sábado, 19 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20257: Os nossos seres, saberes e lazeres (360): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Chegado à ilha de São Miguel em outubro de 1967, vivendo em Ponta Delgada em quarto alugado, aquele aspirante a oficial miliciano dispunha dos fins de semana por sua conta e risco.
Começou por visitar o Museu Carlos Machado, ao tempo museográfica e museologicamente medíocre, não deixava expandir a riqueza do seu acervo. E deu-lhe para visitar num sábado a Caldeira das Sete Cidades. Largado na povoação ainda não eram oito da manhã, o motorista informou-o que a camioneta de regresso só seria ao fim da tarde, não havia problema, iria coscuvilhar o que pudesse e levava um livro debaixo do braço, para dar trégua aos pezinhos. O busílis foi descobrir que faltavam casas de pasto ou restaurantes, depois de muitas peripécias indicaram-lhe uma taberna, houve que negociar uns ovos com chouriço e batata frita, o casqueiro era um regalo, tudo culminou com rodelas de ananás e um cafezinho de saco e uma fatura económica.
Não deu para esquecer, o termo de comparação é impossível, as Sete Cidades são hoje um poiso turístico onde, mesmo ao lado do viandante que comia um belo arroz de lapas um grupo de japonesas bem maduras, à cautela, davam gritinhos com uma caldeirada de cabrito. Isto só para dizer que tudo mudou nos Açores, o local português que mais beneficiou com o 25 de Abril, e bem merecia.

Um abraço do
Mário


A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2)

Beja Santos

Que bem jantou o viandante, arroz de lapas com abrótea, foi num self-service onde se desdobravam pratos de carne e peixe, preferiu repetir a iguaria, andava aquoso deste manjar sem rival. E apressou-se a saber a ementa do dia seguinte, arrebitou-lhe a orelha com o boca negra e o chicharro, as lentilhas, a batata-doce, o que vale é que vai palmear uns quilómetros, está em crer que a lagoa se estende por mais de quatro quilómetros, vai dividir por partes, tem o tempo do seu lado. Regalado com a vida, de estômago apaziguado, atira-se à estrada. Vai começar pelo túnel de descarga da lagoa, inaugurado em 1937, veio resolver problemas de inundação, o que interessa é que nada desfeia o meio circundante, parece que está lá instalado desde tempos imemoriais.


A lagoa é bela de alto a baixo, tanto a beijar a terra fértil como no Pico das Éguas, a maior elevação da zona, acima dos 800 metros. O viandante tem a manhã toda por sua conta, nos baixios procura o contraste entre o plaino e o frondoso, o mundo florestal em consórcio com o mundo aquático, lá em cima a caldeira ganha outras tonalidades, acresce a instabilidade do tempo, como adiante se verá.






Já se palmilhou uma boa parte da ilha, dá-se agora descanso aos pés, com esta azália tão frondosa em frente. Bisbilhota-se o que diz um folheto sobre a região da Lagoa das Sete Cidades: “Este cenário idílico situa-se na cratera vulcânica das Sete Cidades e é o maior reservatório natural de água doce da superfície dos Açores. Esta lagoa encontra-se dividida por um canal pouco profundo onde existe uma ponte que separa de um lado as águas de tom verde e do outro as de tom azul”. E sugere-se ao leitor a visita a outras lagoas, já se falou nas Empadadas, mas há também a de Pau Pique e de Santiago, do Canário e a Rasa. O viandante não quer sair daqui, se é idílico é para gozar até ao tutano, que a lembrança se embrenhe, não se volatize.


Março, por definição, não é mês da exuberância das florescências, nada de dálias, ou verónica ou begónias ou lobélia, tem esperança de encontrar um vastíssimo mundo de cor no parque Terra Nostra, noutra etapa. Eis senão quando se depara esta hortênsia branca a rebentar, para delícia dos olhos, e por estranha associação o viandante recordou uma magnífica viagem à ilha de São Jorge, em 1991, fora convidado para ali palestrar, imagine-se dentro de um festival de música, num teatro da Calheta, elegante e íntimo, ofereceram-lhe um passeio até ao antigo concelho do Topo, se já vira milhares e milhares de hortênsias ou hidrângeas, estas, todas elas eram de um azul mineral, rebrilhavam como aço, e quando se chega ao ponto ermo do Topo aquele tapete espraia-se, estava uma tarde muito clara e alguém chamou a atenção para um ponto lá ao fundo, a Ilha Terceira, tudo inesquecível, tudo guardado no coração.


Já se almoçou, anda-se alvorotado com tão magnífico peixe, o cozido fica para as Furnas, toca de esmoer tão boa refeição, prossigamos com este renque de plátanos, daqui a uns anos estarão em esplendor, entra-se num caminho num outro ponto da lagoa, tudo beleza em redor, as águas não estão quietas, parecem dialogar com a paisagem, foi uma tarde inesquecível e quando se regressou com toda a Natureza nos bolsos, e com os olhos lavados, vieram nuvens imprevistas e houve aquele momento que pareceu tirado das imagens religiosas muito em voga nos anos 1970, a luz a sair das trevas, como a sugerir que Deus não dorme e que Nele deve estar toda a nossa esperança, transformada em desvelo pelo humano, numa palavra de amor. E com pensamentos positivos se encerra o dia, amanhã toma-se um transporte público a caminho de Ponta Delgada. Outros regalos à espera.






(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20233: Os nossos seres, saberes e lazeres (359): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20256: Parabéns a você (1697): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de Outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20251: Parabéns a você (1695): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20255: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (5): edição, revista e aumentada, Letra C


Foto nº 1



Foto nº 2

Guiné > Região de Baftá > Bafatá > Vista aérea > Foto nº 1 > Em primeiro plano, o rio Geba e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962). Do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu), à direita, e Bambadinca-Xime, à esquerda. 

Do lado direito,  em baixo, pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, [, assalanado a amarelo, na foto nº 2], que representava os interesses da CUF - Companhia União Fabril, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui, pela "princesa do Geba", Bafatá,  passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... com as meninas do Bataclã.



Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Continuação da publicação do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande (*), de A a Z, em construção, com o contributo de todos os amigos e camaradas da Guiné que se sentam aqui à sombra do nosso poilão. 

Entradas da letra C:


Ca bai - Não vou (crioulo)

Ca misti - Não quero (crioulo)

Ca pudi - Não posso (crioulo)

Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão) (crioulo)

Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)

Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)

Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro

Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro



Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau', 'O Velho', 'O Bispo'; origem: de caco, monóculo; mais Baldé, apelido frequente entre os fulas); o historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa, com a devida vénia...) 

Cães Grandes - Oficiais superiores (gíria)

Chabéu – Dendê (fruto); prato típico da Guiné-Bissau, de peixe ou carne, feito com óleo de palma (etimologia: do crioulo "tche bém") 

Cal - Calibre 

Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção); termo criado na Tabanca Grande 

Cambar - Atravessar um rio (crioulo) 

Candongas - Transporte colectivo privado, usado hoje no interior da Guiné Bissau 

Canhão s/r - Canhão Sem Recuo 

Canhota - A espingarda automática G3 

CAOP - Comando de Agrupamento Operacional 

CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1 

Cap - Capitão 


Cap Grad - Capitão graduado

Cap Art - Capitão de Artilharia

Cap Cav - Capitão de Cavalaria

Cap Eng - Capitão de Engenharia

Cap Inf - Capitão de Infantaria

Cap Mil - Capitão Miliciano 


Cap QEO - Capitão do Quadro Especial de Oficiais

Cap QP - Capitão do Quadro Permanente 


Cap SAM - Capitão do Serviço de Administração Militar

Capim - (i) Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; (ii) sinónimo de dinheiro ou arame, bago,cacau,carcanhol, caroço, chapa, cheta,graveto, guita, grana, massa, milho, papel, pasta, pilim, prata (gíria)

Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC (gíria) 


CAR - Condutor auto-rodas

Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero (gíria) 

CART - Companhia de Artilharia 


Casa - Estabelecimento comercial; antes da guerra, havia "casas" por todo o território, pertencentes a metropolitanos, cabo-verdianos e sírio-libaneses; dedicava-se ao comércio por grosso (compra de produtos locais, virados para a exportação, nomeadamente oleaginosas)  e ao comércio a retalho.

Casa Gouveia - A principal empresa colonial da Guiné, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX; republicano, Silva Gouveia será o representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915; em 1927, a Casa Gouveia é adquirida pela CUF.


Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão) 

Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea (calão) 

Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis) (calão)

CCAÇ - Companhia de Caçadores 

CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas 

CCAV - Companhia de Cavalaria 

CCM - Curso de Capitães Milicianos 

CCmds - Companhia de Comandos 


CCE - Companhia de Caçadores Especiais

CCP - Companhia de Caçadores Paraquedistas 

CCS - Companhia de Comando e Serviços 


CEMA - Chefe do Estado Maior da Armada


CEME - Chefe do Estado Maior do Exército 

CEMFA - Chefe do Estado Maior da Força Aérea

CEMGFA - Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas 

Cento e vinte - Morteiro pesado, de 120 mm 

Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (PAIGC)


CF - Companhia de Fuzileiros 

CFA - Franco da "Communauté Francophone Africaine", moeda actual da Guiné-Bissau (1 Euro = 655,597 CFA) 

CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (Marinha) 

Chão - Território étnico (vg, chão fula) 

CHASE - Em formação, atrás de (FAP) 


Checa - Militar novato, termo usado em Moçambique; equivalente a pira, periquito (Guiné), ou maçarico (Angola) 


Cheret - Chefia de Reconhecimento de Transmissões

Checklist - Livro de notas do piloto (FAP)

Chipmunk - Avião de treino, de dois lugares, monomotor, de origem canadiana (FAP)

Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas) (crioulo)

Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga (crioulo)



Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto (1921-2011), a fundador e líder histórica do MNF – Movimento Nacional Feminino 

[Foto à esquerda: Em visita a Nhala, © António Murta, 2015]


CIM - Centro de Instrução Militar

CIM Bolama - Centro de Instrução Militar de Bolama



CIM Contuboel - Centro de Instrução Militar de Contuboel

CIOE - Centro de Instrução de Operações Especiais


Cipaio - Elemento nativo da polícia

Circuncisão - Vd. Fanado. Havia/há a circuncisão masculina e a feminina. Vd. MGF. 

CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria (Tavira)

CM - Cabo de Manobra (Marinha) 

Cmd - Comando 

Cmdt - Comandante 

COE - Curso de Operações Especiais 

COM - Curso de Oficiais Milicianos 

Com-Chefe - Comando-Chefe 

Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo) 

COP - Comando Operacional 

COP7 - Comando Operacional 7 

Cor - Coronel 

Corpinho - Sutiã, soutien (crioulo) 

Corpo di bó - Como estás ? (crioulo)


Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada (gíria) 

Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (PAIGC) (gíria)

CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar 

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa 

CSM - Curso de Sargentos Milicianos 

CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné 

CUF - Companhia União Fabril (representada, na Guiné,  pela Casa Gouveia) 

Cupilão - Pilão, bairro popular de Bissau, atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilom, Cupelão... 


Cussas - Coisas (crioulo)

CVP - Cruz Vermelha Portugal
___________

Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Deixa-se para mais tarde a descrição da atividade operacional do BCAV 490. Procurou-se o recurso ao diário de Armor Pires Mota, "Tarrafo" e ao livro "A Guerra da Guiné" de Hélio Felgas, é uma tentativa de juntar um depoimento pessoal de quem faz parte da história do BCAV 490 ouvindo a exposição do Tenente-Coronel Hélio Felgas, onde se insinua que a área que esteve sob o seu comando, Bula, melhorou muito, não escondendo, nos entretantos, o alastramento da guerra.
Quanto mais se procura decifrar a lógica do pensamento estratégico que presidia a esta atividade operacional esbarra-se com a falta de documentos. E aqui se deixa uma reflexão. É inteiramente inviável escrever uma história da guerra da Guiné sem proceder ao estudo de toda a documentação de caráter estratégico do Brigadeiro Louro de Sousa e de Arnaldo Schulz, é incompreensível passar-se em silêncio todo este vasto período e cair de repente na era Spínola, com a inflação de documentos, imagens, filmes, depoimentos, livros de toda a espécie. Aliás, as obras repetem-se umas às outras, de quando em quando citam-se os boletins das Forças Armadas e os livros impressos, trabalhar sai do pelo, há muito a procurar nos arquivos dos ministérios da Defesa e do Ultramar, para já não falar no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (28)

Beja Santos

“Comemos mancarra assada,
o sofrimento começou.
Na 487 este mês
foi triste o que se passou.

Em Jumbembem se encontrava
o Geraldes e o Ananias,
trabalhando, todos os dias,
Abílio também lá estava.
O Almorindo passava
muitos dias sem comer nada.
A comida não era carregada
por não se poder transportar
e para que a fome melhor se aguentar,
comemos mancarra assada.

Em Cuntima a alinhar
o amigo António José,
de viatura ou a pé
para a estrada patrulhar.
Os bandidos os iam esperar
e, às vezes, até se lutou.
Muitas árvores se tirou,
pelos malvados derrubadas
e andando grandes caminhadas
o sofrimento começou.

A 31 de Maio abalámos
para a Farim regressar
mas houve grande azar:
3 emboscadas apanhámos
algumas vezes nos levantámos,
mas atacaram muita vez.
Muito fogo aqui se fez
esgotando quase as munições
e sofreram-se muitas aflições
durante este mês.

O Aníbal Joaquim foi ferido
com estilhaços de granada.
O 26, bom camarada,
numa mão foi atingido;
o 320 ficou estendido,
porque um tiro na cabeça levou;
o Sarg. Revez na viatura o levou
com o 33 a socorrer,
mas depois de tanto sofrer
foi triste o que se passou.”

********************

Para esta evocação do bardo faz-se recurso ao que anda a fazer Armor Pires Mota, em bandas próximas, mas nem sempre coincidentes. No tal dia 31 de maio, depois de ter estado em Sitató, a 27, passou por Cuntima e escreve: “Um dia igual a tantos outros dias iguais. Deixada Cuntima, só os macacos, gritando de ramo em ramo, bordejavam a estrada. Às três horas da tarde, chegámos a Jumbembem, à serração”.

Sem neste momento se fazer recurso à cronologia das operações, consulta vantajosa para em certos momentos entender as dores de alma do nosso bardo, importa dizer que o diário intitulado “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, ajuda-nos a entender o que ele experienciou fundamentalmente em Jumbembem, desde maio de 1964 até junho de 1965. Nesta povoação observa as lides, vê chegar muita gente que tinha sido profundamente atingida pela subversão, aldeias queimadas, fugas, ameaças, divisões familiares na escolha do lado em que se fica. Armor vai estando atento à vida em Jumbembem, chegou a época das chuvas, há gente que vai à caça e de repente chega-se a um local altamente problemático na época, Canjambari.

Estamos em 9 de outubro, e ele escreve:
“A estrada está atravancada de árvores e bissilões de grande porte que chegam a cruzar-se uns sobre os outros.
A nossa missão era: levantamento de abatises.
Antes de chegarmos às árvores, apeámos, prevendo já a táctica e as manhas do inimigo.
Ele deixou-nos entrar na zona de morte.
Um estrondo ecoou, seguido de rajadas e estrondos sucessivos.
6.50.
Uma chuva de granadas começou a rebentar rente a nós, lançadas por autênticos suicidas, atordoando-nos. E os estilhaços voavam. Uma chuva densa de balas feria o espaço, partia ramos, furava o capim verde, tilintava ao bater nas viaturas. E nós, uns deitados, outros de joelhos, varríamos tudo à nossa frente. Corria sangue.
O sol tinha encorado por detrás do arvoredo na distância, agarrado a um céu azul. (…) E começamos a atacar as árvores. Uns fendiam-nas com serrões. Outros cravavam-lhes os machados e as catanas.
Volteavam os ferros no ar, curvavam-se e rasgavam os troncos arrogantes. E, cortados, o Unimog arrastava-os com o guincho para dentro do mato.
Os terroristas continuaram a açoitar-nos com rajadas espaçadas e uma estrangalhou um carregador da Madsen. O apontador deu um salto para trás. A morte rondou-lhe a escassos centímetros.
E nova emboscada nos lançou por terra. A gente, ao lançar-se por terra, não vê onde cai, se é dura ou mole, ou está armadilhada. E caí todo no meio de um formigueiro enorme. Quando dei por tal, já as formigas me tinham feito o cerco cerrado e entravam a ferrar-me, sem dó nem piedade, subiam-me as costas, os pés e as mãos. Elas quase me iam comendo. E o meu jogo era este: coçava-me, rebolava-me, matava às mãos cheias, esmagando-as entre o corpo e a farda, esmagando-as entre os dedos, fazia fogo. Coçava-me, rebolava-me…
O sol tinha subido no azul. Quase a pique, faiscava, estilhaçava-se todo no cano da arma, enviava-me lâminas de fogo para a fronte, para os olhos”.

Copa de Bissilão 
Imagem retirada do blogue Intelectuais Balantas na Diáspora, com a devida vénia

Mas Armor também nos fala dos dias de festa, da praga dos mosquitos, de incêndios, das operações a Canjambari, Fanbantã, e não perde oportunidade de nos falar do apoio dado em Cuntima aos doentes, vinham em grande número do Senegal:
“Cuntima é sentinela avançada, junto à fronteira norte.
Nos princípios de 1964 estava quase abandonada, porque as populações, que viviam à volta, intimidadas, passaram para o Senegal. Mas hoje estão a regressar, sem entraves da parte dos gendarmes, aldeias inteiras, já de olhos postos na próxima sementeira da mancarra e preparando os arados para o amanho das bolanhas.
Confiam na tropa. E esta confiança foi-se consolidando à medida que a zona ia sendo limpa. E um factor decisivo que concorreu extraordinariamente para o regresso das populações ao seu chão, ao ‘chão de Português’, foi a psicossocial desenvolvida pelo Dr. José Lourenço, espírito dinâmico, aberto e comunicativo. A princípio, todos os dias, apareciam no posto de socorros dezenas e dezenas de refugiados, cheios de mazelas. Hoje, formando bicha, não faltam doentes do Senegal, sobretudo da cidade de Koldá, e até alguns da Gâmbia. (…) Muitas mulheres, sobretudo mulheres de gendarmes e padres mouros, uns dias antes do dia previsto, vêm esperar a sua hora em casa de alguma pessoa amiga, ali em Cuntima, onde, depois, é chamado o médico para assistir ao parto sem que regateie um minuto sequer, seja a que hora for. E, então, as mães, contentes e, numa prova de gratidão, põem aos filhos o nome do médico, que cedo começam a deturpar. Há alguns que ficam a chamar-se José Doutor. Há mesmo uma miúda que tem o nome de Maria Lissa, deturpação de Maria Luísa, filha do Dr. José Lourenço. (…) Ainda não há muito tempo que o comandante dos guardas da fronteira, no fim da visita de inspecção ao posto de Sare Wale, enviou um recado ao capitão a pedir-lhe que fosse à fronteira. Este não se fez rogado e lá partiu com o médico e mais alguns homens, mas todos desarmados. Convidaram-no a vir sentar-se à sombra de um mangueiro do ‘Chão Português’ e ali trocaram longos minutos de conversa. Que estava imensamente reconhecido, assim como o seu governo, pela assistência médica que a tropa prestava a muitos senegaleses”.

Há páginas deste diário em Sulucó, Fanbantã, mas Jumbembem é verdadeiramente o ponto de irradiação, ele despede-se de nós a 6 de junho, é o seu penúltimo depoimento, fala do renascimento da tabanca de Lamel. Há crianças que cantam canções portuguesas com “A Tia Anica do Loulé” ou “O Tiroliro”, Armor está feliz, pois a aldeia nova é uma realidade.

Voltemos a Hélio Felgas, estamos agora no segundo semestre de 1964, ele considera que as forças portuguesas começaram a assenhorear-se da situação na Guiné, condições que, a partir do princípio de 1965, estavam a permitir encarar o aspeto militar com justificado otimismo. Enquanto tal afirma não se esquece de dizer que tinha alastrado a presença terrorista em Badora e Cossé, entre Bambadinca e Bafatá, era clara intenção do PAIGC intervir na área dos Fulas. No seu livro, Felgas procura desmontar os alardes propagandísticos do PAIGC, as fantasiosas centenas e dezenas de mortos, por exemplo.

Entretanto, enquanto afirma ter havido uma diminuição da atividade do PAIGC, este apresenta-se em Canquelifá, mostrava atividade nas zonas do Oio, em Farim e Canhamina.
E escreve:
“A norte de Cacheu havia indícios de que o PAIGC procurava controlar a região de Canjambari, a leste de Farim, aproveitando a época das chuvas que impedia ou dificultava o trânsito local das viaturas militares.
Nas estradas do Oio, as emboscadas dos bandoleiros tinham locais quase certos. Entre Bissorã e Olossato, ocorriam em geral por alturas da ponte de Maqué, quase a meia distância das duas povoações.
Entre Mansoa e Bissorã uma grande parte tinha sido na área de Namedão, considerada ponto de passagem dos reabastecimentos vindos da ilha de Bissau para os acampamentos do PAIGC nas matas de Dando, Cambajo e Morés. Entre Binar e Bissorã, os bandoleiros tinham três troços preferidos, todos eles em zonas onde a luxuriante vegetação marginal quase invadia a estrada. Aliás, o perigo subsistia mesmo nos trechos sem vegetação, devido às minas que continuavam a ser largamente empregues. Por vezes, contando com o natural afrouxamento da atenção dos nossos soldados nestes trechos mais descobertos, os terroristas montavam neles emboscadas, chegando-lhes, para se esconderem, o capim, as árvores e os morros de bagabaga que bordam as estradas”.

Uma bem estranha acalmia… E mais adiante, na sua exposição, o Tenente-Coronel Hélio Felgas dá outras informações bem úteis para se entender o estado daquela região:
“Os documentos apreendidos nos acampamentos terroristas continuavam a fornecer indicações de certo modo úteis. Soube-se, por exemplo, que a ‘base’ principal da região 3, estava situada nas proximidades da tabanca de Morés e tinha como responsável-geral Osvaldo Máximo Vieira. Desta base principal dependiam mais de uma dúzia de outras bases das quais as mais importantes e conhecidas eram as de Cambajo, Biambi, Nafa, Iador, Bancolene, Maqué, Fajonquito, Bissancaja, Sarauol, Cabadjal, Sambuiá, Bricama, Sulucó. Em todas elas havia um responsável militar e um responsável político”.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20229: Notas de leitura (1225): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (27) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20253: Consultório militar do José Martins (49): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (5)

 
Conclusão da série de cinco postes com o trabalho do José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), dedicado aos Capelães Militares, com um enquadramento histórico, como só ele sabe fazer, fruto de muita pesquisa e paciência.

Desde já o nosso obrigado ao Zé Martins por mais esta preciosa colaboração que vem enriquecer o espólio deste Blogue.



____________

Nota do editor

Vd. postes de:

14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20239: Consultório militar do José Martins (45): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (1)

15 de Outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20242: Consultório militar do José Martins (46): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (2)

16 de Outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20244: Consultório militar do José Martins (47): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (3)
e
17 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20247: Consultório militar do José Martins (48): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (4)

Guiné 61/74 - P20252: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte X: Cabedu, Cantanhez


Guiné > Região de Tombali > Cabedu  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 > Desembarque em Cabedu. Na foto, a LMD 302.


Guiné > Região de Tombali > Cabedu  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 > Desembarque em Cabedu, a partir da LDM 302.


 Guiné > Região de Tombali > Cabedu  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 > Desembarque em Cabedu, a partir da LDM 302... Presuume que o rio seja o Cumbijã.


Guiné > Região de Tombali > Cabedu  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 >  Chegada ao destacamento de Cabedu.


Guiné > Região de Tombali > Cabedu   CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 >   Posto de vigia,  e rede de arame farpado com garrafas de cerveja vazias, penduradas, funcionando como sistema de alerta


Guiné > Região de Tombali > Cabedu >   CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 >   Posto de vigia, com, em primeiro plano, um cão pastor alemão, cujo dono era o capitão Costa Campos... (Não, era o Toby, de raça Boxer, que irá sobreviver aos ferimentos recebidos em combate, por estas bandas, no Cantanhez...)


Guiné > Região de Tombali > Cufar  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 >   Bolanha de Mato Farroba


Guiné > Região de Tombali > s/l  > CCAÇ 617 (1964/66) > c. 1965 / 1966 >    "Regresso de uma operação"... Veem-se os militares com capacete de aço e os milícias com Mauser...É possível que a foto seja de 1964, do início da comissão...

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cantanhez > Cabedu > 2008 > Restos (arqueológicos...) do antigo destacamento de Cabedu...

Foto (e legenda): © José Teixeira(2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do João Gabriel Sacôto Martins Fernandes: (i) ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66); (ii) trabalhou depois como Oficial de Circulação Aérea (OCA) na DGAC (Direção Geral de Aeronáutica Civil); (iii) foi piloto e comandante na TAP, tendo-se reformado em 1998.


Emblema da CCAÇ 617 / BCAÇ 619. 
Fonte: Cortesia  de  © Carlos Coutinho (2008)
O lema, em latim, quer  dizer...
 "movimenta-te, se não queres ser visto"
Mais dados biográficos: (iv) estudou no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF, hoje, ISEG): (v) andou no Liceu Camões em 1948 e antes no Liceu Gil Vicente; (vi) é natural de Lisboa; (vii) casado; (viii) tem página no Facebook (a que aderiu em julho de 2009, sendo seguido por mais de 8 dezenas de pessoas); (ix) é membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011; (x) tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue.

Neste poste mostramos algumas fotos que documentam a atividade operacional do alf mil João Sacôto e da sua companhia, nomeadamente na península do Cantanhez: Cabedu, Mato Farroba... 

Recorde-se  que a CCAÇ 617 / BCAÇ 619 esteve em Catió de 1 março de 1964 até 22 de setembro de 1965, altura em que assume a responsabilidade do subsector do Cachil, por troca com a CCAÇ 728.

Será rendida pela CCAÇ 1424, em 16 de janeiro de 1966. Regressa a Bissau, aguardando embarque para a metrópole.

 Não sabemos a data exata em que passou por Cabedu. Terá sido nesta altura que o Toby foi ferido em combate, no Cantanhez...


Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960)  >Escala 1/50 mil > Posição relativa de Cabedu, na península do Cantanhez, entre o rio Cumbijã e o rio Cacine.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19967: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte IX: O 'bu...rako' do Cachil (set 1965 / jan 1966)

Vd. postes anteriores:

16 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19684: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VIII: Catió, Destacamento de Ganjola

Vd. postes anteriores:

28 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19628: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VII: Catió e arredores: contactos com a população civil

20 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19604: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VI: Em Príame, a tabanca do João Bacar Jaló (1929 - 1971)

3 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19546: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte V: Catió, o quartel e a vida da tropa

28 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19539: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte IV: Catió: as primeiras impressões

17 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19502: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte III: O meu cão Toby, que fez comigo uma comissão no CTIG, e que será depois ferido em combate no Cantanhez

10 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19488: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte II: Chegada a 15/1/1964 e estadia em Bissau durante cerca de 2 meses

4 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19468: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte I: A partida no T/T Quanza, em 8/1/1964

Guiné 61/74 - P20251: Parabéns a você (1696): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20234: Parabéns a você (1694): Mário Ferreira de Oliveira, ex-1.º Cabo Condutor de Máquinas Reformado da Marinha (Guiné, 1961/63)

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20250: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (4): outras características socioculturais que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST




Para saber mais sobre este grave problema de saúde pública, a infeção por HIV/SIDA nos nossos países, vd o relatório, disponível desde abril de 2018, no sítio da CPLP: Epidemia da VIH nos Países de Língua Oficial Portuguesa – 4ª Edição




1. Reproduzem-se, com a devida vénia, e as necessárias adaptações (, incluindo fixação / revisão de texto),  mais alguns excertos de um importante relatório sobre a Guiné-Bissau, relativamente às "doenças sexualmente transmissíveis" (*), com destaque para o HIV / SIDA.

A fonte consultado é o relatório da CPLP sobre a Guiné-Bissau, e que corresponde ao capítulo 4 (da pag. 272 à pag. 337) do relatório final. A autora é a consultora brasileira Helena Lima. 

Para não sobrecarregar o poste, eliminaram-se alguns parágrafos bem como as citações e as referências bibliográficas. O texto original, em pdf, pode ser aqui, consultado:



Vd. Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]



2. Listagem de mais algumas características socioculturais do país e de comportamentos de risco da população, que facilitam a propagação do HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis:



(i) Sexualidade precoce:

A sexualidade precoce, antes dos 15 anos, é comum nas meninas da Guiné Bissau, cerca de 27% [,dados de 2010]. 
Cerca de 7,1% das meninas casaram-se com menos de 15 anos 
e 37,1% com menos de 18 anos. 

Dados de 2011 mencionam que 13% das meninas de 15 a 24 anos 
tiveram sua primeira relação sexual 
com um homem 10 anos mais velho que ela, 
sendo 38% deles já casados.

(ii) Contraceção: 

O baixo uso de preservativo pelas mulheres (3,2% em 2010) é compreendido à luz da desigualdade de género, sendo que o poder está do lado dos homens.


(iii) Dependência da mulher:

A dependência da mulher para sua sobrevivência, ou seja, em tudo, inclusive nas decisões sobre sua própria saúde, 
aliados ao medo do repúdio e divórcio 
ao se notificar o parceiro sobre o resultado positivo 
de um teste de HIV/SIDA, 
são fatores de aumento da vulnerabilidade feminina à infecção.


(iv) A poligamia:


É legitimada pela religião muçulmana:  por lei, o homem pode ter até 4 esposas, desde que possa sustentá-las. Também há a poligamia informal, incluindo pessoas de todos os credos e etnias, sem distinção. 

A percentagem de pessoas entre 15 e 49 anos que estão numa união poligâmica é de 44,0% entre as mulheres e 25,8% dos homens. 

Nos homens casados, durante o período de aleitamento materno das suas mulheres, procuraram parceiras ocasionais, comadres e/ou outras esposas legítimas.
 

(v) Permissividade sexual na sociedade balanta;

Existem, entre os balantas,  normas e práticas socioculturais 
que instigam a promiscuidade e liberdade sexual dos jovens. 
A prática cultural e sexual “Pnanhga” que consiste 
na entrega sexual de uma rapariga/mulher a outrem 
durante a sua hospedagem, 
é disso um exemplo.(...)

(vi) Gerontofilia:

 O fenómeno de gerontofilia e as suas consequências na promiscuidade sexual: sendo social e tradicionalmente aceitável o casamento entre gerações diferentes, essa prática aumenta os casos de infidelidade entre os envolvidos, sobretudo nas mulheres (que por norma são sempre bastante novas em relação aos maridos). 

Assim, a promiscuidade é bastante frequente nas famílias dos centros urbanos, chegando a ser também banalizada em certas tradições de grupos étnicos. Por exemplo, na etnia Beafada a infidelidade não é reprovada, mesmo que seja de uma mulher casada e, por consequência, caso tenha terminado em filho, consideram uma sorte para o marido legítimo da mulher.


(vii) Tio do noivo como deflorador da noiva, mantendo relação sexual com a mesma na noite de núpcias:

Essa prática é algumas vezes mencionada como realidade 
na etnia Balanta, porém não praticada na atualidade. 
É uma contradição que merece ser melhor estudada e compreendida, 
por ser uma prática que vulnerabiliza.



(viii) Circuncisão masculina:

Um aspecto que pode ser melhor explorado é a constatação que 79,9% dos homens entre 15-49 anos declaram ter sido circuncidados. Integrar as ações de saúde aproveitando esse momento – lugar – tempo em que o homem passa pela circuncisão pode ser estrategicamente interessante para auxiliar na promoção de saúde e aumento do autocuidado seguindo as referências de saúde ocidentais, aspectos quase negligenciados entre os homens da Guiné-Bissau.(...)

(ix) Planeamento familiar:

Em estudo recente (2014) foi demonstrado que mulheres 
em idade fértil 58,2% não conheciam um único método 
de prevenção à infecção pelo HIV/SIDA. 
O fato de não haver conteúdos sobre anticoncepção nem explicações sobre uso do preservativo no manual de formação dos agentes comunitários de saúde (2011) tem relação direta com esse fato. 


A taxa de contracepção em Guiné Bissau é estimada
 entre 10% e 14% (dados de 2015).

O planeamento  familiar é considerado “primo pobre” 
na implementação de uma política que permita 
às mulheres alguma liberdade de escolha 
de método contraceptivo adequada 
ao seu caso e às suas necessidades.


(x) Levirato:

Uma prática relacionada às modalidades de luto e tratamento de heranças e legados é o Levirato. Nesse sistema de casamento, o irmão do falecido é obrigado a casar com a esposa (viúva) do irmão falecido, tendo ele ou a viúva HIV/SIDA  ou não, sem que se mencione o assunto SIDA de modo explícito.


(xi) “Negação/ Medo" do HIV/SIDA: 

  A negação/medo faz com que a comunicação social seja truncada 
e os estigmas prevaleçam.
 “Como se” não houvesse impacto com a gravidez 
antes dos 15 anos, 
com a poliinfecção de mulheres e homens, 
com SIDA, blenorragia e outras DST.


(xii) Analfabetismo, infoexclusão:

A maioria da população com 15 anos ou mais é analfabeta e 60% das mulheres não são alfabetizadas. A alta taxa de analfabetismo dificulta todas as ações de prevenção, assistência e adesão aos tratamentos.

No país, há pouco acesso às ferramentas de comunicação social: o uso de computadores entre jovens de 15-24 anos é de 17,2% para os homens e 10,3% para as mulheres; o uso de internet segue a mesma proporção: homens 16,8% e mulheres 9,4%. Cerca de 30,5% dos homens ao menos uma vez por semana tem acesso à comunicação social impressa, radiofônica ou televisiva, e apenas 11,7 das mulheres.

(xiii) Economia informal ou paralela

As mulheres guineenses, que compõem 51,5% da população do país, estão no setor informal. Ou seja, com o trabalho e sem direitos laborais, a sua vulnerabilidade aumenta – ao precisar interromper o trabalho, não têm direito a licenças ou qualquer remuneração.


(xiv) Não há um único médico psiquiatra 

num país de 1,8 milhões de habitantes:

A ausência de profissionais de saúde mental no país é um fator extremamente importante, um ponto de vulnerabilidade programática que precisa ser cuidado o quanto antes. 

Em 2015 havia apenas um profissional, um enfermeiro com formação em psiquiatria, para todo o país.

(Continua)
______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST

4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20204: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (1): população e morbimortalidade; etnias, idiomas e religiões; doenças sexualmente transmissíveis