v13 25abr2016
Uma
estranha maneira de dizer adeus… (ou quando os soldados partiam para a
guerra)
por Luís Graça
Um
estranha maneira de dizer adeus, um estranho povo este
que vem ajoelhar-se, no cais de partida,
não em oração, para aplacar a ira dos deuses, mas vergado,
vergado à toda poderosa razão de Estado.
A tentacular força centrífuga que, de há séculos,
te leva os filhos teus, ó Pátria, para fora,
que vem ajoelhar-se, no cais de partida,
não em oração, para aplacar a ira dos deuses, mas vergado,
vergado à toda poderosa razão de Estado.
A tentacular força centrífuga que, de há séculos,
te leva os filhos teus, ó Pátria, para fora,
paridos e expulsos do ventre da Mátria, para longe,
bem para longe, muito para lá do mar.
bem para longe, muito para lá do mar.
Ordeiros os soldados, como os cordeiros da matança da Páscoa,
anhos, dizem no norte,
alinhados no Cais da Rocha Conde de Óbidos,
como os elétricos amarelos que vão para a Cruz Quebrada,
empilhados, aboletados, requisitados às mães
para servir a Pátria, o pai-patrão
que lhes cobra o dízimo em sangue, suor e lágrimas.
que lhes cobra o dízimo em sangue, suor e lágrimas.
A mesma atitude, admirável, de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem, diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos, leia-se:
que tudo pedem e podem, diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos, leia-se:
da
tragédia inelutável.
Coitadas das mães que tais filhos pariram,
dizes tu, entre dentes,
para
o teu camarada que
vai subindo à tua frente o portaló,
o cadafalso, com um nó na garganta, mal
disfarçado,
no meio dos lenços brancos ao vento,
em fundo preto, como em Fátima no 13 de maio.
em fundo preto, como em Fátima no 13 de maio.
Uma despedida breve com lágrimas salgadas no rosto,
com o Niassa, a última nau das Índias,
a
apitar três vezes,
sob a ponte de Salazar, ainda reluzente,
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás tu, Sophia, pitonisa de Delphos,
quase morto mas não enterrado.
Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
sob a ponte de Salazar, ainda reluzente,
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás tu, Sophia, pitonisa de Delphos,
quase morto mas não enterrado.
Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
a
última nau do cais da Ribeira,
o último império que ficou por haver,
o último império que ficou por haver,
o
último marinheiro em terra,
sinal
de tempestade,
o
último uísque marado que ficou por beber no
Cais do Sodré,
o Cristo Rei em terra que outrora foi de infiéis,
o Terreiro que continua do Paço, não do povo…
Ah! Lisboa, Lisboa, e o teu casario, branco, sujo,
o Terreiro que continua do Paço, não do povo…
Ah! Lisboa, Lisboa, e o teu casario, branco, sujo,
um filme a preto e branco, riscado,
um gato preto à janela, sinal
de mau agoiro.
Lisboa,
Lisboa, e lá
longe a Guiné,
Lisboa, enfim, as tuas ruínas,
pré-pombalinas,
o poço dos mouros, o poço dos negros,
o lundum, a umbigada
a procissão da Nossa Senhora da Saúde.
mais a Santa Inquisição,
zelando pela pureza da raça e do sangue,
pré-pombalinas,
o poço dos mouros, o poço dos negros,
o lundum, a umbigada
a procissão da Nossa Senhora da Saúde.
mais a Santa Inquisição,
zelando pela pureza da raça e do sangue,
zurzindo
corpos e almas,
o Cemitério dos Prazeres, numa das tuas colinas,
o Cemitério dos Prazeres, numa das tuas colinas,
com os seus altos ciprestes negros,
os mastros dos navios da carreira colonial,
o império por um fio dental,
a vida, curta, que se recapitula, de fio a pavio,
no último comboio que veio do campo militar de Santa Margarida,
os mastros dos navios da carreira colonial,
o império por um fio dental,
a vida, curta, que se recapitula, de fio a pavio,
no último comboio que veio do campo militar de Santa Margarida,
pela
calada da noite.
Lisboa revista, revisitada, revistada,
devassada, despojada,
em filme de oito milímetros, a preto e branco
ou a preto e negro, dizes tu, corrosivo.
ou a preto e negro, dizes tu, corrosivo.
Uma só nação, valente mas mortal,
ironiza alguém.
O Niassa colonial na azáfama do seu vai-e-vem,
antes de ir parar à sucata,
inglória a sucata da história que tu perdeste
aos dezoitos anos,
quando deste o nome para as sortes.
Estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes e com mortes,
ironiza alguém.
O Niassa colonial na azáfama do seu vai-e-vem,
antes de ir parar à sucata,
inglória a sucata da história que tu perdeste
aos dezoitos anos,
quando deste o nome para as sortes.
Estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes e com mortes,
e
com os fracos de que não reza a história.
Ah!,
e os jacarandás que choram,
de
lágrimas lilases, em
pleno mês de maio,
e as
santas das nossas mães que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas,
a acender a vela à santa das santas,
a
tecer o lenço de enxugar lágrimas,
um fado que tu ouviste no Bairro Alto,
e que já não era batido nem dançado nem cantado,
um fado apenas gemido, sussurrado.
um fado que tu ouviste no Bairro Alto,
e que já não era batido nem dançado nem cantado,
um fado apenas gemido, sussurrado.
Passado o Bugio,
deixado
para trás o velho do Restelo,
choradas
as mães de xaile preto,
há
um briefing às cinco da
tarde, anunciam
a bordo,
já em velocidade de cruzeiro,
no mar alto que outrora foi português,
no mar alto que outrora foi português,
Não, não uso a cruz, o crucifixo,
como colete de salvação, senhor capelão,
não vou para a guerra santa combater os infiéis,
alguém há de rezar por mim
para que eu volte são e salvo.
Do regulamento é apenas a chapa de zinco
com o número mecanográfico 13151468
e o picotado ao meio,
para mais facilmente ser cortada em duas partes
que seguirão caminhos distintos,
tudo isto face ao risco, bem real e concreto,
de eu morrer longe, bem longe da minha pátria,
para lá do mar, em terra que não me viu nascer.
E tu, camarada, descansa, que ninguém fica para trás,
alguém há de rezar por mim
para que eu volte são e salvo.
Do regulamento é apenas a chapa de zinco
com o número mecanográfico 13151468
e o picotado ao meio,
para mais facilmente ser cortada em duas partes
que seguirão caminhos distintos,
tudo isto face ao risco, bem real e concreto,
de eu morrer longe, bem longe da minha pátria,
para lá do mar, em terra que não me viu nascer.
E tu, camarada, descansa, que ninguém fica para trás,
se tu morreres na batalha, alguém tratará da tua mortalha,
cerrará os teus dentes, puxará as persianas das meninas dos teus olhos,
porá um moeda na tua boca para pagares a viagem
ao barqueiro de
Caronte,
e fará o teu espólio e engraxará as tuas botas.
Sim, levarei comigo a pedra-chave que me liga ao além.
uma chapa de zinco, picotada ao meio,
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado calcolítico, castrejo, romanizado.
Pois, então, camaradas
se eu morrer, que me enterrem, de vez,
Sim, levarei comigo a pedra-chave que me liga ao além.
uma chapa de zinco, picotada ao meio,
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado calcolítico, castrejo, romanizado.
Pois, então, camaradas
se eu morrer, que me enterrem, de vez,
numa anta do meu país megalítico.
A
bordo do T/T – Transporte de Tropas, Niassa,
a
caminho da Guiné,
24-29
de maio de 1969.
Luís
Graça
Revisto
em 24nov2023.
Nota do editor:
Último poste da série > 3 de abril de 2016 > Guiné 63/74 - P15931: Manuscrito(s) (Luís Graça) (81): Se de amor fosse essa pena, / P’la minha pátria encantada, /Teria valido a pena / De tanto penar por nada.
Último poste da série > 3 de abril de 2016 > Guiné 63/74 - P15931: Manuscrito(s) (Luís Graça) (81): Se de amor fosse essa pena, / P’la minha pátria encantada, /Teria valido a pena / De tanto penar por nada.