quarta-feira, 28 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1630: Uma estranha forma de morte (Luís Graça)

Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no TT Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção.

Foto: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados.

Um estranha forma de morte (1)

Um estranha maneira de dizer adeus.
Um estranho povo, este,
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
em súplica,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.

A Pátria contra a Mátria.
A tentacular força centrífuga
que de há séculos,
ó meu tuga,
te leva os filhos teus,
para fora.
Paridos e expulsos da Mátria,
para longe,
em má hora,
bem para longe,
muito para lá do mar.

Uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos
em fundo preto,
sob um céu de chumbo.

Todas as despedidas são breves
e tristes.
O momento,
em que o Niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
e lá fora chove,
esse momento da partida
nunca se poderia eternizar.
nem conviria.
Não ficou decididamente
na fotografia

Romance do triste soldado,
diz o capitão do mar e da guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a Vate 69,
fotocine, cinéfilo,
garboso, charmoso,
mas já grosso,
pronto para a acção
em terra,
para a porrada,
para o que der e vier.
Rumo à Guiné,
país de azenegues
e de negros.

Há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do Bugio,
no mar alto português,
anuncia o oficial de dia,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
Vai na segunda comissão,
o provinciano,
o militarão,
o criado de libré,
que nunca trerá ouvido falar
da batalha da Ilha do Como
nem do massacre do Pijiguiti,

E o filme da noite é
uma comédia,
senão divina, muito santa,
acrescenta o nosso primeiro,
que já serviu de porteiro
em bares do Cais do Sodré.
Ao jogo, ficam os dedos,
vão-se os anéis,
puxa-se a manta.

Um gajo bacano
num país de bacanos,
de chicos espertos,
de grandes medos,
de mangas de alpaca cinzentos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos.

Uma tragicomédia,
escreverei eu
no meu diário
a que mais tarde chamarei
o diário de um tuga.
Onde está o general ?
Onde estão os oficiais ?
Onde está a elite ?
Onde está o chique ?
Os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
o espelho da grei,
os melhores de todos nós ?
Morreram, todos,
com El-Rei,
em Alcácer Quibir.
Mentiram-me Tavira.

Lisboa, revista, revisited,
pelo Álvaro de Campos
em filme de oito milímetros.
A preto e branco.
Ou a preto e negro,
uma só Nação,
valente e imortal,
ironiza alguém, clamando
pelo António,
pelo Ferro,
pelo Almada
A morrer,
que morra o Dantas, pum!

O Niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir
parar à sucata.
Inglória
a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos
quando dei o nome para as sortes.
Como se fosse aleatória
a amostra dos mancebos.
Estranha palavra esta, a das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.

A despedida breve e triste
do Niassa.
E ainda mais triste o filme,
sem som,
sem palavras desnecessárias,
a preto e branco,
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.

A noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
A sacerdotisa
da morte.
A novíssima ponte de Salazar.
O velho abutre que, sem pejo,
alisa as suas penas,
dirás tu, Sofia, pitonisa...
Quase morto mas não enterrado.

Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela
erguida,
a última caravela,
o último império,
Lisboa e o seu casario,
branco.
Lisboa-cliché.
Lisboa conformista
e conformada.
O filme a preto e branco,
um gato preto à janela.
Lisboa e as suas ruínas
pré e pós-pombalinas.
O poço dos mouros,
o poço dos negros,
o lundum, a umbigada,
a procissão
da Nossa Senhora da Saúde.

Ah, e a Santa Inquisição,
zelando pela pureza do sangue
e a rectidão das nossas consciências
e a salvação da alma
do Senhor Dom João
Quinto.

Revisito os heróis da escola primária:
Albuquerque,
Mouzinho,
Teixeira Pinto.
Ao alto,
o cemitério dos Prazeres
com os seus aprumados ciprestes negros.
Em frente,
os mastros dos navios
da carreira colonial,
o império por um fio,
a vida
que se recapitula
de fio a pavio,
o último comboio da noite
que veio do Campo Militar
de outra santa, Margarida.

As santas das nossas mães
que ficaram em casa
a acender a vela à Santa das Santas.
O menino de sua mãe,
um fado
que eu ouvi no Bairro Alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado,
um fado apenas gemido.
Uma estranha forma de vida,
uma estranha forma de morte.

Ordeiros,
os soldados
como os cordeiros
da matança da Páscoa.
No Cais da Rocha Conde de Óbidos,
alinhados, formatados,
como os eléctricos amarelos,
nos seus carris de ferro,
que vão para a Cruz Quebrada.
Empilhados,
vão os soldadinhos,
de chumbo,
aboletados,
roubados às mães,
requisitados aos pais,
para servir
a Pátria,
o Pai-Patrão
que nos cobra o dízimo
em sangue suor e lágrimas.

Mudos, agrilhoados,
os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
fujões, traidores,
ladrões, facínoras,
bufos, legionários,
homicidas, regicidas,
sodomitas, infiéis,
cristãos mui pouco ortodoxos,
gente do reviralho,
rendeiros e cabaneiros,
fidalgos arruinados,
maçaricos, pescadores,
soldadores, trolhas,
moços de estrebaria,
cozinheiros, corneteiros,
apontadores de diligrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães...

Coitadas das mães
que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho
da Feira da Ladra.
Subindo o portaló do navio, o cadafaldo,
com um nó na garganta,
mal disfarçado,
p'lo lencinho,
verde ao rubro.

Pobres mães, pobrezinhas,
com os seus pequenos lenços brancos
como em Fátima, no 13 de Maio.
Algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos que já lá vão
não são de exaltação,
patriótica.
O hino,
agira canta-se com voz rachada,
em disco riscado
pelas senhoras,
tias, dirias hoje,
do Movimento Nacional Feminino.

A mesma atitude
admirável
de resignação hipnótica
ante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem.
Em troca de tão pouco ou nada.
Diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que é um povo religioso,
admirável,
porque tem o sentido do pathos,
da tragédia inelutável.

Senhora minha,
protege-me,
do IN,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros das kalash e da costureinha.
Dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas assassinas
e das formigas carnívoras.
Mas também do cone de fogo
das nossas bazucas
e dos canhões sem recuo.
Do coice do obus catorze.
Das piçadas
e dos louvores dos meus comandantes,
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi,
soldado à força
arrebanhado,
arregimentado,
aboletado,
requisitado,
condenado,
ameaçado,
camuflado.
Livrai-me, Senhora,
da fome, da peste e da guerra,
da malária, do beriberi,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.

Lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
Pus o combate do possível
na minha agenda
de expedicionário da Guiné.
Pus o fio com a medalha de ouro
ao peito,
que me deu a namorada,
coitada, destroçada.
Não, não uso a cruz,
o crucifixo.
Não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
Alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
Do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
Para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu vir morrer longe.
bem longe
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.

Descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio,
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos,
engraxará as tuas botas e
porá bandeira nacional
em cima do teu caixão.
Se não morreres de morte súbita.
Se não morreres de morte matada.
Se não morreres de coração.

Não vos deixaremos para trás,
camaradas,
sempre ouvi dizer aos páras.

Levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
Uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
Outrora era de xisto ou de grés,
entre os meus antepassados
da pré-história recente.

Camaradas
(que colegas é só nas putas):
se for eu,
a morrer,
que me enterrem
numa anta do meu megalítico país.
Não me deixem a criar raíz
na bolanha do Cufeu.

Luís Graça

Lisboa, Maio de 1969 / Março de 2007

___________

Nota de L.G.:

(1) Versão, aumentada e corrigida do poema O meu país megalítico > Vd. post de 15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - DXL: o meu país megalítico (Luís Graça)

terça-feira, 27 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1629: Lendo os vossos depoimentos com um nó na garganta... O que é feito da CCAÇ 2585 ? (Raul Nobre, ex-Alf Mil Médico)

Mensagem de Raul Nobre, médico:

Meu Caro Luís Graça:

Tenho lido estes depoimentos com um nó na garganta. É muito importante em todos os sentidos, quer histórica quer emocionalmente.

Em 1969 fui incorporado como médico na CCAÇ 2585, comandada pelo Capitão Tomaz da Costa. Ainda fiz o IAO na Arrábida e gozei os 10 dias de licença antes do embarque. Entretanto deu-se o "atentado" ao Niassa e o embarque do Batalhão fez-se com atraso. Eu não cheguei a embarcar, pois deferiram-me o requerimento que fizera para poder terminar a especialidade de Estomatologia e em 1971 mandaram-me para Timor donde regressei em 1973.

Nunca mais tive notícias de ninguém. Recordo-me que havia um Alferes chamado Almendra, creio que natural de Trás-os Montes.

O meu contacto com os camaradas foi de curta duraçáo, pois tinha sido reinspeccionado, fizera uma recruta de um mês em Santarém e tinham-me colocado naquela Companhia que, por sua vez, tinha sido constituída a toda a pressa.

Gostava de ter notícias daqueles rapazes.

Um abraço e a minha admiração pelo trabalho que estás a fazer.

Raul Nobre

Comentário do editor do blogue:

Caro camarada Raul: Obrigado pelas tuas palavras de apreço pelo nosso blogue. Infelizmente, não tenho nennhuma informação útil sobre a CCAÇ 2585. Em todo o caso, é uma unidade formada no meu tempo. Parti para a Guiné, a bordo do do Niassa, em 24 de Maio de 1969. A minha companhia (independente) era CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12) (1). Mas connosco não foi a CCAÇ 2585. Deve ter partido antes. O nosso camarada Manuel Lema Santos, que pertenceu à Marinha (1º tenente RN), talvez nos possa elucidar sobre este ponto. Também não sei o que se passou com o Niassa, antes: tenho a vaga ideia de ter havido na primavera de 1969, uma tentativa de sabotagem do navio, por parte das forças de oposição ao regime político de então.

Raul: alguém da nossa tertúlia saberá encontrar uma pista que te leve aos teus rapazes da CCAÇ 2585 que tu mal chegaste a conhecer, mas de quem ficaste com uma saudosa lembrança. Até sempre. Luís Graça

________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)

Guiné 63/74 - P1628: Projecto Guiledje: fotografias de armamento e equipamento, das NT e do PAIGC, precisam-se (Nuno Rubim)

Armamento do PAIGC - Grad, tubo de lançamento de foguetões 122 mm. Terá sido usado em Gadamael, não em Guileje.

Foto: © Nuno Rubim (2007). Direitos reservados.

Armamento do PAIGC > Canhão sem recuo 82 B-10, de origem soviética. Levado do Saltinho para o destacamento de Contabane > 1972 > Pel Caç Nat 53 > Na foto, o ex-Alf Mil Paulo Santiago (1).

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.


Armammento do PAIGC > Uma pistola de origem soviética, Tokarev, de 7,62, igual ou parecida à que que foi apreendida ao guerrilheiro Festa Na Lona, na Ponta do Inglês, no decurso da Op Safira Única (2)... Esta arma terá tido a sua estreia na Guerra Civil de Espanha, em 1936, nas fileiras do exército republicano, estando distribuída a pilotos e tripulações de tanques, entre outros... (LG).

Fonte: Kentaur, República Checa (2006) (2).

1. Mensagem do Nuno Rubim, Coronel de Artilharia (R) e historiógrafo (3):

Caro Luís:

Tenho visto, embora não com a frequência que desejaria, o teu blogue. A informação aí colocada é, na realidade, de grande importância para a história do que foi a guerra na Guiné porque, como já tive ocasião de referir, muitos documentos oficiais desapareceram.

O Projecto Guiledje, no que me diz respeito, tem continuado de vento-em-popa. As investigações a que tenho procedido trazem achegas que permitem clarificar várias questões mal conhecidas. Por exemplo e só para mencionar um dado, Guileje foi bombardeada em Maio de 1973 com canhões s/r de 82 mm, morteiros de 82 e 120 mm e ... só há pouco referenciado, peças de 130mm !

Os Grad (foguetões de 122 mm) não foram aí usados, só mais tarde em Gadamael (ainda
por confirmar junto do então comandante da artilharia do PAIGC, com quem espero ter um encontro).

O meu próposito hoje prende-se com a feitura do diorama do aquartelamento que, com a concordância do Pepito, foi decidido representar no período 1965-66, que corresponde à estadia da CCAÇ 726, a unidade que aí permaneceu mais tempo (4).

Mas espero que fiquem arquivados, no centro do núcleo museológico, informações sobre todas as unidades que lá estiveram e, muito possivelmente, das que prestaram serviço nas zonas limítrofes.

Hoje o que venho pedir relaciona-se com a necessidade de obter fotografias de vário armamento e viaturas que lá serviram, no sentido de facilitar a feitura de modelos. A escala escolhida foi a 1:72, o que permite obter alguns kits comercializados, mas alguns outros terão que ser executados de raiz, segundo desenhos e planos, alguns já obtidos.

Portanto fotografias da peça 11,4 cm, obúses 8, 8cm e 14cm, canhão s/r de 10,7cm, morteiros de 81 mm e 106 mm, AM Fox, Daimler e White, Unimog 404 e 411, dos atrelados de água e sanitário, GMC, Berliet, etc... seriam muito bem vindas (5).

Se me mandarem fotos prometo devolvê-las, depois de digitalizadas, ficando devidamente registado quem as forneceu.

Um abraço

Nuno Rubim

2. Comentário do editor do blogue > Meu caro Nuno:

(i) Gostaria que o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné fosse sentido como propriedade de um colectivo... Parece que ainda estamos longe disso. Tu, pelo menos, referes-te ao meu blogue...

(ii) Congratulo-me com os avanços da tua contribuição, única e excepcional, para o Projecto Guiledje...

(iii) O teu pedido é uma ordem... Embora eu tenha fracos poderes, e pouco jeito para mandar, prometo-te toda a colaboração possível por parte dos nossos tertulianos...

Um abraço. Luís
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

(2) Vd. post de 19 Março 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)

(3) Vd. post de 18 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1189: O tertuliano Nuno Rubim, especialista em história militar (Luís Graça)

(4) Unidades de quadrícula deGuileje, por ordem cronológica (e respectivo contacto):

CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965)
CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) (contactos: Teco e Nuno Rubim)
CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966) (contacto: Nuno Rubim)
CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967) (contacto: Cap Rino)
CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968) (contacto: Cap Neto)
CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Jorge Parracho) (6)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: Amaro Munhoz Samúdio)
CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho)

Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1431: Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito / Nuno Rubim)

(5) 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1434: Artilharia em Guileje: a peça 11.4 e o obus 14 (Nuno Rubim)

(6) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1477: Guileje: CCAÇ 3325 (Alexandre Agra)

segunda-feira, 26 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1627: Lembranças de Catió (3): Albano Costa / Victor Condeço

III e última parte da série Lembranças da Vila de Catió (1).

Fotos: © Albano Costa / Hugo Costa (2007). Direitos reservados.



O Albano esteve em Guidaje, durante a sua comissão na Guiné (CCAÇ 4150, 1973/74). Voltou à Guiné, com o filho, em Novembro de 2000. As fotos de Catió são dessa viagem. Vive em Guifões, Matosinhos.



Legendas: © Vítor Condeço

Ex- Fur Mil Mecânico de Armamento,
CCS do BART 1913,
Catió 1967/69 (2).

Vive actualmente no Entroncamento.





Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 >

Foto 20 > "Pela disposição dos edifícios, do lado direito eram as novas messes (1968), primeiro a de oficiais, em que se notam algumas alterações a nível de portas e janelas, depois a de sargentos ao fundo depois da palmeira. Do lado esquerdo as duas camaratas de sargentos, de uma apenas se vê a ponta da cobertura"(VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 22 > "Pelo posicionamento avaliado no visionamento da foto 23, trata-se do antigo heliporto, que terá sido transformado em recinto desportivo e posteriormente em eira para secagem de cereais. Onde se vê o arvoredo e o telhado branco, era a zona dos espaldares dos morteiros 10,7 e 82 e de dois paióis subterrâneos. Mais ou menos no sítio de onde a foto é tirada, era o parque das Daimler" (VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 23 > "Do lado esquerdo da foto, a messe de sargentos que mantém muito da sua traça original, (apenas a primeira porta não existia e a segunda janela também não). A construção seguinte é a messe de oficiais. As construções do lado direito eram as camaratas de sargentos" (VC).


Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 27 >"Em primeiro plano era o heliporto, o edifício mais à esquerda era a caserna nº 3, o do centro, metade era a caserna nº 4, a outra metade a arrecadação principal de material de guerra e de aquartelamento (feitas em 1968). No mesmo enfiamento era o edifício da prisão, mais à frente sobre a direita, de que só se vê parte do telhado, eram os quartos do 7,5 já na parte mais antiga do quartel (nunca soube porque se chamava assim)" (VC.


Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 28 > "O que foi o Heliporto, à esquerda a messe de sargentos, ao fundo uma das camaratas de sargentos e à direita a caserna nº 3" (VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 29 >"Do lado direito outra vista do edifício da arrecadação principal e da caserna nº 4, no mesmo enfiamento o da prisão, ao fundo do lado esquerdo o que resta da caserna nº 2 cujo telhado era em fibrocimento" (VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 33 > "Do lado direito o que era a cozinha, o refeitório e o bar das praças. Ao fundo era o depósito de géneros" (VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 35 > "Trata-se da rua que partia do largo do mercado e que ligava ao caminho da pista de aviação (a foto é tirada do lado de quem vem do caminho da pista). Do lado esquerdo, a habitação a loja e agência de viagens dos Correias (era seu gerente o Sr. António Duarte Barros), a seguir o celeiro e a loja da Ultramarina. Do lado direito, era o edifício do Mercado e a avaliar pela foto ainda deve ser. (No âmbito da geminação em 2003, de Catió com Stª Maria da Feira, existe um projecto de reconstrução para este mercado)" (VC).

Guiné- Bissau > Região de Tombali > Catió > Novembro de 2000 > Foto 36 > "É a mesma rua da Foto 35, mas vista do lado de quem vem do largo" (VC).

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1505: Lembranças da Vila de Catió (1): Albano Costa / Mendes Gomes / Vitor Condeço

15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1528: Lembranças da Vila de Catió (2): Albano Costa / Vitor Condeço.

(2) Vd. posts de:

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1336: Catió: Autor de pintura mural, procura-se (Victor Condeço)

3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1335: Um mecânico de armamento para a nossa companhia (Victor Condeço, CCS/BART 1913, Catió)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

Guiné 63/74 - P1626: Fotos Falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): O Moicano e os milícias


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "Moicano bêbedo, louco ou a aclimatar-se... tudo junto"

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "O milícia e guia das NT, Seco Camará: 56 minas detectadas e muitas guerras" (1)...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "O meu amigo Sargento do Pelotão de Milícias, Mádia Baldé"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "Eu e milícias"...

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados (1)

Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Desta vez, uma segunda série. Chamou-lhe Fotos Falantes, o que é uma expressão curiosa que vamos manter, e que faz jus à ideia de senso comum de que vale mais uma imagem do que mil palavras... Eu concordo, em parte, porque acho que uma boa fotografia exige sempre uma boa legenda...

O Torcato Mendonça, um homem do sul, vive hoje no Fundão, onde eu há tempos, no princípio deste ano, tive o grato prazer de conhecer pessoalmente. Foi Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

_______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)

26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1318: Xime: uma descida aos infernos (2): Op Abencerragem Candente (Luís Graça, CCAÇ 12)

26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)

(...) "Vou republicar hoje, 26 de Novembro de 2006, o relatório da Op Abencerragem Cadente (que raio de nome esotérico!), desdobrando um texto que, de certo modo, dá o pontapé de saída a este blogue (ou mellhor, ao Blogue-Fora-Nada, que antecedeu o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)...

"Fá-lo homenageando os nossos camaradas que tombaram na Ponta do Inglês: o furriel miliciano Cunha, o soldado Soares e os outros camaradas - cujs nomes não recordo - da CART 2715 (aquartelada no Xime) que morreram na Operação Abencerragem Candente, na madrugada de 26 de Novembro de 1970 (dias depois da invasão de Conacri, a 22, por uma força comandada por Alpoim Galvão e na qual participaram os meus vizinhos da 1ª Companhia de Comandos Africanos, estacionados em Fá Mandinga).

"Quando publiquei esse texto - em 25 de Abril de 2005 -, eu tinha alguma dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconhecesse que ele fora um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos e anos a fio.

"Como muitos outros pobres diabos, o Seco fora também um mercenário, um colaboracionista, um torcionário, um homem para os trabalhos sujos da guerra: ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da política de terra queimada, da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha (Samba Silate, Poindon, Nhabijões...) , ele próprio era encarregue pelo capitão tuga do Xime (sic), para matar, à paulada (sic), em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados...

"Tenho dificuldade em fazer recuar esses tempos, mas é bem possível que sejam anteriores ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schulz (1965-1968),o mesmo é dizer, que devem ser do tempo dos seus antecessores: 1959 - 1962 António Augusto Peixoto Correia (1959-1962) e Vasco António Martínez Rodrigues (1962-1965).

"No regresso ao quartel, o capitão, manga de bom pessoal (sic), pagava-lhe um sumol (sic)... O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente os pertencentes aos grupos étnicos islamizados...

"O Seco Camará morreu ingloriamente em 26 de Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se alguma vez se sentiu (ou poderia sentir) português. Sei apenas que foi um bravo soldado - ou melhor, auxiliar dos militares portugueses - e eu não posso julgá-lo, sumariamente, com base nos meus valores ou princípios éticos. É claro que também não vou absolvê-lo com base no relativismo cultural: o facto de ser mandinga, descendente de um povo de guerreiros e conquistadores, não lhe davam quaisquer direitos, e muito menos o direito de vida ou de morte...

(...) "Alguém, da população do Xime - que me desculpe o nosso amigo José Carlos Mussá Biai, que nessa altuta teria 7 anos! -, nos terá traído nessa noite fatídica. A nós e ao Seco Camarà. Ou se calhar nem foi preciso isso: 250 homens em armas são uma multidão ruidosa, a entrar e a sair de um quartel... No mato, na antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, são uma cobra gigantesca, de quilómetro e meio" (...).

(2) Vd. posts anteriores:

24 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1459: Fotos Falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Operação Cabeças Rapadas (Estrada Bambadinca-Xitole, Março / Maio de 1969)

16 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1372: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mansambo: Rescaldo da batalha de 28 de Junho de 1968

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1295: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Mariema, a minha bajuda...

8 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1257: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (6): Julho de 1969, já velhinho, destacado em Galomaro

28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

5 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1116: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A guerra acabou ?

domingo, 25 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

O Furriel Miliciano de Operações Especiais Carvalho, ainda na Metrópole... Fez parte dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) e acabou a sua comissão nos Lacraus, em Paunca (CCAÇ 11)...


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Ex-Fur Mil Op Especiais Carvaljho, com a sua amada Kalash... Ao fundo, é visível o oráculo (a Nossa Senhora de Fátima e ao Santo Cristo dos Milagres) erigido pelos Gringos de Guileje - a CCAÇ 3477 (1971/72), a que pertenceu o nosso camarada , o ex- 1º cabo enfermeiro Amaro Munhoz Samúdio (1).


lbum de fotografias do ex-Fur Mil Op Especiais Carvalho, confiado à guarda do editor do blogue.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. Texto do José Casimiro Carvalho que me foi confiado no primeiro encontro da nossa tertúlia, na Ameira, em 14 de Outubro de 2006 (2), altura em que o conheci pessoalmente. Ele também me confiou o seu álbum fotográfico e um conjunto de cartas e aerogramas enviados a amigos e familares no período em que esteve em Guileje, Cacine e Gadamael (1972/73). Uma selecção dessa correspondência começará a ser publicada em breve, a par de algumas fotos do seu álbum (dos seus dois álbuns!), de maior interesse documental.

Com o atraso de alguns meses, o ranger Carvalho apresenta-se hoje na primeira pessoa do singular. A ele e ao resto da tertúlia, peço as minhas desculpas pelo lapso, ou melhor, pela demora. Acontece que o pobre editor do blogue já não tem mãos a medir... Mas, com tempo e vagar, tudo o que lhe é confiado se publica, ou publicará: (i) para a posteridade, para que nenhum filho da mãe fale, impunemente, em nosso nome, ou nos venha a querer aldrabar!; (ii) para que os nossos vindouros - filhos, netos, bisnetos... - não nos acusem de termos morrido, calados!; (iii) enfim, para deixar, em primeira mão, aos historiadores, o nosso testemunho: porque estvemos lá!... Em Guileje, em Gadamael, em Paunca!...

Sublinho, entretanto, o grande interesse do depoimento deste nosso camarada para a elucidação e compreensão do período final da guerra na Guiné, tanto no sul (Guileje e Gadamael) como no zona leste (por exemplo, Paunca).

O que se passou aqui - em Paúnca e noutros sítios da Zona Leste, o chão fula, por excelência - , a seguir ao 25 de Abril de 1974, é inédito e chocante, para mim!... Os quadros (metropolitanos, brancos, tugas...) da CCAÇ 11 foram expulsos do quartel de Paunca, com o cano da G-3 enfiado nas costas, pelos soldados fulas, amotinados, da CCAÇ 11, uma das criações de Spínola e dos spinolistas. Estive com eles em Contuboel. À CCAÇ 11 (ou melhor, na altura, a CART11) pertenceu o meu amigo Renato Monteiro, o mediático homem da piroga no Geba (3). Eu e outros camaradas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 - como o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Zé de Sousa, o Rodrigues, o Martins, o Gabriel... -, estivémos com eles em Contuboel, de Junho a Julho de 1969... Embarcámos na mesma aventura de formar a nova força africana de Spínola...

A seguir ao 25 de Abril de 1974, fugido do inferno de Guileje e Gadamael, caído de paraquedas em Paunca, na CCAÇ 11, o Casimiro Carvalhos vai conhecer o desespero e a raiva dos nossos aliados fulas, miseravelmente abandonados por nós... Este é um dos episódios mais chocantes da guerra da Guiné, aqui contados pelo nosso herói de Gadamael. Só é pena que ele tenha sido tão parco em palavras, no que diz respeito a este humilhante final de comissão (mas também - julgo eu - de guerra, de império, de história)...

Amigos e camaradas da Guiné: Só espero que este depoimento abra os diques aos milhões de palavras (muitas deles indizíveis e contraditórias) que estão contidas nas corações dos nossos camaradas que, como o Casimiro Caravalho, foram de facto os últimos guerreiros do Império... Há outros, também acanaram em 1974, imediatamente antes ou depois do 25 de Abril, a sua comissão... Cito alguns, da nossa tertúlia: Albano Costa, Américo Marques, Antero Santos, António Duarte, António Graça de Abreu, António Santos, António Serradas, Carvalhido da Ponte, Eduardo Magalhães Ribeiro, Fernando Franco, João Carvalho, Joaquim Guimarães, José Bastos, Luís Carvalhido, Manuel Cruz, Manuel G. Ferreira, Manuel Oliveira Pereira, Maurício Nunes Vieira, Sousa de Castro, Victor Tavares ... (Desculpem se esqueci alguém!)..

Confesso que eu não gostaria de estar na pele deles... Também eles foram miseravelmente abandonados por todos nós: os que vieram regressaram a casa antes, como eu, em 1971, a hierarquia militar, o exército, o MFA, o Conselho da Revolução, os Governos Provisórios, o povo português, Portugal... Não vale a pena ninguém pôr-se fora... (LG)


Dos Piratas de Guileje (CCAV 8350, 1972/73) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11, 1974)

por José Casimiro Carvalho (Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue)


Fiz a recruta como soldado do contingente geral em Leiria, no RI 7 – Regimento de Infantaria 7. Fui depois escolhido para frequentar o CSM – Curso de Sargentos Milicianos em Caldas da Rainha (RI-5)

Destacado para Tavira, acabei por ser escolhido, in extremis, para frequentar o curso de Operações Especiais, em Lamego, o qual terminei com 15,28 valores.

Segui para Estremoz onde, já como Cabo Miliciano, ministrei instrução num pelotão da CCAV 8351 (mais tarde chamada, na Guiné, Os Tigres de Cumbijã). Nomeado para servir no CTIG, fui transferido para a CCAC 8350 (que ficará conhecida como Os Piratas de Guileje).

Embarcámos em Outubro de 1972 e já em Bissau seguimos numa LDG para Gadamael e daí para Guileje, em coluna auto, com uma segurança reforçada (na óptica de um maçarico, hé-hé-hé).

Já em Guileje , em sobreposição com Os Gringos [ CCAÇ 3477, 1971/73], passámos um período de muito trabalho de patrulhas e não só. Passámos uns meses descansados, tirando as patrulhas, dia sim dia não, com que o Comando nos premiava. Andava a caçar pássaros com uma caçadeira que o chefe da tabanca me emprestava (só pagava os cartuchos) e era um ver se te avias, era aos 50 pardais cada tiro, e os jubis [ putos ] lá andavam a apanhá-los e atrás dos que só ficavam feridos. Era cada arrozada!!!

Um dia, o alferes Lourenço, a manusear uma granada duma armadilha , e rodeado de militares - eu estava emboscado com o meu grupo -, a mesma explodiu-lhe na mão, tendo-o morto instantaneamente. Ficou sem meia cabeça e o abdómen aberto. Eu, já no quartel, ao ajudar a pegar no cadáver, este praticamente partiu-se em dois… Que dor!... Chorei como nunca, e isto foi o prenúncio do que nos esperava.


Com o Marcelino da Mata, em Guileje


Um dia – já não posso precisar quando - fomos atacados com canhões sem recuo, e nesse espaço um Fiat G 91 , que devia andar na área, foi contactado pelo comandante, o Cap Abel Quintas, que lhe indicou o rumo das saídas e ele lá seguiu. Mais tarde soube que tinha sido abatido por um míssil Strella…

Vieram os Páras e o Grupo do Marcelino (Os Vingadores, de Operações Especiais), numa confusão de tropas que eu nunca tinha visto, pudera! Pedi ao Marcelino para me levar na operação de resgate do piloto Ten Pessoa (penso que era esse o nome), tendo ele anuído, mas o meu comandante não foi na conversa, não obstante o Marcelino, ele próprio, ter dito que me trazia de regresso nem que fosse ás costas. Que pena, não tenho essa façanha no meu currículo.

Entretanto fui nomeado para comandar os reabastecimentos a Guileje, antes do isolamento, entre Cacine e Gadamael, por barco (claro).

Andava eu nestas andanças a curtir o sol em LDM ou LDP, quando Guileje foi abandonada, por ordem do então Major Coutinho Lima, e começou a matança no verdadeiro Inferno (4). Desse lapso de tempo a minha cabeça recusa-se a qualificar e quantificar o horror porque passaram todos os intervenientes deste filme de terror. Só tenho pedaços desse filme na minha memória. Recusei-me a falar durante muitos anos sobre este período da minha vida na Guiné.


Em Gadamael, fugindo das morteiradas certeiras do 120


Aqui vão alguns itens, e falo assim para não ser acusado de subverter a verdade dos factos.

Em Gadamael não havia casamatas como em Guileje, só valas. Os bombardeamentos eram tão intensos que nem dava para acreditar, quando ouvíamos as saídas, tínhamos 22 ou 23 segundos até as granadas 120 caírem em cima de nós ou , muito raramente, caírem mais além. O pessoal começou a fugir para o rio, e as granadas caíam no rio, o pessoal corria para o parque Auto e as granadas caíam no parque Auto, o pessoal saltava para as valas e as granadas iam cair nas valas.
Numa dessas quedas (voos) para a vala - e já lá ! -, senti as nádegas húmidas e, ao pôr lá a mão, esta veio encharcada em sangue... Berrei que estava ferido e fui evacuado num patrulha da Marinha para Cacine (entretanto no barco fui tratado e apaparicado pelos marujos).

Em Cacine verificaram que era um estilhaço de morteiro 120 do IN, e que não havia necessidade de ser transferido para Bissau, pelo que fui nomeado chefe de limpeza em Cacine (um Ranger, imaginem) .

Quando começaram a chegar as vítimas desse holocausto, e como ouvia os meus camaradas a embrulhar, deu um clique na minha cabeça e peguei numa Kalash que eu tinha, virei-me para um oficial e disse:
- Ou me mandam já para Gadamael onde morrem os meus homens ou eu varro já esta merda!

Cadáveres regados com creolina


Não me lembro dos entretantos mas sei que me vi num Sintex, a caminho de Gadamael, onde cheguei, mas com um medo terrível a olhar para as margens, à espera duma rajada ou dum roquetada de RPG.

Em Gadamael, num dos bombardeamentos, já no fim, vi um soldado a cair e ainda com o fumo no ar e com o eco das explosões saí em correria louca, alombei com ele às costas e corri para a enfermaria. Ao colocá-lo no chão, vi que não tinha metade do crânio e os miolos escorriam pelas minhas costas.. ( Isto não são Rangerices, meu Deus).

Nessa enfermaria jazia um militar que tinha sido morto por bombardeamentos em Guileje (no abrigo do Morteiro 10,7, o único que não era à prova de morteiro 120), e que mais tarde foi enfiado em 2 bidões juntos e soldados entre si, tal era o estado do cadáver. Na enfermaria os cadáveres eram tantos e o cheiro tão nauseabundo que eram constantemente regados com creolina...


Socorrendo o meu comandante, o Capitão Quintas


Num dos ataques [a Gadamael], o Capitão Quintas foi ferido muito gravemente; ajudei-o a chegar ao cais, debaixo de fogo, arranjei um Sintex e o mesmo não tinha depósito...! Corri, debaixo dum bombardeamento terrível, arranjei um depósito tendo então levado o Sintex para Cacine, com ele e mais feridos (5)

O pessoal entretanto debandava para o mato , onde era mais seguro estar. Um deles morreu enterrado no lodo, outros foram recuperados numa lástima , por elementos da Marinha (julgo eu) (6)...

Neste espaço de tempo - não sei precisar a cronologia -, chegou um Helicóptero com o Gen Spínola e o Cor Rafael Durão. Este, ao sair, fitou-me e vociferou :
- Quem é você ? - Eu trajava um camuflado com cortes nas meias mangas, calções e botas de lona e sem quico… Retorqui-lhe , em sentido:
- Apresenta-se o furriel Car.... - Ele interrompeu-me, de imediato e no meio daquele Vietname ordenou-me:
- Vá-se fardar correctamente e venha-se apresentar!...
Entretanto, reuniu as tropas (as que pôde) e chamou-nos tudo o que lhe veio à cabeça:
- Cobardes, ratos… Vocês mereciam que vos arrancasse a cabeça a pontapé!..

Mais tarde o Heli arrancou e passados uns três minutos caíram duas morteiradas no preciso local donde saíra.

Nestes espaços de memória lembro-me de chegarem os Páras (7), que começaram a varrer a zona. Lembro-me duma patrulha deles sair (um bigrupo, julgo) e, passados uns minutos, era tamanha a fogachada que se viam as explosões de granadas e dos RPG. Demorou uma eternidade, quando os páras regressaram traziam 16 feridos, um dos quais um sargento com um tiro numa perna e que ...sorria! Que tropa moralizada, meu Deus!...

Após um ataque de canhões sem recuo por parte do IN, vem um Fiat G 91 que picou, largou uma bomba enorme e roncou os motores numa subida louca, a bomba rebentou, estremeceu o quartel e os nossos corações, até os tomates abanaram.

Não havia condutores no quartel, tinham fugido para o mato ou desaparecido. Não havia munições nos canhões e morteiros , então eu peguei numa Berliet e um ilustre desconhecido (adorava saber quem foi !) (8) acompanhou-me na odisseia de andar debaixo de morteirada na corrida aos paióis. Trazíamos granadas para as bocas de fogo e, claro, que, quando os tiros de bocas de fogo do IN saíam, nós não ouvíamos e só quando rebentavam é que nos apercebíamos e saltávamos em andamento.

Massacrados a 1200 metros do arame farpado
Noutra altura um oficial apanhou meia dúzia de homens e disse :
- Vão fazer uma patrulha ao longo do rio até à zona da antiga pista e mantenham-se lá emboscados.

Eu peguei então numa G-3 (eu que era conhecido por andar sempre de HK 21, vejam lá o moral), num cantil e duas latas de fruta em calda e, ao sair, com o Alferes Branco, reparei em dois putos que tinham sido apanhados e ordenei-lhes que ficassem:
-Sois muito novos para morrer - disse-lhes eu...

A uns 1200 metros, o alferes resolveu emboscar ali. O guia dissera-lhe que a antiga pista estava armadilhada. Ao passarmos no tarrafo, em direcção a uma pequena clareira de capim, eu disse em surdina Cuidado! … e destravei a arma. Tinha ouvido um pisar de ramos, mas como nada se passou eu disse Não é nada, deve ser um pássaro… mas ao segundo ruído, pus a arma em rajada e, ao atirar-me ao chão, gritei Emboscada!

Ainda vi a cara do alferes a ser atingida por uma rajada, foi um tiroteio terrível, tiros características de armas russas, e do nosso lado só ouvia uma arma a disparar tiro a tiro. Eu tinha despejado um carregador. Fremitamente, peguei em outro, disparei-o em três rajadas, com a cara colada no chão e com a imagem (na mente, claro) de um inimigo a apontar-me a arma às costas e a disparar... Pensei na minha mãe e, ao pegar no terceiro carregador, o fogo IN parou tão abruptamente como começara. Ouço uma gritaria aterrorizante e, como só havia um homem a disparar à minha beira, berrei-lhe:
- Vamos embora enquanto estamos vivos!... - Ele gatinhou por baixo do tarrafo, eu segui-o, passei pelo cabo, já abatido e todo ensanguentado, de nome Neves - se não me engano, e que era guarda costas do capitão - e corri loucamente em busca da salvação, ali tão perto e... tão longe. Larguei cinturão, cantil, latas de frutas e carregador, só levei a G 3 pois estava-me entranhado na cabeça, desde Lamego, que deixar a arma...NUNCA!

Saiu um grupo de Páras para ir em nosso socorro e, quando chegou, jaziam lá quatro corpos .
Quando eles chegaram, não deixaram ver os copors e eu cheguei-me aos berros dizendo:
- Ou me deixam ver os meus irmãos ou fodo esta merda toda! - Claro que neste clima de paranóia valia tudo e lá consegui vê-los. Dispenso-me de pormenorizar aqui o terror do que vi, feito pelo IN aos cadáveres...


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1973 > "Era o vinho, meu Deus, era o vinho"...

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


Nesses dias, os bidões de vinho esventrados por estilhaços vertiam vinho e era ver o pessoal (eu incluído, claro) deitado por baixo dos esguichos a afogar as mágoas (hilariante e patético mas compreensível…).


Depois do 25 de Abril: Com uma arma apontada nas costas pelos fulas da CART 11

Fomos para o Cumeré tirar outro IAO . Eu fui para Prabis com mais 12 homens, outros foram para Quinhamel ou Bijemita (??). Depois fomos para Colibuia-Cumbijã, e aí fui destacado para rendição individual, sendo transferido para Bissau a fim de tirar estágio de Companhias Africanas, e durante esse estágio deu-se o 25 de Abril.

Fui então para Paunca, CCAÇ 11 – Os Lacraus, onde me mantive até ao fim da minha comissão. Não sem antes levar um susto de morte, pois os militares africanos da CCAÇ 11 sublevaram-se (3). Quando eu estava a dormir, ouvi tiros, vim em calções com a Walther à cintura até ao paiol. Quando lá cheguei, eles estavam a armar-se e a disparar para o ar e eu, quando os interrogava pelo motivo de tal, senti o cano de uma arma nas costas, ordenando-me que seguisse em frente (até gelei)… Juntaram todos os quadros brancos e puseram-nos no mato… assim mesmo.


Humilhados e ofendidos… socorridos no mato pelos inimigos de ontem!

Caminhámos muito, de noite, desarmados, e fomos até um acampamento de guerrilheiros do PAIGC, contámos a situação e eles mandaram um punhado deles a Paunca. Gritaram então lá para dentro:
- Têm 5 minutos para se entregaram e restituir o quartel aos brancos ou destruímos tudo! - Eles, os fulas, entregaram-se.

No fim, já de abalada, fomos ao paiol, juntámos todas as granadas e explosivos, e eu fui encarregado de os fazer explodir , ao redor de uma enorme árvore. Que cogumelo de fogo, impagável !

Deixei a G3 em Guileje...

Fui encarregado de comandar uma coluna de 22 viaturas até Bissau, por Fajonquito, Jumbembem Farim, Mansoa, Nhacra…Bissau. Ao fazer o espólio, não tinha G3, mas , como não tinha…
- Ó pá, estiveste em Guileje ?... Então ‘tá bem, não entregas.

A seguir vim de avião para a Peluda. Nesta pequena resenha há imprecisões próprias da distância temporal, do stress pós-traumático de guerra, há erros de cronologia e… não há sequência, mas serve para o que serve, afastar fantasmas e partilhar com a tertúlia do Graça e para isso… basta, tá ?

______________


Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)


(2) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)

(3) CCAÇ 11: formada a partir da CART 11/CART 2479 >

Vd. posts de:

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1612: Relembrando, com saudade, os nossos soldados fulas da CART 11 (Renato Monteiro / João Moleiro)


(4) Vs. posts de:

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)


(5) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro)

(6) Um momento alto do encontro do nosso 1º encontro na Ameira (2) foi a evocação da LFG Orion por parte do ranger Casimiro Carvalho: foi através do nosso blogue que ele soube, trinta e três anos depois, que, além dos paraquedistas, houve outros anjos da guarda no princípio do mês de Junho de 1973, a guarnição da LFG Orion, representada na nossa tertúlia e no encontro da Ameira pelo comandante Pedro Lauret, na altura oficial imediato do navio... Vd. post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte).

(7) Vd. post de 19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

(8) José Casimiro: Vamos lá refrescar essa memória... Não terá sido o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, da tua companhia ? É o que se depreende do conteúdo do post referido em (7):


(...) "Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.

"A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine" (...).

sexta-feira, 23 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1624: Bibliografia de uma guerra (17): A geração do fim ou a palavra a 21 oficiais de infantaria, de 1954/57 (Miguel Ritto)

1. De Miguel Ritto, filho de um oficial do exército do QP (e antigo combatente da Guiné, 1963/65 - julgo tratar-se do Capitão António José Brites Leitão Ritto), recebi a seguinte mensagem:

Luís Graça,

Em sequência à apresentação na TVI a 22 de Março, [a reportagem intitulada Última Missão (1), ] talvez tenha interesse para alguns a leitura das páginas 238 a 243 do livro A Geração do Fim, publicado pela Editora Prefácio, já em 2007 (2).

Nessas páginas está o subcapítulo "Guidaje - Rompendo o cerco", escrito pelo Coronel Pára Moura Calheiros. Disseram-me que recentemente o Coronel Moura Calheiros (já reformado) apareceu na televisão a falar no empenho dos paraquedistas em trazerem os corpos dos 3 soldados.

2. Já anteriormente, o Miguel me tinha enviado, em 13 de Fevereiro de 2007, um e-mail a divulgar este livro, com um convite para a respectiva sessão de lançamento a que infelizmente não pude assistir:

Dr. Luís Graça,

Consultei o seu site sobre a Guiné algumas vezes, e recebo regularmente alguns e-mails seus (nunca estive na Guiné, mas o meu pai combateu lá de 1963 a 65, e a minha curiosidade surgiu há cerca de 1 ano, após ter colaborado na revisão de uma crónica que lhe pediram para escrever, para incluir num livro).

No próximo dia 22 [de Fevereiro] vai ser apresentado um livro com crónicas escritas por militares que entraram para a Academia (para infantaria) em 1954. No livro há pelo menos 2 crónicas sobre a Guiné (...).

3. Depois disso, o Miguel enviou-me a 28 de Fevereiro de 2007, um ficheiro em formato.pdf, com a imagem da capa e contra-capa do livro. Infelizmente, este formato não é compatível com o nosso blogue (que só aceita imagens em formato jpg ou gif) (3). Dizia ele:

O meu pai é que esteve na Guiné, e a minha curiosidade pelo seu Blog surgiu quando o meu pai me pediu para rever o texto de 2 capítulos que escreveu para o livro.
Um desses textos é:
- "Guiné: Cabedu e o imposto de palhota" (pág. 77 a 87). Relata a comissão de 1963 a 1965 em Cabedu, na mata do Cantanhês.

Ainda sobre a Guiné, o livro inclui o capitulo "O ano da brasa", com as actividades dos parquedistas em Gadamael e Guidaje e ainda no Cantanhês (incluindo relatos detalhados da introdução dos mísseis na Guiné pelo PAIGC).

Extracto do Prefácio:

Este livro feito de memórias soltas, e escrito a muitas mãos é forçosamente de natureza heteróclita. Assim há escritos sobre: a primeira companhia de paraquedistas, ainda de FBP e Mauser, a actuar em África, no romper da guerrilha em Angola; "O ano da brasa" em Gadamael e Guidaje e ainda no Cantanhês (incluindo relatos detalhados da introdução dos mísseis na Guiné pelo PAIGC); os massacres de Mueda, de um Silvestre Martins presente no caso e contando novidades em primeira mão, e de Wyriamu, este poderosamente mediatizado; o incêndio e o saque da Embaixada de Espanha, em Lisboa, em 1975; os preparativos para liquidar Eduardo Mondlane, num único e rápido parágrafo; o Caso de Beja; o 25 de Abril, com um texto de Vítor Alves (4), e o 25 de Novembro.
O livro foi apresentado no passado dia 22 de Fevereiro, e deverá surgir nas livrarias nas próximas semanas.

Cumprimentos
Miguel Ritto
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1622: A Última Missão do paraquedista Victor Tavares (Luís Graça / Torcato Mendonça / J. Casimiro Carvalho)

(2) Estanhamente, esta editora ainda não tem uma página na Internet. Telefone: 213 530 376. Mail: editora.prefacio@mail.telepac.pt

(3) Disponível na página Moçambique - Guerra Colonial, do nosso camarada António Pires.

(4) O Coronel Vítor Alves é provavelmente o mais conhecido dos autores deste livro, um dos vinte e um oficiais do quadro permanente do curso da Arma de Infantaria (1954/57) que relatam estórias da sua actividade como operacionais, nomeadamente em África, durante a guerra colonial.

Do nosso tempo de Guiné, reconheço o nome do tenente-coronel José Aparício, na altura capitão: a sua companhia, a CCAÇ 1790, sofreu pesadas baixas, por acidente na travessia do Rio Corubal, em Cheche, no dia 6 de Fevereiro de 1968, na sequência da Operação Mabecos Bravios (retirada de Madina do Boé). Vd. post de 12 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405).

Guiné 63/74 - P1623: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (39): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (1)


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > Aerograma, com data de 9/11/ [1968], enviado a Cristina Allen. O Beja Santos escrevia diaria e compulsivamente aos seus amigos e familiares. Eis um excerto do aerograma:

Meu adorado amor: Tivemos grande susto com os tiros rebeldes na fonte, e houve que elaborar um novo programa de prevenção, a fim de suprir deficiências na vigilância. De manhã, veio uma coluna de Finete que trouxe o correio da semana. Notícias de minha mãe e do Ruy [Cinatti]. Também tu não pudeste escrever. Não estejas zangada comigo, meu amor. Veio correio oficial, perguntas e formulários administrativos, houve de pôr em dia a mala posta militar. Ao raiar da claridade parto, parto para Bambadinca, numa missão deveras amistosa. Quarta feira, saída do pelotão, eu ficarei mais uns dias paar pôr ao facto o nosso cinzelador e régulo (...)."


Capa de A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queirós. Porto: Lello & Irmão, Editores. 1945. (Colecção lello, 1). Capa de Alberto Sousa, inspirada na entrada principal da Quinta de Tormes (situada no Concelho de Baião, é hohe sede da Fundação Eça de Queiroz, e vale uma visita), onde se passa a história do príncipe Jacinto e do seu amigo Zé Fernandes. Escreve o Beja Santos à sua mãe: "Imagine que reli sofregamente A Cidade e as Serras, do Eça. Encontrei na messe de oficiais em Bambadinca uma edição de 1945, da Lello" (...).

O Tigre de Missirá tinha fama de predador em Bambadinca... Fechavam-se portas, janelas e gavetas, ao ouvir-se o grito da sentinela: Vem aí o Tigre !.... De qualquer modo, depois do ataque de 19 de Março de 1968, ele partia da estaca zero, começando a reconstituir a sua biblioteca (e a sua morança) com alguns livros que trouxe de Bissau, depois da intervenção cirúrgica a que foi submetido no Hospital Militar. (LG)

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




39ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 8 de Março de 2007.


Caro Luís, fui ver o filme Cartas de Iwo Jima, do Clint Eastwood, que me comoveu muito e procuro aproveitar aquelas cartas nipónicas dos soldados do Imperador para as suas famílias adaptando-as às cartas que ia escrevendo às pessoas que mais amava.

O período que medeia entre os fins de Março e Maio foram uma silenciosa epopeia de guerra e paz: idas diárias a Mato de Cão, desmatou-se, repararam-se caminhos na antevisão da época das chuvas, fizeram-se tijolos, felizmente os rebeldes estiveram calmos, desconhecendo nas idas e vindas a Mato de Cão lhes rondava o paradeiro.

Este tipo de cartas talvez seja uma boa resposta para eu trazer à cena os meus problemas íntimos e, tal como os soldados do Imperador, falar da cultura densa, dos meus afectos e dos sonhos que deixara a marinar. Seguem dois livros pelo correio, sugiro as imagens que tens da reconstrução de Missirá e os apontamentos do Luís Casanova (...). Um abraço do Mário.


Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (1)
por Beja Santos



Para o Ruy Cinatti (2)

Ruy, Dear Father,


Regressei a Missirá há dois dias. Grande parte do quartel e da povoação foram devorados pelas chamas, devido a uma flagelação que aqui ocorreu no passado dia 19. Tenho abrigos danificados, chegou a altura de reconstruir mais dois, perderam-se 17 cubatas, a vida tornou-se muito difícil para todos nós. Há gente sem comida e falta arroz em Bambadinca. Antes da operação, estive no Batalhão de Engenharia e recebi muitas promessas. Com este revés, confio que o cimento, o arame farpado e os outros materiais de construção civil venham em quantidade suficiente para começar de novo.

A época das chuvas vai chegar em meados de Abril e é por isso que já estamos a construir os tijolos, numa corrida contra o tempo. A actividade militar continua com as idas e vindas diárias e nocturnas a Mato de Cão. A destruição de um aquartelamento implica muita burocracia com os abates, contagem de material. Como esta guerra é muito especial, quando falei sobre lista de material perdido, que é uma lista de enlouquecer, foi-me respondido que eu devia registar todo o material perdido, fazendo uma relação dos estragos através de uma comparação a olho vivo com o resto da carga não destruída...

Os meus soldados ajudam-me imenso, já que continuam a não regatear esforços, acumulando agora, em permanência, actividades de construção civil. Falta-nos muito arroz para a população civil , como disse, e ofereceram-nos arroz apanhado durante uma operação no Corubal.

Desapareceram no fogo todos os meus livros e discos. Peço-lhe pois que me dê a sua ajuda oferecendo-me alguns livros. Já escrevi ao meu padrinho e seu afilhado pedindo livros da Portugália Editora: romances contemporâneos, clássicos e ensaios. Veja se me pode oferecer poesia francesa contemporânea, romances da Ulisseia como a Viagem ao fim da noite, do Louis-Ferdinand Céline, que nunca tive oportunidade de ler. Aceito tudo, como Job.

Fui punido com dois dias de prisão e não terei férias. A Cristina está desconsolada e fala em vir viver em Bissau, dando aulas no liceu. Não tenho ainda opinião formada e confio no seu conselho. O Comandante Teixeira da Mota continua a escrever e tem-me dado apoio com as suas cartas. Esta experiência é muito dura, a solidão pesa e tenho uma saudade infinita de todos vós.

O Carlos Sampaio, filho do seu amigo Fausto Sampaio, está mobilizado para Moçambique. O estado de saúde da minha mãe deteriora-se e peço-lhe que lhe telefone. As cartas que recebo vêm cheias de censuras e azedume, o corte de relações com a Cristina levou à formação de grupos pró e contra, muito correio que aqui recebo traz as chamas do inferno.

Desculpe o tom desolado com que lhe escrevo, é com muita dificuldade que me habituo à ideia de que além de combater vou reconstruir este quartel animado pela vontade de o ver renascer das cinzas. Despeço-me com muita amizade e gratidão pela companhia que me dá. Perderam-se as suas cartas mas cresceu a estima que lhe tenho.





Capa do romance de Erico Veríssimo, Música ao Longe, 7ª ed. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. Capa de Bernardo Marques. (Colecção Livros do Brasil, 9). Com alguns livros comprados em Bissau e com outros, emprestadados por amigos e camaradas, o Alf Beja Santos lá foi reconstituindo a sua preciosa biblioteca, devoradada pelas chamas na noite do ataque a Missirá, em 19 de Março de 1969. No penúltimo post (3), Beja Santos escreveu: "Leio e releio sofregamente Música ao longe que me atrai pela sua simplicidade, pelos enredos plausíveis, pelo exótico de um mundo rural que eu desconheço. Abençoado o bem que Erico Veríssimo me faz. E daqui passo para O mistério do Bellona Club por Dorothy L. Sayers. Esta escritora britânica criou o detective Lord Peter Wimsey, um sofisticado que lê manuscritos de Justiniano, é requintado gastrófilo e tem um criado que é um verdadeiro pesquisador e angariador de informações".



Para o Carlos Sampaio (4)


Carlos, meu querido Amigo,

Recebi a tua carta quando estava a ser operado ao joelho direito em Bissau. Sei que partes para Moçambique em Junho e que já estás a formar batalhão. Rezo para que a tua comissão seja menos dura possível. Quando regressei a Missirá, há dias, todo o recheio da minha morança tinha ardido. Com excepção de três livros que me ofereceste, e que me acompanharam até Bissau, tudo se perdeu: os teus poemas, os teus desenhos, o carinho do teu estímulo.

Vezes sem conta relembro os nossos serões na Praça Pasteur nº 8, 2º esquerdo, a tua companhia no almoço no dia em que fui para Mafra e em que me deste a Bíblia de Jerusalém e um lindo livro de pintura grega. Felizmente que deixei ao cuidado da minha mãe aquele óleo que pintaste na Anadia, naquela semana de férias antes de eu partir. A Cristina fala-me muito da ajuda que lhe tens dado e sente-se preocupada com o teu ar fatigado.

Por aqui está tudo muito difícil, não sei se te hei-de incomodar com as obras da arrecadação que estamos agora a reparar, com as obras de um poço para termos água potável dentro de Missirá ou a substituição das três fileiras de arame farpado: a única consolação é que esta linguagem dentro de meses vai entrar no teu dia a dia.

Não nos veremos antes do final das nossas comissões e tu és o meu maior amigo. Sei que tens projectos para, depois dos estudos, trabalharmos juntos na livraria Sampedro. Contas comigo, gosto cada vez mais da aventura do livro, produzi-lo e vê-lo nas mãos dos outros. É esse projecto comum que me impede hoje de te dizer que estes mais de dois anos em que não conversaremos face a face me custam muito. Teremos uma vida inteira para editar e vender livros, que bom!

Estou muito cansado hoje, são duas da manhã e às cinco parto para Mato de Cão, junto do rio Geba. Desejo-te coragem e que tenhas sempre o entusiasmo que contagia a minha vida. Por favor, escreve-me.





Capa do romance policial O mistério do Bellona Club, de Dorothy L. Sayers. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 35). Capa de Cândido da Costa Pinto. "Aquela prodigiosa capa do Cândido da Costa Pinto sempre me intrigara, tinha chegado o momento de satisfazer a curiosidade com a trama da intriga policial" - escreveu Beja Santos, no post de 10 de Março último (3).


Para o Padre António de Almeida Fazenda, S.J.

Querido Padre Fazenda,

Recebi a sua carta que muito consolo me deu. Fico triste com o sofrimento que a sua zona lhe provoca e agradeço as suas orações. Procurei saber em Bissau se havia documentação sobre os Jesuítas que passaram por aqui nos séculos XVII e XVIII, nada encontrei mas já escrevi à maior autoridade em historiografia da Guiné, o Comandante Teixeira da Mota, e depois dar-lhe-ei notícias.

O meu quartel está reduzido a menos de metade, o que me aflige é o sofrimento das famílias dos soldados, que foram os mais atingidos, mas a população civil também perdeu algumas casas. Falta muita alimentação e ando permanentemente a fazer colunas de reabastecimento.

Lembro todos os dias com saudade as aulas de Latim e Grego, lembro a sua generosidade e os valores que me procurou transmitir. Confio que possa contar muitos e bons anos com esse seu apoio, aprendendo com a sua serenidade e despojamento. Desculpe ser breve, o cansaço está a tomar conta de mim, fui castigado e não posso ver-vos tão cedo. De resto, sei que vou contar com a misericórdia de Deus mas há momentos em que um homem fica de rastos. Mas amanhã estarei muito melhor, acredite. Contando com a sua benção, receba a muita estima daquele que admira a sua espiritualidade.


Para Angela Carlota Gonçalves Beja

Querida Maezinha:

Voltei a Missirá, a operação (3), como lhe disse ao telefone, correu muito bem, desapareceram as dores, ando sem sofrimento. Fico contente com as notícias que me deu, com o estado de saúde da sua irmã Carlota. Sei que vai passar férias a S. Pedro do Sul e fazer tratamentos, na companhia do Rodolfo. Não se esqueça de me escrever. Sei que lhe é difícil, mas, por favor, evite mais pormenores da sua zanga com a minha namorada.

Recebo constantemente correio que me inquieta e conto com o amparo de todos os meus entes queridos. Amparo, porque aqui há uma guerra, há incêndios como recentemente aconteceu em Missirá, onde perdemos muitas cubatas, tenho edifícios danificados, não sei o que nos aconteceria se sofrêssemos novo ataque. Agradeço-lhe as visitas que faz ao Fodé Dahaba e ao Paulo Semedo. Diga aos dois, por favor, que o Cherno Suane e o Mamadu Camará vão ser condecorados por feitos de bravura.

Os próximos meses vão ser muito duros pois estamos a reconstruir as casas da população civil e a melhorar a segurança do quartel. Perdi os meus livros todos, não tem importância nenhuma mas agradecia que pensasse nalguns livros a pretexto do meu aniversário. Imagine que reli sofregamente A Cidade e as Serras, do Eça. Encontrei na messe de oficiais em Bambadinca uma edição de 1945, da Lello. A Maezinha tinha-me oferecido As Minas de Salomão, O Mandarim e A Correspondência de Fradique Mendes.

No 7º ano A Cidade e as Serras foi leitura obrigatória. Achei muita graça o arranque do romance com aquele D. Galião que ao descer a travessa da Trabuqueta encontrou D. Miguel e ficou fiel ao miguelismo, exilando-se em Paris nos Campos Elísios 202, onde o Jacinto respirou progresso e civilização. A obra ajudou-me imenso até para entender a filosofia do fim do século XIX, sobretudo o positivismo e Schopenhauer.
A releitura desta obra prima é outra coisa. A força que o Eça imprime às descrições da ambientação do Jacinto em Tormes tem um brilho que ainda hoje me deslumbra. O recurso à figura do Zé Fernandes, um alter ego do Eça, é uma solução que anima a leitura, provocando uma excelente relação directa entre o Jacinto, a civilização parisiense e o contraste com o universo do Baixo Douro onde vai ter o desfecho feliz a obra. Deixo-me citar o final do romance:

"Em fila começámos a subir para a serra. A tarde adoçava o seu esplendor de Estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de casas amáveis, flamejavam com um fulgor de oiro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira".

Este livrinho tem capa do Alberto de Souza, inimitável aguarelista. Recomendo-lhe que leve este Eça para S. Pedro do Sul. As belezas aqui são muito diferentes. A cor da terra, como lhe disse, assinala o braseiro do calor permanente, a vegetação chega a ser exuberante e dizem-me que no Sul da Guiné, onde agora a guerra é horrível, há belezas incomparáveis na floresta hermética. Do que mais gosto é ver o pôr do Sol ao fim da tarde, ígneo a derramar-se sobre os palmeirais de Finete, quando cambo o Geba e venho pela bolanha. É um pôr do Sol súbito, próprio dos trópicos. Sei que vou guardar esta imagem toda a vida.

Fui castigado e não irei tão cedo a Portugal. Não se preocupe, estou bem, não me esqueço dos valores que me transmitiu e do amor que me tem oferecido. Quando regressar, procurarei dar-lhe companhia, iremos a exposições e espectáculos, folgo imenso sabendo que se mantém convivente e muito curiosa. Receba um beijo deste filho que nunca a esquece.


Para Cristina Allen


Meu adorado amor


Promessas para reconstruir o quartel tenho tido muitas, aos poucos vai chegando material, mas as idas a Mato de Cão têm-se multiplicado. Felizmente que tenho o exemplo monumental dos soldados que nada recusam. O Pimbas conseguiu o milagre e cedeu-me temporariamente mais 10 militares que nos ajudam nas desmatações e nos reforços já que a vida continua entre os patrulhamentos obrigatórios e a reconstrução de Missirá.
Antes que me esqueça queria-te pedir o grande favor de me comprares o Canto dos Bosques do Dimitri Chostakovitch, que ouvimos na Valentim de Carvalho. É uma edição do Chant du Monde, tu gostaste muito das vozes do tenor e baixo, não tenho dinheiro para comprar muito nem tão cedo irei refazer a discoteca, mas preciso de música vibrante que me levante moral.
Iremos continuar a falar da tua possível vinda para Bissau. A Maria Luísa Abranches está a obter informações sobre preços de casas, em Bissau, como te disse falei no liceu, é preciso concorrer em Agosto, entregando o diploma do curso, certidões como a do registo criminal e o formulário anticomunista, com registo do notário local. Há sempre vagas e o teu diploma falará por si, já que há muitos professores só com o 3º ciclo. Citas o exemplo do David Payne e da Isabel, não é a mesma coisa, o David está em Bambadinca, eu em Missirá e não há ainda notícias se algum dia saio do teatro de guerra. Vamos aguardar com tranquilidade, conto com o teu exemplo e a muita estima que me devotas.
Falando de trivialidades, o cabo Raposo anda desaparafusado, não nos deixa dormir há 4 noites com as suspeitas de que os rebeldes rondam junto do arame farpado, diz que vê fogos nas redondezas e ouve vozes. Consegue contagiar outra gente e noutro dia um macaco aproximou-se do arame farpado, dispararam uma rajada que se transformou em minutos em milhares de tiros atirados para o ar.
O auto da Fatu continua. Não sei se já te expliquei o que é uma deprecada, eu escrevo uma série de perguntas alusivas a um acontecimento e num posto da GNR alguém interroga um oficial sargento ou praça. Dou-te um exemplo com as perguntas que mandei hoje: "É do conhecimento do Sr. Capitão Miliciano Luís Vassalo Namorado Rosa que a granada que motivou as ocorrência não é do tipo de fumos mas sim armadilha? Que providências tomou face ao sinistro de 19 de Abril de 1967?".
Podes imaginar o trabalho de memória, o que o sobredito capitão fica a pensar do que eu sei que ele não sabe, mas é a única maneira de eu tirar as possíveis conclusões que permitam um mínimo de reparação para a pobre da Fatu.
A escala de férias, que estava a funcionar desde Janeiro, fica provisoriamente sem efeito. Não posso conceder férias, a não ser a título excepcional, nos próximos dois meses, até Missirá estar reconstruída. Rezo todos os dias para que não sejamos atacados nas próximas semanas. Desta vez, seria mesmo punido com justiça, já que não tenho valas abertas, dei prioridade à reconstrução de casas.
A propósito de punição, recebi a visita do Comandante Militar que veio aqui com outras altas patentes. O brigadeiro foi correctíssimo no tom em que me falou, quis visitar tudo, fez perguntas pertinentes, aceitou como um cavalheiro o nosso humilde acolhimento, deixou algumas mensagens de estímulo. Tudo tão diferente das visitas anteriores!
A todos a quem escrevo peço livros, e não te excepciono. Quando vim para a Guiné, julguei que iria privilegiar leituras à volta das ciências históricas, da antropologia e da sociologia. Puro engano, como tu sabes. Não tenho feito outra coisa que ler com entusiasmo tudo quanto é ficção, salvo os livros que me permitem conhecer melhor a Guiné. Como agora a oferta já não é abundante, deito mão ao que há.
O Carlos Sampaio tinha-me oferecido um ensaio precioso Arte e Mito, do Ernesto Grassi. Não imaginas como no meio deste desconforto todo é entusiasmante andar a discutir a natureza da arte, qual o móbil original da realização artística, o que está na origem da poesia ou da música, se a arte se entrepõe entre nós e a Natureza, o que significa a expressão "obra de arte", o porquê do que seleccionamos do passado e chega ao nosso presente, de que maneira interpretamos a ordem dos acontecimentos de um projecto artístico, ao nível dos dados sensoriais, da abstracção que fazemos da matéria e da forma, o papel do mundo religioso, como do mundo mítico surge a arte.
Este ensaio tem sido uma excelente companhia e quero que saibas que outro livro que o Carlos me ofereceu Espera de Deus me está a impressionar muito.
A noite já vai muito alta, ainda não perguntei pelos teus estudos, sei que estás a estudar com entusiasmo, confio que farás os teus últimos exames em Junho e terás justas férias. Não te preocupes comigo, com o teu amor todas estas penas vão ser suportadas e superadas. Tenho escrito ao Luís Zagalo Matos e vou contar-te tudo no correio de amanhã. Ele é muito estimado em Missirá e fico contente de vocês terem estudado juntos.
Beijo a minha senhora jovem dona, peço-te do coração que não estejas amargurada com os problemas do mau relacionamento com a minha família e tal como Madiu Colubali me escreveu de Dulombi onde foi aos funerais da mãe desejando-me beijes para alfer, toda a ternura entre Missirá e Lisboa e até amanhã.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1600: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (38): Missirá, a Fénix renascida
(2) Outras referências do Beja Santos ao poeta e seu amigo Ruy Cinatti (1915-1986): Vd. posts de
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá
10 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel
10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

(3) Vd. post de 10 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá
(4) Carlos José Paulo Sampaio, Alf Mil, da CCAÇ 2515/BCAÇ 2875, morto em Moçambique, em 2 de Fevereiro de 1970. Era natural do concelho de Anadia.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1622: A Última Missão do paraquedista Victor Tavares (Luís Graça / Torcato Mendonça / J. Casimiro Carvalho)

Mensagem do editor do blogue (L.G.):

Amigos e camaradas:

(i) Acabámos de ver a reportagem da TVI – Última Missão -, com o nosso camarada Victor Tavares a entrar pela nossa casa dentro, as emoções contidas, a mesma coragem física de sempre, o mesmo sentido de camaradagem, a mesma dignidade humana...

Ele mostrou-nos os desolados restos do quartel de Binta, a picada até à bolanha do Cufeu, de trágicas memórias para alguns de nós, a fantasmagórica Guidaje e, por fim, o cemitério onde ficaram, para trás, o Peixoto, o Lourenço e o Victoriano ....

Nós sabemos que há outros camaradas, guineenses e portugueses, que lá ficaram, e de que não se falou na reportagem... Os actores têm sempre uma visão parcelar dos acontecimentso em que participam... O objectivo não era, aliás, esse, mas sim o de recuperar simbolicamente a memória dos ‘camaradas que nunca se deixam para trás’... A memória, logo a humanidade...

Para o Victor foi recuar a 23 de Maio de 1973, e pela enésima vez reconstituir, dolorosamente, essa terrível emboscada de 45 minutos, na bolanha do Cufeu, e voltar a levar os cadáveres do Lourenço e do Victoriano até Guidaje, cerrar os dentes, remuniciar a MG-42, romper o cerco a Guidaje, assistir aos últimos minutos de vida do Peixoto, metido numa vala, confortá-lo no último minuto e dar-lhe a ele e aos outros dois a sepultura minimamente condigna que as terríveis circunstâncias permitiam... Releiam agora, com tempo e vagar, o relato desses trágicos dias escrito pelo Victor, no nosso blogue (1)...

Ao vermos estas imagens, o que dói é não termos tido tempo para trazer os seus (e os de todos os outros) restos mortais, antes da troca de poderes entre a merópole e a colónia, entre Portugal e a nova Guiné-Bissau... O que dói é o silêncio, o abandono, a demissão, o esquecimento, o desprezo, a ignorância, o branqueamento, o faz-de-conta, o cinismo, o oportunismo... O que dói é sobretudo o facto de eles lá terem ficado (e continuarem) enterrados no perímetro do aquartelamento de Guidaje desde há 34 anos... sem nós podermos fazer o luto... O seu luto e o de tantos outros camaradas, espalhados por centenas de cantos da Guiné... Nós não fizemos o luto dos nossos mortos da Guiné, individual e colectivamente, estamos agora a fazê-lo... Um luto que hoje só pode ser patológico...

Enfim, amigos e camararadas, Binta, Cufeu, Guidaje ... hoje deram-nos a volta ao estômago, mexeram connosco, baralharam-nos as emoções... A nós e aos familiares do Peixoto, do Lourenço e do Victoriano... Seguramente, a muitos milhares de portugueses e de portuguesas que estiveram a ver a reportagem... A irmã de um deles disse, com as lágrimas na cara: “Cemitério ? Aquilo é um campo de milho, e o pobre do meu irmão lá ficou enterrado com um cão”...

Fico feliz, em todo o caso, pelo Victor que aceitou correr mais este risco, até físico... Mas foi sobretudo o risco de se expor, o risco de ver as suas emoções e sentimentos mediatizados, explorados comercialmente, transformados em espectáculo, audiometrados ... Eu, se calhar, não teria a sua coragem, física e moral... De qualquer modo, acho que a reportagem foi feita com profissionalismo, com ética, com dignidade... Parabéns também à equipa do jornalista e escritor Jorge Araújo e à TVI.

O Victor pôde, também, cumprir a sua missão, a sua última missão, ele que foi, é e continuará a ser sempre um grande e forte paraquedista, de corpo, alma e coração... E aquele campo de batalha, hoje um miserável milheiral, seco – estamos na época seca -, ganhou côr, vida, humanidade: foi um momento tocante quando o Victor se encaminhou, com um antigo e velho soldado guineense, da massacrada CCAÇ 19 - exemplo vivo do miserável abandono dos nossos soldados africanos - afixou, no chão, que serviu de última morada aos seus três camaradas paraquedistas, as respectivas fotografias que a câmara do Ricardo Ferreira nos dá em grande plano ... E falou com eles e manifestou o desejo – a sua crença – de um dia os encontrar algures, “não sei bem onde”...

(ii) Quem viu a reportagem da TVI, ficou sensibilizado.... O José Casimiro Carvalho acaba-mo de dizer: “Vi a reportagem e soltaram-se-me lágrimas com 34 anos. Terrível. Eu SEI o que foi ISTO”.

O Torcato Mendonça, outro homem de sensibilidade e solidariedade, também acabou de me mandar uma mensagem tocante:

“Luís: há gotas de água que são tsunamis. Tenho alguma dificuldade em escrever, em dizer o que sinto, em ver a merda das letras no nevoeiro dos óculos. Tive que esperar um pouco, depois de ver a reportagem e não paro agora. Só para te dizer que tem que ser feito algo. Não são só os paraquedistas que não deixam ninguém para trás. É irrelevante agora. Todos nós temos o dever de contribuir para o regresso dos militares que se encontram assim sepultados. TODOS TÊM QUE REGRESSAR.

“Parece, por vezes, estarmos envergonhados com a colonização, a descolonização, a guerra. Parece estarmos a pedir desculpas …Nós, ex-combatentes…nós?...porquê? Depois aparece uma simples carta de condução… ai Jesus!… Compreendo…nesta perca de valores, nesta quebra de auto-estima, neste País que se envolve em discussões sobre o maior ou melhor português… enfim, não vamos mais além.

O Blogue, esta tertúlia, estes camaradas de certeza que ficaram como eu – apertados e revoltados – talvez a recuar no tempo, a sentir a adrenalina a subir… a velhice a desaparecer… a raiva a vir e, a mim pelo menos, o desejo de voltar e…é melhor acalmar! Caneco, eu? Chega de palhaçada. Temos o direito a ser respeitados. Humilhados e ofendidos, já o fomos demais.

“O Victor Tavares merece um abraço, um obrigado, extensível ao Rebocho e ao Oficial Pára cujo nome me esqueci. Também aos Jornalistas, para que continuem. Um voto que isto seja o tiro de partida para que um dia TODOS regressem… É que nós contamos as nossas memórias, a história será feita posteriormente com ou sem esse contributo. Há no entanto feridas não fechadas. Ou as fechamos nós, de preferência de ambos os lados, ou ficará uma mancha na memória deste (s) Povo (s).

“Envio isto ou não? Abri, não vou reler e mando-te. Convicto que me posso ter excedido mas consciente que tem que ser feito algo.

“Dói-me demais a cabeça. Se entrares em contacto com o Victor Tavares dá-lhe um abraço de um ex-combatente… Tens muito em que pensar, mais uma… Têm que voltar… e mais não digo.

“Boa noite, Luís Graça e, através de ti, deste teu espaço na Net, deixa-me abraçar todos, independentemente da cor ou da etnia -para mim raça só a humana – que por lá passaram, tenham ou não regressado… Um abraço”...

(iii) Boa noite, Lourenço, Peixoto, Victoriano... Boa noite, Victor, boa noite Jorge Araújo, boa noite Ricardo Ferreira... Boa noite, Casimiro Carvalho, Torcato... Boa noite, camaradas... Boa noite, amigos... Boa noite, tertúlia... Boa noite, Portugal... Boa noite, Guiné...
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida