são os indígenas mais evoluídos) querem aprender a ler e a escrever, mas se forem instituídas escolas católicas mandam os filhos para o território francês. A única forma de actuar é pois instalar escolas laicas – o que constitui pretexto do ataque do Perfeito Apostólico contra o Governador, acusando-o de favorecer escolas não pertencentes às missões…”

E a seguir o administrador Castro Fernandes ajuíza um novo Governador e dá-nos um quadro espantoso do meio social.

(Continua)

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Notas do editor:

Poste anterior de 25 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19435: Notas de leitura (1144): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19449: Notas de leitura (1145): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19435: Notas de leitura (1144): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
É com pesar que nos despedimos das cartas confidenciais do gerente de Bissau que tinham como assunto "Acontecimentos Anormais". O que ele vai revelando um pouco antes e durante a fase de afirmação da subversão na Guiné é material de consulta obrigatória para futuros trabalhos historiográficos. Senão, vejamos: a forma minuciosa ou meticulosa como vai descrevendo os tumultos na região Sul, a partir do segundo semestre de 1962 e a desarticulação económica na mesma região ao longo de 1963; graças a fontes informativas privilegiadas, e na ausência de informação oficial, revela o alastramento da subversão, deixando bem claro que em fevereiro de 1964 a agitação ocupava na quase totalidade a zona Sul, uma boa mancha acima de Mansoa e com uma sólida implantação na região do Oio e a passagem do rio Corubal com muita agitação na margem direita do Geba, acima de Bambadinca, mas também na região do Xime, já havia barcos flagelados no Corubal, em breve o Corubal ficará intransitável até à região do Saltinho.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70)

Beja Santos

Em 29 de novembro de 1963, a carta confidencial do gerente de Bissau para Lisboa traz uma novidade em primeira mão, uma novidade que afetará doravante as informações que ele nos vinha prestando graças às suas fontes, e que, por razões que jamais saberemos, deixarão de existir.
Escreve o seguinte:
“O Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné convocou os representantes da Imprensa e Rádio para lhes participar a criação do Gabinete de Informações que passará a dar periodicamente comunicações oficiais sobre os acontecimentos militares, nesta Província.
Disse que as nossas Forças Armadas têm actuado o melhor possível na repressão ao terrorismo, embora sem os êxitos espectaculares que todos desejariam pois se trata de uma guerra muito difícil e de características muito especiais no condicionamento geográfico deste território. Afirmou que os comunicados a distribuir serão sempre lacónicos e sóbrios, visto que todos devem compreender as limitações a que estão sujeitos os problemas e actividades ligadas com operações de guerra e por conseguinte com a segurança militar. Deu ainda conta de uma digressão, que acaba de fazer por todo o Norte da Província e as impressões lisonjeiras colhidas quanto ao portuguesismo e lealdade das populações autóctones.
Esta medida há muito reclamada e cuja falta se fazia sentir foi, como não podia deixar de ser, bem recebida pelo público que poderá agora ser informado periodicamente do que de verdade se vai passando no campo militar e vem pôr ponto final aos inúmeros boatos e maledicências que aqui corriam acerca da actuação das nossas Forças Armadas na Guiné”.

E daí o gerente reproduzir o texto integral do Boletim Informativo das Forças Armadas da Guiné, correspondente ao período de 1 a 24 de novembro, onde são referidas ações de limpeza dos locais onde se fazia sentir a atividade terrorista, dava-se relevo à região do Oio, a duas flagelações a embarcações no rio Corubal, continuando a decorrer o tráfego marítimo normalmente em toda a Província. Havia manifestações de lealdade às autoridades portuguesas, houvera agradecimento em Tite e Bissorã, de modo expressivo. Dava-se relação dos mortos e de um acidente com um avião da Força Aérea, em voo de experiência, no qual perdera a vida um Oficial.

Em último lugar, o gerente fazia uma referência detalhada ao sistema de policiamento às instalações do BNU em Bissau e explicava porquê:
“Além dos valores afectos ao Tesouro, tem ainda depósitos obrigatórios, espólios, e, como banco central, depósitos à ordem, as disponibilidades financeiras dos particulares, independentemente de vultuosa carteira de letras, e algo mais. Competia-lhe ter à guarda todos os valores da Província da Guiné, daí a necessidade de acautelar ao extremo a defesa dos valores confiados. Requerera-se à PSP um dispositivo de vigilância forçado e comentava-se: “Tendo em atenção os antecedentes de alguns elementos da corporação implicados em elementos subversivos, se com dois agentes de segurança indígenas o policiamento não oferecia garantias dada a pouca confiança neles depositada, tornou-se agora, apenas com um, mais precário ainda. Aliás, toda a gente estranha tal anomalia, sabendo-se que, em caso de emergência, será o Banco um dos primeiros alvos a atingir, pois, como em 16 de Março do ano passado informámos, do diverso material subversivo apreendido a elementos do PAIGC, estava incluído o nosso ex-contínuo Inácio Soares de Carvalho, constava, entre outras, a planta do edifício do Banco”.

Em 6 de dezembro, o gerente iniciava a sua correspondência para Lisboa transcrevendo o Boletim Informativo das Forças Armadas correspondente à última semana de novembro. Continuava-se em contraguerrilha no Oio, as Forças Navais mantinham-se no desempenho das missões de fiscalização das águas territoriais e interiores, atuava-se na Península de Cubisseco, onde fora capturado vário material de origem russa e checoslovaca.
E dava informação da vida económica da Guiné:
“À margem dos acontecimentos militares, participamos que a abertura da próxima campanha de mancarra foi superiormente marcada para o dia 15 do corrente. Nas actuais condições anormais, é imprevisível qualquer estimativa acerca da produção daquele produto, mas admite-se que uma pequena baixa. Devido à presente situação, prevê-se que a nova campanha não decorra normalmente, contando-se com as arremetidas dos terroristas que tudo tentarão para perturbar o seu bom êxito. Estão previstas medidas de protecção aos mercados, ‘cercos’ e armazéns e cobertura militar ao transporte da mancarra para os portos de embarque”.

A derradeira correspondência desse ano data de 28 de dezembro, inicia-se com transcrição de informação oficial das Forças Armadas, dando-se relevo a uma festa de confraternização que se realizara em Aldeia Formosa, com a presença dos homens grandes de Forreá e Contabane, que servira de pretexto às manifestações mais calorosas de portuguesismo.

O que se segue é uma mistura de informação económica e de dados confidenciais, nesta altura o gerente de Bissau ainda possui um confidente ao alto nível e escreve:
“À margem dos acontecimentos militares, acentuamos que a presente campanha de mancarra há pouco iniciada está a decorrer com normalidade, não se tendo registado até agora qualquer acto de terrorismo tendente a perturbar o andamento regular dos trabalhos em curso a ela ligados.
As medidas militares previstas, iniciaram-se ontem com a instalação em Binta, porto do interior da Guiné servido pelo rio Cacheu, de um pelotão destinado a proteger os armazéns num local existentes e o embarque do produto para a Metrópole.
Como nota saliente da última semana, temos a registar a fuga em 23 de Dezembro de 4 naturais da Província, funcionários das repartições da Alfândega, Correios e Fazenda, presumindo-se com destino ao território vizinho do Senegal a fim de ali se juntarem aos elementos naquele país instalados e pertencentes aos partidos ‘libertadores’.
Como corolário deste acontecimento, a PIDE prendeu uma trintena de indivíduos que se preparavam também para iniciar a fuga com a mesma finalidade. Interrogados, declararam uns que apenas pretendiam mudar de situação, outros que se propunham frequentar cursos com bolsas de estudo atribuídas para o efeito”.

A carta enviada a 3 de janeiro traz uma informação que nos ajuda a compreender como se alastrara a luta subversiva. Até agora, as informações martelavam continuamente acontecimentos ocorridos no Sul e na região entre Mansoa e Bissorã, com destaque para o Oio. Ora na primeira carta de 1964, e reportando-se a acontecimentos ocorridos na última semana de dezembro, havia já referências a ataques a Amedalai e Cutia, ações de nomadização no Oio e na região do Xime tinha sido surpreendido um numeroso grupo de terroristas bem como em S. Belchior, não longe de Enxalé. Decididamente, a Frente Leste dava sinais de vida. Tinham sido igualmente localizados acampamentos terroristas em Fulacunda e destruído um paiol junto à lagoa de Bionra.

Em 17 de janeiro, a transcrição do comunicado oficial já fala das três Frentes, não as enunciando explicitamente: o PAIGC fizera explodir três fornilhos no Oio e assaltara viaturas civis, igualmente emboscara; no Sul fizera rebentar um fornilho; em Chicri, no regulado do Cuor, tinham sido localizadas casas de mato e destruídas. Sem nunca falar na operação Tridente, o gerente refere que estava em curso uma operação de grande envergadura destinada a libertar parte do território da Guiné há tempos sob o domínio terrorista. “Segundo consta, um dos objectivos a atingir é a ilha de Como, ao Sul da Província que, como em tempos informámos V. Exas., se encontra solidamente guarnecida. Para apreciarem de perto a anunciada ofensiva, encontram-se no teatro da luta o senhor Ministro da Defesa e altas patentes das nossas Forças Armadas. Por indícios chegados ao nosso conhecimento, a citada operação terá a duração aproximada de três semanas”.

Data de 22 de fevereiro a última carta do gerente de Bissau cujo teor aqui interessa repetir, por ainda não estar a sua informação completamente condicionada às informações oficiais, e o que nos diz tem nalguns pontos foros de ineditismo:
“Como facto saliente à margem dos acontecimentos militares em curso no território desta Província, há a registar a presença nesta cidade de uma comissão da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné), com sede em Dakar, constituída por Cesário Carvalho Alvarenga, antigo Chefe de Posto de Pecixe e que há anos fugiu para o Senegal, Ernestina Silva e Gano Umasú.
A FLING, segundo depoimento do seu secretário-geral, Emanuel Lopes da Silva, feito em fins de Julho do ano passado em Conacri numa reunião com uma ‘missão de boa vontade’ constituída por representantes oficiais de países africanos: a Argélia, as Repúblicas da Guiné e de Leopoldville e o Senegal, encarregada de verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que, instalados em Dakar e Conacri, têm como propósitos ‘a emancipação de Cabo-Verde e da Guiné’, replicou a Amílcar Cabral, também secretário-geral do PAIGC, que o seu partido possuía também na República de Sekou Touré um ‘estado-maior e um campo de treino’, alegando que as ‘formações militarizadas’ da FLING haviam penetrado por mais de uma vez em território da Guiné, nomeadamente na região entre Varela e S. Domingos.
Não obstante ter-se chegado à conclusão que no território senegalês o partido mais importante era a FLING, a ‘missão de boa vontade’ resolveu recomendar, depois de votação, que fosse reconhecido como único movimento verdadeiramente representativo da luta contra o colonialismo português na Guiné ‘chamada’ portuguesa, o PAIGC.
Apesar disso, foi o partido banido que enviou à Guiné a comissão que veio conferenciar com o Senhor Governador da Província, certamente com autorização do Governo Central, e que tranquilamente, sob as vistas estupefactas do agente da PIDE, desembarcou no aeroporto da cidade vindo de Dakar.
Do resultado e objectivos das conversações nada, como é lógico, sabemos”.

(Continua)

Este marco está situado nos arredores de Suzana, mais ou menos a meio da estrada que liga Suzana ao porto de Buadje. Foi mandado construir pelo Administrador de S. Domingos para comemorar a chegada à Guiné. O marco foi colocado no local onde, segundo a tradição Felupe, Deus (Emit-ai) colocou o primeiro casal Felupe. A inscrição do marco diz o seguinte:
“Foi aqui que o primeiro Felupe ergueu a sua casa de tardição V Centenário 1446-1946”
Imagem e texto amavelmente cedidos por Lúcia Bayan, a fazer doutoramento sobre a etnia Felupe.

A Igreja de Catió, imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Imagem que consta do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão
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Nota do editor

Poste anterior de 18 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19414: Notas de leitura (1142): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19425: Notas de leitura (1143): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19414: Notas de leitura (1142): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

Se há imagens que valem por mil palavras há também palavras que ganham eloquência e permitem refletir uma dada situação histórica, com um grau apreciável de fidedignidade. Será o caso deste documento em que o responsável em Bissau pela Sociedade Comercial Ultramarina descreve o que está a acontecer no Sul, um quase desmantelamento geral de postos de abastecimento.

O gerente do BNU em Bissau irá enviar para Lisboa até ao primeiro trimestre de 1964 informações preciosas, como ele próprio observa o Comando Militar é lacónico, não dá informação sobre o evoluir da situação, o gerente tem fontes que o habilitam a enviar informações preciosas, de tal modo que percebemos que para março/abril de 1964, mesmo com um número crescente de unidades militares a chegar à Guiné, a subversão foi bem sucedida no Sul, estendeu-se para o Corubal e começa a inquietar o chamado setor de Bafatá e posicionou-se de pedra e cal no Oio, cortando estradas e desinquietando toda a região circundante.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69)

Beja Santos

Em julho de 1963, está instalado o alarme. O “Diário Popular”, na sua edição de dia 17 dera relevo a uma entrevista com o Ministro da Defesa, a Administração do BNU entendeu pôr-se imediatamente em contacto com o gerente de Bissau, agradecendo tudo quanto tinha vindo a ser exposto sobre a escalada da luta armada. O que viera no “Diário Popular” fora silenciado pela maior parte da imprensa nacional, e como escreve a Administração do BNU, o ministro dissera textualmente que no Sul da Província “grupos numerosos e bem armados de terroristas penetraram em território nacional numa zona correspondente a 15% da superfície da Província” e a Administração em Lisboa previne a gerência de Bissau:

“Achamos prudente que estejamos atentos ao desenvolvimento da situação, para o caso de ela vir a agravar-se. E assim devem V. Sas. ter bem presente o que dispõe a circular reservada n.º 760, de 7/5/1931, para o que confiamos plenamente em V. Sas., no sentido de, se necessário, dar-lhe execução.

Agirão, em primeiro lugar, sem nervosismos nem precipitações, pois mesmo com a violação verificada das fronteiras, as nossas tropas cumprirão o seu dever, como o estão fazendo.
Só se procederá à inutilização das nossas notas em última extremidade, quando as autoridades militares o julguem conveniente.

A inutilização poderá ser por perfuração ou por queima, conforme a rapidez que a gravidade dos acontecimentos posteriores porventura imponha.

Como medida de providência, é conveniente mandar relacionar as notas existentes na Casa Forte ou Cofres, reduzindo ao mínimo indispensável as existências na Tesouraria.

O relacionamento será feito por maços, correspondendo a cada maço uma relação, a fim de que, quando os maços transitem para a Tesouraria, as respectivas relações individuais possam ser inutilizadas.” 

Em 20 de agosto, Luiz Vianna, da Sociedade Comercial Ultramarina em Lisboa envia ao administrador do BNU, Castro Fernandes, uma fotocópia da carta confidencial, datada de 6 desse mês remetida pela gerência de Bissau à sede da Sociedade Comercial Ultramarina, cujo teor é o seguinte:

“Situação política:

1 – No dia 4 do corrente veio a Bissau de avião o nosso empregado Manuel da C. Cunha Viana para nos avisar de que o Pelotão que estava no Xugué ia ser retirado para Bedanda, o aviso partiu de um capitão amigo do nosso empregado que o fez em atenção a favores recebidos, mas debaixo de grande sigilo.

2 – Como devem calcular, ficámos indignados com tal procedimento, pois a nossa Sociedade tem sido para o Comando Militar um manancial de facilidades e não está certo uma atitude destas, pois a economia da Província, a manter-se tal disposição, sofreria um prejuízo na ordem dos 1.500 contos, sem contar os imóveis.

3 – No que diz respeito à nossa Sociedade e pelas informações agora chegadas, temos naquela localidade os seguintes valores: 200 toneladas de arroz em casca, 70 contos de mercadorias, imóveis e utensílios diversos. Deslocámo-nos imediatamente ao Comando Militar para ver das possibilidades de suster, pelo menos por 10/15 dias, esta medida que prejudicava não só a nossa Sociedade como a economia da Província. 

4 – Depois de várias tentativas e intermediários militares, era domingo, conseguimos falar com o Sr. Major, que nos disse para esperar, pois ia pôr o assunto ao Sr. Brigadeiro Louro de Sousa, que disse textualmente o seguinte: nada podia fazer, pois havia um mês que o assunto do abandono do Xugué tinha sido posto ao Sr. Governador e por conseguinte nada tinha com tais problemas, o movimento tinha que se fazer como estava previsto. Avistámo-nos com o Chefe do Estado-Maior que nos ouviu e depois de várias hipóteses, mandou-nos regressar ali no outro dia para nos dar uma resposta definitiva. 

5 – Fomos lá à hora marcada na companhia do gerente da Casa Gou   veia que também tem no Xugué vários valores e depois de estarmos ali à espera quase duas horas, resolveram dar-nos os 15 dias pedidos para retirar todos os valores existentes no Xugué, antes de a povoação ser abandonada. 

6 – Já tomámos as providências necessárias e contamos ter tudo recolhido até ao princípio da próxima semana. 

7 – Sabemos que na realidade tem havido diversos problemas naquela área e tal situação é insustentável. 

8 – Em Catió, quase todos os dias tem havido tiroteio sem consequências de maior. 

9 – Em Salancaur soube-se que os terroristas estavam a negociar na nossa Casa Gouveia, vendendo não se sabe o quê, possivelmente coisas roubadas, a aviação foi lá e bombardeou aquilo tudo, e é de prever que as Casas tenham ficado bastante danificadas. 

10 – Sabe-se também que os terroristas estão instalados nas nossas Casas de Caboxanque, qualquer dia a aviação vai lá e dá cabo de tudo.

É esta a situação, quanto mais tropa vem, menos faz, por este andar os nossos imóveis vão desaparecendo e qualquer dia todas as Casas abandonadas estão desfeitas pela aviação.
A Casa de Cafine já quase não tem telhado e as 40 toneladas de arroz e mercadorias que lá ficaram já não existem com toda a certeza.”

Em 31 de agosto, o gerente de Bissau informa o BNU em Lisboa:

“A entrevista concedida pelo Senhor Ministro da Defesa e publicado no “Diário Popular” na tarde de 17 de Julho foi nesta Província transcrita no jornal “O Arauto” do dia 25.

As declarações do Senhor Ministro não tiveram aqui a repercussão inquietante de que se revestiram na Metrópole, de tal modo que choveram em grande número para a Guiné, quer por correspondência, telefone ou telegrama, os mais desencontrados e por vezes horripilantes boatos das lutas travadas pela posse desta cidade, com umas dezenas de mortes e de feridos à mistura.

Aliás, as palavras proferidas por aquele membro do Governo confirmam apenas as informações que há meses vimos prestando a V. Exas.

A população citadina, diga-se em abono da verdade, não isenta de preocupações, continua a fazer a sua vida normal, confia que com os reforços há semanas desembarcados, as forças militares operem o tão desejado volte-face da situação passando, finalmente, à contraofensiva nas zonas infestadas pelo terrorismo.

É convicção geral que só desta forma, lutando com as mesmas armas e no campo do inimigo, será possível senão eliminar pelo menos abrandar a violência dos últimos ataques.

Depois de previamente instaladas como as actuais condições permitem, as nossas tropas desenvolveram ultimamente grande actividade no sector compreendido entre Mansoa, Mansabá, Bissorã e Olossato, relativamente perto de Bissau.

Precedidos de intensos e arrasadores bombardeamentos aéreos nos refúgios do inimigo no mato, as tropas de terra, apertando o cerco, lançam ataques contra os terroristas em fuga, infligindo-lhes, segundo consta, severas baixas que uma emissora de um território vizinho aqui captada cifrou no número 200 só numa operação.

Não podemos confirmar estes números, visto que o Quartel-General do Exército é avaro de informações e nem sequer fornece comunicados das operações realizadas.

Assim, limitamo-nos a transmitir as informações de fontes não oficiais e que, possivelmente, nalguns casos, não correspondem inteiramente à verdade.

Contudo, não obstante as acções militares, não deixam os terroristas assinalar a sua presença e, como prova da sua actividade, na estrada Mansabá-Bissau, num troço das proximidades daquela povoação, esteve esta semana obstruída com troncos de árvores.

Anteriormente à vinda dos reforços militares, num ataque levado a cabo em 20 de Julho por um numeroso grupo constituído por argelinos distintamente identificados pelo vestuário e tez mais clara, negros e cabo-verdianos a uma coluna militar à distância de dois quilómetros de Mansabá, resultaram sete feridos do nosso lado.

No Sul, autenticamente abandonado, à excepção de alguns pontos ainda guarnecidos pela tropa, os terroristas continuam livremente senhores da maior parcela do terreno e controlam as vias de comunicação.

Nesta área, os nossos soldados limitam-se à defensiva dentro de redutos de arame farpado, visto que, segundo dizem, os efectivos de que dispõem são em número reduzido em relação ao território a cobrir.”

O gerente do BNU irá manter esta correspondência confidencial muito intensa, ao longo de todo o ano de 1963. Iremos verificar que o Leste entra em cena no final do ano, ataques a Amedalai e na região do Xime, em frente, na outra margem do Geba, resistiu-se em S. Belchior, os terroristas foram postos em fuga.

Quando se fizer o balanço de 1963, verificar-se-á que a situação no Sul vive em crescente turbulência, e daí a tentativa de sustar a subversão através de uma formidável operação, a Tridente, para reocupar a ilha do Como; a subversão chegara ao Corubal, grupos do PAIGC instalavam-se nas matas densas de Tabacutá, Galo Corubal, Mina, Poidon, Ponta Luís Dias, e muito mais, a Frente de Leste, ainda que timidamente, passara a ser uma realidade; e em território que o PAIGC classificará como Frente Norte, são constantes os ataques provenientes das matas do Oio, designadamente do Morés.

(Continua)


Mapa da Guiné constante no “Novo Atlas Escolar Português”, de João Soares, 4.ª edição, Sá da Costa, 1951. O que surpreende é a flagrante desatualização das localidades, noutro mapa que em breve publicaremos, referente a 1948, haverá muito mais rigor. Quem olhar para este mapa, ficará com a ideia que quase metade da Guiné era maioritariamente constituída por Fulas Pretos e depois por Biafadas, Balantas e Manjacos. Define-se a região do Gabu, mas não se precisam os limites, aquilo que é o Forreá e o Tombali também não tem nenhuma precisão, escreve-se que há Beafadas e Nalus. Foi por este mapa que a minha geração teve notícia do que era a Guiné…


A Imagem retirada do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao governador Raimundo Serrão.


Travessia do Corubal
Imagem publicado no Jornal “O Comércio da Guiné”, na sua edição de abril de 1931.
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Nota do editor

Poste anterior de11 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19395: Notas de leitura (1140): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de14 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19404: Notas de leitura (1141): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins e os entrevistados dos três teatros de operações foram Carlos de Matos Gomes, José Villalobos Filipe e Nuno Lousada, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19395: Notas de leitura (1140): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68) (Mário Beja Santos)

Sede do BNU na Avenida 5 de Outubro - Lisboa.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me fora dado ler um documento onde se transmite o estado de transtorno e de desconfiança a que chegam as relações entre militares e civis, no quadro da eclosão da subversão no Sul. O documento, não datado, constante do Arquivo Histórico do BNU, saiu seguramente do punho do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, foi despachado pelo Administrador Castro Fernandes no início de junho de 1963, dá conta do desmantelamento económico rapidamente ocorrido nos primeiros meses de 1963 e na crispação e estado de suspeição entre os militares de Catió e os encarregados da Sociedade Comercial Ultramarina.
É o horror da guerra, parece gritar este relato com parágrafos tão pungentes.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68)

Beja Santos

Na documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um documento não assinado mas que foi visto por Castro Fernandes em 27 de junho, intitulado “Situação Política da Guiné”, pelo seu teor percebe-se rapidamente que é um relatório que saiu da mão do responsável da Sociedade Comercial Ultramarina na Província. Começa por dizer que estavam a ser levadas a efeito na região Sul diversas ações de repressão que, segundo opinião geral da população civil, serviam apenas para dificultar as relações com os naturais, assumiam o aspeto de ações esporádicas com caráter de represália, em face da descontinuidade de atuação graças à falta de efetivos. Havia muita gente afetada do ponto de vista económico, considerava-se como perdida a atual safra de arroz por falta de colheita, de debulha e de comercialização.

A repressão atingia muitos operadores económicos, assumia também o caráter de confrontos militares, e o relator procede minuciosamente à descrição dos acontecimentos:

“ – Assalto a Jabadá à casa de Jamil Heneni e na sequência assalto às embarcações que ali foram para fazer o rescaldo. Desaparecimento do empregado; 

- Assalto a uma propriedade na mesma área onde trabalhava Carolino Barbosa de Andrade, irmão do nosso encarregado de Bolama e que desapareceu; 

- Assalto em S. João ao pessoal enviado de Bissau pela Casa Gouveia para carregar uma lancha; 

- Assalto a uma propriedade do comerciante Lourenço Marques Duarte, perto de Catió, onde o sobrinho pereceu, tendo sido encontrado barbaramente retalhado; 

- Tentativa de assalto a um ou dois pontos isolados nas cercarias de Catió. Num deles retalharam um Fula; 

- Duas tentativas de assalto à guarnição de Cabedu; 

- Emboscada a uma patrulha militar perto de Cafine. Ao que parece, as viaturas ficaram incapazes e os soldados conseguiram regressar a pé a Bedanda; 

- Emboscada a uma patrulha militar em local que desconhecemos por um grande grupo armado de catanas que se atiravam das árvores para cima das viaturas, e que teve grandes baixas; 

- Armadilha preparada entre S. Domingos e a fronteira onde pereceu o Capitão Carmo; 

- Assalto a Darsalame aos cipaios aquartelados na casa do comerciante Sr. José Castro Fernandes, os quais abriram fogo sobre os atacantes que pegaram fogo à casa. O nosso empregado parece ter fugido na confusão para o mato e tanto quanto sabemos a nossa casa não foi tocada, mas não conseguimos mais notícias; 

- Assalto a Bambaiã ao barco da carreira do Lourenço Marques Duarte, que foi destruído; 

- Tiros feitos sob o barco do Estudo em carreira de Catió para Bolama e Bissau”.

O relator desfia um corolário de queixumes quanto à falta de cobertura militar que permitisse a retirada de valores:

“O que se tem feito, fez-se com nosso pessoal, necessariamente com risco, pois do Chequal retirou-se arroz por três vezes e na segunda o auxiliar de Banta que ali foi fazer o carregamento foi avisado de que lá não deveria voltar, pois poderia sofrer e a embarcação também. No entanto, retornaram lá para retirar apenas mais 25 toneladas, entretanto apareceram terroristas que intimaram o mestre do Santa Comba a largar imediatamente, dizendo que o produto ficaria ali para a população compensar o que a tropa tinha queimado. Em Unal, o empregado, após o encerramento inicial, tentou lá voltar mais duas vezes, na segunda das quais regressou de canoa ao Xugué conduzida por ele próprio. Mais recentemente foi lá com o motor para tentar retirar tudo e caiu nas mãos dos terroristas e bem assim o mestre do motor Bandim”.

O documento tem outra relevante dimensão quanto ao estado crescente de suspeições e até arbitrariedades. O relator estivera em Catió e falara com o tenente-coronel Delgado que lhe referiu que o empregado de Banta, Augusto Lopes Pereira, que fora deixado em liberdade condicional naquela povoação como “isca”, estaria envolvido em acontecimentos de sublevação e em estreita ligação com o PAI (designação anterior do PAIGC).

E escreve:

“Tendo-nos o empregado referido os interrogatórios a que foi sujeito por aquele oficial, e depois pela PIDE, aquele oficial perguntou-lhe se conhecia um agitador de nome Cusselima, que o empregado na realidade conheceu e que desaparecera de Banta há muito, estando preso na Ilha das Galinhas, e aquele oficial fez então uma referência a uma fotografia ao que o empregado lhe disse que se o Cusselima só poderia ter uma fotografia sua se acaso lha tivesse roubado. Posteriormente, porém, ao agente da PIDE disse que três meliantes, em Outubro do ano passado, de pistolas apontadas entraram-lhe em casa e exigiram dele uma fotografia sua que estava sobre o móvel e que o ameaçaram de morte se porventura referisse a visita às autoridades e outra anterior em que o tinham convidado a aderir, e que em qualquer sítio da Guiné onde estivesse, seria apanhado. A ser verdade o que ora conta, o seu erro foi, como lhe dissemos, não ter vindo expor a situação para se proceder a uma transferência para que pudesse contar os factos às autoridades”.

O estado a que chegara a guerra no Sul, segundo o relator, justificava que se fechassem todas as casas do Sul, incluindo as que estavam em centros militares, paralisando todas as embarcações e dispensando todo o pessoal. No relatório faz-se menção que o Quartel-General encarava agora uma atuação que visasse uma melhor proteção das atividades económicas. Refere-se igualmente no relatório que era percetível a existência de atritos entre o Governo e o Quartel-General.
Atenda-se agora à seguinte observação:

“Certos e determinados aspectos da actuação militar com um carácter de terrorismo às populações nativas, de que aliás só tenho conhecimento verbal e portanto delas não podemos tomar a responsabilidade, ainda que verbalmente transmitidas a Sua Ex.ª , não foram referidas no memorial entregue ao Governo dado que quem mais sofre com a repressão serão os que directamente nada têm com os incidentes e que alguns, senão muitos, dos factos ocorridos são avolumados e multiplicados pela opinião pública que está a criar a impressão de que queimar tabancas e arroz aí armazenado e a morte eventual de mulheres e crianças trará um ódio ao europeu que não mais poderá ser sanado, uma vez que o terrorismo de início afectou a população nativa e depois foi dirigido contra a ocupação militar e só mais recentemente evoluiu no sentido de ataque económico. Do memorial consta uma posição actual do arroz em casca. O Governo da Província encara a necessidade de importar arroz mas não sabemos se tenciona fazê-lo por sua conta e risco ou através do comércio”.

E continua a dar informações sobre a atividade da guerrilha no Sul:

“Já com o memorial pronto, o encarregado de Catió chamou-nos ao telefone pois o encarregado José Saldanha, de Unal, de onde teve de fugir três vezes, fora preso pelas forças militares, e estava no quartel de Catió onde já tinha sido maltratado… Pusemo-nos em contacto imediato com o Quartel-General, onde o Subchefe do Estado-Maior não pareceu gostar muito da ideia. Hoje de manhã, de Catió, disseram-nos que o empregado tinha sido libertado e do Quartel-General disseram-nos que de Catió chegara um rádio em que se dizia que o nosso empregado do Unal tinha sido interceptado naquele local por terroristas armados por seis pistolas-metralhadoras, pelo que iam proceder imediatamente a uma operação naquela área e apoiar o carregamento dos valores que ainda lá estão”.

O relatório não deixa margem para dúvidas, os trabalhadores da Sociedade Comercial Ultramarina do Sul estavam em polvorosa, e o relator assim escreve:

“Da parte dos empregados do Sul, a impressão que nos foi transmitida pelo encarregado de Catió é que se continuarem a ser tratados como colaboracionistas pelas autoridades militares, deixarão os locais onde trabalham, pelo que a suspeita representa e a estranheza da sua situação de terem talvez a vida arriscada pelo terrorismo e passarem a ter a desconfiança das autoridades militares apesar do muito auxílio e informações que lhes têm prestado, sempre prontos a uma colaboração efectiva.
A decisão que tomámos, de forçar o assunto e de sair a terreiro pelos empregados, principalmente de Catió e de Unal, pode ser mal interpretada, mas porque não era assunto que telefonicamente fosse exposto, entendemos que a devíamos tomar mesmo com os riscos inerentes à dureza actual das autoridades na apreciação dos actos dos civis, mas não podemos de qualquer dos modos deixar de estar preocupados com o facto, até porque fizemos a ameaça velada de fechar os estabelecimentos do Sul, desarmar as embarcações para reparação em estaleiro e reduzir os quadros de pessoal, sem esperar para tanto o acordo do Governo da Província, e depois de acordar com V. Exas. para o que bastaria pintar a situação mais negra do que na realidade é. 

"Assim muito agradecíamos os vossos comentários e se possível, em face do vosso conhecimento da situação e do que melhor convém à firma, nos fosse dada uma linha de orientação que permita que esta gerência possa ter a noção de estar com os pés o mais assentes possível sobre um terreno que se normalmente é escorregadio na presente situação é completamente movediço, mas sentimos que há necessidade de um pouco de terreno firme onde pousar, mas por enquanto ainda não o conseguimos encontrar”.

(Continua)

Passagem submersível do Saltinho, 

Do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
 
A Farmácia do Estado em Bissau.

Fotografia do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
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Notas do editor

Poste anterior de 4 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19377: Notas de leitura (1139): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins e os entrevistados dos três teatros de operações foram Carlos de Matos Gomes, José Villalobos Filipe e Nuno Lousada, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)


Edifício da Agência do BNU de Bissau e zonas circundantes, 1921.
Por amável deferência do Arquivo Histórico do BNU.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Não subsistem dúvidas que entre 1962 e 1963 o gerente de Bissau teve acesso privilegiado a informações que lhe eram fornecidas a título sigiloso pelo inspetor da PIDE, daí o manancial informativo que extravasava os comunicados oficiais, assim será até ao início de 1964 em que por razões que escapam à investigação o gerente se irá confinar aos comunicados oficiais.
Em meados de 1963, agravara-se a situação do Sul e a guerrilha estendera-se às vizinhanças de Bissau e era a sigla entre Bissorã e Mansabá, o PAIGC organizava-se no Oio e preparava o seu santuário na região do Morés.

Com as informações que nos irá chegar do gerente de Bissau, no final do ano também o PAIGC marcará presença na região de Bambadinca, a subversão também se organizava para lá do Corubal, as forças portuguesas eram diminutas, estavam então sediadas em Fá Mandinga, o aquartelamento de Bambadinca será posterior.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67)

Beja Santos

Tinham crescido, notoriamente, as dificuldades económicas, a desagregação que a guerrilha estava a operar no Sul motivara o comentário do gerente de Bissau em 31 de maio de 1963:  “A actividade comercial está hoje muito reduzida e acha-se quase circunscrita às operações da Sociedade Ultramarina e da Casa Gouveia” e é neste preciso contexto que o gerente, sabe-se lá se premeditadamente ou não, lança uma insinuação da maior gravidade:

“Certamente por instruções superiores, o pessoal da Sociedade Comercial Ultramarina tem colaborado com as autoridades na repressão do terrorismo.

Ao contrário, a Casa Gouveia, não só tem negado o seu auxílio dando ordens terminantes nesse sentido, como ainda despede os empregados que ajudem as nossas forças, tendo até demitido o encarregado da sua operação do Xugué, de apelido Barros, que lutou na defesa da povoação.

Por tal motivo, o citado indivíduo vai ser condecorado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe, consta que em 10 de Junho próximo, por actos de bravura praticados.

Como resultado de tal política, poucos prejuízos têm sofrido, ao passo que a Sociedade Comercial Ultramarina, em represália da colaboração prestada, foi obrigada a encerrar algumas operações.
Estamos habilitados a informar que a fábrica de descasque de arroz da nossa cliente Camacho & Correia, sita em Cufar, a cerca de 15 quilómetros de Catió, cremos que a única unidade industrial localizada no Sul e até agora protegida pela tropa instalada no próprio recinto fabril, vai ser desmontada e transferida para Bissau logo que termine a operação de descasque do cereal ainda existente nos seus armazéns.

Nota-se que os indígenas da região sublevada estão a aparecer vindos dos seus refúgios no mato e, caso significativo, dispostos a liquidar o imposto.

Será com o receio das chuvas, este ano muito retardadas, que de novo se aproximam do europeu? Ou do espectro da fome, esperada em face da destruição das colheitas de arroz, seu secular alimento?
Os próximos meses nos darão a resposta!

Como a V. Ex.ª. foi dado conhecimento por nosso telegrama de 25 do corrente, devido à escassez de arroz da produção local, uma vez que no Sul, tradicional celeiro da Guiné, pouco se colheu, vai o Governo da Província importar aquele cereal do estrangeiro. À primeira partida de 4 mil toneladas autorizaram outra igual, que se seguirá. Deste modo, será o habitual défice da balança comercial da Província agravado com mais este encargo da ordem das três dezenas de milhões de escudos”.

O discurso agora é orientado para informações sobre o evoluir da luta:

“A actividade terrorista manifesta-se em pequenas acções mais para marcar a sua presença, na opinião das nossas autoridades, que pelos efeitos destrutivos de que se revestem.

No prosseguimento desta táctica, na madrugada de 16, perto da fronteira senegalesa, foi atacada e em seguida incendiada a camioneta da carreira Bissau-São Domingos, presos os passageiros e pessoal de condução, todos indígenas, que não foram molestados, levados para Zinguinchor e mais tarde libertados.

Também em 4 de maio, um pequeno grupo de 15 a 20 indivíduos que se supõem pertencerem ao Movimento de Libertação da Guiné atacou a povoação de Bigene. Repelidos, deixaram rastos de sangue.

O facto mais saliente da acção militar foi a perda em 22 de maio de dois aviões ‘Harvard’, que em missão de rotina sobrevoando a ilha de Como, se despenharam por motivos ainda ignorados. O corpo do piloto de um deles, cujos destroços foram mais tarde localizados pelas brigadas de socorro saídas em seu auxílio numa bolanha situada na área de Tombali, foi encontrado fora da carlinga, desarmado, nu e coberto de palha. Crê-se que foi retirado já sem vida do aparelho sinistrado por elementos rebeldes. O outro avião, descoberto também pelas brigadas na mesma região, foi incendiado depois de uma aterragem normal. Do piloto, Sargento Lobato, não se encontraram vestígios. Corre aqui com certa insistência que está prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como. Porém, concreta e oficialmente, nada pudemos saber. Há informações da existência de bandos armados nos territórios vizinhos das Repúblicas do Senegal e Guiné com o beneplácito dos governos respectivos”.

O gerente de Bissau regressa à escrita em 6 de julho, toda a temática se prende com a evolução da guerra. O gerente revela que a sua habitual fonte informativa é o inspetor da PIDE, demorou algumas semanas a poder estabelecer contacto e diz mesmo: “Ainda esta manhã nos deslocámos novamente ao seu gabinete com o mesmo objectivo, sem resultado positivo, não tinha comparecido ao serviço” e pede desculpa pela insuficiência de detalhes nas informações que vai prestar:

“Na semana que hoje termina, a situação atingiu uma fase muito delicada que dia-a-dia se vai tornando cada vez mais grave.

As nossas tropas aqui estacionadas são comprovadamente insuficientes para a manutenção de uma cobertura militar capaz de proteger bens e vidas dos habitantes guineenses.

Os elementos terroristas vindos dos campos de treino existentes em territórios vizinhos do Senegal e Guiné infiltram-se pelas nossas extensas e desguarnecidas fronteiras, disseminando-se pelas terras do Interior, onde praticam os ensinamentos colhidos e fazem o aliciamento das populações nativas.
Os seus últimos e violentos ataques a forças do Exército caracterizaram-se por uma ousadia e conhecimentos de táctica de guerrilhas fruto por certo de aturado treino, que causam espanto e em contraste absoluto com o seu anterior procedimento.

Nalguns sítios do Sul, caso da ilha do Como, onde estão instalados, de pedra e cal como se costuma dizer, possuem mesmo armas pesadas.

Nas margens do rio, entre Cacine e Cabedu, instalaram metralhadoras pesadas que alvejam comboios de navios de transporte de arroz, não obstante a escolta de lanchas da Marinha.

De meados de Junho a esta parte, os seus ataques recrudesceram num ritmo que está a causar perturbações e, nalguns casos mesmo, alarme na população menos calma, alargando as suas actividades a zonas onde até há pouco ainda não tinham feito a sua aparição.

Deste modo registou-se um ataque a uma coluna militar na estrada Mansoa-Bissorã. 
A três quilómetros de Farim, a caminho de Binta, foi atacado um carro particular ocupado por indígenas e feridos gravemente os seus dois passageiros.

O Sr. João Herculano Graça, sócio-gerente da Guimal, de que a Sociedade Industrial  [ou Comercial ?] Ultramarina também faz parte, ao saber da presença de elementos terroristas nas imediações da fábrica de serração daquela firma, descolou-se a Mansabá, distante poucos quilómetros, para avisar o pelotão militar ali sediado, sendo no regresso alvejado a tiro de arma automática, felizmente não foi atingido, todavia o jipe que conduzia ficou danificado.

Houve, também, uma tentativa de destruição de um pontão na estrada Nhacra-Mansoa, a 5 quilómetros desta localidade, presumindo-se pelo buraco encontrado pretendiam utilizar cargas de plástico.

Foi ainda tentado, na mesma estrada, o incêndio de uma pequena ponte de madeira com emprego de gasolina.

Os prejuízos causados, quer em homens, quer em material, a destruição por deflagração de uma mina colocada na estrada São João-Fulacunda, nos primeiros dias deste mês, de um veículo militar com novos ocupantes, foi ocorrência de maior relevo dos últimos tempos. Há a lamentar neste acidente a morte instantânea de dois militares e, mais tarde, de um terceiro que expirou a caminho do Hospital Militar desta cidade, segundo nos foi dito por médicos do Exército por queimaduras provocadas por gasolina derramada pelo depósito do veículo. Os outros quatro feridos, com queimaduras em elevado grau, seguiram para a Metrópole, de avião militar, em estado desesperado.
Chega-nos também a notícia da morte de um alferes em combate, na área de Cabedu.

As nossas autoridades procuram eliminar elementos nativos afectos ao inimigo, mas deparam com inúmeras dificuldades, avultando entre elas o mutismo a que os prisioneiros se remetem, preferindo, muitas vezes, serem maltratados a denunciarem os seus correligionários.

No entanto, consta que há dias foi apanhado o chefe da tabanca de Nhacra e os componentes da sua célula. Tal indivíduo era considerado fiel à nossa bandeira!

Outros acontecimentos se registaram, tais como: ataque a Catió com a população refugiada na igreja; bombardeamento de objectivos em Jabadá, com artilharia de bordo dos navios de guerra em comissão nas águas da Guiné; tentativas de fuga de nativos para se juntarem aos ‘libertadores’.

Do piloto-aviador, Sargento Lobato, que, como dissemos a V. Ex.ª, em 31 de Maio findo, se suponha estar prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como, sabe-se que se acha em poder dos terroristas em território vizinho.

Temos ainda a lastimar a morte por acidente do nosso colega metropolitano Furriel Miliciano João Nunes Redondo, vítima do deflagrar de uma mina em Catió.

Não há dúvida que com a proximidade dos acontecimentos, se vive presentemente em Bissau um momento difícil.

É opinião geral que se as nossas forças não forem reforçadas com urgência de modo a abandonarem a táctica defensiva até agora adoptada em face da carência de efectivos, a situação tomará uma feição com tendência a agravar-se”.

No acervo do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um importante documento intitulado “Situação Política na Guiné”, provavelmente redigido em maio de 1963 e que é visão do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, trata-se de uma peça que carreia mais informações que permitem melhor compreender o evoluir da guerra e a desagregação do tecido económico e social.

(Continua)

Vista do interior do Cineteatro Bolama, fotografia de Francisco Nogueira.
Retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Guarda de polícia numa recepção ao Comandante Mello e Alvim, Governador da Guiné.
Imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954.
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Nota do editor

Poste anterior de 28 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de31 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19348: Notas de leitura (1136): “Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira; Editora UFPE, Recife, 2015 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)

Ruína de antiga fábrica alemã
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
É de incontestável importância o relatório assinado pelo Dr. Durval Ribeiro, ao funcionário da Sociedade Comercial Ultramarina que visita a Guiné em abril de 1963, fica-se a saber que ainda há movimento predador e pilhagem do Movimento de Libertação da Guiné, surtidas do Senegal, que ainda se nota uma certa paz no centro e à volta de Bissau e que o Sul até à região do Corubal está numa completa polvorosa, os funcionários da Sociedade, uns demitem-se outros estão desanimados, os europeus partem. Dir-se-á mais tarde, numa insinuação de que não há elementos concludentes abonatórios, que a Sociedade Comercial Ultramarina estava a ser mais afetada pela lealdade à soberania portuguesa que a Casa Gouveia, esta jogaria no equívoco, na dupla face. Mas não há elementos que substantivem essa insinuação.
Tudo mudara radicalmente, de janeiro para abril de 1963.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66)

Beja Santos

De 1 a 13 de abril de 1963, o adjunto da administração da Sociedade Comercial Ultramarina vai à Guiné e elabora um relatório de 16 páginas, carreia elementos e informações de inegável interesse. Fora encarregado de observar o que se estava a passar nos diferentes postos da Sociedade, visitar clientes e apurar a situação geral da Guiné, entre outros elementos de missão. Não se poupou a viajar, esteve no Sul, em Catió, Bedanda e Cacine e a norte do Geba esteve em Bafatá, Contuboel, Farim, Mansoa, Teixeira Pinto e Cacheu. Contactou inúmeros clientes: Arif Elawar, Mamud Elawar, Álvaro B. Camacho, Alberto C. Barros, Salim Boulassem, Jamil Heneni, Virgílio Reis, Casimiro Pires, Hermínio Correia, João S. Sepúlveda, Ernesto Lima, Jamil Wounes, Pedro G. Santos, Heni Abi Kalil, José Kalil, José Gabriel, Francisco Correia, Joaquim Escada, José Reis, José Amine, Mário Lima, Benjamim Correia, Taufik Saad, Carlos Domingos Gomes, Manuel J. Morais. Contacta um grande número de entidades, Governador da Província, altos funcionários, Comandante da Polícia, Chefe da PIDE, oficiais em Catió, Bafatá e Tite, administradores de circunscrição, Presidente da Associação Comercial, gerente do BNU, gerentes da Casa Gouveia e de Barbosa & Comta.

A situação da Província é relatada ao pormenor e quem leu o relatório vai sublinhá-lo amiudadas vezes. Escreve ele o seguinte:
“A actuação subversiva assumiu na Guiné três aspectos distintos que passarei a referir segundo as regiões onde se processaram:

Zona Norte – Na região fronteiriça ao Senegal continuam fazendo sentir-se os efeitos de um grupo cujo móbil tem sido, essencialmente, o saque e a pilhagem. Esse grupo que após as primeiras depredações em Guidage passou a actuar principalmente na região entre S. Domingos e o Litoral, hostilizado, nas suas últimas incursões, pelos nossos nativos, os Felupes, ter-se-á deslocado para Leste, encontrando-se na região do Casamansa, frente à nossa faixa entre Ingoré e Bigene, na qual já se verificaram recentemente roubos de gado.
Na opinião do administrador da circunscrição de Farim, com o qual me avistei, preocupado com a posição do nosso posto de Guidage, cujo encarregado encontrei em Farim, não haveria risco para a nossa empresa, dado que a autoridade administrativa do Senegal, da região que directamente lhe faz face, o tranquilizara a esse respeito.
Com excepção do centro comercial de Susana, abandonado em virtude dos estragos sofridos, várias actividades das populações continuam a processar-se como anteriormente e a insegurança é acidental, dado que os agitadores se encontram do lado de lá da fronteira que atravessam para as suas surtidas de saque, pilhagem e depredação.

Zona Centro – na região compreendida entre os rios Geba e Cacheu, desde o Litoral até à fronteira Leste, embora num clima de preocupação, vive-se em segurança. Em viagem de automóvel, com um motorista nativo e o chefe dos Serviços Industriais, para a zona de Bafatá, para apreciação dos descasques, e com o chefe dos Serviços Comerciais, para a zona de Teixeira Pinto, tudo se afigurou normal durante o percurso, parte do qual foi efectuado de noite. No entanto, esta zona dos limites da circunscrição de Bafatá para Oeste tem merecido especial atenção por parte dos agitadores, distinguindo-se os centros de Bissau e Bissorã e a região do Biombo, não tem sido, felizmente, ultrapassada a fase das reuniões e elaboração dos planos, gorados eficazmente pela intervenção oportuna das autoridades.

Zona Sul – A situação na região ao sul do rio Geba e a oeste do rio Corubal é totalmente diferente. Reina aqui a insegurança, pois que aos agitadores tem cabido a iniciativa das operações e embora a sua actuação se caracteriza pela mobilidade, o domínio geral da região pertence-lhes. Tal domínio traduz-se por: assalto ao aquartelamento de Tite; ocupação de Darsalame, que teve de ser bombardeado e deixou de existir como povoação e centro comercial; assalto ao aquartelamento da secção destacada em Salancaur e ao nosso estabelecimento pelo apoio que a Sociedade Comercial Ultramarina tem prestado às nossas tropas de que resultou a retirada da guarnição e o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais; abandono da actividade comercial em Unal, Banta e Chequal; recusa das mulheres em efectuar, em alguns locais, como era hábito, os carregamentos de embarcações, cumprindo assim as instruções recebidas dos agitadores, etc.

A estes factos há a acrescentar a perda de duas embarcações, refugiadas na República da Guiné, uma, o Arouca, pertencente a A. Pinho Brandão, e a outra, o Mirandela, a A. S. Gouveia, esta última das melhores unidades do tráfego fluvial da Província, as quais se supõe terem sido assaltadas, o Mirandela já depois de carregado com 80 toneladas de arroz.
Posteriormente, a navegação para o Sul passou a ser feita em comboio, escoltado por uma lancha da Armada, o que torna muito mais moroso o movimento das embarcações.

Com os actuais efectivos militares na Província, afigura-se impossível a eliminação dos grupos subversivos, ou mesmo a neutralização da sua actividade, apesar da acção da viação e de o único batalhão de que se dispunha em Bissau como reserva estar já em operação em Catió, desde Fevereiro, o que terá conseguido criar a tais grupos dificuldades e insegurança que, até então, não encontravam. A situação é grave, desprestigiante perante as populações nativas indecisas ou mesmo fiéis. Os reforços que necessariamente terão de ser enviados resolverão o problema do domínio territorial, mas já não eliminarão totalmente as consequências político-económicas de uma situação de domínio do inimigo desde o início deste ano, pois irão chegar tarde. Já no seu regresso da Guiné, em Fevereiro, o nosso Presidente do Conselho de Administração levou ao conhecimento do Governo a necessidade de reforços imediatos, que ao terminar a nossa visita, em 13 de Abril, não tinham sido ainda enviados”.

O relator examina as consequências, nomeadamente o previsível desastre da campanha de arroz, a necessidade imperativa da sua importação, a diminuição da atividade industrial e comercial, o êxodo das populações, e tece considerações sobre a população branca:  
“A população europeia vive, como é óbvio, sob forte preocupação. Vive preocupada com o futuro da própria Guiné, perante a feição que os acontecimentos tomaram. De entre a população nativa é de salientar a atitude dos Fulas e Mandingas que têm patenteado o seu desejo de auxiliar as autoridades na repressão dos movimentos perturbadores, o que já se tem verificado, e o comportamento das tripulações (Manjacos) das embarcações utilizadas no tráfego fluvial e costeiro”.

Expende considerações sobre a confiança na Sociedade por parte das autoridades, comércio e particulares, detalha questões do setor industrial e comercial, procurando avaliar prejuízos havidos nos postos do Sul. Não deixa de referir a luta desenfreada que estava a ocorrer com a prática de preços na compra do coconote, a Sociedade protestara junto da casa Gouveia, por receber coconote com uma percentagem de impurezas superior à fixada.
A situação do pessoal levantava preocupações, é interessante ouvi-lo:
“O encarregado de Cacine acusa já o desgaste da sua permanência junto da fronteira, vai ser substituído. O encarregado de Salancaur demitiu-se por ter sido ameaçado por várias vezes pelos agitadores, supondo-se que devido ao franco apoio prestado aos elementos militares. O encarregado de Cadique pensa em pedir a demissão, embora se encontre presentemente em Bedanda, junto do encarregado deste posto. Está indeciso. Os nossos empregados dos postos do Sul manifestaram a esperança de uma retribuição especial pela posição perigosa que ocupam, o que parece ser de toda a justiça”.

Tece conclusões de caráter geral que enfatizam o que foi anteriormente referido: situação normal e muito preocupante na zona Sul; campanha de arroz fortemente afetada; campanha de mancarra a decorrer normalmente; campanha de coconote com tendência para a concorrência entre os exportadores e produção estimada inferior à dos anos anteriores; sérias preocupações quanto à sementeira na próxima campanha de arroz.

Em 23 de maio, o administrador da Sociedade Comercial Ultramarina envia a Castro Fernandes, administrador do BNU, este relatório assinado pelo Dr. Durval Ribeiro.

Em 31 de maio temos nova carta depois de um silêncio de 2 meses, o gerente informa que continuam operações conjuntas das três armas, com destaque para a ação da Força Aérea que, no Sul da Guiné, quase toda à mercê dos terroristas, empregam bombas de “Napalm”, arrasando sistematicamente os esconderijos dos elementos rebeldes.
Observa do seguinte modo o que por ali se está a passar:
“Exercendo pressão sobre as populações indígenas da referida região, que obrigam a fornecer-lhes alimento e a coadjuvá-los nas suas nefastas actividades, os terroristas prosseguem no abate de árvores para obstrução das vias de comunicação, cortes de estradas por meio de valas, destruição de pontes, queimando, assaltando povoações e estabelecimentos comerciais e, sempre que a ocasião lhes é favorável, armando emboscadas às nossas tropas e chegando mesmo ao ponto de atacarem aquartelamentos militares, como sucedeu em Catió e Bedanda.
O Ana Mafalda, esta semana saído do porto de Bissau com destino a Lisboa, foi alvejado a tiro, no canal de S. João, quando da sua passagem para Bolama, não sendo, contudo, atingido.
Por não ser aconselhável a sua permanência nas áreas dominadas por terrorismo, por falta de cobertura militar adequada, os poucos europeus que ainda habitam o Sul estão a abandonar os seus haveres, retirando para lugares menos expostos.”

(Continua)


Duas fotografias que constam do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
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Nota do editor

Poste anterior de 21 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19327: Notas de leitura (1134): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (2) (Mário Beja Santos)