sábado, 11 de maio de 2019

Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)

A galeria dos meus heróis > "Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!"...

por Luís Graça



1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o nome.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite (. Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e , onde se bebia uísque marado, e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, pintadas de verniz vermelho horroso como os felinos. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em 
arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa…

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível”…), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste descortinar… 

Enfim, trazia-te a ti, e aos demais machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão pequeno…

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu “Livro Sexto” esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”


Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, enfim, não te recordas. Mas para o caso não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de  férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo... 

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Fazias questão de dizer que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, muito menos mercenário; isto vai mal, diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário ?!...Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, cumpriam, longe de casa,  uma missão em nome da Pátria, 
a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viveras.) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca,... o mal afamado Pilão.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem: ir dormir uma noite ao Pilão, antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no Pelicano no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e 
de coragem física...Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, e cada um foi com a sua “bajuda cabo-verdiana”, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.



Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinada com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira,   e saieste... A atmosfera era sufocante, o telhado era de zinco, e não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, às escuras…

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio 
almareados (o termo era do teu companheiro de viagem , oriundo do litoral alentejano) e bêbados de sono.


3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, 
Old Parr e Dimple, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos aos balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, de etnia papel, de Biombe, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África.


Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.


TRu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos racistas:

- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado.

Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo à sua provocação:


- Ó amigo.  vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…Foram os dois ao chão, mas os gajos d
o conjunto (caixa e guitarra elétrica) continuaram a tocar, no meio da algazarra…

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando te deste conta eram já três ou quatro da madrugada…

4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinha umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da  instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé,  que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam. Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocarm um olá, meio comprometidos, já tínhamos passado as Canárias.
– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau.

5. Voltaste a reencontrá-lo muito mais tarde, depois dessa noite no Chez Toi, em que fizeram as pazes. Iam de férias, ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado, que estava a lidar mal com a reforma e os fantasma do passado:

“Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, tínhamos combinado levar papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus diários, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...


“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, de que já ouvi falar, e sobre o qual, de resto, já ouvi críticas e elogios. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos…

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (, sou daqui perto de Bragança), a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…


"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se há muito, há vinte e tal anos. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato frustrado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.

"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril,  haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…

“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.

“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).

“Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. 
Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de homens feridos de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo ?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. 

"Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal, na margem esquerda… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias-lecas.

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana o alferes 'ranger'.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1º pelotão,  olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos, com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.


"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...


"Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! 
Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como  transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão...

"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz.

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de Furriel Ca...rrasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…


"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, biafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.

"Não, nunca usei a faca de mato, se é isso que queres saber. Sempre preferi o tiro na nuca. Aconteceu apenas noutra ocasião, já para o fim da comissão. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut'  que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é magistrado, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... 
Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (,sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Ca...rrasco, que era uma coisa que me irritava. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.

"Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o "Alma Grande", da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!”


6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu conselho,  para ver e ouvir a brama dos veados no parque natural de Montesinho... Ele por lá ficou, em Bragança, tu voltaste a Lisboa. E, confessas, ficaste por um bom par de horas, ao longo da autoestrada , a A4, com um nó na garganta, não menos apertado...


Luís Graça (2019). Última revisão: 7/7/2023

Guiné 61/74 - P19774: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande (17): felizmente, estou vivo; infelizmente, não posso estar com vós, em Monte Real, dia 25 (Luís de Sousa, Garcez Costa, Mário Santos, Jorge Coutinho, Manuel Coelho, Valdemar Queiroz, Manuel Vaz, José Manuel Alves, Mário Serra de Oliveira e Paulo Salgado)



Leiria > Monte Real > Palace Hotel Monte Real (Termas de Monte Real) > XI Encontro Nacional da Tabanca Grande > 16 de abril de 2016 > O nosso homem do PIFAS, o Garcez Costa, ex-fur mil... Os outros dois representantes do PIFAS, com "morança" na Tabanca Grande, Silvério Dias e João Paulo Dinis, não estão estão inscritos no XIV Encontro Nacional, Monte Real, 25 de maio de 2019...  O Garcez ainda não sabe se pode vir...O João Paulo Dinis não vem. Do Silv´rio Dias (e da "senhora tenente" não tenho notícias,,,

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Mais 10 camaradas e amigos, com "morança" na Tabanca Grande, que felizmente estão vivos, mas que infelizmente não poderão estar connosco em Monte Real, no dia 25 de maio, sábado... Registe-se com agrado e apreço o seguinte: tiveram a gentileza de responder ao nosso convite... 

Entretanto, temos um novo prazo para inscrições dos "retardatários": dia 15,  4ª feira, até às 24h00... Temos, até ao dia 10, sexta-feira, 94 inscrições...


1. Luís de Sousa, 4 de maio de 2019, 14h46

Olá, muito obrigado pelo contacto e respectivo convite.

Estou, de facto, (ainda) vivo mas não conseguirei de certeza me deslocar a Monte Real como seria o meu desejo.

Para todos desejo uma belíssima jornada.
Luis de Sousa
2. Tony Sacavém [Garcez Costa], 4 de maio de 2009, 16h23

Ainda não sei da minha presença, com o  fim de semana agendado antecipadamente mas que poderá não ser cumprido. Aproveito oportunidade de te remeter endereço electrónico do José Manuel Barroso (sobrinho de Mário Soares/Maria Barroso) e que foi o tal 'que fechou as portas do Pifas em 1974'. Se lhe fizeres o convite é capaz de comparecer [...]

Abraços,

3. Mário Santos, 4 de maio de 2019, 16h32

Meus caros amigos e antigos camaradas da Guiné.

A minha actual residência ( Loulé, Algarve) impossibilita-me de estar atempadamente presente como seria meu desejo.

Sou um assíduo, frequentador dos convívios da Tabanca da Linha, onde ainda não falhei um único encontro da Tertúlia desde que me fiz membro em 2017...

Desejo-vos a todos uma alegre, saudável e feliz confraternização.
Saudações especiais aos meus antigos camaradas FAP.


Tudo de bom, e espero ainda um dia vir a poder estar convosco.

Grande abraço, Mário Santos

4.  Jorge Coutinho, 4 de maio de 2019, 17h11

Amigos

Mais uma vez quero agradecer o convite, mas ainda não vai dar... Já tive de recusar o Encontro organizado pela 1ª. Compnhia do 4610, pois tenho uns dias a seguir uma deslocação grande, e não me convém fazer desvios nessa altura.

Um abraço para todos, e bom convívio!!!
Jorge Coutinho

5. Manuel Coelho, sábado, 4/05/2019, 18h02



Mantenho-me por cá e os meus dados não sofreram alterações. Não vou ao convívio.
Um  abraço para todos, Manuel Coelho

6. Valdemar Queiroz, 4 de maio de 2019, 18h03

Luis, a  minha resposta:

Estou vivo, gostaria de ir mas não vou.

Não vou por que nesse mesmo dia, também, a minha CART 2479 / CART 11, faz o seu encontro/almoço anual.

Este nosso evento é sempre feito no último sábado do mês de Maio e, desta vez, o encontro vai ser nas Caldas da Rainha, seguindo para a Tornada, com almoço no Restaurante 'O Cortiço' e espero ter a habitual pachorra do Abílio Duarte de fazer o favor de ser o 112 para me levar e trazer do 'anofelino tratamento'..

Mas, por problemas de saúde não iria ao grande encontro da nossa Tabanca Grande, em Monte Real , que é o grande encontro/convívio da rapaziada que esteve na guerra na Guiné.

Abraços e saúde da boa pra todos, Valdemar Queiroz

7. Manuel  Vaz, sábado, 4/05/2019, 21:29



Amigo Luís Graça:

Estou a responder, logo estou vivo, mas não estou cá nessa altura. Um abraço,  Manuel Vaz

8 José Manuel Alves, 5/5/2019, 11h03

Obrigado pela comunicação.
Gostaria de estar presente, mas não posso;
Que tudo corra bem

Um abraço a todos, J.M.Alves

9. Mario S. de Oliveira,5/5/2019, 10h06

Tal como o "defunto, antes de o ser" (palavras de um defunto antes de o ser)...ainda mexe! Abraço camarada Luis Graça. Já há tempos...e ainda bem que dá noticias. Assim, quando terminar "Bissaulonia", comuni

10. Paulo Salgado, sexta, 10/05/2019 à(s) 19:20
Meus caros camaradas,

Não sou um "habitué" nos encontros da Tabanca Grande - do que me penitencio. Infelizmente, tem calhado em momentos de afazeres domésticos ou familiares ou mesmo profissionais...apesar de aposentado. Direis que não programo convenientemente...

Desta feita, outro encontros - da minha companhia e dos professores - curso de 1962-1964.

Um abraço e boas recordações, Paulo Salgado

II. Em relação ao XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real, dia 25 de maio, sábado, vamos continuar a receber inscrições até quarta-feira, dia 15, às 24h00...  

Recorde-se que a inscrição são 35 "balázios", com direito a:

Entradas + Almoço + Lanche ajantarado : Para as criancinhas, até aos 12 anos são só 18 "morteiradas"...

Para quiser ficar alojado  no Palace Hotel Monte Real (4 estrelas ) com pequeno-almoço incluído: Single: 50,00€ | Duplo: 60,00€

Inscrições a cargo de:

Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos): email:carlos.vinhal@gmail.com | telemóvel: 916 032 220

Guiné 61/74 - P19773: Os nossos seres, saberes e lazeres (324): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Mais um registo de férias inesquecíveis, um espantoso celeiro medieval, a policromia bonacheirona de uma casa de chá, o pretexto era comprar ameixas e uns confeitos, a seguir a trupe encaminhou-se para Oxford, o intento era visitar os monumentos mais iconográficos, ter um cheirinho dos colégios, não deixando de visitar o Museu de Oxford, dotado de um acervo riquíssimo, como adiante se verá.
Há uma rivalidade entre Oxford e Cambridge, os alunos arrufam-se pelo prestígio histórico destas duas instituições multisseculares. Se perguntarem ao viandante, ele acha que Cambridge possui uma atmosfera colegial mais coesa, acresce que a cidade possui um dos mais belos templos religiosos de todo o mundo, The King's Chapel, mas Oxford espraia-se, convidativa, por aldeias de uma beleza espantosa também, e daí o viandante sentir-se muito bem nestes dois meios universitários e de forte atração turística.

Um abraço do
Mário


No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (4)

Beja Santos

O novo dia de férias começa pela visita, nas imediações de Faringdon, ao celeiro denominado Great Coxwell Barn, fez parte de uma quinta monástica, Beaulieu Abbey, data do início do século XIV, é um trabalho espantoso de carpintaria, um silo-fortaleza, talvez para proteger dos roubos ou das fortes intempéries. Os monges não viviam aqui, era um formidável depósito de cereais, sempre guardado. Foi considerado pelo artista William Morris, génio do movimento Arts and Crafts, que morava perto, em Kelmscott, onde o viandante dias depois baterá à porta, tão belo como uma catedral, muito digno e sem ostentação, marca de água da arte de construção do tempo para infraestruturas da logística.
É bom que se contextualize a origem desta construção prodigiosa. O rei João, o famoso João Sem-Terra, deu aos monges cistercienses, em 1203, uma grande propriedade para uma nova abadia; esta deslocou-se para Beaulieu, mas Faringdon e Coxwell ganharam importância na economia abacial. O telhado é uma construção impressionante, veja-se o enquadramento das réguas de madeira, com pesos e contrapesos, só foi preciso restaurar a construção, sem tirar nem pôr na dinâmica dos equilíbrios. As portas do celeiro são um acréscimo do século XVIII, muito provavelmente para dar acesso a viaturas mais largas. As reparações de fundo datam do século XIX. Hoje o edifício é tutelado pela prestigiada National Trust, que salvaguarda o património do mais alto valor nacional. Que beleza! A título de curiosidade, junta-se uma fotografia referente a um casamento, os noivos ingleses capricham por escolher para casamentos civis lugares um tanto insólitos, caso de minas, mansões e pequenos palácios, solares de todas as dimensões.



Fotografia retirada do site do fotógrafo James Fear.

Regressou-se a Buscot House, melhor dito à sua casa de chá para adquirir muito boa fruta e confeitaria. Foi a ocasião propícia para captar dois detalhes da policromia de tão bela casa. Ora vejam.



Quem está no condado de Oxford tem obrigatoriamente, que vir à cidade estudantil, já importante na Idade Média, o que atrai sempre o viandante e por isso ele arrasta a companha para visitas detalhadas: é a famosa Bodleian Library, a Radcliffe Camera, a Igreja de Santa Maria, o Teatro Sheldonian, as ruas que vêm do passado, o impressionante museu, o Ashmolean, e muito mais. Tudo devagar, para muito saborear.


Carfax Tower, com a sua célebre cabine telefónica bem perto, na junção de várias ruas, é um ponto de encontro, alguns escritores utilizaram o local nas suas prosas, há aqui muita azáfama, é uma artéria iconográfica.



Ao fundo, o Sheldonian Theatre, o viandante tem gratas lembranças da música de câmara que já aqui ouviu, no lado direito temos um museu das ciências, notável pelo seu acervo patrimonial. Há quem venha a Oxford para contemplar estes esplêndidos edifícios e visitar colégios que dão pelo nome de Trinity College, New College Chapel, Lincoln College, The Queen’s College, Merton College, mas há muito mais. O Sheldonian Theatre é obra do célebre arquiteto Christopher Wren.




A cidade universitária iniciou-se no reinado de Henrique II, e depois foi um rodopio de colégios patrocinados pela família real e gente abonada: University College é de 1249 mas Merton College foi fundada em 1264. Vamos agora até The Bodlein Library, um dos monumentos mais sumptuosos da cidade, veja-se a elegância desta torre, ponto cimeiro de um harmonioso pátio interior.



Aqui se interrompe a visita, o viandante embasbaca-se sempre com estes tetos de gótico flamejante, parecem palmeiras a baloiçar, aqui já veio vezes sem conta e nunca é demais, há sempre pormenores a descobrir. É o que, logo a seguir, se pretende mostrar a quem nos acompanha nesta viagem.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 4 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19744: Os nossos seres, saberes e lazeres (322): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19770: Os nossos seres, saberes e lazeres (323): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte V: Ppequim, 1 de setembro de 1980: visita de uma delegação militar portuguesa

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19772: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande (16): Felizmente, estou vivo; infelizmente, não poderei ir a Monte Real, no dia 25 ( José Saúde / J. F. Estrela Soares)

1. Mensagem de José Saúde, com data de ontem, às 12h56 (*)

[ex-fur mil op esp/ranger, CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu,1973/74; jornalista e escritor, vive em Bela; tem 150 referências no nosso bogue; autor da série "Memórias do Gabu]

Caro Luís Graça,

Por motivos que adiante mencionarei, declaro que este ano, com imensa pena minha, não irei estar presente no nosso convívio anual em Monte Real.

Acontece que irei estar em Monte Real mas no fim-de-semana seguinte, sábado 1 de junho, onde o pessoal do meu curso de Operações Especiais/Ranger, 1º de 1973, voltará a reunir-se para um almoço de confraternização.

Estes encontros concentram normalmente um elevado número de presenças e a rapaziada lá vai escalpelizando as memórias dos tempos passados em Penude, Lamego, numa especialidade pela qual ainda hoje nutrimos imenso respeito.

Bom convívio e um grande abraço para ti, Luís Graça. Para o ano lá estaremos se a vida nos permitir.

Zé Saúde


2. Mensagem de Fernando José Estrela Soares,terça, 7/05, 03:01


[senta-se à sombra do nosso poilão, sob o lugar nº 786: foi comandante da açoriana CCAÇ 2445 (Cacine, Cameconde e Có, 1968/70); freuquenta a Tababanca da Linha; é cor inf ref; vive em Algés]

Caro Camarada e Amigo Luis Graça:

Acuso a recepção do presente email que agradeço.

Infelizmente e , contrariamente aos meus desejos e até ao que tinha previsto , vejo-me impossibilitado de poder comparecer ao almoço/convívio , porquanto desloco-me no dia 21Maio para os Açores onde tenho família proxima ,nomeadamente um neto.

Desejo que a Reunião decorra o melhor possíveç, com a dignidade e camaradagem que lhe é peculiar , a exemplo dos anos transactos !

A todos envio um abraço

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19765: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande (15): Mais camaradas e amigos/as que nos honram com a sua presença em Monte Real no dia 25, sábado: António Sampaio e Maria Clara (Matosinhos); António Joaquim Alves e Maria Celeste (Alenquer); Carlos Pinheiro (Torres Novas); Jorge Araújo e Maria João (Almada); Jorge Pinto e Ana (Sintra); Juvenal Amado (Amadora); Manuel Joaquim e José Manuel S. Cunté (Lisboa); e Paulo Santiago (Águeda)

Guiné 61/74 - P19771: Notas de leitura (1176): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O momento da partida é referência obrigatória seja num romance seja na literatura memorial da guerra, é a representação da separação de dois mundos, para cá fica o mundo construído, urdido e sonhado, para lá a terra incógnita, o prognóstico é reservado. As praças vão acomodadas em porão, de um modo geral é a sua primeira viagem, muitas tonturas e vómitos, um grande transe pelo que os espera em África. Há pouco que fazer, umas simulações em caso de naufrágio, é tudo encarado como paródia. Do quarto para o quinto dia, e já se viu muita linha do horizonte, muda a temperatura, emerge um calor de estufa e súbito avistam-se uns tufos para onde a popa do paquete se encaminha, ainda não se sabe mas está próxima a demarcação entre o canal do Geba e o Atlântico, avizinha-se um barco que irá comboiar aquele paquete carregado de homens. Sobre tudo isto que se chorou, que se solução, que se engoliu na gare marítima, aqueles dias desarranjados no desalinho da expetativa, muito está escrito, insista-se.
Deu-se a primazia a um texto muito terno de Álamo Oliveira, ele veio da Terceira, na amurada, enquanto tudo apita para a partida, ele rememora a ilha e, enfim, resigna-se à sua condição de ser o João, o 127.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (5)

Beja Santos

“Estou quase a abalar.
Minha alma está em brasa.
Aqui na minha casa
tudo ficou a chorar.
Têm pena de me deixar,
porque vou p’rá pancadaria
Ficam com pouca alegria
durante toda a ausência,
mas com calma e paciência,
hei de voltar qualquer dia.

Nas vésperas da abalada,
Fartei-me de viajar.
E, às dez e tal, a desfilar,
com a farda camuflada
a malta toda arrebentada
por causa da noite perdida,
e com um desgosto em seguida
não se fartava de cismar:
nós vamos para o Ultramar,
está na hora da partida.

Para o barco todos entraram,
de Companhia em Companhia.
Começou logo a gritaria
quando às famílias se abraçaram.
Foi a última vez que se beijaram
durante dois anos malditos.
Por isso, deram tantos gritos
com grande pena e paixão.
E ai que grande aflição:
o barco deu três apitos.

E quando o barco desatracou,
ouviram-se gritos e ais
a chorarem pelos mais
Pouco foi o que se aguentou:
toda a gente se declarou
com pena da família querida.
Foi uma coisa comovida.
Quando o Niassa apitou,
toda a gente nos acenou,
para fazer a despedida.”

São inúmeros os testemunhos da hora do embarque, inevitáveis os lenços brancos, as lágrimas e os abraços. Escolhe-se, como prosa acompanhante para os versos de Santos Andrade um trecho belíssimo de Álamo Oliveira, açoriano da ilha Terceira, em “Até Hoje (Memória de Cão)”, conheceu a sua primeira edição em 1987, com sucessivas reedições.
O alter-ego de Álamo Oliveira é João que embarca no Uíge com destino à Guiné:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amurada do Uíge, esforça-se por distinguir os corpos que enformam aquela pequena multidão que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril.
O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço. Com os olhos perdidos sobre os telhados de Lisboa, João procura ignorar essa multidão que grita uivante a tragédia de ser povo e português.
Era pela ilha que João se deixava escorregar, a memória atada a todos os tempos, lugares, pessoas, sonhos intemporais.

Ilha redonda ou pão de milho, hóstia desconsagrada de franja ruída, suas gentes voltadas para o mar – o Deus do pão e da aventura e também do medo e da saudade. João vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passara a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas, ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, faias do Norte, quase bedum de esperma, queijo. Os vizinhos, iguais na vida e na morte, alimentados pelos mesmos mistérios oriundos de Deus e do Diabo, amanheciam no cerrado, anoiteciam no cerrado. Tudo simples como vida de cão.

João metido nos alvaroses de cotim, os suspensórios cruzados para manter a segurança, passava agora por esse tempo de longevidade facilmente mensurável, ao chocalhar do navio ancorado. Lá estava a infância, marco tombado pelo tempo, o rosto virado para cima, esgar de enforcado no último pensamento. Andou descalço. Descalço e limpo. Limpo e de remendos no cu, nos joelhos – fatalidade dos pobres envergonhados de serem pobres e não andarem de pé (…) ’Cento e vinte e sete!, o nosso capitão chama-te.’ A memória partida, o horror do nome em número, um vago 127 pendurado ao pescoço na chapa picotada pelo diâmetro a quebrar em caso de morte e poder, enfim ter direito ao nome. ‘O nosso capitão chama-te!’, os olhos que se abrem num despertar de insónias. 

Lisboa é já uma mancha sem telhados. O sol mais fresco pela brisa. O mar, manso que nem um são-bernardo, tece ondas pequeninas como Penélope em seu tapete líquido de azul e infinito. E João, perdido naquele barco enorme, no meio de mil duzentos e cinquenta e três homens, lá ia a caminho da guerra, como se fosse voluntário dela. Destino: Guiné”.

 Álamo Oliveira


Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo inicia o seu capítulo “Gare marítima de Alcântara” com um poema clássico do arranque da literatura portuguesa, de João Zorro, seguramente alusivo a esses embarques que levavam gente nova para a guerra:

“Em Lisboa, sobre o mar
barcas novas mandei lavrar,
ai mia senhor velida!

Em Lisboa, sobre o ler
barcas novas mandei fazer,
ai mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ai mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ai mia senhor velida!”

O barco já está a caminho da Guiné, viagem de cinco dias, é o que Santos Andrade a seguir nos vai contar.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 3 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19739: Notas de leitura (1174): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19770: Os nossos seres, saberes e lazeres (323): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte V: Ppequim, 1 de setembro de 1980: visita de uma delegação militar portuguesa


1. Mais um excerto do diário (inédito) do nosso camarada António [José] Graça de Abreu, de quando viveu na China: recorde-se que ele foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Viveu em Pequim e Xangai entre 1977 e 1983. Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] (*)



Pequim, 1 de Setembro de 1980

Esteve cá uma delegação de militares portugueses, composta por oito representantes dos três ramos das forças armadas. Visitaram a China, com idas a Qingdao, Xangai, Chengdu, Kunming e Macau. 


Tiveram a sorte de conhecer uns tantos aquartelamentos modelo, a convite do Exército Popular chinês. Foi uma oportunidade rara de entrarem um pouco por dentro da complexa e tão mal conhecida máquina militar chinesa. Entre os nossos, vieram o brigadeiro Rui Espadinha, director da Oficina de Material Aeronáutico de Alverca, o coronel Mingot de Almeida, director do departamento de Indústria de Defesa Militar do Estado Maior do Exército e um tenente-coronel da Fábrica Militar de Braço de Prata. Trouxeram alguns dossiers e catálogos sobre eventual venda de armamento e tecnologia militar made in Portugal. 

Tenho sérias dúvidas de que se consiga vender uma só munição aos chineses que estão entre os maiores fabricantes de armas do mundo. Este convite terá talvez mais a ver com a intenção chinesa de conhecer o que se faz em Portugal e de serem eles a vender-nos armas, e não a comprar.

Fui ao Hotel Pequim almoçar com os nossos militares. Conversa entusiasmante e inteligente, até meteu as Guerras do Ultramar, em que todos participámos, eu como alferes na Guiné- Bissau, 1972/74.

Fiquei sentado ao lado do general Conceição e Silva, da Força Aérea, director do Instituto de Defesa Nacional e chefe da delegação. Cirandando em volta da nossa mesa redonda, com nove lugares, as empregadas desdobravam-se em cuidados para nos servir. Traziam travessas de comida fragrante e colorida, rodopiavam, enchiam delicadamente os copos. 

Pedi uma garrafa de Maotai, a aguardente de sorgo mais famosa da China que do alto dos seus 52 graus de álcool inebria e faz flutuar qualquer simples mortal. Alguns dos militares lusitanos deglutiam em pequenos sorvos o Maotai e bebiam com os olhos as moçoilas chinesas, meio entrapadas numas rígidas fardetas brancas. 

Disse ao general Conceição e Silva. “Ah, estas mulheres são lindas! Bem vestidinhas, eram uma maravilha!” O general que não estava interessado em roupas e adereços, respondeu de imediato: “Bem vestidinhas?... Bem despidinhas, meu caro amigo!...”

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19769: Parabéns a você (1616): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Guiné, 1970/72) e Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)


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Nota do editor

Último poste da série: 5 de Maio de 2019 >  Guiné 61/74 - P19745: Parabéns a você (1615): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19768: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXIX: a despedida do Gabu, em 25/2/1968: manga de ronco!


Foto nº 1


Foto nº 2


 Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


 Foto nº 6


Foto nº 7A

Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 8A

Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > Comando e  CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > 25 de fevereiro de 1968 > Festa de despedida

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde. (*)


CTIG/Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

T045 – A DESPEDIDA DE NOVA LAMEGO, A PRINCESA DO GABU FESTAS, BATUQUES, MUITOS RONCOS, MUITA DANÇA, MUITOS COPOS.
DESPEDIDA DAS TROPAS EM ‘25FEV68’ - O BATALHÃO DE CAÇADORES 1933




I - Introdução do tema:

Continuação da série de Temas para Postes, relativos à chegada do Batalhão à Guiné, as viagens para Gabu pelo Rio Geba acima, as colunas militares por estrada, as festas de despedida no Gabu com batuques e roncos à mistura, o regresso pelo mesmo caminho, Bambadinca, até Bissau, antes de partir novamente para o novo destino, São Domingos, Rio Cacheu acima, sem fotos.

Segunda parte da série de 5 Postes para reviver e contar estas passagens inesquecíveis.

Após cinco meses de actividade no Sector L3, no Leste da Guiné, o maior de todos , chegou ao fim a nossa missão, entregámos o comando ao BCAÇ 2835 e partimos rumo a Bissau e depois para São Domingos onde permanecemos 16 meses

A população da região – chão Fula – reuniu-se a proporcionou um grande espectáculo para agradecer e despedir-se da tropa com quem tiveram de lidar durante pouco tempo, apenas uns 5 meses, muito pouco, pois muita saudade ficou.

No dia seguinte já estávamos a caminho de Bissau, coluna por estrada, passando por Bafatá, Fá, e finalmente Bambadinca.

Depois foi o transbordo para as barcaças e lá fomos rio abaixo, pelo Geba sempre perigoso até Bissau, sem qualquer ocorrência digna de registo, apenas já vínhamos mais velhos, deixamos de ser periquitos, passamos a impor o respeito.


II - Legendas das fotos:



F01 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo.  Pode ver-se a maioria são mulheres e bajudas ‘Fulas’, com alguma tropa branca e preta.  Foram momentos vibrantes que se viveram, e nunca se esqueceram, e já passaram 50 anos.  Eu tentei fazer o melhor, além de me integrar em alguns batuques e danças, também tirei algumas fotos para mais tarde recordar.  Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F02 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo. Continuação das legendas anteriores. Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F03 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo.  Continuação das legendas anteriores.  Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.


F04 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo.  Continuação das legendas anteriores. Foto tirada por detrás da festa.  Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F05 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo.  Continuação das legendas anteriores.  Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F06 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo.  Continuação das legendas anteriores.  À noite já chegaram homens grandes com os seus roncos, para agradecer às tropas a sua presença, e desejar boa sorte noutro lugar.  Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F07 – Festa de despedida ao Comando e CCS do BCAÇ1933, com direito a ‘batuque’, danças e ‘roncos’ proporcionada pela população de Gabu – Nova Lamego, no dia e noite anterior à partida e saída para outra localidade, mas contudo a festa durou o dia todo. Continuação das legendas anteriores.  À noite já chegaram homens grandes com os seus roncos, para agradecer às tropas a sua presença, e desejar boa sorte noutro lugar.  Pode ver-se aqui de camisa branca o alferes Carvalheira, da secção de material – ferrugem. Foto captada em Nova Lamego – Gabu – no dia 25 de Fevereiro de 1968.

F08 – Na minha última noite passada em NL – Gabu – foi uma despedida sentida, para trás vão ficar bons amigos, como era o caso do alferes Morteiros – o Azevedo – e tantos outros que por lá ficaram e nunca mais os vi, e perdi-lhes o rasto.  Nesta foto, a última, já noite, sentados na porta do Clube do Gabu, os últimos copos.  Eu, sentado no chão, O Morteiros a acariciar a minha careca, um furriel na ponta direita, e dois soldados, todos por lá ficaram. Viria a encontrar um ou outro em Bissau esporadicamente. Foto captada em Nova Lamego – Gabu – na noite, do dia 25 de Fevereiro de 1968.

Direitos de Autor:

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM.
Chefe do Conselho Administrativo do BCAÇ 1933/RI15/Tomar,

CTIG/Guiné de 21 Set 67 a 04Ago69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos,».

Acabadas de legendar, hoje,

Em, 2019-03-19

Virgílio Teixeira
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19743: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXVIII: O quartel do Depósito de Adidos em Brá, em julho de 1969

Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

Com a devida vénia ao fotógrafo Alfredo Cunha


1. Por proposta de José Marcelino Martins e concordância do autor, aqui deixamos este extenso, mas interessante artigo de opinião sobre as Comemorações do 25 de Abril de autoria de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71).

Originalmente publicado no seu facebook em 5 partes, por ser um pouco longo, optamos por publicar tudo de uma só vez aqui no Blogue.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 1

1 de Julho de 1972. De Lisboa para Bissau, um meio aéreo da FAP transportou três capitães, a saber: Jorge Golias e Matos Gomes, oficiais do QP, e José Manuel Barroso, miliciano, este com destino ao Gabinete de Informação e Comunicação do ComChefe.

Golias viria a publicar um livro, no qual afirma que os três estabeleceram uma interessante conversa sobre a condição política e militar que afectava o ultramar português. Chegados a Bissau comprometeram-se a reunir e alargar as conversas a novos camaradas, o que terá acontecido. O autor reivindica para o mencionado encontro a génese do golpe militar.
Sobre as razões apressadamente reunidas para justificação da insubordinação militar: democracia, desenvolvimento e descolonização não fez qualquer referência.

Naquela época - 1972 - a situação militar nos territórios ultramarinos podia caracterizar-se assim: controlada na Guiné e em Moçambique; dominada em Angola.

Naquele tempo, a Guiné era um pequeno território com cerca de trezentos mil habitantes, de escassos recursos e infraestruturas, onde se vivia uma economia de guerra. A política "Por Uma Guiné Melhor" parecia dar resultado e as massas apoiavam o regime. A guerra movida pelo IN era descontrolada e tanto afectava as NT como a população condicionada às minas, aos assaltos e às flagelações. Eram os portugueses que lhes prestavam o auxílio possível sempre que afectadas. Angola e Moçambique, pelo contrário, apresentavam notáveis índices de desenvolvimento e crescimento económico e social, entre 8 e 10% na costa oriental, e 20% em Angola. Eram sociedades em rápido processo de educação e modernização, tanto de equipamentos públicos como empresariais, e altamente exportadoras.

A metrópole registava índices de crescimento económico de cerca de 7%, e crescia em todos os domínios, salientando-se a melhoria dos salários, que então permitiam maior desafogo, melhoria na habitação - quando se desenvolveram grandes urbanizações em Oeiras, Amadora, Sintra, Loures, Almada, Barreiro, para só falar na cintura de Lisboa. Havia muita capacidade de absorção de mão-de-obra, nos serviços, na indústria e na função pública. Os automóveis particulares aumentavam exponencialmente, as casas para além de electrodomésticos, passavam a contar com televisão e gira-discos. O Algarve, embora mal servido de acessos, já era destino de férias de muitos nacionais. O fim-de-semana à inglesa generalizara-se, e começava o modelo americano, com folga de dois dias. Politicamente assistira-se à regularização dos esquemas da segurança-social, CGA/MSE e CNP.
O País vivia em equilíbrio económico-financeiro, com elevadas reservas em ouro e divisas, e sem dívidas ao estrangeiro.

Entretanto dava-se a revolução sexual, e a luta da mulher pela igualdade de direitos, acompanhava a luta de salário igual para trabalho igual. A mulher saía de casa e dirigia-se para o trabalho em condições idênticas às dos homens. Vulgarizava-se o uso da mini-saia, das roupas cingidas e dos generosos decotes. Na praia também era adoptado o biquini, e a mulher prosseguia o caminho da independência pela sedução. As jovens mulheres de alguns capitães também se enquadravam nesta onda, e eram frequentes as intrigas que afectavam os casais, ou os maridos mobilizados em África.

Em 1973, com o recrudescimento da guerra na Guiné, a que os poderes político e militar não deram resposta adequada, a situação sofreu perturbações. Os militares exigiam mais equipamentos e mais contingentes, a que Caetano não respondia, nem evitava esse mal-estar institucional, chegando ao ponto de propor a entrega do poder aos militares, que rejeitaram. Apesar de sobre a questão ultramarina, Espanha França e Alemanha darem apoios políticos a Portugal, e os EUA revelarem maior compreensão às teses portuguesas, o Governo mostrava-se tolhido. Outras nações, pontualmente, também se associavam com apoios.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 2

Em 26 de Dezembro de 1971 Spínola despediu-se de um contingente militar que regressou à metrópole. Discursou como habitualmente, e referiu que os "traidores" estavam na retaguarda. Não os mencionou, mas é fácil inferir que se dirigia a elementos do Governo Central. Já andava às turras, e a partir de 1973 parecia querer tudo, para combater o que antes parecia ter controlado, o IN.

Entre aquelas datas deu bastas provas de querer vir a ser Presidente da República. Desdobrava-se em entrevistas e fomentava reportagens. Parecia um senhor da guerra, um líder incontestado. No entanto, tenho dele amargas recordações, como as que deram ocasião ao assassínio de três majores, um alferes e uma praça. Foi muita e grave a ingenuidade do General. Não ficou por aí. Ambicioso, deixou-se seduzir pela ideia de invadir Conakry, o que seria natural num acto de guerra contra o IN. O auto-proposto Comandante e criador da ideia, é que não soube combater a outra ideia de promover um golpe de estado noutro país, o que não teria sido mau de todo, se não tivesse havido tantas fugas de informação que ditaram o falhanço quase total da operação invasora. Eram ambos muito ambiciosos e descuraram aspectos essenciais. Queriam a glória de engalanar a História de Portugal, mas os resultados foram fracos e poderiam ter sido piores, conforme o testemunho de um importante e destacado participante (não o cito por estar vivo). Mas o ComChefe ainda deu mais provas de desnorte, fechando, reabrindo e voltando a fechar aquartelamentos; permitindo novos aquartelamentos com a água à distância (v.g. Guilege e Bajocunda); mandando tapar as valas de protecção a Pirada com o argumento de que aquela era uma região pacífica e controlada, embora poucos dias após tenha ocorrido um milagre a favor das NT em resultado da invasão da localidade durante uma projecção de cinema.

Spínola também não foi capaz de controlar o erário, pela criação de equipas de auditoria para disciplina da quadrícula, promoção ao bem-estar físico e moral da tropa. Foi um ver se-te-avias, com os maus resultados que se adivinham, embora os relatórios, de baixo para cima, mencionassem sempre o elevado moral do pessoal. Mentira!
O General também parecia estar a jogar em dois campos: com o prestígio internacional, que o obrigava a mostrar aceitação pelo "politicamente correcto", e com a desculpa da insuficiência de meios para a defesa daquele torrão pátrio. Foi quando, com os outros comandantes-chefes, rejeitou a tomada do poder proposta por Caetano.

Com o aparecimento dos Strela - mísseis terra-ar que provocaram alguns estragos iniciais, acentuou-se o sentimento de perturbação e o desejo de muitos militares pelo abandono do território. A guerra era feita em grande parte pelos milicianos, e os capitães em geral procuravam a segurança dos aquartelamentos. Havia dignas excepções, mas eram isso mesmo excepções. Com isso, alastrava a falta de liderança sobre o pessoal, com a consequente quebra da disciplina. S.Exa. também elegia os favoritos e os trastes, por vezes com critérios de pouca compreensão e aceitação. Na transição de 73 para 74, face à acumulação de erros que pareciam dar vantagem ao IN, já o MFA levava adiantada a sua vocação de protesto, e avançava à luz-desarmada com a sua campanha de abandono dos territórios africanos.

Todos sabiam. Sabia a PIDE, os altos comandos militares e o Governo.
Ninguém, nem os mais moralistas, se empenharam na defesa de quantos se bateram pela Pátria, metropolitanos e africanos, dando do País a imagem de cobardia e traição que desqualifica os povos. Entretanto, formara-se no exterior, o Partido Socialista, que em 25 de Abril teria 20 a 30 militantes, conforme refere Rui Mateus na sua obra "Contos Proibidos".
Pouco antes, PCP e PS assinaram um pacto de cooperação contra o Governo e por um novo regime pretensamente democrático.

Em resultado da luta dos movimentos de libertação contra o designado colonialismo português empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da URSS, os anos decorridos, as diferentes circunstâncias que afectavam os mobilizados, e a intensificação da luta na Guiné, dariam lugar ao chamado Movimento dos Capitães, que derrubaria a ditadura do Estado Novo. Esse movimento "pacífico", sem oposição e sem objectivos políticos claros, alegadamente provocado por razões de natureza corporativa - o governo derrogara a lei relativa à progressão dos capitães milicianos, e pela derrota psicológica dos militares portugueses que levaram ao abandono dos territórios, daria lugar a um período de enorme perturbação e ruína, quer em termos materiais, quer em termos morais e anímicos, de que o País ainda sofre, com consequências impossíveis de avaliar, como tentarei mostrar numa terceira parte. A glória da miséria estava para chegar.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 3

A guerra de África que assolou os territórios portugueses a partir de 1961, ocorreu em plena "guerra fria", período dominado pela rivalidade das duas grandes potências, ambas interessadas na expansão e domínio das regiões sob as suas influências. Os EUA contavam desde a 2.ª GGM com parte ocidental da Europa, a mais desenvolvida, com algumas regiões asiáticas, a Oceânia e as américas, com excepção da pequena Cuba. Por seu lado, a Rússia dominava os países da Europa oriental sob a URSS, como se todos esses povos comungassem do mesmo entusiasmo. Ainda estendia influências noutras regiões asiáticas, e, enquanto beneficiária estratégica da Conferência de Bandung, mostrava-se a maior colaboradora dos novos países afro-asiáticos que saíram dos diferentes regimes coloniais. Acolhia e formava os jovens dos movimentos emancipalistas, que também instruía e municiava. A África era a sua principal área de influência, e território de conhecidas reservas minerais.

Em 1973 formou-se o Partido Socialista, que logo foi acolhido pela Internacional Socialista, uma organização de países de índole social-democrática, em geral desenvolvidos e instruídos. Entre eles, avultava a Suécia, onde Olof Palme mostrava toda a vontade de acabar com os regimes coloniais, e exercia grandes pressões para que os territórios naquela condição colonial, ascendessem às respectivas independências. Quer isto dizer, que um teórico esforçava-se para libertar o mundo "colonizado", sem dele mostrar ideias coerentes sobre as multidões que se propunha libertar, nem as circunstâncias em que essas regiões viviam e conviviam. Os territórios de influência anglófona, francófona, italiana e espanhola, logo consubstanciaram pelo abandono o slogan dos "novos ventos da história", que deram origem a novos países ditos progressistas, porque acolhiam-se à área de influência russa. O PS de então tinha beneficiado da generosidade de Palme, Brandt e Janitschek - 1.º Ministro austríaco, quer em meios políticos, quer em apoios financeiros, que se prolongaram por vários anos. Donde, politicamente, os socialistas portugueses não poderiam afastar-se com notoriedade, e ficavam vinculados à ideia da descolonização, sem que essa fosse ou não debatida como a melhor solução para africanos e portugueses. Por esta ocasião, cerca de metade do contingente militar que combatia os movimentos era proveniente dos recrutamentos locais, o que também poderia ter sido entendido como uma demonstração de vontade desses militares para continuarem portugueses. Condição que verifiquei mais de vinte anos depois, quando fiz deslocações ao interior da Guiné e de Moçambique, onde era abordado calorosamente por indivíduos da minha geração, que ainda se reivindicavam de portugueses, e exibiam cartões de identificação civis e militares. Portanto, os socialistas em geral, nacionais ou estrangeiros, estavam vinculados a uma ideia teórico-política sobre a descolonização, também ela representativa de interesses próprios de sobrevivência. De qualquer modo, era intolerável a intromissão desses países nas orientações internas de outros, para mais membros comuns da EFTA.

Na metrópole, entretanto, dava-se continuidade ao projecto de Sines, que pretendi consagrar a "zona do escudo" face aos eventuais boicotes externos, mas tinha virtude de desenvolver o País com vista à auto-sustentação económica. Foi um projecto muito arrojado, que ficou a meio caminho dos objectivos, e poderia ter estimulado a novos desenvolvimentos.

Entretanto, Spínola regressara à metrópole em nítido conflito com o Governo, e deixou no ar, fruto da sua ambição, a ideia de que poderia apadrinhar o movimento dos capitães.
Enquanto isso, os principais órgãos de comunicação-social davam à luz muitas notícias de sinais contrários à política prosseguida, muitas vezes com origem em fontes ou jornalistas comprometidos, que a censura não detectava ou não podia neutralizar. Também os estudantes aumentavam o banzé sobre o destino próximo da mobilização para a guerra, que efectivamente já durava em demasia. Havia, pois, uma predisposição para uma mudança, pese embora que não se sabia para quê.
A par disso, a população branca nas colónias aumentava significativamente, porque os desmobilizados tinham encontrado ali excelentes oportunidades profissionais e para organização das suas vidas. Muito longe iam os tempos coloniais, apesar da estratificação social característica de povos nos inícios do contacto com a civilização. Crescia o número dos casais mistos, e consequentemente dos filhos mulatos. Também a Administração e empresas empregavam muitos funcionários e gestores, em ambiente de grande harmonia. Dizia-se de Angola, que seria um novo Brasil.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 4

Em 1974 Caetano estava abúlico e o Governo tinha a noção de estar a prazo. Digamos que fazia a gestão corrente, desejoso de ser substituído.
"Em Maio de 73 promoveu-se na Guiné a primeira tomada de posição colectiva de grande notoriedade. Foi a propósito do chamado Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa de antigos oficiais milicianos, apoiada pelo Governo", que na Guiné teve resposta negativa. Em 17 de Agosto, em Bissau, o alargado grupo de capitães antes referido, reuniu para análise de um carta a enviar às altas instâncias políticas e militares. Era em tom duro, e foi amenizada em virtude de várias opiniões, o que gerou a intervenção de Golias, que disse ter sido tão suavizada, que parecia uma carta de amor, e acrescentou, que também deviam ter discutido a guerra, que só poderia ser resolvida com o fim do regime, o que se conseguiria com uma revolução. Estava dado o mote. A carta foi enviada e assinada por cerca de cinquenta oficiais, mas as autoridades não reagiram, melhor, promoveram os capitães mais antigos. Quando Bettencourt Rodrigues tomou posse, já o Movimento dos Capitães estava lançado. Conforme descreve Golias, em finais de 73, Matos Gomes regressou de férias na metrópole e carregava uma pilha de livros "Por Uma Democracia Anticapitalista", de Sottomayor Cardia, que revendeu a preço de custo. Foi esse livro que pôs muitos capitães em contacto com a política, uma espécie de manual escolar que lhes permitiu sentirem-se preparados para a revolução. Golias, ingenuamente, ainda acrescenta o estímulo da leitura de "Textos Políticos", de Cabral, e evidencia uma frase inspiradora: "os nossos povos fazem a distinção entre o governo colonial fascista e o povo de Portugal: não lutamos contra o povo português". E fez fé! Também os portugueses nunca lutaram contra o povo espanhol, guerrearam contra o exército e a cavalaria de Espanha.

Quando Spínola publicou "Portugal e o Futuro", embora estribado pelas teses caetanistas do estado federativo, suscitou grande controvérsia entre os "duros do regime", os intelectuais abertos à liberalização das relações com o ultramar, os chamados europeístas, e a imensidão de patetas que gostam de pronunciar-se sobre o que não sabem, e não têm outros interesses específicos.
Por essa ocasião, e pelo indisfarçável andar da carruagem, Kissinger referiu que a tendência comunista para alcançar o poder em Portugal, seria um castigo bastante para a leviandade dos portugueses, mas preocupado com o resto da Europa do sul, onde os comunistas tinham atingido posições relevantes, deslocou-se a Moscovo para breve conversação sobre a partilha do mundo.

Entretanto, na metrópole já o "movimento" reunia muitas dezenas de oficiais, ingénuos e desconhecedores de como se governa uma nação, pelo que trago à lembrança um episódio pífio de um batalhão que se recusara a embarcar para Guiné, e seguira fraccionado em diferentes levas. Em Fevereiro de 74, o comandante desse batalhão urdia o seu plano para capturar o ComChefe e o Estado-Maior. Note-se, porém, que na política os serviços de informação e contra-informação desempenham importantes papéis, e em Março de 74 chegou a constar o boato de um plano do PAIGC para invadir a Guiné, coisa palerma, tendo em conta que eles seriam 5 a 6 mil guerrilheiros, e só a tropa de recrutamento local, que integrava companhias, pelotões e pelotões de milícias andariam pelos 20 a 25 mil elementos, incluindo um bom número de tropa especial. Houve portanto, um trabalho de desmoralização e desqualificação em relação ao inimigo, que fez exorbitar o desespero da tropa, e o desprezo pelos portugueses de cor.
Apesar de tudo, e decorrente de passagens narradas, Portugal talvez vivesse o período histórico de maior esplendor, pois crescia económica e financeiramente, modernizava-se em equipamentos e infraestruturas, e não tinha dívida externa, salvo a que respeitou a um sindicato bancário que financiava a obra de Cahora Bassa.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 5

Em 1974 ainda não havia MFA nem Programa. Segundo Sanches Osório, o Movimento dos Capitães tinha características exclusivamente profissionais: "eram apresentadas reivindicações que assentavam nas remunerações e que afectavam o prestígio dos oficiais do quadro permanente". Nunca tive oportunidade de conhecer as razões que afectavam o prestígio desses oficiais. Talvez as intrigas familiares que surgiam no meio castrense, e de que fui testemunha.

Em Fevereiro o Gen. Spínola publicou "Portugal e o Futuro". O marcelismo criou ilusões em sectores da oposição do que resultaram cisões. Era uma expectativa de primavera política, mas que esteve sempre condicionada aos duros do regime. Quer dizer, Caetano não foi capaz de provocar, não digo a ruptura, mas uma nova orientação no horizonte nacional, muito menos no que à guerra dizia respeito. Fez brandas reformas sociais, de que se destacou a regulamentação da Previdência e das relações laborais; e imprimiu algum dinamismo a projectos de industrialização e desenvolvimento. Mas os ultras do regime estavam interessados em persistir e torciam o nariz às mudanças. O livro de Spínola abordava com riqueza de argumentos o tema ultramarino, de vincada inspiração de Caetano, mas a corrosão da sua influência e a situação quente que se vivia, não lhe terá permitido apoiar o General, que por sua vez, confiava demais nos seus alegados méritos, e terá dado à estampa com o objectivo de alcandorar-se como favorito à presidência da República. Apesar de relevantes obras em curso tanto na metrópole como no ultramar, e do progresso económico e social constatados, o Governo foi incapaz de se impor, quer pela moralização do sistema, quer pela determinação dos militares em acabarem com a guerra, ainda que satisfeitas algumas exigências, se para tal fosse necessário. O azar, é que os militares já estavam decididos pela derrota consubstanciada pelo abandono de terras e gentes em África. Depois houve o episódio da apresentação da "brigada do reumático", a que faltaram os dois mais prestigiados generais, respectivamente Chefe e Vice-Chefe do EMFA. Nova e importante derrota para o regime, e impulso precioso para os capitães.

E chegou o dia, mais condizente com um filme de ficção, do que com a realidade revolucionária e perigosa que alguns militares gostam de fanfarronar.
Até o MFA pareceu apanhado de surpresa, dada a falta de confiança evidenciada pelos que ficaram a aguardar os acontecimentos, mas, principalmente, pela ausência de um Programa definitivo sobre o método e os objectivos do golpe, o que só viria a concretizar-se meses mais tarde na sequência de diversas alterações ao texto revolucionário. "As ligações políticas do Movimento dos Capitães foram realizadas pelo Maj. Melo Antunes o qual estava estreitamente ligado, através da CDE, ao Dr José Tengarrinha. Tudo leva a crer, assim, que o tom que foi dado às manifestações populares de apoio ao Movimento foi orientado pelo MDP/CDE, com conhecimento de Melo Antunes", cfr Sanches Osório.
Segundo o mesmo autor "o MFA estaria apenas unido em dois objectivos comuns: derrubar o Governo, e caminhar para o progresso e a justiça social. A forma de alcançar esse progresso e essa justiça social é que não foi analisada na altura". O MFA até ao dia D sabia que os portugueses não queriam para o ultramar uma política de terra queimada. Mas logo surgiram os adeptos do abandono imediato do ultramar, prova flagrante de que não tinham a mínima percepção, nem dos interesses envolvidos, nem das obrigações decorrentes da soberania, muito menos das condições que permitiam ao País viver com desafogo para o desenvolvimento que se registava. Apenas reproduziam "slogans" característicos da luta anti-colonial, o equivalente a terem bebido do IN a justificação para o seu acto revolucionário. Tal pobreza daria de imediato lugar a conflitos internos e à confusão no desenrolar da actividade revolucionária, tantas vezes criminosa.

Soares, líder de um mini-partido apoiado por centrais sindicais suecas e por uma fundação alemã, chegou em júbilo e apoiado por milhares ainda por converter. Cunhal chegaria a seguir, mais formal e recebido por Soares, que parecia conceder-lhe o lugar de primeiro combatente contra o velho regime. Todavia não se mostraram cooperantes na construção democrática por um estado digno e sadio. Ambos viriam a integrar o 1.º Governo Provisório, um grosseiro equívoco para um País pertencente à NATO. Depois, apesar da contenção da organização comunista que aproveitou as oportunidades, o processo terá sido condicionado pelo acordo entre Kissinguer e Brejnev sobre o destino português, estabelecido em Moscovo algum tempo antes.

Fontes:
"O Equívoco do 25 de Abril", de Sanches Osório;
"Revolução e contra-Revolução em Portugal (1974-1975)", de Armando Cerqueira;
"Contos Proibidos", de Rui Mateus;
"A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", de Jorge S. Golias, para além de reflexões minhas e de outras leituras
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19707: (In)citações (129): Feliz e santa Páscoa, com um abraço transatântico do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73)

Guiné 61/74 - P19766: (De)Caras (129): O reencontro de dois velhos amigos, na ilha de São Miguel: Arsénio Puim, ex-capelão militar, açoriano, e Lino Bicari, ex-padre missionário, italiano...


Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel > O reencontro de dois amigos da Guiné: o ex-missionário italiano (e ex-guerrilheiro do PAIGC) Lino Bicari (, casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alentejo) e o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do TO da Guiné, em maio de 1971, e hoje enfermeiro reformado.

Foto (e legenda): © Arsénio Puim  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Arsénio Puim, Bambadinca, c. 1970/71
Foto: © Gualberto Magno  Passos Marques (2009).
 Todos os direitos reservados.
1. Mensagem, datada de 6 do corrente, do nosso camarada Arsénio Puim:

[ açoriano, da Ilha de São Jorge, ex-alf mil capelão; foi expulso do seu Batalhão, o BART 2917, e do CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um  alferes capelão", de que se publicaram doze postes]


Caro Luís Graça

Envio em anexo um pequeno texto relativo a uma fotografia de dois amigos da Guiné (dos quais conheces um) que mando noutro email, para publicação no Blogue, se assim o entenderdes.

Um abraço amigo, Arsénio Puim


2. O reencontro de uma amizade originada na Guiné 

por Arsénio Puim

Na semana passada tive o prazer de receber, nesta bela ilha açoriana de São Miguel, o meu grande amigo Lino Bicari e sua esposa, que residem hoje no Alentejo. (*)

Conhecemo-nos na Guiné em 1970 – era eu capelão militar em Bambadinca e ele era padre missionário em Bafatá – numa altura em que o capelão chefe, pe. Gamboa [, Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo, ] promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá.

Mais tarde voltei duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão.

Desde então, há 48 anos, nunca mais nos tínhamos visto e comunicámos apenas em duas ocasiões, por email.

Na sua simplicidade, Lino Bicari é sem dúvida um homem de altos ideais humanos e dum currículo muito rico, corajoso e autêntico. Desenvolveu uma acção profunda e muito válida ao serviço do povo da Guiné (e não só) concretamente na área do ensino e educação e da saúde, quer enquanto missionário quer, depois, sob a vigência do Partido e do Governo do PAIGC. 

Uma história de vida rara!

Mando uma fotografia do reencontro destes dois «jovens», ambos com 83 anos de idade, que, se assim o entenderem, poderão publicar no Blogue. (**)

Arsénio Puim
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

(...) Lino Bicari é um ex-padre, italiano, missionário do PIME que no início dos anos 70 descobriu outra vocação, levado pelo romantismo revolucionário de Che Guevara e Camilo Torres (também ele ex-padre). Nascido em 1936, aos 23 anos, Lino Bicaria aderiu à guerrilha do PAIGC e é o único estrangeiro que tem o estatuto de combatente da liberdade da Pátria. Viveu 23 anos na Guiné-Bissau. Radicou-se em Lisboa em 1990. Dele disse o jornalista João Paulo Guerra, no jornal Público, de 24 de setembro de 1990:

(...) Não é um homem desiludido, mas um homem amargo quer hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)

 Fui saber mais, socorrendo-se da entrevista com ele, feita pelo João Paulo Guerra ("Crónica dos feitos da Guiné: A última missão do padre Lino").

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros Ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau [, em 24 de setembro de 1973,], Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

(**) Último poste da série > 17 de abril de  2019 > Guiné 61/74 - P19687: (De)Caras (104): Capitão de Infantaria Francisco Meireles, cmdt da CCAÇ 508, morto em Ponta Varela, Xime, em 3/6/1965 - V ( e última) Parte (Jorge Araújo)