quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20468: Notas de leitura (1247): "A Medicina na Voz do Povo", 3ª edição, de Carlos Barreira da Costa, médico otorrino, do Porto

1. O nosso editor jubilado, Virgínio Briote, mandou-nos  esta "nota de leitura", de um livro,"A Medicina na Voz do Povo", e que vai já na 3ª edição,  podendo ser comprada "on line" no Sítio do Livro: o preço de capa é 22,00 €. (Na FNAC parece estar esgotado.)

O autor, Carlos Barreira da Costa, é médico otorrinolaringologista, vive e trabalha na cidade do Porto.
Neste livro,  "sugestivamente ilustrado" (por Fernando Vilhena de Mendonça), ele decidiu  compilar, "com o contributo de muitos colegas de profissão" (...) "trinta anos de histórias, crenças e dizeres ouvidos durante o exercício da sua prática da medicina".


A medicina na voz do povo : 30 anos a ouvir : histórias, crenças e dizeres contadas a um otorrino / Carlos Barreira da Costa ; il. Circulo Médico, Fernando Vilhena de Mendonça ; pref. Júlio Machado Vaz. - 1ª ed. - Queluz : Círculo Médico, 2007. - 142 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-95314-1-3

Mais sobre o autor, Carlos Barreira da Vosta: fez o curso de medicina em 1970; tirou a especialidade de otorrinolaringologia, em 1976, no Hospital de São João. Desde 1983,foi especialista do serviço de ORL do Instituto de Oncologia do Porto (IPOP), e diretor do respetivo serviço de 2003 a 2007. Já está reformado do SNS. Faz clínica privada.

"Resultado dos seus muitos anos já dedicados à medicina, o otorrinolaringologista  português Carlos Barreira da Costa reuniu neste livro as frases e comentários mais bizarros – desconcertantes, mesmo, em muitos casos – usadas pelos seus pacientes e pelos pacientes de outros colegas de profissão. Com esta recolha, ilustra-se o recurso a crenças, expressões e palavras da fala popular por quem, não dominando minimamente a terminologia técnica mais adequada, consegue assim dar conta das suas queixas e padecimentos." 

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/atualidades/montra/livros/a-medicina-na-voz-do-povo/144 [consultado em 18-12-2019]

2. Com a ajuda de várias páginas  da Net e nas redes sociais, compilámos, com a devida vénia, uma amostra destas expressões, ordenando-as apenas por ordem alfabética, e reformulando alguns dos títulos das categorias temáticas. 

Para quem está interessado em aprofundar este tema das representações leigas do corpo, da doença, da medicina e das práticas médicas, recomendo a leitura de um conjunto de artigos meus, datados de 2000, e alojados na minha pessoal na Net, "Luís  Graça: Saúde e Trabalho".

Contra um visão iatrocêntrica  e etnocêntrica, os sociólogos, antropólogos e historiadores da saúde gostam de lembrar que não há só uma "medicina" (, muito menos a "ocidental") nem só um "modelo explicativo" de saúde/doença... No fundo, aquilo que designamos por "acto médico", desde a Grécia Antiga até aos nossos dias, não é mais do que a situação em que um indivíduo, que se considera doente, procura ajuda, colocando-se na presença de outro a quem atribui poder(es) para curar: pode ser o médico de bata branca, pode ser o curandeiro da aldeia. O que importa é a "relação terapêutica", a interação entre ambos, a necessidade e a expetativa de quem se sente doente (, por ter ou sentir uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo), de ser tratado... Diagnóstico, decisão terapêutica e tratamento, ou seja, o conjunto do ato médico, variam conforme o tempo e o espaço, a sociedade, a cultura, a própria religião, e, claro, a ciência e as técnicas e as práticas médicas...

É uma boa sugestão de leitura, para o Natal, sobretudo, para gente como nós, que tem não só  a língua "cheia de Áfricas", mas o corpo todo, dos pés à cabeça... LG


I. As perturbações da fala que impacientam o doente:

"Não tenho dores, a voz é que está muito fosforenta".
"Na voz sinto aquilo tudo embuzinado".
"O meu pai morreu de tísica na laringe".
"Tenho humidade gordurosa nas cordas vocais".


II. As dores da coluna e do aparelho mísculo-esquelético, 
que são difíceis de suportar:


"Além das itroses tenho classificação ossal".
"É uma dor insepulcrável".
"Estou desconfiado que tenho uma hérnia de escala".
"Já tenho os ossos desclassificados".
"Metade das minhas doenças é desfalsificação dos ossos e intendência para a tensão alta".
"O meu reumatismo é climático".
"O pouco cálcio que tenho acumula-se na fractura".

"Tenho artroses remodeladas e de densidade forte".


III. O aparelho digestivo, que  origina sempre muitas queixas:

"Ando com o fígado elevado. Já o tive a 40, mas agora está mais baixo".
"Eu era muito encharcado a essa coisa da azia".
"Fiz uma mamografia ao intestino".
"Fizeram-me um exame que era uma televisão a trabalhar 
e eu a comer papa".
"Fui operado ao panquecas".
"O meu filho foi operado ao pence (apêndice) mas não lhe puseram os trenos (drenos), 
encheu o pipo e teve que pôr o soma (sonda)".
"O meu marido está internado porque sangra pela via da frente 
e pinga pela via de trás".
"Senhor Doutor a minha mulher tem umas almorródias 
que, com a sua licença nem dá um peido".
"Tenho pedra na basílica".
"Tive três úlceras: uma macho, uma fêmea e uma de gastrina".



IV. O diálogo com o paciente com patologia da boca, olhos, ouvidos, nariz e garganta
 é sempre um desafio para o clínico e para a comunicação clínica :

"A garganta traqueia-me, dá-me aqueles estalinhos e depois fica melhor".
"Fui ao Ftalmologista, meteu-me uns parafusinhos nos olhos a ver se as lágrimas saíam".
"Gostava que as papilas gustativas se manifestassem a meu favor".
"Isto deu-me de ter metido a cabeça no frigorífico. Um mês depois fui ao Hospital 
e disseram-me que tinha bolhas de ar no ouvido".
"Não sei se isto que tenho no ouvido é cera ou caruncho".
"O dente arrecolhia pus e na altura em que arrecolhia às imidulas infeccionava-as".
"Ouço mal, vejo mal, tenho a mente descaída".
"Quando me assoo dou um traque pelo ouvido, e enquanto não puxar pelo corpo, suar, ou o car...., o nariz não se destapa".
"Tenho a língua cheia de Áfricas".
V.  Os aparelhos genital e urinário são objecto 
de queixas muito... "sui generis"

"A minha pardalona está a mudar de cor".
"Apareceu-me uma ferida, não sei se de infecção se de uma f... mal dada".
"Às vezes prega-se-me umas comichões nas barbatanas".
"Fazem aqui o Papa Micau ( Papanicolau )?"
"O Médico mandou-me lavar a montadeira logo de manhã".
"Quando estou de pau feito....,  a p... verga".
"Quantos filhos teve?" - pergunta o médico. "Para a retrete foram quatro, senhor doutor, 
e à pia baptismal levei três".
"Tenho de ser operado ao stick. Já fui operado aos estículos".
"Tenho esta comichão na perseguida porque o meu marido tem uma infecção 
na ponta da natureza".
"Venho aqui mostrar a parreca".

VI. Os medicamentos e os seus efeitos, que se prestam às maiores confusões:

"Agora estou melhor, tomo o Bate Certo"  (Betaserc)
"Andei a tomar umas injecções de Esferovite"  (Parenterovit)
"Ando a tomar o Castro Leão" (Castilium)
"Ando a tomar o EspermaCanulado" (Espasmo Canulase)
"Diz lá no papel que o medicamento podia dar muitas complicações e alienações".
"Era um antibiótico perlim pim pim mas não me fez nada"  (Piprilim)
"Estava a ficar com os abéticos no sangue".
"Na minha opinião sinto-me com melhores sintomas".
"Ó Sra. Enfermeira, ele tem o cu como um véu. O líquido entra e nem actua".
"Quando acordo mais descaída tomo comprimidos de alta potência e fico logo melhor".
"Receitou-me uns comprimidos que me põem um pouco tonha".
"Tenho cataratas na vista e ando a tomar o Simião"  (Sermion)
"Tomei Sexovir" (Isovir)
"Tomei uns comprimidos "jaunes", assim amarelados".
"Tomo o Sigerom e o Chico Bem" -(Stugeron e Gincoben)
"Tomo uma cábulas à noite".
"Tomo uns comprimidos a modos de umas aboborinhas".

"Ando a tomar o EspermaCanulado" (Espasmo Canulase)
"Tenho cataratas na vista e ando a tomar o Simião"  (Sermion)
"Andei a tomar umas injecções de Esferovite" (Parenterovit)
"Era um antibiótico perlim pim pim mas não me fez nada" (Piprilim)


VII. O português que bebe e fuma muito e que se desculpa com frequência:


"Eu abuso um pouco da água do Luso".
"Eu sou um fumador invertebrado".
"Fujo dos antibióticos por causa do estômago. Prefiro remédios caseiros, a aguardente queimada faz-me muito bem".
"Não era ébrio nato mas abusava um pouco do álcool"
"Tomo um vinho que não me assobe à cabeça".

VIII. O que os doentes, afinal,  pensam do(s) médico(s):

"Especialista, médico, mas entendido!".
"Gosto do Senhor Doutor! Diz logo o que tem a dizer, 
não anda a engasular ninguém".
"Não há melhor doente que eu! Faço tudo o que me mandam, 
com aquela coisa de não morrer".
"Não sou muito afluente de vir aos médicos".
"Quando eu estou mal, os senhores são Deus, mas se me vejo de saúde,
acho-vos uns estapores".
"Também desculpe, aquela médica não tinha modinhos nenhuns".


IX. Os "problemas da cabeça", que  são muito frequentes:

"A minha cabecinha começa assim a ferver e fico com ela húmida, 
assim aos tombos,
 a trabalhar".
"Andei num Neurologista que disse que parti o penedo, o rochedo ou lá o que é...".
"Fui a um desses médicos que não consultam a gente, só falam pra nós".
"Há dias fiz um exame ao capacete no Hospital de S. João".
"Ou caiu da burra ou foi um ataque cardeal".
"Vem-me muitos palpites ruins, assim de baixo para cima...".
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Nota de leitura:

Guiné 61/74 - P20467: Historiografia da presença portuguesa em África (192): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
O destino tem destas coisas, surpreende-nos com imprevistos muitos amáveis. Fui levar umas lembranças a um amigo meu, alfarrabista em Tomar e ele mostrou-me este relatório que ainda vinha com as páginas fechadas, oferecido por Velez Caroço em 12 de março de 1925 ao Dr. Lino Netto.
É um documento de leitura obrigatória, este Tenente-Coronel de Infantaria, politicamente prestigiado, confrontou-se com muita gente hostil em Bolama, desde a primeira hora, não faltaram intrigas em Lisboa, impávido e sereno abriu estradas, estabeleceu alianças étnicas, saneou as contas orçamentais, trazia um projeto e, contra ventos e marés, foi-lhe dando execução.
É de uma grande importância o que escreve, e daí os parágrafos que aqui se transcrevem, eloquentes quanto ao governador e ao estado da colónia.

Um abraço do
Mário


Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1)

Beja Santos

Velez Caroço está no topo da lista dos mais importantes governadores da Guiné e há razões de sobra para a sua alta classificação: foi desenvolvimentista intransigente, o seu nome é evocado pela honestidade, pelos princípios republicanos, pela boa equipa que constituiu com os administradores, pela boa gestão económica e financeira num período crítico, já que a seguir à I Guerra a Guiné definhou; e pela organização dos serviços e da administração, no rescaldo da pacificação adotou um sistema de alianças e conivências étnicas que se veio a solidificar nas governações seguintes, e que tanta importância teve aquando da luta pela independência.

Só que este relatório introduz elementos novos para a leitura da vida política, económica, para o relacionamento entre o Governo e as populações indígenas, traz uma nova luz entre o contencioso dos comerciantes de Bolama e o governador pelas razões das lutas entre os republicanos e os democratas que aqui tiveram pálido reflexo e pelo princípio do definhamento de Bolama face à crescente notoriedade da dinâmica de Bissau. Tudo conjugado, vale a pena, para não dizer que é obrigatório, atender ao que ele escreve no seu primeiro relatório para o Ministro das Colónias.
Veja-se logo no seu arranque:
“Para a elaboração deste relatório dispensarei os informes do Secretário do Governo da Província, visto que o relatório apresentado por este funcionário além de considerações descabidas contém pontos de vista sobre administração e política indígena, perfeitamente opostos ao ensinamento que tenho tirado do exercício do meu cargo. Este funcionário está sendo sindicado. A seu tempo lhe será feita justiça”.
Informa o ministro de que encontrou más vontades e resistência, o que lhe veio fortalecer o ânimo, procurou fazer o saneamento da Província. “Eram acusados altos funcionários. Forçoso era começar por cima, para me revestir daquele prestígio e autoridade que deve manter e inspirar sempre aquele que é chamado a administrar justiça. Esta minha orientação foi recebida como uma orientação de guerra por parte daqueles que iam ser atingidos. Fui mal correspondido por alguns. Acobertados com sorrisos de amabilidade e aquiescência, com afirmações de lealdade e promessas da mais desinteressada cooperação, fomentavam na sombra a intriga; informavam-me com deslealdade, já de ânimo preconcebido de mais tarde se aproveitarem das fraquezas e dos erros que porventura pudesse cometer, orientado por tais informes – que eram recebidos de boa-fé e sem suspeições, – e fazerem então uma campanha que tivesse como consequência – ou ter de arrepiar caminho e servilmente me submeter às suas imposições, passando o governador a ser governado, ou ser aniquilado, embarcando pressurosamente para a metrópole no primeiro transporte disponível”.

Revela o entendimento que tem sobre uma política indígena num período em que se extinguiram desacatos. Sabe que se estão a desenvolver más vontades e calúnias daqueles que querem fazer fortuna rápida à custa da exploração indígena, era o enriquecimento grande e depressa sem atender ao progresso moral e material da colónia. Fala sobre o trabalho imposto como uma necessidade de vida, um princípio social de incontestável moralidade.
E desenvolve o seu pensamento:
“Para as necessidades actuais da Província da Guiné, pode dizer-se que o indígena produz o bastante, mas a verdade é que isto não basta e há-de acabar um dia. A exportação tem aumentado e muito, mas não tenhamos ilusões, esse aumento é aparente, não foi devido a um correspondente desenvolvimento agrícola; não, foi devido ao desenvolvimento comercial. O indígena tem facilidade na venda da mancarra, do coconote, do arroz, do milho, da borracha, da cera, etc., etc. E daí a ilusão de que todo esse movimento comercial é acompanhado pelo correspondente desenvolvimento agrícola. Chegará a época em que a produção estagnará. Para evitar que esta previsão fatídica se realize, só há um remédio – fomentar a Província, desenvolver-lhe a agricultura.
É preciso trabalhar. Se o indígena não quer trabalhar voluntariamente, seja compelido a fazê-lo. Faça-se um regulamento estabelecendo-se um mínimo de trabalho para cada indivíduo. Rodeie-se esse regulamento de todas as cautelas e seguranças para evitar abusos, mas tenhamos também em vista que se o indígena que trabalha precisa de protecção fiscalizadora aos actos do patrão, por sua vez este precisa também de ser defendido da falta de cumprimento das obrigações do indígena trabalhador. E só assim haverá confiança”.

Espraia-se sobre a situação económica e financeira da Guiné, lembrando a falta de estradas, a incúria da instrução, pois não havia edifícios escolares, não esquece a tremenda crise económica, e o ter agido comprando casas para os funcionários, aumentando-lhes os vencimentos, remodelando as pautas alfandegárias, suprimindo a receita dos direitos de importação do álcool, procurando proteger os produtos colhidos na Guiné, manifesta a intenção de transformar o imposto de palhota em imposto de capitação. Sumariza o que está a fazer: na criação das escolas, nas obras locais do Pidjiquiti, nas pontes, hospitais, edifícios para as repartições, instalação de um museu, e tudo levava a supor que o orçamento de 1922-23 iria fechar com saldo positivo.

Encontrou a magistratura judicial numa lástima, procurou dar-lhe dignidade:
“Tem a Guiné duas comarcas – Bolama e Bissau. Existindo só uma – a de Bolama – esteve sempre a Guiné sem magistrados de carreira. Os julgamentos fazem-se com interinos, com substitutos, com provisórios, com delegados e advogados ad hoc, etc.. Se o recrutamento dos interinos para uma era difícil, é intuitivo que para as duas é quase impossível. Só assim se explica que ainda há pouco tempo se tivesse proposto para advogado ad hoc um indivíduo condenado em audiência pública por ferimentos e furto.
Na comarca de Bolama, logo após a minha chegada à Província, fui informado de que estava exercendo as funções de juiz um funcionário que tinha no mesmo juízo um processo pendente. Esse processo era de pouca importância, mas apesar disso chamei esse funcionário e aconselhei-o a que pedisse a sua demissão”. 
E escreve esperançado: 
“Ainda havemos de chegar um dia em que os juízes hão-de deixar de considerar a Guiné simplesmente como uma estação de passagem para o gozo de licenças graciosas (tão caras estão custando à Província) e hão-de para aqui vir com firmes propósitos de trabalhar também um pouco para a disciplina e morigeração dos costumes da Guiné”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20440: Historiografia da presença portuguesa em África (191): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20466: Manuscrito(s) (Luís Graça) (175): Afinal, como explicar a História às criancinhas, se o futuro a Deus pertence?

O Alzheimer da História 

por Luís Graça

Davam longos passeios, 
ao domingo,
os lisboetas,
de jardim em jardim, 

ao longo do rio,
que afinal já não era rio,

era braço de mar salgado.

A pé. 

Tinham trocado, 
na feitoria de Arguim,
os seus cavalos brancos, 

puríssimos lusitanos,
com os seus belos arreios,

de couro e madrepérola,
por escravos negros,

negros da Guiné.
E alguns, futuristas, por trotinetas,

talvez já a pensar 
que o clima estava a mudar.

E, no seu encalce, os turistas, voyeuristas,
com as suas superzooms digitais,
subiam as sete colinas 

para melhor ver as vistas
e os vitrais das catedrais

e, outros até, as pernas das meninas.

Grande era o mundo,
visto do miradouro da Senhora do Monte,
e Portugal, tão pequenino e caleidoscópico,
ali tão perto, 

ali ao fundo.

Já não passavam mais comboios de navios,
nem caravelas nem naus
ao largo do Bugio.
Até as fragatas e as varinas
tinham sido varridas pelo último tsunami.

Perderam-se, por má sorte das armas,
ou quiçá por algum “Te Deum” desafinado,
as joias da coroa, 
Dradrá, Nagar Aveli, 
Goa, Damão e Diu.

Junto às ruínas do palácio dos Estaus,
um manjaco do Canchungo
varria o lixo da História
para debaixo do tapete.

E era feliz, triplamente feliz,

se é que alguém pode ser triplamente feliz:
feliz por ter um emprego,
cama, mesa e roupa lavada.

Uma retrete e um trompete. 
Tocava na orquestra Todos,
em prol da implosão/inclusão
dos cinco dedos da mão.

E um crachá da União das Freguesias
da Mouraria e da Judiaria,

finalmente juntas, 
ao fim de tantos séculos.
“Manga de bom pessoal”,
jurava o antigo escravo, agora forro.

Feliz porque na ceia de Natal 
da Santa Casa da Misericórdia,
que sorte!,
haveria pencas, batatas e bacalhau,
como no tempo do seu antigo senhor 
que era do Norte.

E feliz, enfim, por não ter memória:
- Teixeira Pinto ?...
- Sim, o capitão-diabo!
- Capitão...?

Não, nunca ouvira falar de tal senhor.

Coitados dos povos que sofrem
da doença do Alzheimer da História!
Mas pode ser que tenhas mais sorte, 
meu irmão, 
na próxima vaga migratória,
na próxima reencarnação, 
na lotaria da genética,
na transmigração das almas,
na girândola da vida e da morte,

na revisão da História,
que está sempre a ser aumentada e melhorada.


Em novembro era verão,
ainda davam longos passeios pelo rio, 

os lisboetas, 
levando pela mão os seus loucos, 
mais os mudos, os surdos, e os cegos,
os inválidos do comércio
e os da última das guerras coloniais...
E quem mais ?
Eu sei lá, 
que a procissão ainda vai no adro,
mas ainda descortino, 
entre Xabregas e o Terreiro do Paço,
os sete anões da corte,
e os seus poetas menores,
e os avós e os netos da criadagem,
os cães e os gatos.
Ah!, e a gaiola com o periquito 
de algum pagem.


A Branca de Neve desaparecera há muito,

quando, ao que parece,
foi levar um dos sete anões, aflito,
a fazer chichi na praia de Pedrouços,
que era a praia da ralé.
Outros dizem que fora raptada
pelos corsários de Salé,
quando brincava às casinhas 

na praia da Torre de Belém.

Meus Deus!,
e os canhões do forte de São Julião da Barra,
logo ali ao lado ?!...
E a fábrica da pólvora em Barcarena ?!...
E ninguém chamou o 112?!

Ah!, tinha tudo para ser feliz, 
a pobre Branca de Neve,
no meu país. 
Foi uma pena.

Afinal, como explicar a História às criancinhas,
se o futuro a Deus pertence ?!

Lisboa, 25 de novembro de 2015/2019. Revisto.
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Nota do editor:

Último poste da série de 3 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20309: Manuscritos (Luís Graça) (174): as cores quentes e frias do outono da Tabanca de Candoz - III (e última) Parte

Guiné 61/74 - P20465: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (7): Paulo Salgado (ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné-Bissau >  s/l > s/d >  A  São e o Paulo


Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós >  Ilha de Canhabaque (ou ilha Roxa) > s/d


Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Os rápidos do Saltino  > s/d > Foto tirada da ponte...


Guiné> s/l >  16 de setembro de 2005 > Uma bolanha


Guiné > s/d > s/ l> Belos nenúfares num afluente do rio Geba... Sempre deslumbrante esta Guiné - a da Natureza!

Fotos (e legendas): © Paulo Salgado (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Paulo Salgado no regresso ao Olossato,
em 2006
1. Mensagem de Paulo [ Cordeiro] Salgado, [ex-alf mil op esp,  CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África" (Torre de Moncorvo: Lema d'Origem, 2019); africanista no sentido nobre do termo; administrador hospitalar reformado,  com um vasto currículo, que inclui a Guiné-Bissau e Angola; é casado ocm a Conceição Salgado, também nossa grã-tabanqueira, natural de Torre de Moncorvo;  tem mais de 9 dezenas de referências no nosso blogue]


Data: domingo, 15/12/2019 à(s) 21:35
Assunto: Natal

Amigos e Familiares,

Aproveito o que tem de bom a tecnologia de comunicação, esta ferramenta, que globaliza e aproxima. Às vezes embrutece e afasta, é certo. Faço-o por duas razões: a primeira, porque quero lembrar-me de pessoas que vou conhecendo, vim conhecendo, ao longo da vida (claro que incluo aqui os familiares porque eles merecem o poema): a segunda, porque junto excertos de um belo poema de um grande poeta e jornalista - meu amigo de sempre - falecido há cerca de dois meses, cuja obra tem força, é telúrica: Rogério Rodrigues. Leiam-no. Por favor.

Por isso, junto estes excertos.

Feliz Natal, com um abraço - nesta festa de família (e de amigos).

Paulo Salgado
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QUANDO O NATAL CHEGAR…

Quando o Natal chegar
liberta o pirilampo e liberta a luz
arruma a ternura e arruma a casa.
E areja o sótão da tua infância.

Quando o Natal chegar
dá música aos surdos
e palavra aos mudos
afaga laranjas nas mãos frias
e figos secos ao luar
e amêndoas de Agosto a quem chegar
e limões, e ácidos limões, em teu lugar.


Quando o Natal chegar
adormece à beira dos violinos
com a loucura dos deuses
e a tristeza de Mozart.

Que os deuses devem estar loucos
porque a lareira está-se a apagar.


Quando o Natal chegar
Talvez amor e amar.
Dádiva por dádiva,
aceita, é de aceitar.


Pedro Castelhano (pseudónimo de Rogério Rodrigues)
In (Re) Cantos d' Amar Morto. Lisboa,  Âncora editora, 2011.
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20462: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (6): Patrício Ribeiro, no calor(zinho) de Bissau... (às 17h00 de hoje o céu estava limpo e faziam 32 graus)

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20464: Recortes de imprensa (110): Pinto Leite, Leonardo Coimbra, José Vicente de Abreu e Pinto Bull, os parlamentares que pereceram no acidente aéreo de 25/7/1970 ("Diário de Lisboa", 27 de julho de 1970)















Pequenas notas biográficas dos 4 deputados da Assembleia Nacional que morreram, no acidente aéreo de 25/7/1970, na setor de Mansoa, quando regressavam de Teixeira Pinto a Bissau, depois de uma digressão pelo interior da Guiné.


Recortes da página 16 do "Diário de Lisboa", nº 17097Ano: 50, Segunda, 27 de Jjulho de 1970, 1ª edição (Director: António Ruella Ramos).

Citação:
(1970), "Diário de Lisboa", nº 17097, Ano 50, Segunda, 27 de Julho de 1970, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_6808 (2019-12-16)

Reprodução, com a devida vénia.



Guiné > Região do Biombo > Estuário do Rio Mansoa > 29 de julho de 1970 > Restos do helicóptero sinistrado são recolhidos pela Marinha. Sobre este episódio, no TO da Guiné, e segundo indicação do nosso colaborador permanente José Martins, há um valioso relato, muito  pormenorizado, da autoria de J. C. Abreu dos Santos (2008), publicado no portal UTW - Ultramar TerraWeb: "Alouette- III, da BA 12, despenhado na embocadura do Mansoa", ou mais exatamente na foz do rio Baboque, afluente do rio Mansoa.


Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Já aqui relembrámos a notícia do trágico acidente, com um Alouette III, pilotado pelo alf mil pil Francisco Lopes Manso e que transportava 4 de um grupo de  deputados  da então Assembleia Nacional que, desde o dia 8 de julho de 1970 faziam uma visita de estudo à província da Guiné, procurando-se inteirar "in loco" da situação político-militar. Eram acompanhados pelo cap cav  Carvalho de Andrade,  oficial da secção de radiodifusão e imprensa da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica do QG/CCFAG (Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné, que se situava na Fortaleza da Amura) (*).

O mesmo "Diário de Lisboa", na sua edição de 27 de julho de 1970, publicava uma pequena nota biográfica desses quatro deputados desaparecidos (, e depois confirmados como mortos, já que não houve sobreviventes, e os únicos corpos recuperados, no estuário do Rio Mansoa, foram os do deputado Leonardo Coimbra e do cap cav Carvalho de Andrade).

A perda, nomeadamente de Pinto Leite, deputado independente, lider da "ala liberal",  do partido único (a União Nacional, mais tarde ANP - Acção Nacional Popular) foi em termos pessoais e políticos,  um duro golpe para Spínola. Pinto Leite era claramente um reformista e um europeísta, defensor da "solução política" para a guerra colonial.




Guiné > Região de Biombo > Carta de Quinhanel (1952) > Escala 1/50 mil > Excerto: Rio Baboque, estuário do Rio Mansoa e Ilha de Lisboa

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)
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Guiné 61/74 - P20463: Parabéns a você (1724): Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20454: Parabéns a você (1723): Francisco Santos, ex-1.º Cabo Condutor Radiotelegrafista da CCAÇ 557 (Guiné, 1963/65) e Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20462: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (6): Patrício Ribeiro, no calor(zinho) de Bissau... (às 17h00 de hoje o céu estava limpo e faziam 32 graus)




1. Belíssimo postal de boas festas que nos chega de Bissau, do Patrício Ribeiro, "patrão" da empresa Impar Lda. (Na imagem acima, uma papaieira, árvore caricácea que produz a papaia.)

[Patrício Ribeiro é um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.: tem cerca de 90 referências no nosso blogue; e não precisa de fazer prova de vida...mas cumpre a praxe, ao desejar a toda Tabanca Grande bom Natal e melhor Ano Novo...]

A mensagem, lacónica, é a seguinte, mas não precisa de mais adjetivos:

No calor ...

Patrício Ribeiro


IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores da série: 


14 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20453: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (4): Mário Gaspar (ex-fur mil art, MA, Cart 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

13 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20447: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (3): "Festas Felizes. Até ao meu regresso!"... Era assim há 50 anos... (José Martins, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70)

11 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20439: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (2): José Belo, o nosso camarada que tem o privilégio de ser vizinho do Pai Natal...

9 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20431: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (1): João Crisóstomo e Vilma Kracun (Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P20461: E os nossos assobios vão para... (2): A Liga dos Combatentes... O nome do infortunado ex-alf mil pilav Francisco Lopes Manso (1944-1970) ainda não consta do sítio da Liga dos Combatentes... Morreu em 25/7/1970, quando o heli AL III se despenhou nas águas do Rio Mansoa, transportando 4 deputados e um oficial do exército. O seu corpo nunca apareceu (António Martins de Matos / Luís Graça)



Pesquisa no sítio da Liga dos Combatentes > Mortos do Ultramar > Aparece o nome do infortunado cap cav José Carvalho de Andrade, mas não a do alf mil pil Francisco Lopes Manso, ambos mortos no acidente do helicóptero AL III que se despenhou no rio Mansoa, em 25/1970, quando regressava, de Teixeira Pinto para Bissau, com 4 deputados da Assembleia Nacional, em  digressão pela província da Guiné. Morrem todos os 6 ocupantes da aeronave. O corpo do nosso camarada Francisco Lopes Manso nunca foi encontrado.


1. Comentário de António Martins de Matos [, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74; ten gen pilav ref António Martins de Matos, membro da nossa Tabanca Grande (desde 2008, com cerca de uma centena  de referências no nosso blogue), autor do livro de memórias "Voando sobre um Ninho de Strelas" (Lisboa: BooksFactory, 2018, 375.pp.)]  [, foto atual à esquerda] (*)

Francisco Lopes Manso [1944-1970] foi um Camarada do meu Curso da Academia Militar, fazendo parte do Tirocínio de Piloto Aviador em Sintra (1968-69).

Por motivos de ordem pessoal resolveu desistir do Curso, acabando mais tarde, e já como Oficial Miliciano, a ser brevetado em helicópteros (Brevet Militar nº 1309).

Mobilizado para a Guiné, aí se manteve até ao fatídico acidente de 25-07-70.

Passados que foram 35 anos depois da sua morte na Guiné, o seu nome continuava a estar ausente na 
parede do Monumento em Belém, que referia:

" À MEMÓRIA DE TODOS OS SOLDADOS QUE MORRERAM AO SERVIÇO DE PORTUGAL”.

A esse propósito escrevi no meu livro “Voando sobre um Ninho de Strelas” [Lisboa: BooksFactory, 2018], a páginas 263:
Eu sei que é um trabalho complexo e moroso, mas também, que diacho, já se passaram mais de vinte anos desde a sua inauguração…

… E certamente não compete às famílias dos militares o andarem a alertar as autoridades para as respectivas falhas e a solicitarem a inclusão deste ou daquele nome!!!

Não sei se já lhe aconteceu, pela minha parte já passei pela vergonha de ser confrontado pela viúva de um camarada do meu curso que morreu na Guiné em 25Jul70, aos comandos de um AL-III. A senhora foi visitar o Monumento, o nome do seu marido não constava. Ui, de quem foi a falha????
…. ficou-me a dúvida se teria sido do Gago Coutinho ou do Sacadura Cabral.

O caso até tinha vindo nos jornais, 4 deputados em visita à Guiné tinham falecido num acidente de helicóptero.

Consultado o site da Liga dos Combatentes… também nada constava, ainda hoje o nome do piloto e o do eventual mecânico do AL-III continuam ausentes.

Safou-se um capitão de cavalaria, oficial de ligação e que acompanhava os Deputados, tem lá o nome, devia ser ele que ia a pilotar…

No final desta história, e depois de algumas lutas com várias entidades, finalmente lá chamaram um pedreiro e acrescentaram uma adenda ao Monumento.

A viúva já pode sorrir, o seu Francisco já tem o nome inscrito lá na parede de mármore. Mas, aqui que ninguém nos ouve, oxalá se dê por satisfeita e não queira ir consultar o site da Liga dos Combatentes.

A terminar:

A parede do Monumento já foi corrigida, mas, na Liga dos Combatentes, hoje, 15Dez19, continuam sem saber quem foi o meu amigo Manso.

Cumprimentos
AMM

2. Não gostamos de "assobios" (*), e muito menos de "pateadas", ou seja, de manifestações ruidosas dos nossos desagrados a relação a instituições, castrenses ou outras, que, em princípio, merecem o nosso respeito e apreço como é o caso da Liga dos Combatentes. Mas,  desta vez, parece que não temos alternativa... A Liga vai apanhar uma "assobiadela" (**)...

De facto, comprovámos, hoje mesmo,  o que o nosso camarada António Martins de Matos diz acima: o nome do saudoso alf mil pil Francisco Lopes Manso (que já consta, finalmente, no memorial, em Belém, aos mortos da Guerra do Ultramar), ainda não figura no sítio da Liga dos Combatentes... Admitamos que é um mero lapso técnico... Mas, bolas!,  é um lapso que,   ao fim destes anos, quase meio século do trágico acidente no rio Mansoa, ainda está por corrigir...

É verdade que o seu corpo nunca apareceu, contrariamente aos corpos dos 4 deputados e do oficial do exército que os acompanhava.  Mas o seu nome sempre constou na lista dos falecidos da Força Aérea no Arquivo Histórico da FAP. (***(

PS - Já aqui explicámos que o Jorge Caiano, mecânico do alf pilav Manso trocou de lugar, à última hora, com o cap cav Andrade, que acompanhava os deputados. Essa troca salvou-lhe a vida.  Ele vive (ou vivia, há 10 anos atrás, ) em Toronto, Canadá (***)
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Notas do editor:

(*) 15 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20458: Recortes de imprensa (108): A morte dos quatro deputados à Assembleia Nacional, em visita ao CTIG, no acidente de helicóptero, em 25/7/1970 ("Diário de Lisboa", 26/7/1970)

(**) Último poste da série > 18 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2958: E os nossos assobios vão para... (1): Um embaixador que não honra Portugal... (Luís Graça / Pepito)

(***) Vd. poste de 10 de fevereiro  de 2009 > Guiné 63/74 - P3866: FAP (7): Troca de lugar no ALL III salvou-me a vida, em 25 de Julho de 1970 (Jorge Caiano, mecânico do Alf Pilav Manso)

(...) Por decisão do comandante da esquadrilha, o Cap Pilav Cubas, e aparentemente por uma questão de peso, o Caiano seguiu com ele e não com o Alf Manso, na viagem de regresso a Bissau... (Em princípio, era aos mecânicos que competia avaliar o peso dos helis. Mas neste caso, o Jorge teve que seguir as ordens do seu comandante.)

Ia o Manso à esquerda, o Cubas ao meio, o Coelho, à direita. Os três helis voavam em formação quando foram apanhados por uma tempestade tropical. Havia muito pouca visibilidade. Mas deu para ele, Jorge Canao, se aperceber de uma pequena explosão ("uma chama") no interior do heli do Manso. Segundo a sua teoria, o passageiro ao lado do piloto (um dos deputados ? o oficial do Exército ?) deve ter accionado a alavanca do gás (sic). Por inadvertência ou pânico...

O Manso, que era "periquito" (tinha chegado há dois meses), deve ter perdido o controlo da situação...

O Jorge Caiano foi testemunha deste caso em tribunal militar. E lembra que, a partir daí, a FAP proibiu que os passageiros viajassem, nos helis, ao lado do piloto, no lugar do mecânico. Os oficiais do Exército (e sobretudo os oficiais superiores) gostavam muito desse lugar por que tinha uma vista panorâmica. Via-se muito melhor a paisagem....

O heli do Manso despenhou-se no Rio Mansoa, "por volta das 15 horas", do dia 25 de Julho de 1970 (não parece ter dúvidas sobre a data), tendo morrido ou desaparecido 4 deputados da Nação (incluindo o Dr. Pinto Leite, chefe da chamada ala liberal da então Assembleia Nacional), além do Manso e de um oficial do exército do QG. Um dos deputados era o guineense Pinto Bull, que também tinha um filho, mecânico da FAP, a cumprir o serviço militar na Guiné (Bissalanca, BA12). Por sua vez, a mulher do piloto era pressuposto chegar de Lisboa, no dia seguinte.

O Jorge confessa que deve a vida ao destino, à troca de lugar, imposta pelo Cap Pilav Cubas. Essa foi a razão por que ainda hoje está vivo, diz ele, do outro lado do telefone... E acredita que o destino marca a hora. Este acidente de guerra marcou-o para toda a vida. (...)


Vd. também, entre outros, o poste de 11 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3875: FAP (8): O meu saudoso amigo e camarada Francisco Lopes Manso (Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref)

Guiné 61/74 - P20460: Notas de leitura (1246): “Capim Rubro”, de José Monteiro; Chiado Books, 2018 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Não se discute o empenho didático do autor que, do princípio ao fim da sua obra de ficção nos dá apontamentos sobre a instrução na recruta e na especialidade, o que é um aerograma, onde se situa a Guiné, como eclodiu a guerrilha, as etnias existentes, o pormenor das operações, vê-se claramente que se documentou, o que é questionável é o modo como entremeia um acervo de dados consabidos no evoluir da trama.
Alude-se nesta obra de ficção a um drama vivido na região de Fulacunda, o desaparecimento, em plena atividade operacional, de um alferes e um conjunto de militares, seguramente uma das histórias mais dramáticas que se viveu naquele teatro de operações.
Mais um livro autobiográfico, certamente bem intencionado, talvez para que aqueles militares que andaram por Fulacunda e perto do Morés tenham mais um rosário de recordações ao seu dispor.

Um abraço do
Mário


Novamente, com rumo a Fulacunda e depois ao Morés

Beja Santos

“Capim Rubro”, de José Monteiro, Chiado Books, 2018, apresenta-se como uma obra de ficção, tem como palco a guerra de Guiné entre 1965 e 1967, o leitor, em dado momento, constatará existirem claras aproximações com a obra de Rui Alexandrino Ferreira “Rumo a Fulacunda”, obra a que aqui já se fez recensão.

Tudo começa com uma visita, em maio de 1968, do Furriel Silveira à aldeia de António Ribeiro, não longe de Lamego, e antes de sabermos as razões que o ali levam, retornamos ao passado, António dos Santos Ribeiro está em Estremoz, é informado que vai gozar dez dias de férias e depois apresenta-se no Regimento de Infantaria 2, onde irá formar-se o seu Batalhão. António Ribeiro é conhecido pelo 127. Segue-se a paixão assolapada entre o mancebo e a sua apaixonada, Maria do Céu. Com o sangue a ferver, ambos perdem as estribeiras num local chamado a “Pedra da Moura”, António irá para a Guiné, a Maria do Céu ficará grávida enquanto António anda por Abrantes e o Campo Militar de Santa Margarida. Estamos em 31 de julho de 1965, o Batalhão parte para a Guiné a bordo do Niassa. António vai conversar com o Capelão, o Padre Miguel Sampaio, primo direito da sua Maria do Céu, é um capelão muito original, só fala aos palavrões, talvez porque vai a caminho da sua segunda comissão na Guiné, o bispo não o quer a paroquiar, andou envolvido com uma senhora casada. Estamos em agosto de 1965, o autor entremeia a narrativa com dados da vida guineense. Vão a caminho de Santa Luzia, passaram em frente da capela mortuária em cujo interior se amontoava uma pilha de caixões a aguardar barco para Lisboa. Começa a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, um soldado dispara inadvertidamente e atinge mortalmente um companheiro. É a primeira baixa.

Na Cervejaria Bento, o Alferes Varela de Castro disserta sobre o Estatuto do Indigenato, é uma alocução em que ele diz que a guerra colonial foi resultado lógico e natural da conjugação de dois fatores: imobilismo e intransigência do Estado Novo sobre a questão colonial; incapacidade de negociação para responder aos apelos de negociação, repetidas vezes feitos pelos movimentos de libertação. O Furriel Silveira assiste a toda esta exposição e pensa que existe motivação séria para um povo reclamar a sua libertação e definir o seu destino coletivo.

Maria do Céu é maltratada pelos seus pais, é bem acolhida pelos pais de António, este embarca rumo a Fulacunda, os bens dos militares chegam praticamente deteriorados, houvera muita chuva, as malas de cartão prensado desfaziam-se, tudo quanto era papel tornou-se em pasta pegajosa. Descreve-se Fulacunda, começa a atividade operacional, em setembro ocorre a primeira incursão a uma base do PAIGC, é o batismo de fogo, destrói-se o acampamento. Em outubro, durante uma operação, sucede o impensável, o Alferes Varela de Castro desaparece com mais cinco militares, sucedem-se as tentativas de encontrar os desaparecidos à volta de Gamol, onde a tragédia ocorrera (a tal propósito, tem bastante utilidade ler a obra de Rui Alexandrino Ferreira, é um documento pungente em que se procura recriar o drama daqueles homens perdidos dentro da mata e perseguidos pelas forças do PAIGC). Para substituir o malogrado Varela de Castro chegou o Alferes Miliciano Rodrigo, inicialmente recebido de forma fria, quase hostil. Rodrigo ir-se-á impondo, definiu uma estratégia de aproximação, irá ganhar a confiança de todos. Continuam as operações, apreende-se armamento, as abelhas atacam, há mortos e feridos.

O autor não poupa o Capitão Cordeiro, Comandante de Companhia, um manhoso que tudo faz para ser evacuado. Tivera uma ligeira fratura de costelas na queda de um cavalo, preparou a atmosfera para voltar a cair, acabou por ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, em Lisboa tratou da vidinha, reformou-se.
Como escreve o autor:  
“O capitão Mário dos Santos Sobral Cordeiro, no exercício das suas funções do comando no CTI, em plena zona de forte ação da guerrilha, no local em que, com a sua companhia, em plena zona de campanha, montou uma emboscada às tropas inimigas, caiu desamparadamente numa ravina, agravando, de forma irreversível, lesões anteriormente sofridas em duas costelas. E assim se livrou de Fulacunda, se livrou da Guiné e se livrou definitivamente da guerra”.

A Companhia sai de Fulacunda no início de janeiro de 1966, nova conversa entre António Ribeiro e o Padre Sampaio, o palavrão ferve. António parte para Bissorã, é a sede do seu Batalhão. Multiplicam-se as missões, por exemplo, manter a segurança à ponte de Braia, no caminho de Mansoa para Bissorã. A amizade entre o Furriel Silveira e António Ribeiro cresce com o tempo. Há as escoltas a Cutia, bom pretexto para António rever o capelão. Assim se passou o primeiro ano de guerra e inopinadamente há uma forte emboscada entre Mansoa e Bissorã, o Alferes Rodrigo é agora um verdadeiro exemplo de dedicação aos seus homens.

Nasce o filho de Maria do Céu e António, é uma menina. António está delirante, as operações prosseguem. Vamos saber tudo sobre o currículo do Padre Sampaio, de seu nome Miguel dos Santos Almeida Sampaio, e do adultério que o senhor bispo puniu. São frequentes os encontros entre António e o capelão, tudo regado a uísques no clube Os Balantas, em Mansoa. Segue-se a descrição dos quartos-de-final do campeonato mundial de futebol de 1966, entre a Coreia do Norte e Portugal e saltamos para a ponte de Uaque onde um grupo de guerrilheiros do PAIGC ataca furiosamente.
E aqui nos fica um texto, da melhor prosa que se encontra ao longo destas quinhentas páginas:
“Aparentemente não era coisa grave, apenas um pequeno orifício, onde se tinha alojado um estilhaço.
Contudo, por esse minúsculo orifício começou a perder massa encefálica, foi ficando pálido, quedou-se nos movimentos, perdeu a voz, toldou-se-lhe a vista.
Natural de uma pequena aldeia das proximidades de Aveiro, pensou na beleza do pôr-do-sol espraiando-se mansamente na ria. Como por magia, a lona da maca em que se encontrava deitado, foi-se transformando num espelho de água, refulgente de luz, de quando em vez entrecortado pela passagem ritmada e dolente de um moliceiro, como ele aflito e afoito, que na sua profusão de cores deixava nas águas da ria um rasto de rara beleza.
Por breves momentos, recordou a arte da xávega e, numa dolência que já não controlava, recuou aos seus tempos de menino e viu seu pai vestido de camisa branca e curta, feita de estopa, manaia e barrete preto de malha, apanhando o moliço.
Pensou no resto da família. Depois, sem um único gemido, no rosto antes queimado pelo sol e pela maresia, começaram a correr-lhe, ritmada e silenciosamente, lágrimas sofridas. Pensou na namorada, nos sonhos que ambos tinham para concretizar. A cara marfínea em agonia a coalhar de vítreo os olhos glaucos, alguns espasmos e, traiçoeira e injusta, a morte levou-o”.

Não se pode roubar ao leitor a curiosidade em desvendar a trama final, o que aproxima e pode afastar estes dois amigos, Silveira e António.
Intuitivamente, e nada mais, fica-nos a ideia que Silveira é o alter-ego de José Monteiro.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20448: Notas de leitura (1245): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (36) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20459: Recortes de imprensa (109): Ainda o acidente de helicóptero, de 25/7/1970, no CTIG, em que morreram 4 deputados e 2 camaradas nossos... No dia em que Salazar morreu, ainda não se sabia que o aparelho tinha caído no rio Mansoa ("Diário de Lisboa", 27/7/1970)






Recortes da primeira página do "Diário de Lisboa", nº 17097Ano: 50, Segunda, 27 de Jjulho de 1970, 1ª edição (Director: António Ruella Ramos).

Citação:
(1970), "Diário de Lisboa", nº 17097, Ano 50, Segunda, 27 de Julho de 1970, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_6808 (2019-12-16)
Reprodução, com a devida vénia:

Fonte: Casa Comum
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 06616.154.24969
Título: Diário de LisboaNúmero: 17097Ano: 50Data: Segunda, 27 de Julho de 1970Directores: Director: António Ruella RamosEdição: 1ª ediçãoObservações: Inclui supl. "Desporto".Fundo: DRR - Documentos Ruella RamosTipo Documental: IMPRENSA

1. Salazar morria às 9h15 do dia 27 de julho de 1970, segunda feira, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha. O funeral foi marcado para quinta feira, em Santa Comba Dão, sua terra natal. 

Entretanto, na Guiné prosseguiam intensas buscas, mobilizando "milhares de soldados de todas as armas, auxiliados pelas populações locais" (,segundo notícia dfa ANI),  nas imediações do Rio Mansoa, na zona  em que se presumia que tivesse caido o helocópterio, pilotado pelo alf mil Francisco Lopes Manso. e que transportava 4 deputados da Assembleia Nacional, em visita ao CTIG  (James Pinto Bull,  Pinto Leite,Leonardo Coimbra e José Vicente Abreu) mais um capitão do exército (cap cav José Carvalho de Andrade), que os acompanhava. O helicóptero, com mais outros dois, vinha de Teixeira Pinto para Bissau quando terá sido apanhado por um violento tornado.

Durante o resto do mês de julho não haverá mais notícias, no "Diário de Lisboa",  sobre este "acidente" na Guiné...
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Nota do editor:

domingo, 15 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20458: Recortes de imprensa (108): A morte dos quatro deputados à Assembleia Nacional, em visita ao CTIG, no acidente de helicóptero, em 25/7/1970 ("Diário de Lisboa", 26/7/1970)





Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", nº 17096, ano 50,  domingo Domingo, 26 de Julho de 1970, 1ª edição.(Diretor: António Ruella Ramos). Edição, obviamente, visada pel censura...

Citação:

(1970), "Diário de Lisboa", nº 17096, Ano 50, Domingo, 26 de Julho de 1970, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_6804 (2019-12-13)

Fonte:

Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares~
Pasta: 06616.154.24967
Título: Diário de Lisboa
Número: 17096
Ano: 50
Data: Domingo, 26 de Julho de 1970
Directores: Director: António Ruella Ramos
Edição: 1ª edição
Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos
Tipo Documental: IMPRENSA

 1. Era o tempo em que não havia internet, blogues, Facebook, redes sociais e a imprensa (rádio, TV e jornais) estavam sujeitos à censura (agora rebatizada com um eufemismo: "exame prévio").  E a comunicação era num só sentido, unilateral, de cima para baixo. 

Da guerra em África só se sabia aquilo que os soldados escreviam nos aerogramas para as famílias, ou que contavam quando vinham de férias ou depois de passarem à peluda.  Claro, havia a imprensa internacional, a BBC, etc., que só chegava a alguns, privilegiados. Havia a propaganda dos movimentos nacionalistas. Havia a boataria. Havia a contra-propaganda... E havia os comunicados das Forças Armadas.  A informação oficial e oficiosa era canalizada  pela Secretaria de Estado da Informação e Turismo. Chegava aos jornais sob a forma de "comunicados", lacónicos demais para se poder criar confiança no leitor, crítico e independente...  Não havia opinião pública, desgraçadamente, num país como o nosso.

Uma notícia como esta, publicada na primeira página do "Diário de Lisboa", de 26/7/1970, era susceptível de ter várias leituras (*) e dar origem aos mais desconcertados e desconcertantes boatos. Não havia liberdade de imprensa nem investigação independente. Era o tempo da "evolução na continuidade"... da ditadura.

Neste caso, temos um "comunicado da província da Guiné" (sic) a  dar conta de um grave acidente de helicóptero que transportavam  dois militares e quatro deputados à Assembleia da República que estavam a acabar uma visita ao interior do território... Eram eles os deputados James Pinto Bull, José Pedro Pinto Leite, Leonardo Coimbra e José Vicente de Abreu.  Os três primeiros eram "doutores" e o último era "senhor".

Saberemos depois que a aeronave, que serviu de caixão aos nossos seis compatriotas (, dois dos quais nossos camaradas de armas,) acabará por ser encontrada, dias depois,  no fundo do Rio Mansoa, ou melhor na foz de um dos seus afluentes, o rio Baboque  (**).

Era o tempo em que era governador da Guiné o general Spínola, acumulando com o cargo de comandante-chefe. Era um homem poderoso e, em geral, amado pelos seus homens e admirado por muitos "guinéus". Não sabemos quantos o amavam: nunca foi feito nenhuma referendo ou plebiscito. Seria interessante ele poder ter disputado  eleições, livres, como na livre Inglaterra, com o Amílcar Cabral, que ainda não tinha sido assassinado. (E nunca saberemos às ordens de quem, diga-se "en passant".)

Quem sabe hoje, os nossos filhos e netos, quem foi José Pedro Maria Anjos Pinto Leite (Cascais, 1932 - Guiné, 1970) ?  Acreditou, em 1969, na "Primavera Marcelista", ou seja, que era possível reformar, "por dentro", o velho Estado Novo... Foi eleito  deputado à "Assembleia Nacional", para rapidamente se converter no líder da chamada "Ala Liberal". Morreu ingloriamente na Guiné, aos 38 anos,  neste desastre de helicóptero, nas proximidades de uma ilha chamada Lisboa (que fica no estuário do rio Mansoa).

Sucedeu-lhe Francisco Sá Carneiro (Porto, 1934 - Loures, 1980) à frente dessa quixotesca ala liberal, que quis, contra a extrema-direita do regime,  democratizar o  corporativo e autoritário Estado Novo. Estranha, sinistra,  coincidência: Sá Carneiro irá morrer igualmente num desastre de avião em circunstâncias que nunca virão a ser cabalmente esclarecidas: falha humana. erro técnico, atentado...

Estranho país este, o que coube em sorte a Pinto Leite e a Sá Carneiro que foram bons (senão dos melhores) portugueses do seu tempo... LG
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Notas do editor:

(*) Último poste da série  > 8 de dezenbro de  2019 > Guiné 61/74 - P20428: Recortes de imprensa (107): Homenagem, em Ribamar, Lourinhã, aos 23 pescadores, de um total de 38 mortos, que ficaram insepultos no mar nos últimos 50 anos ("Alvorada", 15 de novembro de 2019)

Guiné 61/74 - P20457: Blogpoesia (650): "Igreja Matriz", "Palavras perdidas" e "Diametralmente oposto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Igreja Matriz

Igreja velhinha de pedra, lavada
Das chuvas e neves mortais,
Erguida no pé de um monte que a natureza ergueu.
Torre sineira, esguia, ostentando a cruz,
Fonte de bênçãos.
Aldeia singela, perdida, nos longes da serra,
Longe do mar.
Banhada de sol e de azul.
Terra das gentes singelas.
Vivem do pão e do vinho
Que a terra lhes dá.
Sabem de cor as horas do dia,
Banhado de sol.
Puxam a pé seus carros de bois
Com lenha seca dos montes.
Aquecem o lar e cozem o pão.
Lavram os campos com arados e raviças de aço.
Colhem e secam as ceifas nas medas e eiras ao sol.
Festejam os santos e fazem promessas,
Rogando as bênçãos,
Afastados do mundo, mas voltados para Deus

Berlim, 8 de Dezembro de 2019
9h12m
Jlmg

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Palavras perdidas

Como folhas secas, cobrem o chão as palavras que os costumes e a moda desmaiou.
Perderam o sentido.
O tempo o matou.
Diversos os valores.
Diversas as cores que, hoje,
Vestem a vida.
Por vezes, inversas.
Se baralharam as palavras que os traduziam.
Definharam. Perdidas,
Jazem mortas no chão.
Tempos avessos. Os tempos modernos.
Modernidade estéril, utilitarista e Edonista.
Apegou-se ao estrangeiro.
Ergueu-se uma fronteira entre
Os maiores e a gente moderna.
Por isso morreram.
Não serviam para nada.

Berlim, 10 de Dezembro de 2019
13h20m
Jlmg

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Diametralmente oposto

Este mundo moderno atingiu alturas de desenvolvimento técnico impensáveis face às origens primitivas.
Se infiltrou nas profundidades dos saberes.
Dentro e fora do nosso corpo.
Perscrutou segredos na constituição da matéria e da vida quase divinos.
Se alcandorou aos remotos escaninhos do universo.
Trepou à Lua e Marte.
Viu a Terra doce e azul, uma bolinha a vaguear no mar do céu como as estrelas e os astros.

Mas errou na rota de valores que elegeu para viver.
Se prendeu à lama das riquezas ilusórias.
Ergueu altares ao deus-dinheiro e ao capital.
É cruel com os mais fracos e desprotegidos.
Abandona náufragos enquanto se banqueteia lautamente em palácios de vergonhosa ostentação.
Tomou o rumo diametralmente oposto ao da vontade de quem o criou...

Ouvindo Schubert
Berlim, 14 de Dezembro de 2019
10h17m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20426: Blogpoesia (649): "África negra das ventanias e vendavais", "Nem com Wagner..." e "Cataratas da minha terra", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20456: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (5): Jorge Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, Xime e Mansambo, 1972/74)





Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, 
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, 
indigitado régulo da Tabanca de Almada; régulo da Tabanca dos Emiratos; 
tem 234 referências no nosso blogue: nosso coeditor
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores: