segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a segunda e última parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte II

Gen Carlos Azeredo
No Porto, o Tenente-Coronel Carlos Azeredo e a sua malta do MFA gastaram apenas 8 minutos a consumar o êxito do 25 de Abril em todo o Entre Minho e Douro - até o Covid-19 acha que o Norte é uma nação -, fizeram apenas duas prisões, o 2.º Comandante e o Comandante da Região Militar, e por menos de 24 horas, e decidiram não prender o seu General Comandante, sem dúvida pessoa importante, considerando que aquele Quartel General era a sua residência familiar, a sua filha estar de casamento marcado para o dia 27 e serviço da boda contratado para ser servido seu Salão Nobre.

Em Lisboa, o 25 de Abril foi feito à grande e à escala de Clausewitz; no Porto foi feito à “Português Suave” e à moda de D. Afonso Henriques, em Guimarães!

O “vírus” do MFA surgiu na Guiné, em 1972, o General Spínola o seu profeta e os capitães “seus rapazes” da Spinolândia os seus apóstolos, no contexto da sua ambição de substituir o Almirante Américo Tomás no cargo de Presidente da República, para o que contava com a cumplicidade de Marcello Caetano; tendo-lhe este roído a corda, ao saber que diligenciava apoios políticos de Sá Carneiro, de Pinto Balsemão e da Ala Liberal e de Mário Soares, Salgado Zenha, da Acção Socialista Portuguesa, mantendo a cumplicidade com os seus capitães, como “barriga de aluguer” para a mudança. A influência do feitiço da Guiné e da dinâmica do pensamento e acção de Amílcar Cabral a contaminar militares e políticos portugueses, e, plausivelmente, a grande oportunidade perdida de dar um fim decente e justo às guerras ultramarinas.

Em 1972, o PAIGC estava na mó de baixo e o seu “balneário” de guineenses e cabo-verdianos era um saco de gatos. Foi quando Amílcar Cabral foi à Rússia implorar armamento da última geração. Ouvi Nino Vieira dizer na RTP que ele agitava o catálogo do míssil Strela enquanto implorava aos seus interlocutores: - A nossa luta está a morrer de sede; a União Soviética tem nesta arma a nossa salvação. Não nos deixem morrer de sede.

A União Soviética não se fez rogada e veio em seu socorro, redimensionou o armamento do PAIGC e, em Março de 1973, o seu semi-secreto míssil Strela chegava à Guiné e os seus operadores prontos para retirar a supremacia do seu céu aos pássaros metálicos de Base Aérea n.º 12, em Bissalanca.

Sendo a espinha dorsal do Exército, a classe dos Capitães é tradicionalmente refilona, qual espinha na garganta das hierarquias. No meu tempo já reclamavam contra as “violências do Ministério do Exército”. A revolta antecedente, o 28 de Maio de 1926, havia sido detonada por capitães (mas com hierarquia, o General Gomes da Costa o seu chefe) e foi a guerra do Ultramar que fez esgotar o prazo de validade dos quase 50 anos de centuriões e de convívio da classe com o regime do Estado Novo.

O 25 de Abril de 1974 foi detonado pela mesma classe dos Capitães, “rapazes da Guiné” na sua maioria, improvável, por ser um colectivo, e horizontal, sem chefe nem hierarquias. Uma revolta acéfala, quase perfeita, mas com consequências.

 Junta de Salvação Nacional

A operação “Viragem Histórica” não deixou cair o poder na rua, o MFA não quis o poder formal e personificou-o de imediato nos seus “padrinhos” Generais António de Spínola, Costa Gomes e na Junta de Salvação Nacional. Os seus actores regressaram aos seus quartéis, o Major Otelo, seu comandante operacional em Lisboa, voltou a instrutor na Academia Militar, o Tenente-Coronel Azeredo, seu comandante operacional no Porto, manteve-se sem comando nem comandados, a aguardar a Junta Médica do Hospital Militar, para o passar à reserva como “deficiente mental” e o Capitão Vasco Lourenço, o seu enfant terrible e locomotiva da revolta, protagonizou-o no seu desterro nos Açores.

A par da vitória do movimento em todo o universo português, da efectivação em Lisboa do poder político e da cadeia de comando militar, do Minho a Timor, na manhã do dia 26, o MFA de Bissau detonou a sua própria revolta, desnatou o Comando Militar na Guiné da sua cúpula, alardeando que o PAIGC e a Guiné eram a mesma coisa, os seus factores não eram arbitrários e começou a fazer o seu caminho, mais para se libertar e libertar Portugal da Guiné que libertar do seu povo. Com tão insano proceder num estado de guerra, o MFA da Guiné tornou-se em potencial vitorioso do PAIGC, e, sem ter legitimidade, subtraiu a Portugal o seu peso negocial.

Acontecera a primeira deriva do MFA. Não é preciso galões para saber que a melhor negociação é sempre conseguida a partir de posição de força e não com piedosas declarações de intenção da capitulação.

O MFA abriu avenidas a movimentos de opinião, legalizou 13 partidos políticos, 10 revolucionários de esquerda, apenas 3 moderados, decretou a proscrição dos movimentos da Direita e ele mesmo se dividiu em duas 2 facções político-militares: os spinolistas, representando cerca de 20%, tendenciais a um certo cesarismo, personificado pelo General Spínola e os “puros”, representando 80%., mais ou menos afectos à personalidade do General Costa Gomes.

Com o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o MFA “empalmou” os spinolistas, passou a dividir o poder com a rua e a sua massa dos “puros” dividir-se-á em 3 facções: os moderados, da democracia por eleições justas e livres, respaldados no General Costa Gomes; os gonçalvistas, filo-comunistas ou engrenados nas suas estruturas partidárias, afectos ao General Vasco Gonçalves; e copconistas, os esquerdistas contestatários da democracia formal e os revolucionários da democracia directa, que converteram e alçaram a seu profeta Otelo Saraiva de Carvalho, ora graduado em Oficial-General.

As consequências da acefalia hierárquica do MFA começavam a vir ao de cima: o divisionismo resultou no PREC, no abandalhamento dos quartéis, que espantou o mundo e tanto maculou a honra castrense das FA Portuguesas, a tragédia da descolonização do Ultramar e a acelerada instalação do caos na organização económica da Sociedade portuguesa. O MFA que se portara à altura de todas as solicitações militares, parecia desconhecedor do seu próprio povo e da sua história.

Cap Salgueiro Maia
Os efeitos da sua acefalia e do seu colectivismo tiveram a sua evidência logo no seu primeiro momento vitorioso: aceitaram que Marcello Caetano, já rendido ao MFA e prisioneiro do Capitão Salgueiro Maia, lhes escolhesse o General Spínola para Presidente da Junta de Salvação Nacional/ Presidente da República de Portugal e, por inerência, Supremo Comandante das Forças Armadas!...

O MFA começou o seu desvario menos de 2 meses após o sucesso da sua revolta, ao tirar o tapete ao Prof. Palma Carlos e ao seu Governo, na sua falta de análise da discrepância da lógica civilista e de “estado de direito” do Governo com a lógica militar e voluntarista do seu Programa, e, enquanto noviços da democracia, sobrepuseram-se a democratas militantes, ajuizaram o valor da sua proposta ao Conselho de Estado, órgão composto por 12 militares e 7 civis, com poderes constituintes, escolhidos pelo MFA, como golpe conspirativo. Em última análise, propunha-se a busca de um “quadro jurídico”, pela troca da prioridade de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, pela de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, com começo na rápida eleição do Presidente da República e por um governo legítimo, empossado por ele.

Republicano e civilista, para o I Governo Provisório só o Povo legitimava o poder, uma cabeça um voto era urgente, um direito inalienável, daí a prioridade atribuída à democratização; para os “Capitães de Abril”, o poder residia no Programa do MFA, a sua legitimação residia no seu colectivo e no poder das suas armas, o controle político do Governo era uma prerrogativa revolucionária da Comissão Coordenadora, a descolonização tinha prioridade sobre a democracia formal.

E, enquanto considerou que, com a transferência da ditadura portuguesa para a ditadura dos seus partidos únicos e armados, sem permissão de outros partidos políticos nem quaisquer eleições, os povos do Ultramar ficariam automaticamente “livres”, o MFA procrastinou durante mais de 2 anos a democracia a Portugal, impôs-nos eleições constituintes, legislativas e presidenciais, e, após a instituição da nossa democracia pluralista, ainda a tutelou durante 7 anos com um Conselho da Revolução.

Gen Vasco Gonçalves
O MFA dos Capitães abrira-se às hierarquias, a Comissão Coordenadora alçou o seu presidente, Coronel Vasco Gonçalves à chefia do II Governo Provisório e começou a fazer o seu caminho para retirar o General Spínola de inquilino do Palácio de Belém, tecendo uma “teoria da conspiração”, ao embargar a manifestação em seu apoio, a ”Maioria Silenciosa”, segundo os seus promotores, coordenada pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, que havia comandado a “Operação Tridente” e derrotado o PAIGC nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, ou a conspiração do “28 de Setembro”, segundo o MFA e políticos apoiantes, que o COPCON desmantelou, a prender organizadores e manifestantes, a dinamizar cortes das estradas, barricadas e a permitir que milícias populares molestassem e prendessem pessoas a eito, por impulsão do fogoso Capitão Vasco Lourenço, o que o popularizará como o Capitão “Melena e Pá”. Vasco Lourenço aqueceu o forno e Otelo Saraiva de Carvalho coseu o pão. Como esse poder na rua foi concessão do COPCON, o evento serviu para germinar a facção político-militar copconista ou revolucionária, a que ele dará o seu patrocínio.

O Primeiro-ministro Vasco Gonçalves ascendeu ao generalato, formou e chefiou mais 3 governos provisórios mas populistas, o germe da facção político-militar gonçalvista, e, sem mandato do povo e na ausência de qualquer quadro político democrático, mudou profunda, embora provisoriamente, a nossa organização económica, com não raros atropelos à nossa realidade de 3.º país mais antigo do mundo, o respeito merecido pelos 900 anos de independência, de instituições governamentais e de história e, no referido à descolonização, os deveres e responsabilidades contraídos por Portugal para com os seus povos, ao longo de 500 anos da sua soberania ultramarina.

Em 11 de Março de 1975, eclodiu em Lisboa uma esquisita tentativa de golpe de Estado, anti-MFA, por terra e pelo ar, com o pretexto de prevenir o massacre de largas dezenas de militares e civis sob o nome código de “Matança da Páscoa”, a perpetrar por revolucionários naturais e internacionais (até constava haver tupamaros aboletados no Ralis!…), segundo informações do governo franquista de Madrid. O MFA superou-o e aproveitou para retirou a facção spinolista da circulação, catrafilando-a e a muitos civis na cadeia; os escapados à captura foram conspirar para a Espanha, organizaram-se no MDLP, e, por ironia do destino, constituirão o potencial estratégico dos moderados do 25 de Novembro, que meter na cadeia os gonçalvistas e os copconistas

11 de Março de 1975

Senti revolta, quando proeminentes Capitães de Abril não tiveram pejo em ir a Cuba pavonear-se de revolucionários e reverenciar Fidel Castro, apenas um ano era passado sobre a crise dos 3 G´s, planeada e comandada por oficiais do exército regular cubano, destacados para o PAIGC, que ajudaram a matar 63 e a ferir gravemente em combate 269 seus e nossos camaradas de armas, o preço do nosso sangue desses eventos bélicos; e o MFA não teve pejo em disponibilizar o aeroporto da ilha de Santa Maria, Açores, a Cuba, para escala técnica do trânsito do exército cubano, a substituir-se a Portugal em Angola, a ajudar o MPLA a espoliar os bens e na expulsão de centenas de milhares de portugueses, muitos com apenas a roupa do corpo (os Retornados).

É a memória que faz a História e não o contrário. Um facto não comentado e quase desconhecido: em 1973, a agenda de Marcello Caetano passara a inscrever a autodeterminação do Ultramar africano. Os Estados Unidos e a União Soviética “estiveram” na operação “viragem Histórica”?

Em 25 de Abril de 1974, a esquadra da NATO da operação “Daw Patrol” estava fundeada no Tejo e o MFA sabia - o então Comandante Rosa Coutinho estava de serviço ao “quarto da noite” no Comiberlant, em Oeiras, - que não dispararia sobre os revoltosos, não obstante a fragata canadiana Huran apontar os seus canhões ao Terreiro do Paço. Quando do 11 de Março de 1975, a informação da “Matança da Páscoa” teve origem em Moscovo e o evento coincidiu com a operação “Intex 75” da NATO, com passagem por Lisboa.

A prioridade civilista “democratização” não vingou sobre a prioridade militar “descolonização”. Na afirmativa, será plausível os contactos preliminares bilaterais terem passado a negociações sérias, prevenidos o êxodo ou o milhão de retornados do Ultramar, os mais de dois milhões de mortos das guerras civis subsequentes e o empobrecimento de colonizador e de colonizados e até os legítimos interesses dos 500 anos de soberania portuguesa salvaguardados.

A FNLA e o MPLA tinham perdido a guerra de Angola por falta de comparência, as negociações da sua autodeterminação estavam praticamente concluídas com Jonas Savimbi e a UNITA, a conceder em 1975, trabalho começado pelos Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e levado a bom porto pelo Eng.º Santos e Castro e os Generais Soares Carneiro e Passos Ramos (irmão do major homónimo assassinado no Pelundo-Guiné). No respeitante a Moçambique, havia negociações conduzidas pelo Eng.º Jorge Jardim. A Guiné era o nosso calcanhar de Aquiles, mas havia contactos com o PAIGC, do Comandante Alpoim Calvão e Luís Cabral.

Começar a descolonização pela Guiné e não por Angola terá sido o maior erro estratégico do MFA ou da descolonização portuguesa. O Programa do MFA inscrevia-a, mas nem a discutira nem a planeara, houve navegação à bolina, não se olhou para as origens das ondas e foi liquidada com a acelerada retracção militar, sem equidade, pelo abandono, para espanto do mundo - e Portugal ficará sob o protectorado do FMI, Fundo Monetário Internacional.

Portugal foi a única potência que fez a descolonização, a empobrecer colonizador e descolonizados.

Eleições Legislativas de 1975

Na sua curta era, o MFA garantiu-nos as eleições constituintes e legislativas e fez outras coisas notáveis, como o Recenseamento Eleitoral, a organização do regresso de centena de milhares de refugiados e a instituição do IARN, que realizou a sua integração plena.

A coragem e a generosidade são fontes do erro e foram apanágio dos “Capitães de Abril”. Mas o seu maior legado é a nossa Democracia.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dada a extensão e a importância que se confere a este livro, justamente premiado com o Prémio Fundação Gulbenkian História Moderna e Contemporânea de Portugal, aborda-se neste texto a passagem de Cabral para a clandestinidade, a sua ligação íntima ao movimento anticolonial português, a sua instalação em Conacri, a tentativa de conversações com Lisboa, a procura de apoios, os preparativos militares, a organização ideológica do líder fundador e a sua visão de unidade Guiné Cabo Verde e o advento da luta armada.
Se o segundo semestre de 1962 foi fundamentalmente ditado por atos de sabotagem que gradualmente desarticularam o Sul da província, 1963 assume-se como o tempo da instalação de duas frentes, a Sul e a Norte e a tentativa falhada na revisão do território, os excessos rápidos foram tais que Cabral chegou a acreditar que a vitória estava próxima. Mas a reação de Lisboa foi enorme, o dispositivo militar crescerá exponencialmente. Como veremos com o desenvolvimento da luta armada.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Amílcar Cabral abandona discretamente Lisboa e em 1960 vamos encontrá-lo no Norte de África em reuniões relacionadas com as lutas anticoloniais da chamada África portuguesa. Segue depois para Conacri, cabe-lhe montar a organização do PAIGC, esboçar uma ofensiva diplomática que permita formação de guerrilha para muitos jovens, acesso a armamento, apoio financeiro, e muito mais. Julião Soares Sousa descreve detalhadamente os combates espinhosos travados com organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde em Conacri e em Dakar. Rafael Barbosa é o mobilizador dentro da Guiné Portuguesa. Em Dakar e Conacri o PAIGC goza de enorme hostilidade e vai vencê-la. No plano diplomático, e a nível do MAC (Movimento Anticolonialista), Cabral vai capitanear informações sobre o colonialismo português, terá a maior importância a sua viagem a Londres, trabalha ativamente na frente internacionalista, em grande unidade com figuras como Mário de Andrade e Viriato da Cruz, políticos de proa do MPLA.

O autor consagra ampla reflexão à problemática da unidade africana e à unidade Guiné e Cabo Verde, estuda-as num certo paralelismo, encontra pontos de simbiose. Os sonhos de unidade africana cairão praticamente todos na água. Cabral concebe um projeto de união sub-regional, alegando que guineenses e cabo-verdianos partilhavam uma origem ancestral comum, referia-se à circunstância dos escravos transportados para as ilhas terem sido exclusivamente originários da Guiné, que havia identidade administrativa desde o século XVI e até 1879 entre as duas colónias. Toda a documentação que irá elaborar na viragem da década de 1960 insiste nesta identidade de interesses, vai encontrar enorme oposição. Por exemplo o cabo-verdiano Leitão da Graça defendia que não havia ligações históricas entre aquelas duas colónias, dizendo mesmo: “Na época colonial, a Guiné e Cabo Verde estiveram ligados organicamente mas para o interesse do colonialismo”. Cabral procura replicar dizendo que os cabo-verdianos jamais poderiam comandar os destinos da Guiné, seriam os guineenses a decidir depois da independência quem iria dirigir o país. Estava lançada uma semente de surdo descontentamento, passava a ser tabu mencionar-se as relações rancorosas entre guineenses e cabo-verdianos, estes eram os mandantes do poder colonial, chefiavam a administração, possuíam negócios, eram inequivocamente racistas. O descontentamento ficará adormecido até aos acontecimentos brutais de 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Conquistada a liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, apoiado por Sékou Touré, Cabral escreve a Salazar propondo conversações para a independência das colónias, nunca obterá resposta. Em Dakar, o PAIGC não tem uma vida fácil, Leopoldo Senghor apoia a FLING e o MLG, estes dois partidos irão fundir-se mais tarde. De 1961 para 1962, a repressão sobre os militantes do PAIGC na Guiné enche as cadeias, é impressionante a vaga de prisões, em Março de 1962 Rafael Barbosa será preso, mas a subversão não para, a partir do segundo semestre de 1962 todo o Sul da Guiné entra em tumulto. Usando a expressão do autor, Cabral e o PAIGC entraram na fase do “Estado em construção”. Aqui Soares Sousa detém-se longamente sobre o pensamento ideológico de Cabral em matérias como o imperialismo, o neocolonialismo, a cultura e libertação nacional e como esta já estava a gerar cultura e identidade específicas.

Escreve ao autor que até Janeiro de 1963 a estratégia de Cabral amparava-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos á autodeterminação e à independência. Mas foi incitando uma atmosfera de subversão, tinha poucas ilusões de que Salazar aceitasse os ventos da história, a onda da descolonização. A violência e a luta armada foram-se gradualmente substituindo aos métodos pacíficos, começaram os preparativos para o início da guerra. Cabral era simultaneamente um marxista típico e atípico, aceitava a parte funcional da ditadura do proletariado mas tinha uma visão própria do proletariado, da vanguarda pequeno-burguesa mas dizia sem ambiguidade que “por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto”. Cabral estudava e mandava estudar a estrutura social guineense, as sociedades horizontais e as verticais, as razões que levavam Fulas e Mandingas a apoiar os portugueses, a posição ambivalente dos comerciantes e dos camponeses, o seu apreço pelo campesinato Balanta. Entendia que a política de mobilização na Guiné não podia incidir sob os mesmos princípios dogmáticos adotados na Argélia ou na China. Muito menos podia ser justificada a luta de libertação com base em conceitos sobre o colonialismo ou o imperialismo. Na Guiné, o problema da alienação de terras nunca se colocou. “Para que a mobilização produzisse os resultados desejados devia incidir sobre aspetos da realidade que fossem inteligíveis para as massas. A atenção devia estar virada para os seguintes problemas: o baixo preço dos produtos agrícolas, a obrigatoriedade de pagamento de impostos, os abusos perpetrados pelos funcionários administrativos. Não foi por acaso que a subversão eclodiu justamente em zonas controladas por companhias monopolistas e em terras predominantemente habitadas por Balantas”.

Logo em 1961, quando o MLG atacou em Julho S. Domingos, Cabral se apercebeu que era indispensável acelerar o processo preparatório militar. Nesse ano os primeiros quadros partiram para a China. Marrocos e o Gana dotaram o PAI/PAIGC com as primeiras armas e munições. Depois da China, Moscovo tornar-se-á no principal aliado e fornecedor militar. Em Agosto de 1962 as sabotagens ganharam expressão no Sul, foram o antecedente próximo da luta armada. Esta inicia-se formalmente em Janeiro de 1963, eivada de dificuldades, ainda pouca preparação militar, armamento muito deficiente, processos intimidatórios que Cabral irá punir no ano seguinte, no congresso de Cassacá. A surpresa da estratégia utilizada foi muito grande, o dispositivo militar português instalara-se a contar com refregas nas fronteiras. E a seguir ao caos instalado na zona Sul que levou o Brigadeiro Louro de Sousa a escrever para Lisboa que o controlo era praticamente total por parte do PAIGC com exceção das povoações junto aos rios, a escalada ofensiva estendeu-se para a chamada Frente Norte, Cabral contava que a aceleração das sabotagens desarticulasse por completo a economia colonial, designadamente a monocultura do amendoim. Osvaldo Vieira e Francisco Mendes vão para a zona do Morés e são bem-sucedidos. A Frente Leste abrirá mais tarde, mas os relatório militares portugueses dão conta de situações muitíssimos graves, caso do Corubal que deixou praticamente de ser navegável. A luta armada estava de pedra e cal. Lisboa é forçada a mobilizar cada vez mais batalhões para a Guiné. No interior, PAIGC e as populações aliadas dos portugueses disputam-se encarniçadamente.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20986: Efemérides (326): Foi há 48 anos: fui gravemente ferido no decurso da Op Dargor, evacuado para o HM 241, em Bissau, e depois para Lisboa, o HMP (José Maria Pinela, ex-1º cabo trms, CCS/BCAV 3846, Ingoré, 1971/73), hoje DFA


Guiné > Bissau > HM 241 > c. maio/ junho de 1972 > Gravemente ferido em combate, em 14/5/1972, o José Maria Pinela esteve aqui internado dois meses, sendo sendo evacuado para o HMP, em Lisboa donde teve alva em 6/4/1973. É hoje DFA (Deficiente das Forças Armadas).

Fotos (e legenda): © José Maria Pinela (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. José Maria Pinela (DFA), ex-1.º cabo trms, CCS/BCAV 3846 (Ingoré, 1971/73), membro nº 685 da Tabanca Grande (desde 4 de maio de 2015) (*)

(i) assentou praça em Elvas,  BC 8, na 3.ª Companhia de Instrução do 3.º Turno de 1970, onde fez a recruta;

(ii) em Lisboa, no BC 5, fez a especialidade de Transmissões de Infantaria:

(iii) seguiu para Portalegre, BC 1, onde permaneceu até à mobilização  ("por sinal no dia dos meus 22 anos, 16 de Fevereiro");

(iv) daqui partiu para Estremoz, BC 3, a fim de formar Batalhão;

(v) foi colocado na  CCS / BCAV 3846, como 1.º  cabo trms;

(vi) a madrugada do dia 3 de Abril de 1971, o batalhão seguiu para  a Lisboa,  embarcando no T/T  Angra do Heroísmo, com destino à Guiné:

(vii) chegada a Bissau no dia 9 de abril de 1971;

(viii) depois de um mês no Cumeré, para a IAO, partiram  para a nossa zona operacional, duas companhias para o Ingoré, incluindo a CCS, outra para São Domingos e outra para Susana-Varela;

"Decorreu o resto do ano de 1971 conforme se pôde, até que entrou o ano de 1972 que começou mal como o ano anterior. A 14 de maio caímos numa emboscada, onde fui ferido e evacuado de helicóptero para o HM 241, em Bissau, onde permaneci durante cerca de dois meses, e de onde acabei por ser evacuado por via aérea para o Hospital Militar, Anexo em Campolide, de onde saí como DFA, no dia 6 de Abril de 1973, dado como incapaz para todo o serviço militar e apto parcialmente para o trabalho".

O BCAV 3846 regressou à metrópole a 13 de março de 1973. O pessoal tem vindo a realizar o seu convívio anual.


Guiné > Região de Cacheu > Carta de Sedengal > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Sedengal, Ingoré e mata de Canchungo, junto à fronteira do Senegal, entre os marcos 143 w 139.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Para relembra esta fatídica efeméride, o 14 de maio de 1972, o camarada Pinela publicou, na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça as quatro fotos acima reproduzidas,  mais a seguinte mensagem:

Olá,  camaradas de armas, ex-combatentes da Guiné! Bom dia a todos.

Faz hoje precisamente 48 anos, 14 de maio de 1972, começo do dia às 3 horas da manhã em Ingoré, operação Dargor, destino mata do Canchungo entre os marcos de fronteira norte 139-143, cerca das 8 da manhã primeira emboscada, onde eu fui atingido de imediato, era um alvo a abater logo de início, posto rádio Racal às costas, AVP 1 ao pescoço e todo o material que nos equipava. 

Aí começa toda a odisseia até à chegada dos Fiat G-91, do heli canhão e do heli de evacuação que me levou até HM241, em Bissau.

Aí chegado, fui recebido por uma equipa extraordinária que me salvou a vida, e não só, também alguns membros!

Sobrevivi até hoje felizmente, já outros não tiveram a mesma sorte e por lá perderam a vida ou partes do corpo! Para nada!!!

Aqui ficam algumas fotos desse domingo, 14-05-1972.(**)
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Guiné 61/74 - P20985: Parabéns a você (1804): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor:

Último poste da série >  17 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20981: Parabéns a você (1803): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Guiné, 1963/65)

domingo, 17 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a primeira parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte I

Abril legou a Maio a Primavera, o seu esplendor e a pandemia do Covid-19, esse sinistro vírus rotundo e cornudo.

Os poetas cantam que “a primavera vai e volta sempre,/A mocidade vai e não volta mais”, as zaragatoas neofaríngeas ajudam a confirmar que esse malvado pode ir e voltar, os epidemiologistas consideram-no democrático, mas, do seu regime, nós apenas vamos conhecendo, hora a hora, dia a dia, o número de infectados, dos seus condenados à morte, e experimentado o confinamento e a distanciação social - a praxis das ditaduras (ou ele não seja made in China).

O confinamento encurta o prazo de validade do nosso grupo etário, provoca o esvaziamento das garrafeiras, cuida da alteração dos valores da nossa composição química, com erupções de ácido úrico, diabetes, colesterol, a escalada da tensão arterial, e, no relativo à distanciação social, cuida de enfraquecer a nossa resistência mecânica, com o reumático e pela rarefacção daqueles movimentos mecânicos de corpo a corpo, para os quais os irracionais têm época própria, mas que a espécie humana exercita todo o ano. Que a Ciência, essa divina componente da espécie humana, o sepulte rapidamente no inferno.

Panorâmica da Avenida dos Aliados, no Porto, a 1 de maio de 1974. O primeiro 1º de Maio em liberdade
Foto e legenda com a devida vénia a Expresso

Como os ecos das celebrações “nacionais” do 25 de Abril e do 1.º de Maio ainda não se esvaíram, começo a servir esta prosa memorialista, confeccionada nessa ditadura temporal do Covid-19, pondo o avental de contestatário: não perdi nem a devoção ao 25 de Abril nem a estima pelos “capitães de Abril”, sou crítico da impreparação política e derivas do MFA, sou contrário aos feriados nacionais do 25 de Abril e do 5 de Outubro, porque celebram as mudanças de regime, pela sua lógica triunfalista, divisionista, o oposto da união, e, em desafio à gramática, sou crítico de se grafar República Portuguesa e não República de Portugal.

A celebração do 1.º de Maio, pela sua dimensão mundial, abrangente pelo seu sentido de exaltação da dignidade do trabalhador e do emprego, como criadores de toda a riqueza da espécie humana, da sua distribuição, equitativa como direito natural, é merecedora do decreto de feriado nacional.

Invocando o princípio de equidade e considerando a nossa maioridade cívica um dado adquirido, preconizo a substituição de alguns feriados nacionais, celebrativos das mudanças de regime e religiosos (dias santos) por outros, celebrativos da nossa história e identidade, por exemplo da fundação da nacionalidade, da independência nacional, da Batalha Real (de Aljubarrota), do nosso primeiro Descobrimento marítimo, etc.

A celebração do primeiro 1.º de Maio de 1974 do após 25 de Abril foi de toda a gente, abrangente, à dimensão nacional, ainda a CGTP nem era ideológica nem havida cometido o seu pecado original de complementar um partido político, um milhão de pessoas celebrou-o em Lisboa, um pouco menos celebrou-o no Porto, o país um mar de unidade nacional, de maturidade cívica e a primeira evidência da pureza e sinceridade do ideal dos “capitães de Abril”, cujas projecções matemáticas davam 95% de adesão à sua revolta. Foi um massivo aval do Povo ao MFA.

No referido neste blogue à celebração pelo PAIGC do 28 de Maio de 1965 com a CArt 676, em Pirada, a efeméride da gestação do regime do Estado Novo não era feriado nacional, mas o PAIGC sinalizava-a com bombardeamentos nocturnos e a fogachar as tabancas fronteiriças; desgastar o moral e matar a tropa era o seu intento, mas as granadas são cegas e geralmente matavam e estropiavam crianças, mulheres e velhos, seus compatriotas.

O PAIGC celebrou o 28 de Maio de 1965 não só em Pirada, mas também noutras quadrículas; chamou a minha CCav 703 à colação da sua celebração, sobre a população fula e mandinga da tabanca de Buruntuma, no extremo Leste, com tiro tenso e curvo, de armas ligeiras em proximidade e de armas pesadas em território estrangeiro, o seu gozo e o nosso mau bocado duraram menos de 5 minutos – arriscamos o envolvimento à sua retaguarda, no estrangeiro - e o resultado da sua celebração foi: PAIGC, 2 (mortos) – Tropa e população, 0 (mortos).

As suas flagelações sobre a CCav 703 e a populosa tabanca de Buruntuma tornaram-se rotineiras – pela alvorada, pela hora do almoço e pela hora de recolher. Nesse mesmo ano, obrigou-nos a participar na sua comemoração nocturna do 19 de Setembro, aniversário do seu líder Amílcar Cabral, e, também, na celebração nocturna de 24 de Setembro, aniversário da sua fundação, paternidade que ele nunca usurpou, mas que “historiadores” do politicamente correcto teimam em lhe imputar, expropriando-a ao pedreiro comunista Rafael Barbosa. Porquê? Por a PIDE não o ter liquidado, hospedado no Tarrafal e por ele ter regressado a Bissau “reeducado”, adversário do PAIGC e entusiasta do spinolismo.

O engenheiro agrónomo Amílcar Cabral só não foi hóspede do Tarrafal, quando estudava os solos e subvertia o “proletariado rural” do sul e do leste da Guiné, porque o Governador Comandante Melo e Alvim, bom conhecedor do povo e da realidade guineense, o estimava e não deixou. Liderou a guerra de libertação da Guiné, é o pai da Nacionalidade bissau-guineense, não foi o pai fundador do PAIGC, mas seu padrasto.

Para não deixar os meus parcos créditos de veterano e de cronista da Guerra da Guiné arrastar-se pelas ruas da amargura, não resisto em abordar os acontecimentos do mês de Maio de 1973 – as celebrações bélicas do PAIGC sobre Guileje, Gadamael e Guidaje -, ou “crise dos 3 G´s”, cuja extensão e profundidade provocaram a gestação do 25 de Abril e serviram de rampa de lançamento à sua declaração unilateral de independência.

O impensável aconteceu na guarnição de Guileje, nesse mês de Maio de 1973. A guerra contava 12 anos, muito aguerrida e dura no sul, e, pela primeira vez, um oficial superior do Exército Português baixou a espada, de renúncia ao combate e à soberania de Portugal sobre o sector militar que comandava, concedendo às FARP a sua primeira libertação territorial - o seu aquartelamento fortificado, deserto de tropa, e a sua tabanca, deserta de gente.

A “Operação Amílcar Cabral” havia sido idealizada por ele, e, em sua memória póstuma, o PAIGC confiou o planeamento e o seu comando no terreno a oficiais cubanos, seus cooperantes. Nesse mês de Maio de 1973, as suas FARP (Forças Armadas Revolucionárias Populares) de Nino Vieira (comandante) e Pedro Pires (comissário político) fizeram da tabanca, das suas acessibilidades e do aquartelamento de Guileje, no sul, o seu campo de tiro tenso e curvo, montaram emboscadas sangrentas nas suas acessibilidades, a privá-la de água e reabastecimentos, orientaram e acertaram-lhe com mais de 900 obuses.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. 
Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]

Por sua análise da situação, o comandante do sector Major Coutinho e Lima reagiu a esse dilúvio de metralha inimiga pelo descarte ao combate, optou pela economia de sofrimento, sangue e na prevenção a aprisionamentos. Contrariando as ordens presenciais do Comandante-Chefe, manobrou a retirada ordenada da guarnição para Gadamael Porto, secundada pelo êxodo da totalidade população, na sua aversão à sua “libertação” pelo PAIGC. Terá negligenciado que transferia a problemática de Guileje para essa tabanca e subavaliado a elevada remuneração que concederá à avidez territorial do PAIGC e da sua propaganda internacional: abandonou a principal base fortificada de soberania portuguesa, na extensa fronteira entre Buruntuma e Aldeia Formosa (Quebo), e, pela sua incompatibilidade com a táctica furtiva dessa retirada, teve de deixar para trás 2 obuses de 140, autometralhadoras Fox, granadeiros Whaite, camiões Mercedes e Berliet, morteiros de 82, de 107, bazucas de 89, algumas G3, bens de aquartelamento e provisões da intendência, incluindo os whisquies do seu bar de oficiais, mapas do Estado-Maior, etc., etc.

Então, a partir de 28 de Maio de 1973, o PAIGC passou a içar a sua bandeira no pau da bandeira, na parada desse aquartelamento fortificado, que pertencera à bandeira nacional, e o mundo viu-se invadido pela sua propaganda gráfica e audiovisual, com enfoque nos cenários do abandono pelo Exército Português das instalações, do içar da sua bandeira e daquele volumoso espólio de guerra, acreditamos que deixado inoperativo. E foi a crise de Guileje que credibilizará junto da OUA, da ONU e das chancelarias de países ocidentais a futura manobra do PAIGC da declaração unilateral da independência, no Boé, em 24 de Setembro seguinte, que encravilhou mais a diplomacia de Portugal.

Como Guileje era uma base bem armada e com abrigos de betão armado, construídos pela Engenharia militar, os planeadores dessa operação não previam a sua autoderrota, o seu principal objectivo seria a captura de alguns prisioneiros, para trunfo e trofeu, (a “Operação Mar Verde” tornara a sua cadeia em Conacri devoluta de militares portugueses). Este sucesso artilhou-lhes o etos belicista, as FARP avançaram do estrangeiro o seu armamento pesado cerca de 15 km no interior da Guiné e sacrificaram a tabanca de Gadamael-Porto com o seu dilúvio de metralha, apenas protegida com valas a céu aberto, ora pejada de gente em pavor, de tropa desmoralizada e à beira de um ataque de nervos.

Ouvi o comandante Pedro Pires dizer na RTP que as coordenadas e a precisão do tiro curvo sobre Gadamael lhes foram facultadas por um desses mapas de Estado-Maior, deixado para trás em Guileje. Depois de terem gasto mais de 1000 obuses a destruir instalações e a revolver o espaço de Gadamael Porto, investimento alto mas de parcos os resultados, as FARP foram forçados à retirada acelerada para os seus refúgios no estrangeiro, ameaçadas pelo general “época das chuvas” e já a confrontar-se com os reforços de tropas especiais, vindas de Cufar, de Bissau e até de Guidaje, em reforço da sua defesa, sua missão extensiva ao assalto e destruição das suas bases de retaguarda, em Kandiafara, Simbel e Tarsaia, na Rep. da G-Conacri, manobra idêntica à que havia destruído e pilhado a base de retaguarda em Cubam-Hori no Senegal, que alimentava a operação sobre Guidaje.

Major Correia de Campos
Nesse mesmo mês de Maio de 1973 e quase em sintonia com os desenvolvimentos em Guileje, as FARP de Chico Té (comandante) e Manuel dos Santos (comissário político), cumprindo e sintonizados com o planeamento e o comando operacional e oficiais cubanos, também cercaram a tabanca de Guidaje por todos os lados, na fronteira com o Senegal, despejaram mais de 1000 obuses sobre ela, mas nem conseguiram o seu isolamento e nem puderam lançar-se ao seu assalto, planeado para o dia de 23 Maio. Os Fuzileiros, a Companhia de Paraquedistas 121, comandada pelo Capitão Moura Calheiros e a CCav 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, furavam o seu isolamento, o Tenente Coronel Correia de Campos, comandante do sector, embargava a repetição de Guileje. Quando os seus subordinados lhe abordaram a retirada para Bigene, plantou-se na frente do cavalo de frisa, impecavelmente fardado, a agitar o pingalim, de pistola em punho e a dizer-lhes:
- Só por cima do meu cadáver!

As valas de Guidaje  
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

E as FARP tiveram de desmontar o cerco a Guidaje e manobrar a retirada para os seus abrigos no estrangeiro, já a contas com uma manobra de envolvimento montada pelo Batalhão dos Comandos Africanos à sua base de retaguarda de Cumbam-Hori, no Senegal, comandado pelo Tenente-Coronel Almeida Bruno, as suas subunidades comandadas pelos Capitães Raul Folques, Matos Gomes e António Ramos, que eliminaram o seu coordenador, tenente cubano Raul Abade, lhes causaram elevadas baixas, entre nativos e cooperantes estrangeiros, e a perda de 100 armas automáticas, 100 morteiros de 60, 81 e 120, 14 canhões e de 100 toneladas de munições.

Os dois oficiais Correia de Campos e Salgueiro Maia, que em Maio de 1973 se notabilizaram no contexto bélico de Guidaje, virão a ser essenciais ao sucesso da revolta do dia 25 de Abril, em Lisboa, com os seus desempenhos no Terreiro do Paço, no Largo do Carmo, etc. Se muitos foram os chamados, estes foram dos decisivos.

Se o 25 de Abril é contentamento e cantado como um “dia inteiro e limpo” (poesia de Sophia), pela sua bondade intrínseca e virtude profissional dos seus actores, a estragação ou pecados do MFA são susceptíveis de reparos, por se ter contraído o esquerdismo, a doença infantil das revoluções e pelas derivas ao seu ideal.

O Major Otelo Saraiva de Carvalho ter-se-á inspirado no pensamento (formado e estruturado na Casa dos Estudantes do Império) e na acção (tirocinada na China e como comandante supremo da Guerra da Guiné) de Amílcar Cabral, para planear e comandar a operação “Viragem Histórica” vulgo “25 de Abril”.

Amílcar Cabral planeou o dispositivo subversivo e militar da sua guerra sobre um mapa escolar da Guiné, o leste contrariou-o, os fulas ciosos de poderem fazer a sua própria libertação e ganhou-a sem Marinha nem Força Aérea; o Major Otelo planeou essa operação sobre um mapa do ACP das estradas de Portugal, mas o Norte dos “portugueses dos mais antigos” quis fazer o próprio golpe – e o MFA ganhou e sem precisar da Marinha e da Força Aérea.

Em Lisboa, o Major Otelo e o estado-maior da conspiração precisaram das tropas do Centro, Lisboa e Sul, de meter muita gente na prisão, sob o pretexto da sua importância e gastaram 20 horas até à vitória da revolta, e ficou a dever a sua materialização sem combate, incruenta, ao “espírito da Guiné” do Coronel Romeiras Júnior, comandante do RC7, ao desempenho e espírito de missão do Capitão Salgueiro Maia, da sua malta, da malta das guarnições de Tomar e de Estremoz, e, sobremaneira, à consciência do Comandante António Louçã, que desobedeceu à ordem recebida pelos canais hierárquicos e não disparou sobre a sua manobra no Terreiro do Paço as granadas de urânio empobrecido que municiavam dos canhões da sua fragata Gago Coutinho – Salgueiro Maia e a sua malta teriam sido dizimados.
(O MFA do PREC cometeu a insanidade de sinalizar ambos de “reaccionários”)…

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20971: 16 anos a blogar (11): Poema de João Afonso Bento Soares, maj gen ref, sobre a sua terra natal: "Meimoa, Princesa da Cova da Beira"

Guiné 61/74 - P20983: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (13): Quem não tem urso come feijão confinado... à moda da Serra da Carregueira, vai ser comido feijão confinado à moda Serra da Carregueira, com entremeada, chouriço, cenoura, couve coração e uma forma de arroz (Valdemar Queiroz)



Feijão confinado à moda da Serra da Carregueira

Fotos (e legenda): ©  Valdemar Queiroz (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem cerca de 110 referências no nosso blogue]

Date: sexta, 15/05/2020 à(s) 22:07
Subject: Quem não tem urso come feijão confinado

Não digo já chega das comidinhas da Lapónia, antes pelo contrário que até abrem o apetite, mas já que estamos numa de vagomestre e, como diria o Snr. D. Vasco de Vasconcelos e Saavedra 'equino objecto de dádiva, não é possível de auscultação odontológica'(*),  não havendo ursos aqui na Serra da Carregueira, vai ser comido feijão confinado, com entremeada, chouriço, cenoura, couve coração e uma forma de arroz.

É pouco e simplório, mas foi o que se pode arranjar para fazer parte da vasta e rica carta, à mesa farta, da nossa Tabanca Grande.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

(*)  A cavalo dado não se olha os dentes
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Nota do editor:

Último poste da série > Último poste da série > 15 de maio de 2020 >  Guiné 61/74 - P20976: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (12): Mais umas dicas do "Chef" Joseph Belo, da Suécia tão exótica quanto erótica...

Guiné 61/74 - P20982: Blogpoesia (677): "Se a vida fosse um mar...", "Tardes suaves" e "Fugir da terra...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Se a vida fosse um mar…

Seria azul a vida, se a vida fosse um mar.
Seria um céu.
Com sol, aceso, de manhã à noite.
Haveria baile a toda a hora.
Com as ondas a bailar.

Haveria lendas e caravelas.
Velas pandas. Nautas perdidos.
Buscando estrelas.
Na solidão da noite.

Brotariam sonhos.
Paixões a arder.
Morreria a dor.
Não haveria fim
E o mal também.

Se calhar, tudo seria eterno.
Haveria paz…

Ouvindo Peaceful Music, Relaxing Music, Instrumental Music "Beautiful Norway" By Tim Janis
Mafra, 13 de Maio de 2020
17h20m
Jlmg

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Tardes suaves

Horas suaves à mesa
Na esplanada do café
Nesta praça de Évora.
Década de sessenta.
Cumprindo a tropa.
RI-16.
Juventude em pujança.
O futuro era a esperança e o sonho.
As tardes eram escaldantes.
Por bosques e montados.
Calcorreando veredas.
De "mauser" ao ombro.
De fato zuarte,
Suando as estopas,
Robustecendo pernas e braços,
Conquistando moinhos.
Ao cabo de meses,
Partíamos para África.
Não mercenários.
Na defesa da Pátria.
Entregues à sorte.
Os anos passaram.
Dezenas.
Favor do destino.
Hoje eu relembro as tardes de Évora.
Emoção e saudade...

Mafra, 14 de Maio de 2020
10h55m
Jlmg

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Fugir da terra...

Fugir da terra para o refúgio do mar
Há ventania e tempestade na terra.
Tornou-se impossível viver.
Rugem ferozes elementos mortíferos.
Sem distinção, atacam indefesos,
Desarmam pobres e ricos,
poderosos e fracos.

Só dá para fugir.
Ficar é morrer.
A não ser que a clemência divina
nos venha valer...

Mafra, 12 de Maio de 2020
10h46m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20959: Blogpoesia (676): "Não matem a lagartixa", "Um raio de sol" e "Oração à sabedoria", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20981: Parabéns a você (1803): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Guiné, 1963/65)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20977: Parabéns a você (1802): Vasco da Gama, ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 8351 (Guiné, 1972/74)

sábado, 16 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20980: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (10): Feliz em África - I (em jeito de biografia)

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, dedicada ainda ao confinamento.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 9

Feliz em África (em jeito de biografia)

À medida que se aproximava o fim da comissão de serviço militar na Guiné, aumentava o sonho de me isolar numa ilha deserta. Era aquele sonho supremo de vir a ter uma cana de pesca, um amor e uma cabana. O cansaço, a saturação e os traumas da guerra, iam-se acumulando e provocando, cada vez mais, a necessidade dessa fase de grande repouso.


Todavia, quando regressados dessa ingrata missão, sentimos que os sonhos foram logo ultrapassados pelas aceitáveis realidades, pelo amor presente, pelas velhas amizades e por um envolvente nacional comodismo. No meu caso, não foi difícil assumir um emprego.
No entanto, mesmo a trabalhar e mantendo algum espírito de revolta e contestação (mesmo não sendo universitário), em Abril de 1969 juntei-me a amigos em Coimbra a apoiar a justa luta estudantil, tal como já o havia feito no ano anterior durante o período de férias durante a guerra na Guiné.

Em poucos meses somos acordados com as tristes realidades que continuam a prevalecer no nosso País. A leve esperança em Marcelo Caetano que, apesar do seu aparente fulgor, não nos convencia estar orientado para a mudança desejada. Portugal isolava-se cada vez mais, a guerra colonial continuava, os seus mortos e estropiados aumentavam e os trabalhadores fugidos também. Continuam a reinar os servidores do regime, seus bufos e seus lacaios. A Igreja Católica colabora, os ricos engordam e os pobres resignam-se. E continuam a imperar os medos, tabus e preconceitos.

As coisas não estão bem, mas também não há força nem grande disposição para lutar. Insatisfeito com a situação profissional surgida e seu impacto no ansiado desfecho amoroso, aproveito a visita do empresário Sr. Celestino, irmão da amiga Professora Patrocínio, que estudara com a minha Gilda, que nos incentivou e ajudou a irmos para Cabinda.

Pelo que ouvia falar sobre Angola e os angolanos, há muito que via ali a tal “ilha tropical”, de mar calmo, areias finas e coqueiros junto da água.

O sonho de ir para uma “ilha deserta” veio a concretizar-se

Vendi o carro à pressa, por baixo preço e parti de barco para Luanda. Embora “desacompanhado”, beneficiei de uma óptima viagem, em 1.ª classe, que muito me agradou. Lembro-me que numa das festas diárias a bordo, foquei a miúda mais linda que ia no barco. Ela também se afastou um pouco a meio da festa e veio encostar-se ao gradeamento, perto de mim, beneficiando também da agradável brisa do mar. Não resisti à tentação de lhe dirigir a palavra:
- Desculpe, a menina sente-se mal?
Ela voltou-se toda receptiva, posicionou-se mostrando todo o seu charme e a sua deslumbrante beleza, e respondeu:
- Sein, aum pocochaeinho.

Ainda trocámos algumas palavras, mas aquele sotaque madeirense saído de uma tal beleza, caiu-me que nem o tal “balde de água fria”.

Chegado a Luanda, aceitei a oferta de uma miúda que me levou para uma pensão familiar. Fui comer à Restinga e fui ao cinema. Quando cheguei ao quarto, revi tanta coisa boa que me atraía, que me parecia prender a ficar por ali. De repente, reajo e assumo: esquece, é hora de mudar de vida, vais para Cabinda e é lá que esperas receber muito brevemente a tua Mulher.

Com a Câmara Municipal ao fundo

O amigo Celestino que me levou para lá, era sócio do melhor Hotel de Cabinda e foi lá que ele me mandou aguardar. Por curiosidade, refiro que conheci ali o famoso Joselito, meu ídolo de infância, que passara por Cabinda em digressão artística.

Desde logo conheci, nos primeiros dias, os seus amigos, que eram das pessoas mais importantes de Cabinda.
Pensava ingressar na empresa Cabinda Gulf Oil Company. Porém, nessa mesma semana, a empresa despedira mais de 700 pessoas, em virtude de ter terminado a fase necessária à sua estruturação.

À esquerda, a fachada lateral direita do edifício da Câmara Municipal de Cabinda

Fui para a Câmara Municipal. No meu concurso, para Aspirante, entre outros documentos, tive que juntar a Caderneta Militar. Quando o secretário ma devolveu, após a minha admissão, teve o cuidado de realçar:
- O melhor documento que o Executivo valorizou foi a sua Caderneta Militar, com um louvor.

Quem havia de dizer que aquilo que eu mais tinha desvalorizado na guerra, me viesse a ajudar? Todos os militares devem lembrar-se que na sua maioria os louvores eram injustos (na sua justificação e na sua distribuição). E então voltei a lembrar-me daquele discurso público do meu Capitão, incentivando os militares:
- “Ainda vamos ver o nosso Furriel Silva de Cruz de Guerra ao peito”.
Ao que eu, sem a educação devida, respondi:
- “Não meu Capitão, eu não quero ser Cantoneiro. Nunca serei Funcionário Público”.

Primeira patuscada em Cabinda, ao norte, junto a um lago. Funcionários da Câmara Municipal com Administrador local.


Em Cabinda passei dos melhores anos da minha vida. A progressão profissional na Câmara Municipal foi notória. Minha mulher chegou e foi ensinar para a Escola Secundária. Nasceu o primeiro filho e com ele uma estabilidade emocional inigualável.

O meu filho identificou-se cedo com “barman”

Petiscando com o meu sogro, em dia de caça, no norte de Cabinda

Fomos à caça para o norte de Cabinda. Elefantes? Só lhes vimos as marcas. Mas deu para ver que o meu sogro era bom atirador. Aqui, abateu uma abetarda.

Com os sogros junto à praia das Missões (Dez 1971)

Passaram-se os primeiros dois anos sem ler, ouvir e pensar em guerra ou em política. A cabeça rejeitava tudo. Apenas mantinha alguma ligação ao desporto.
Afinal a desejada “ilha” existia mesmo! E os coqueiros também! Passava o tempo livre junto do mar e sempre com a cana de pesca.
Criámos o clube da Câmara, promovemos o desporto e desenvolvemos boas amizades.


Pratiquei futebol de salão e fui Campeão na Pesca. Fomos disputar o título de Angola, num concurso na praia da Caotinha, entre Lobito e Benguela. Fui “pescado” para a delegação da Direcção Geral dos Desportos, onde também colaborei nas suas organizações.

Como amante da Sétima Arte, ia quase diariamente ao cinema. E, quando frequentei uma acção de formação de Cinema Amador, fui convidado a integrar a equipa de Cinema do Rádio Clube de Cabinda. Como seu representante, participei no Congresso/Festival do Cinema, realizado em Moçâmedes (1972).

Os anfitriões de Moçâmedes levaram-nos ao Deserto do Kalahri

Quanto mais tempo passava, mais feliz me sentia em Cabinda. E nós íamos vivendo melhor e mais folgadamente.

Meu cunhado Eugénio (militante de esquerda) foi preso para Caxias. Meus sogros, que já nos haviam visitado, viviam isolados e tristes. Foi nessa altura que pensámos na alegria que eles sentiriam se voltassem a ver o neto Zé Tó, com 9 meses (nosso filho).
E a verdade é que essa alegria resultou. E como a criança ainda não fora baptizada, toca de organizar esse evento com o padre de Espinho, nosso amigo.

Porém, à medida que íamos passando o tempo sem ele, fomos sentindo uma angústia crescente, que culminou com a sua vinda, mais de 3 meses depois. Os reflexos emocionais sentidos, ainda hoje se manifestam, sempre que pensamos na “inconsciência daquela aventura”.

Quando o Zé Tó chegou não aceitou o colo dos pais.

Continuaram aqueles anos espectaculares. Basta referir que eu não sentia necessidades de gozar férias. Cheguei ao ponto de confessar, tal como dizia o amigo empreiteiro, Sr. Claudino:
- Ah, não! Não preciso de ir lá, ao puto (Portugal), porque não me esqueci de nada.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20932: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (9): “Operação Confinamento II"

Guiné 61/74 - P20979: Os nossos seres, saberes e lazeres (392): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
A Campânia, nome da região napolitana, tem uma poderosa herança da magma Grécia, inicialmente aqui falou-se grego, obviamente com a constituição da República Romana o latim ganhou foros de cidade. O amante da antiguidade clássica tem à sua disposição três sítios arqueológicos de elevadíssimo valor: Pompeia, o mais gigantesco dos sítios, com fórum, mercado, banhos, teatro, casas riquíssimas e uma atração muito especial que são os vestígios bem explícitos dos lupanares; Pestum, a antiga Poseidonia, fundada por colonos gregos de Sibaris, os entusiastas por arqueologia têm aqui templos magníficos e uma figura de referência, um fresco conhecido por um mergulhador; e a antiga Herakleion, de que estamos a falar. Mostram-se inicialmente imagens tiradas do alto, pela simples razão de que o local da antiga Herculano está bem abaixo do nível da cidade moderna.
É esta sumptuosidade de casas, traçado das ruas, frescos e marcas impressionantes da vivência quotidiana que aqui se pretende mostrar.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (4)

Beja Santos

Não tendo a importância nem a magnificência de Pompeia, Herculano era uma cidade muito próspera. O traçado da cidade que as cinzas da erupção do Vesúvio soterraram em 79 d.C. foi planificado na primeira metade do século IV a.C., conheceu renovação urbanística durante a época de Augusto, sobretudo o teatro, a basílica, o aqueduto e até os templos, as termas e o ginásio. Herculano sofreu um terramoto devastador em 62 d.C., o Imperador Vespasiano contribuiu para a reconstrução. A superfície dentro das muralhas seria aproximadamente de vinte hectares e os habitantes quatro mil. As imagens que se vão mostrar têm a ver com as escavações a céu aberto de uma área modesta, não chega a cinco hectares. O que significa que o visitante não tem acesso a edifícios muito importantes, até porque uma parte deles já se encontra fora do parque arqueológico. A erupção do Vesúvio alterou profundamente toda a área, as águas eram muito próximas de Herculano, agora estão a centenas de metros. Em termos topográficos, como qualquer outra urbe romana, a estrutura da cidade organizava-se em eixos principais conhecidos por decumanos e com ruas transversais conhecidas por cardos. É um dos dados do génio arquitetónico romano e que perduraram na civilização europeia. Quem hoje percorrer Tomar verifica que o seu casco histórico, aprovado pelo infante D. Henrique, tem estrutura similar.




Entra-se no parque arqueológico num ponto ermo, o que permite tentar algumas panorâmicas, recordando sempre que é uma área menor aquela que está escavada. E antes de investir na visita ao que as escavações permitem ver, visitou-se uma exposição de peças encontradas e preservadas, o tema dominante eram os objetos de luxo da cidade romana, como vamos ver, optou-se por mostrar ourivesaria, moedas e belíssimos mosaicos.






As escavações de Herculano começaram em 1738, usou-se a técnica das galerias subterrâneas até que em 1828 começaram as escavações a céu aberto. O milagre de encontrar tantos sinais do que era a vida em Herculano deve-se aos cerca de dezasseis metros de materiais resultantes da erupção que conservaram não só o traçado da cidade como edifícios, azulejos e artefactos de toda a ordem. Após sucessivas escavações, vieram à luz do dia restos orgânicos num número impressionante, até uma embarcação foi descoberta em 1982 na velha praia. Os andares superiores dos edifícios permitem compreender cabalmente como eram os volumes dos mesmos e as técnicas de construção utilizadas.





Quem tem gosto por ver de perto os sinais de uma civilização do período da antiguidade clássica, encontrará aqui motivos de regozijo. Fez-se uma réplica dos esqueletos humanos que se descobriram em 1980 e que são o testemunho da erupção do ano 79 d.C. Eram habitantes de Herculano que fugiam para a praia com os seus objetos mais valiosos, mas não suportaram a elevada temperatura das nuvens ardentes emanadas do vulcão. Foi nesta zona que se encontrou uma embarcação romana de nove metros de comprimento. É inequívoco que a costa estava muito perto. Felizmente que o visitante tem ao seu dispor um pequeno guia que lhe é entregue à entrada e que lhe dá a possibilidade de identificar as termas suburbanas, a área sagrada, os templos, casas senhoriais, os locais da compra de comida, o ginásio, casas com portais ou átrios, oficinas, lojas, por toda a parte temos vestígios de estabelecimentos onde se vendiam bebidas e comida quente, já que os romanos almoçavam fora de casa.



Com o entusiasmo desta apresentação, o viandante dá conta que há muito mais em Herculano, falta ainda falar de certas casas, estabelecimentos e templos de grande beleza.
Fica para a próxima.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20956: Os nossos seres, saberes e lazeres (391): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (3) (Mário Beja Santos)